Finalizada em: 09/11/2017

O diamante da Dança

Estava eu naquele momento deitada em uma cama de hospital, não era somente meu tornozelo esquerdo que estava em recuperação, mas minha expectativa de vida também. Com o passar das horas, aquele quarto parecia ainda mais frio e monótono, mantive meu olhar nas ataduras que enfaixavam meu tornozelo, tentando reprimir as lágrimas de dor que formavam no canto dos meus olhos.

?! — disse Jullie ao entrar, ela estava com uma pequena cesta de frutas na mão e com um doce sorriso na face, minha prima sempre um suporte para mim — Que bom que acordou, trouxe algumas frutas para você.
— Estou sem fome. — desviei meu olhar para a janela — O que faz aqui tão cedo? Não tem aula?
— Semana de pós-provas na faculdade, então não tem aulas. — respondeu ela ao se sentar na beirada da cama — E como está minha bailarina preferida?
— Espero sobreviver a fisioterapia. — dei um suspiro cansado.
— Não fique assim. — ela se levantou e colocou a cesta na mesa ao lado da cama — Tenho certeza que vai se recuperar logo e voltar aos palcos.
— Não acho, não sei se tenho forças para voltar. — sussurrei.
— Não diga isso, claro que vai. — sua voz me passava confiança.

Assenti com a face, não tinha nem forças para discutir com ela, Jullie permaneceu no quarto toda a manhã, como minha acompanhante poderia até mesmo dormir ali. Queria poder ter o mínimo de otimismo que minha prima tem, principalmente agora após a cirurgia, porém quanto mais eu tentava ser forte, mais eu me lembrava daquela queda. Não foi somente o ligamento do meu tornozelo que se rompeu com isso, mas sentia que algo a mais tinha se quebrado dentro de mim: a vontade de dançar.

Desde pequena sabia que a vida de uma bailarina não era fácil, cheia de dedicação, disciplina, treinos e exercícios, mas era isso que eu sempre quis e tinha a motivação da minha mãe para me apoiar. Ainda me lembro da notícia de seu acidente, após a apresentação do meu primeiro recital de balé, eu só tinha sete anos e não conseguia acreditar que ela não teve a chance de me ver em um palco.

Pensando agora, sua morte foi o gatilho para que eu me dedicasse ainda mais e me tornasse uma das melhores alunas da escola de artes InH. Agora com vinte anos, após conseguir entrar em uma companhia de ballet conceituada de Paris, estou passando pela pior fase da minha vida, o que me faz sentir que jamais conseguirei me levantar. Me mantive encostada na pequena almofada e fechei meus olhos, e mais uma vez minha mente voltava aquela cena.

Não tinha como afirmar, se era somente um descuido da equipe cenográfica que deixou algumas ferramentas no meio do caminho, ou se foi proposital, porém o que importa é que causou minha queda acidental, bem no meio da apresentação de abertura da temporada deste ano. O pior de tudo, é que seria minha primeira apresentação em um teatro russo, havia praticado tanto para conseguir participar de uma peça representada fora da França.

Minha dor de física passou a ser interna também, principalmente ao me lembrar de alguns sons de risos ao fundo, o que me forçava admitir que a rivalidade entre as bailarinas principais da companhia estava se tornando ainda mais forte.

— Não. — sussurrei para mim mesma — Não pensarei nisso.
— Não vai pensar em que? — disse uma voz grossa e estranha.

Logo abri os olhos, Jullie não estava mais no quarto, eu estava tão submersa em meus pensamentos que não tinha nem percebido sua saída, confesso que tinha até tirado um cochilo em meio aos meus pensamentos. Mas lá estava , encostado na parede ao lado da janela, olhando para mim de braços cruzados.

— Não vai me responder? — insistiu ele.
— O que faz aqui? — perguntei erguendo um pouco meu corpo — Onde está Jullie?
— Não acha que ela precisa de uma folga? — retrucou ele — Já faz uma semana que está no hospital e ela te acompanhando, agora que fez a cirurgia, não sabe quanto tempo a mais ficará aqui?!

Ele tinha razão, por mais que Jullie desse suas explicações sobre as folgas da universidade, ela ainda tinha uma vida para viver e não podia passar todo o tempo comigo, minha recuperação seria longa e cansativa para nós duas.

— Devo imaginar então o que está fazendo aqui. — desviei o olhar para a janela, bufando um pouco.
— Obviamente. — ele riu baixo — A menos que seja desconfortável minha presença.
— Eu poderia até falar que pior não pode ficar, mas sempre fica. — desviei meu olhar para ele — Só não queria te incomodar.
— Nós terminamos nosso namoro, mas ainda somos amigos. — retrucou ele.
— Fale por você. — cruzei os braços.
— Que garota mais rancorosa. — ele se afastou da parede — Foi você que quis terminar, tanto o namoro, quanto nossa dupla.
— Eu só queria seguir carreira solo em outro país. — o olhei — Você poderia ter continuado também, não pedi que parasse de dançar.
— Eu disse que você seria a única parceira que teria na minha carreira. — ele respirou fundo — Não acreditou porque não quis.
— Você sempre falava isso rindo.
— Que seja, estou feliz por ter aposentado, uma carreira acadêmica combina mais comigo. — ele manteve seu olhar em mim.
— Se você acha. — desviei meu olhar novamente para a janela — E sua carreira acadêmica não será prejudicada se ficar aqui comigo?
— Não se preocupe com meu trabalho, apenas deixe este orgulho de lado e me deixe te ajudar.
— Não é orgulho, só…
, não vou te deixar, sei que precisa de alguém para te motivar. — ele sorriu de canto.
— Acho que a Jullie já seria o suficiente. — descruzei os braços e olhei para minha perna — Além do mais, não quero que fique criando expectativas em mim, não sei se voltarei a dançar.
— Pare de falar besteiras, claro que voltará. — ele me olhou sério — Amanhã sua fisioterapia começa, vou acompanhar cada passo seu.
— Eu te conheço, o que está tramando?
— Nada, apenas uma audição para uma apresentação de uma companhia... — ele mordeu o lábio inferior — Para daqui seis meses.
, o que? Você é louco?
— Não, claro que não, mas o médico já disse que sua recuperação completa seria em quatro meses, você só teria mais dois para ