Capítulo Único
*Partes em itálico significam pedaços da música.
Querido ,
Você vai me odiar.
Não, isso não foi uma pergunta cuja interrogação desapareceu no meio das teclas do meu notebook. Trata-se de um fato: Você vai me odiar. Sei disso. Todos sabemos. É inevitável.
"Por que escrever a carta, então?" pode questionar, seja no silêncio do seu quarto ou no barulho frenético da empresa na qual trabalha - ou qualquer outro cenário escolhido para ler minha despedida. Talvez nem se dê ao trabalho de abrir, na verdade. Acho que jamais irei saber. De qualquer forma, aqui está a resposta: Não é sobre você. Este pequeno papel dobrado quatro vezes e colocado no interior de um envelope que ganhei há dois anos, daquele seu primo viajante que adorava enviar cartas para nós dois, traz na letra elaborada um pouco de mim. Sua ex namorada. Ex melhor amiga. Ex tudo.
Estas são as palavras que você não quis ler do meu rosto, ouvir da minha boca, captar das minhas atitudes. Mas preciso colocar para fora. Sendo assim, aconselho que procure um lugar confortável, se ajeite e lide com a verdade, em vez de fugir como fez em todas as outras chances.
A gente se conheceu na faculdade. Eu, caloura de enfermagem; você, veterano de jornalismo. Como duas pessoas de áreas tão distintas chegaram a habitar um mesmo cômodo? Não há nada que uma festa não faça. E amigos em comum. Essa foi a fórmula responsável pelo pontapé do nosso romance.
Não foi difícil. Apaixonar-me por você, digo - ambos adorávamos debater sobre tudo. Política, novela, livro, filme, qualidade da refeição do RU... Qualquer besteira virava assunto num piscar de olhos. Logo comecei a prestar atenção não somente nas palavras, como também no formato da sua boca ao dizê-las. Eu me perdi nas curvas do seu rosto. Nos olhos que exibe o tempo todo. No que eu sentia quando estávamos juntos.
Três meses depois, engatamos o namoro.
Nada escrito aqui é mistério para você. Não ainda. Então me deixe adiantar a história até o momento em que passei a me questionar acerca do tom do nosso relacionamento. Para ser específica, vou pular de 2014 para 2017, mais conhecido como o ano em que estamos agora.
- Não acredito que você caiu nessa! - berra, sem ligar para o fato de que minha tia estava logo no andar de baixo e poderia nos ouvir. Estreito os olhos, repreendendo-a em silêncio. Ela ignora com êxito. - , pensei que fosse mais inteligente do que isso!
- Eu que não estou entendendo seu surto.
- Ah é? - os globos oculares dela são a perfeita oposição dos meus. Arregalados, parecem perfurar minha mente enquanto atiram quantias de honestidade, raiva e descrença. Acabo entrando em um estado defensivo. Cruzo os braços pra me proteger da ira. - Ele te pediu em fucking casamento do nada! E sabemos porque fez isso. - aponta um dedo. - Nós sabemos.
Suspiro e me deito ao seu lado.
- Sei que não estava nos planos, mas...
- quer te prender aqui! - interrompe. - Agora que está prestes a realizar a missão da sua vida, ele quer te forçar a desistir.
- Não pira. Como chegaria a esse ponto apenas me pedindo para morar com ele?
- Raízes, . Quer que você se sinta responsável porque não vai deixar um namorado no Brasil, mas sim um quase marido. Relacionamento mais do que estável. Casa compartilhada. É claro feito água!
Sua explicação desperta um bocado de sentimentos. Ao mesmo tempo em que me encontro indignada, pronta para retrucar cada parte do discurso no melhor estilo metralhadora maluca, um fantasma no mais profundo da alma sussurra que faz sentido. Porque, caramba, é verdade. Qualquer pessoa de fora teria o direito de levantar essa questão.
Mas eu não posso. é meu namorado há três anos e simplesmente não faz parte do perfil dele.
- Estamos falando de pessoas diferentes, Lu. nunca foi desse jeito.
- Porque você nunca deu motivos.
- Como assim? - viro a cabeça na direção dela. - Então a culpa é minha?
- Não! Deixe-me justificar: em todos estes anos, vocês concordavam sobre como levar a vida, divergindo aqui ou ali, mas nada grandioso. Agora você quer voar para longe quando tudo o que deseja é se acomodar. Percebe quão transgressora virou? - há sarcasmo maldoso na pergunta. - Está indo contra de verdade. Significa que ele precisa tirar isso da sua cabeça. E como ter sucesso? Te atacando de todas as formas.
Calada, deixo-a amaciar um pouco o ego e uso o tempo pra considerar. No momento em que aparenta estar prestes a explodir de tanta auto-admiração, me manifesto outra vez:
- Cite.
- O quê?
- Essas formas.
- Você é burra? - continuo impassível. suspira. - Ele tenta fazer o assunto parecer menor, à medida que ignora, afasta ou larga pequenos comentários de desprezo quando vem a tona nas conversas; está sempre buscando defeitos ou razões para que não dê certo, especialmente na presença dos seus pais; te força a criar mais raízes aqui... Quer dizer, por que deixaria família, amigos, emprego e estabilidade pra embarcar numa completa loucura? - enumera com os dedos, impaciente.
A voz no fundo da mente agora fala mais alto. Elas concordam em gênero, número e grau, no entanto ainda me recuso a ouví-las por completo. Minha discordância é teimosa; sinto-me uma criança que, obrigada a encarar seu erro, vira a cara para o outro lado e deixa o estrago escapar da visão. Apesar de suas boas justificativas, continua não fazendo sentido. Simplesmente porque era ele. Meu melhor amigo. Pessoa com quem contava sempre. Tudo aquilo parecia tão... Manipulador e pouco compreensível. Mexer com minha mente daquele jeito...
- Olha, eu sei que é difícil acreditar. Vocês sempre foram... - gesticula nervosamente. Sua busca termina com um suspiro profundo. Embora faltem palavras para suprir a lacuna, entendo o ponto levantado com facilidade. Eu e ele parecíamos perfeitos. Encaixados. Harmoniosos. Desde o começo nos enxerguei daquele modo e tinha ciência que outras pessoas também o faziam. - Mas as coisas mudaram. Você sabia, lá no fundo, ainda que evite confessar; esse momento de divergência chegaria. E o fato de nunca ter sido assim também não quer dizer que não possa estar sendo agora. Fica esperta, ok? Fica esperta.
Estava plantada a semente da dúvida.
Lembrar daquela primeira conversa esclarecedora que tive com minha melhor amiga quase me faz querer rir. Eu estava tão cega, alienada, confusa... Não tinha o poder de enxergar por completo o que tentava mostrar. Hoje percebo quão correta estava.
Namoros dificilmente começam abusivos. Pelo contrário - eles são, no início, um verdadeiro poço de compreensão e respeito. A mudança ocorre depois. Dias, semanas, meses, anos, não importa, ninguém está a salvo de se tornar vítima em algum momento da vida. E essa é uma questão complexa demais para que eu debata numa carta endereçada a você. Até porque ela não permite resposta, o que reduz a um monólogo. Portanto, seguirei em frente.
Você deve estar revoltado agora, segurando o frágil papel com demasiada pressão, veia do pescoço saliente e olhos injetados de fúria. "Abusivo, eu?". Sim, . Não leu errado. E antes que transforme minha despedida numa bola mal feita e comprimida, irei explicar o porquê de estar lhe dizendo isso.
O suspiro dele chega até mim no papel de clara desistência. Indo por um caminho diferente, prossigo quieta, encarando a parede vazia com bastante afinco. Ignorava sua presença do outro lado da sala. Depois de quinze minutos, minha atitude pareceu incomodá-lo ao ponto de fazê-lo desistir da própria marra.
- . - chama com seu timbre preciso. Não me movo. - , por favor, olha para mim.
Passo a língua nos lábios devagar.
- Você foi um idiota. - minha voz sai arrastada e rouca.
- E você mentiu! - escuto o barulho oco das mãos dele colidindo com as pernas. Os nós dos meus dedos estão doloridos pela força com a qual seguro a borda da mesa na qual sento, dura e imóvel. - Disse que estava cansada e por isso não viria pra cá.
- Acha que isso explica algo? - finalmente giro a cabeça na sua direção. continua na mesma posição de antes, por cima do braço do sofá. O encontro de olhares gera faísca. - Justifica ter me arrastado de lá como se eu fosse uma coisa que pertence somente a você?
- Não exagera, pelo amor de Deus. - passa a mão no rosto com força. - Você é bem dramática às vezes, sabia?
- Foi o que pareceu! Estava apenas conversando com um colega na lanchonete antes de me rebocar de lá!
- Você mentiu! - ele ergue a voz e enfatiza cada sílaba ao repetir. - Como queria que eu me sentisse?
- Sei lá! Bravo, triste, decepcionado, mas não daquele jeito! Fiquei constrangida. E... - o termo se enrola na língua, parecendo nefasto mesmo diante das circunstâncias. Engulo em seco, agora olhando o chão. Nunca pensara em falar qualquer coisa desse tipo para meu namorado. Até esta noite.
- O quê? - incentiva. Não digo nada. Estou ocupada tentando desfazer o bolo que se formara na garganta.
Distraída com a tempestade de sentimentos, não o percebo chegar. Erro que logo se faz presente; a mão de encontra meu ombro. Fito-o. Seu rosto, agora mais calmo, está repleto de uma razão que não entendo.
- Por que mentiu?
Estou lidando com estúpidas lágrimas pedindo para serem libertas e repentino cansaço por toda a situação.
- Sabia que você não iria gostar.
- E por quê?
- Tudo que envolve o intercâmbio te faz exibir uma carranca. Pior: não demora até os comentários comecem. Nem sei se você nota quão desagradável tem sido em relação a isso.
- Não concordo com a ideia, sempre deixei claro. Quer que eu abra um sorrisão falso quando me fala da viagem?
- Deixar de agir feito babaca já iria ajudar muito. - cuspo a verdade. - Perto de você, parece errado mencionar. Eu me sinto errada. E como não encontro apoio, desisto. Evito.
respira fundo. Parece revirar a mente em busca de palavras que possam ser usadas para lidar com isso. Diante daquela fisionomia dolorosamente fechada, a sensação vem de novo, destruidora, implacável. E sei que não deveria ser desse modo. Não desejo me sentir assim. É horrível. Desde que tudo aquilo começara, simplesmente não consigo ter paz.
- Tem que entender que me magoa, , pensar que logo mais você estará dentro de um avião partindo daqui. É impossível... Aceitar bem. Desculpe se a minha dor impossibilita as palavras de apoio.
Triplica. O sentimento tenebroso triplica. Ouvi-lo falar do sofrimento guardado dentro de si me torna, de fato, a bruxa detestável que alguns amigos em comum começavam a pintar. Na qual ele mesmo acredita.
- Então pare de me culpar por ter escondido a verdade. Foi somente isso. Eu estava falando com o Pedro sobre a viagem. Estamos ambos nervosos e eu queria conversar. Conhecendo a recusa que tem sobre isso, ocultei o fato de você. Só. Não havia motivos para me forçar a vir.
- Eu fiquei nervoso.
- Pareceu controlador. - completo mais baixo. - Agressivo.
- As coisas se acumularam de tal modo que... - ele dá passos para longe, esfregando o rosto, depois as mãos. Adota postura inquieta. - Explodi, sei lá. Não pode me culpar por estar perdido.
A visão que eu tinha era de alguém verdadeiramente frágil e vulnerável. Desenvolver certa solidariedade é inevitável. Especialmente se tratando de alguém que amava.
Meus músculos, outrora rígidos, ficam mais flácidos. Pulo da mesa e deslizo até poder abraçá-lo. não demora para me agarrar com força como se eu fosse desaparecer a qualquer momento. Devolvo, quase tão desesperada, mantendo-o perto de mim. Não se afaste, eu peço em silêncio; é meu melhor amigo. Preciso do seu apoio.
Preciso de você.
- Eu te amo, .
- Desculpe. - o sussurro escapa sem que reflita bem acerca dele. - Não quis te magoar. Desculpe.
Ficamos abraçados por um longo tempo. Sou incapaz de afirmar quanto. Assim que nos consideramos hábeis de desembaraçar os corpos, ele me puxa pro sofá e conversamos a noite toda acerca do estresse vivido por ele no escritório e com a família. Mas não sobre mim.
Nunca sobre mim.
Caso lhe falte conhecimento, uma relação se configura como abusiva quando há controle, ciúme exagerado, manipulação e agressividade, dentre outros aspectos. Não é necessário haver socos e chutes para isso. Guarde essa informação para a vida, tudo bem? É o último presente que deixo pra você.
Sou uma garota cheia de sonhos, . Conheceu-me deste modo, o que faz sua tentativa de interromper meu destino algo um tanto vil. Considere a seguinte analogia: lembra do Pingo, o pássaro que seu pai mantinha preso durante sua infância? Lembra do modo que me contou a história, inflado de indignação por Dionísio querer deixá-lo naquela gaiola de metal? "Era a cadeia dele", você dizia. "Mas Pingo nunca mereceu isso. Ele só desejava ser livre. Então, numa noite, eu o soltei".
Bem, eu sou o Pingo e você virou seu pai. Elis Regina tinha razão, no fim das coisas.
"Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais."
Não recorda você?
O de antes morreria ao perceber. Tudo o que ele não queria era cair nesse paradoxo terminal da vida. Não sei como esse novo vai reagir. Penso, hoje, que talvez não te conheça mais.
E para que não reste dúvidas:
Quando tentou definir com quem e quando eu deveria conversar, estava me controlando.
Quando desconfiou de cada garoto que sorriu para mim, foi ciumento.
Quando se esforçou para me fazer desistir do que tanto almejei, ou me diminuiu de maneira implícita, manipulou minha mente.
E quando me arrastou feito um objeto da lanchonete naquela noite, você foi agressivo.
Assim como no dia da boate. O estopim de tudo.
No mesmo segundo em que adentro a balada, todas as células do meu corpo avisam o óbvio: Eu não deveria estar aqui. Se fechar os olhos, posso enxergar as letras em caixa alta, berrando sob minhas pálpebras. Mentalmente, recrio a cena vivida há três horas, pondo um novo final, onde eu conseguiria olhar no fundo dos olhos dele e, sem hesitar, negaria. Enfatizando cada sílaba dita. Mas não passa de um sonho. Não fiz isso. Duvido, na verdade, que conseguiria - mesmo agora.
Apresentamos dificuldade pra desviar dos corpos. São muitos, movendo-se de maneira animada com o ritmo da música. Meu olhar vaga sobre alguns deles, observando o modo que sorrisos satisfeitos curvam seus lábios; os rostos brilhantes pelo suor estão vívidos e embevecidos de prazer. Gostaria que ao menos dez por cento daquela felicidade me invadisse também. Pesarosa, lembro das outras situações em que estivera ali, tão contente e relaxada quanto aqueles desconhecidos. Recordo da sensação de liberdade correndo em minhas veias enquanto dançava, ou da empolgação súbita que batia quando uma música da qual eu gostava muito enchia o som. São memórias distantes. De tão fatigada, estou impossibilitada de acessá-las direito - parecem desbotadas e inexpressivas no momento.
Sua mão ao redor da minha é o que me mantém no caminho. Sem ela, eu facilmente iria me perder. Dedico certo tempo a observar o contraste de nossas peles, como o tamanho acentuado da parte que pertence a ele me cobre de forma protetora. Um puxão seu me diz que estou andando devagar demais. Aperto o passo e devolvo o aperto para mostrar que compreendi. Longos minutos depois, finalmente paramos ao pé da escada. O olhar do segurança cai em cima de nós.
- Nosso nome está na lista. - não sou eu quem falo. - e .
Ele checa. Ao detectar, aquiesce e abre espaço para que a gente suba. Não leva dois segundos até que o façamos. Foco as pupilas em cada degrau no qual piso, preocupada em não desequilibrar naqueles saltos pretos há muito esquecidos no fundo do armário. Mordo os lábios pela concentração. Quando alcançamos o novo andar, suspiro baixinho de alívio. Tudo correra dentro dos conformes.
Percebo que está sorrindo para mim ao erguer a cabeça. Inevitavelmente, nossos olhos se cruzam. Os dele, claros e límpidos - tão bonitos que deveriam ser pecado -, reluzem; os meus, castanhos e delineados, não devem ostentar a mesma empolgação. Fica evidente em seu rosto que ele notou. Passando o braço ao redor de meus ombros, exclama:
- Anime-se!
- A música está muito alta. - é o que devolvo.
- Você tá parecendo minha avó. - gargalha. O som se esvai no meio da barulheira.
- Que bom. Adoro ela. - meu tom é morno e azedo.
- Vamos lá, . Por que ficou assim?
Penso em tudo que poderia dizer: a real vontade de negar, o sono que coça por trás dos meus olhos, a matéria acumulada do curso, as responsabilidades do estágio pesando em minha cabeça. Penso, de verdade, em contar o que sinto. Mas evapora tão rápido quanto vem. Quando me tornei tão medrosa? Que merda, . Imagino a figura de Luiza ao meu lado, sacudindo a cabeça para o que ando fazendo. Meus ombros afundam. Ela iria me agredir assim que voltasse da viagem.
Esfrego os lábios e seleciono as palavras certas cuidadosamente:
- Só estou preocupada.
- Com o quê? - não me encara. Busca os amigos com obstinação, deixando sua voz cair duas oitavas ao torna-se menos atenta a mim.
- A confirmação. Ainda não chegou.
Subitamente, sua postura muda. Antes relaxada, agora tensa; me fita de esguelha com as sobrancelhas apertadas. É uma reação automática. Ele tenta disfarçar logo depois, mas aquela cena grava dentro do meu cérebro e gera uma onda de desânimo maior.
- Ah.
Essa é sua resposta. Eu digo que estou aflita pela falta de retorno da faculdade e essa é sua resposta.
Sinto raiva. Quero segurá-lo pelos ombros e sacudir até os miolos se esbarrarem uns nos outros e pegarem no tranco. Por que parece incapaz de torcer por mim? Engulo o gosto amargo que me toma. Instantes após, Jackson balança as mãos, metros a frente, indicando o local onde deveríamos ir.
A área VIP está bem menos cheia, o que não significa, entretanto, muito espaço. Parecia que estávamos no meio de um evento muito importante do qual ninguém me avisou. O grupo sorri para nós assim que nos misturamos - alguns trocam cumprimentos com , batendo as mãos repetidas vezes e realizando uma coreografia estranha que só eles sabiam. Outros gritam, assoviam ou nos abraçam. As meninas nos recepcionam com frases animadas.
- Vocês demoraram. - Jack se manifesta.
- teve problemas para se arrumar. - brinca, me cutucando nas costelas. Forço um sorriso.
- Fui pega de surpresa.
- Esta é a graça da vida. - seu melhor amigo ergue as mãos. - Não estar pronto para nada!
O resto do grupo solta gritinhos. Estão todos meio altos. O ar dali cheira a álcool e não demora até que meu namorado esteja indo por aquele caminho também.
Aceito os copos que me traz, dialogo e procuro prestar atenção nas conversas paralelas espalhadas, mas a verdade é que me encontro terrivelmente deslocada. Meu desinteresse impede que eu participe do grupo como nas outras vezes e nem mesmo a tequila consegue mudar o quadro. Tento esconder, contudo, temerosa que alguém perceba. Tenho segurado muitas coisas somente para mim. Pelo menos até voltar, não me sinto capaz de desabafar com ninguém. Nem .
Principalmente .
A certa altura, desligo-me e passo a ingerir goladas do álcool, perdendo a vista na multidão. Isso muda quando sinto um sacolejo e levanto as pupilas. me fita como se aguardasse resposta. Olho ao redor, percebendo que não é o único, e uma onda de rubor cobre as bochechas.
- Vamos descer! - Bianca quebra a dúvida que me corrói ao esclarecer do que se trata. - Quero dançar um pouco!
Assinto, ainda perdida, e me preparo para seguir o fluxo formado pelos outros.
Lá embaixo nos esprememos, porém temos sucesso na empreitada de achar um lugar. Os garotos erguem as mãos e fazem palhaçada sob as risadas das amigas. Digo a mim mesma para não ser razinza e simplesmente aproveitar. Preciso guardar a preocupação sobre o intercâmbio e todas as merdas derivadas num potinho. Ali, quero somente ser , a namorada simpática e divertida que ficou próxima do grupo e acompanha o namorado nas saídas. Quero que dê certo. Não aguento mais sentir que estamos desencaixados o tempo inteiro.
Mas não acontece porque os problemas são reais. Eles persistem em minha mente e ecoam toda vez que me esforço para apagar.
Eu poderia dizer que o que mais me aflige é o medo de não ter conseguido a viagem para Suíça. Queria aquele intercâmbio desde o ensino médio, havia me preparado anos para aquilo, sonhando com o dia que chegaria - perder seria uma queda de, pelo menos, vinte andares. Teria dificuldade ao me recuperar. Talvez demorasse bastante ao fazê-lo. No entanto, o assunto maior não era aquele. Havia algo me incomodando mais.
e eu.
As coisas não pareciam certas. Quando começamos o curso, nossos sonhos eram interligados, semelhantes, complementares. Planejávamos juntos e vibrávamos ao sentir o frio na barriga maravilhoso que se seguia. Dois ambiciosos olhando pra fora e almejando o sucesso. Dois apaixonados vivendo e fantasiando juntos.
Tudo mudou desde que se formou. O trabalho na rede de lojas de seu pai me pareceu positivo, no começo, pois significava que poderia juntar dinheiro, mas se tornou uma fonte de insônia a partir do momento que ele apresentou problemas pra arrumar emprego na área para qual se dedicara. O que no começo o deixava bem pra baixo, começou a ser esquecido mais rápido do que eu imaginava. Em vez de lutar mais um pouco, manter a chama viva, meu namorado aceitou a realidade na qual estava inserido e passou a nutri-la. De repente, não havia mais sorrisos ao falar de Jornalismo, planos para estudar fora, vontade de uma pós. Administração cresceu e se estabeleceu antes que eu sequer pudesse prever. O que antes evitávamos passou a ser suficiente para ele.
Por mais contrariada que aquilo me deixasse, respeitei. O apoio oferecido por mim não foi correspondido quando a viagem deixou de ser apenas linhas num papel e começaram a se tornar realidade. Seu comportamento mudara tanto que parecia surreal...
Minhas reflexões fazem com que acabe distraída o bastante para perdê-los de vista. Sinto um leve toque de pânico ao perceber, mas respiro fundo e, no lugar de surtar, caminho na direção do bar. Peço uma vodca, prometendo a mim mesma ser a última - e isso acaba me fazendo pensar que bebeu demais e nada bom vem quando acontece. Quando recebo, ingiro, de costas para a pista. Fitava o líquido ondular conforme meus lábios perturbavam sua tranquilidade. Tal absorção é a causa do susto que levo ao sentir uma mão se fechar em meu ombro.
Viro o conteúdo em minha blusa rosa - que logo fica colada no busto.
- Merda! - tiro a atenção do estrago e foco na pessoa a minha frente.
- Desculpa! - Teo coça o queixo antes de sorrir. - Esqueci como você é desastrada.
Aperto os olhos, embora um sorriso nasça no canto dos lábios também.
- Seu idiota.
- Que saudade, garota.
Trocamos um abraço apertado. A barba dele faz cócegas no meu rosto quando ele se inclina para beijar a bochecha.
- O que está fazendo aqui?
- Vim com os amigos do . - ele varre o espaço, provavelmente procurando-os.
- E onde estão?
Balanço os ombros em sinal de falta de conhecimento.
- Nos perdemos.
- Bem, então te farei companhia. - sugere. - Temos muito a conversar! Não cheguei a te contar da minha viagem, né?
- Não! Estava louca pra saber. Como foi estar na Terra da Rainha? - a animação cresce dentro de mim, assim como pinta sua fisionomia. Durante os próximos minutos, Téo narra cada aspecto maravilhoso do lugar, informando-me sobre as experiências obtidas, tanto boas quanto ruins e engraçadas. Dou risada e ouço atenciosamente. Estou no meio de um relato divertido quando se coloca entre nós feito um furacão.
- Onde você estava?!
Sua chegada é tão repentina que preciso piscar algumas vezes pra me situar.
- Bem aqui. Perdi vocês de vista, então vim pegar uma bebida. Foi nesse momento que o Téo apareceu. Amor, você sabia que...
- Fiquei preocupado! - ele interrompe. Meu complemento fica entalado na boca. - Não deveria ter feito isso!
Dentre todo barulho ensurdecedor, padecemos no mais profundo silêncio. Téo, esquecido no fundo, está ligeiramente constrangido. Eu partilho o sentimento. De novo. Ali estava meu namorado sendo rude e mal educado de novo.
- , eu me perdi. Não foi de propósito. Você esperava que eu ficasse ali, esperando por um sinal seu? - ponho firmeza na frase. A raiva contida em tantos dias dá indícios de extravasar.
- Só não achava que você ia sumir e esquecer de avisar.
- Como iria avisar se não sabia onde você tava?! - ergo ainda mais a voz que já era alta para que pudesse ser ouvida ali. - Está ouvindo a si mesmo?!
- Esquece, . - expira forte e fez menção de sair. Pego seu cotovelo.
- Você sequer cumprimentou o Téo?
O amigo finalmente é notado. Quieto, apenas olha-o de cima a baixo e realiza um gesto vago com a cabeça. Depois, ágil, se desvencilha e some.
Congelo no lugar.
- Bem, isso foi... - Teodoro olha o outro sumir, imitando-me. Fecho a boca com força.
- Sinto muito. Sinto muito mesmo. Nos falamos mais tarde. - despeço-me sem olhá-lo nos olhos e sigo o rastro deixado pelo outro.
Tenho que deslocar algumas pessoas e me espremer em locais apertados demais para conseguir alcançá-lo. Assim que suas costas largas apareceram no campo de visão, espalmo as mãos nelas e empurro.
tropeça, se esbarra num rapaz e vira sob os resmungos berrados dele. Fita-me em puro choque por causa da atitude impensada que eu tivera - apenas obedeci meus músculos e deixei o impulso fazer sua parte. Não me arrependia, contudo.
- Ficou louca?
- Eu que deveria fazer essa pergunta! Quem você pensa que é pra falar conosco daquela maneira? - grito, sentindo as bochechas queimarem. A tempestade está formada. Não havia nada que pudesse impedir.
Tudo o que guardei desde que ele mudou de atitude comigo simplesmente transborda.
- Quem eu sou? Quem eu sou?! - a face está escarlate feito a minha. De repente, sinto seus dedos fechados ao redor do meu braço, apertando e sacudindo conforme a fala continua. parece tão concentrado no próprio discurso que não nota o nível da força empregada sobre mim. Meus olhos, por outro lado, se grudam no local onde nossas peles fazem contato. O choque quase neutraliza a raiva. - Seu namorado, droga! Como acha que devo me sentir depois de ter ficado louco de preocupação, enquanto você botava o papo em dia com seu amiguinho?
- Me solta. - percebo que falei muito baixo somente depois de proferir. Pigarreando, repito. - Me solta!
Ele demora cinco segundos para fazê-lo. Aturdido, recolhe a mão, agora ciente do que fizera. Dedilho a área ligeiramente vermelha e ergo o olhar. O que vejo só me incentiva a sumir dali.
Enfio-me nas brechas entre os clientes, escapando de um empurrão aqui ou ali, até estar do lado de fora. Desacelero o passo depois de ter êxito - uma brisa fria passa e beija meu rosto, trazendo certo alívio a meu corpo em colapso. Ter me livrado daquela atmosfera pesada por diversas razões tira um peso invisível dos ombros. Não apaga o sentimento ruim resultante da pequena discussão, é claro, porém me faz sentir menos presa e mais liberta. Continuo a caminhar tão logo. Não é prudente ficar parada na porta de uma boate, às duas da manhã. Sei que metros a frente existe uma parada de táxi. É para lá que ando. A voz de , porém, me breca novamente.
- ! - não está muito longe. Cerro os dentes; deveria ignorá-lo, mas não consigo. Aguardo por segundos. Quando sinto a respiração colidindo com minha nuca, giro sobre os calcanhares e o fito. Ainda há rubor em suas bochechas. As pupilas, injetadas de sentimentos demais para nomear, prosseguem dilatadas. Por outro lado, algo na postura antes agressiva dele está calculadamente mais suave. - Não quis te machucar. - olha para o local que segurava e engole em seco. Nesse momento eu rio. A razão é de origem desconhecida; suponho que seja porque estou meio alta, muito irritada e bastante triste.
- Acontece, , que você tem feito isso há um tempo.
Ele parece mais aturdido.
- Do que você está falando?
- Sério? Ponha a mão na consciência. Lembre do que tem feito nesses últimos meses, me desencorajando, colocando pedras no meu caminho, se tornando frio quando preciso de você. Já falamos sobre isso. - deixo os braços caírem ao lado do corpo. - Estou cansada.
- ... - recuo, sacudindo a cabeça. Meu namorado dá dois passos e desiste.
- Só me deixe ir. Por favor. - volto-me na direção para a qual andava e mino o resto do caminho com passadas ágeis. Assim que me vejo no destino, arranjo um táxi e parto. Sem olhar para trás. Mas sei que ele continua no mesmo lugar, observando-me sumir.
Não quero que veja as lágrimas escorrendo desenfreadas por meu rosto - estou vulnerável, perdida e confusa em demasiado para desejar que alguém enxergue isso.
E foi assim que minha ficha caiu.
Veja bem, eu não te odeio - embora você o faça - e nem te considero alguém ruim. Acontece, , que nos últimos meses tudo mudou bruscamente e se tornou tóxico. Sabe o sentimento ruim que nascia dentro do seu peito quando Dionísio tentava diminuir a profissão que escolhera na faculdade? Eu tinha algo semelhante o tempo inteiro. Estava perdida num espiral de culpa, desânimo, mágoa e humilhação. Não queria viver desse jeito. Quem deseja, afinal?
Para que manter um relacionamento que age feito pedras amarradas nos tornozelos e puxa pra baixo?
É errado. É abusivo. Consegue me entender?
Não se ocupe com justificativas. Não tente dizer que estou errada ao afirmar que procurava me diminuir. Eu sei que você tentou. O que chamava de "problemas pra aceitar minha partida", eu considero pressão psicológica para que desista do meu sonho. Será que isso algum dia fará sentido pra mim? Acho que não.
Estou exposta, . A carta, agora provavelmente judiada por suas mãos ásperas, é a representação de tudo que guardei nos últimos dias. Com meus derradeiros esforços, deixo estas últimas palavras: Eu tenho que fazer as coisas do meu jeito. Será que você vai me respeitar? Por que não me deixa crescer?
Sinto muito que as coisas tenham terminado assim. De verdade. Mas não foi escolha minha.
Quando olho pra fora da minha janela, não consigo ter paz.
Precisa me deixar crescer.
.
Fim.
Nota da autora: Essa história surgiu no momento em que tive contato com a música. Após ter pedido ajuda de duas amigas, que também concordaram com a ideia de retratar um relacionamento abusivo, fiquei ainda mais tranquila pra escrever. Não é legal viver um relacionamento em que o parceiro (a) não te respeita, deixa crescer e fazer as coisas do seu jeito. Não é legal sentir essa ausência de paz. Foi o que tentei mostrar nesse conto rápido que talvez não tenha abordado o tema de maneira cem por cento correta, mas teve boas intenções :P
Espero que tenham gostado!
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Espero que tenham gostado!
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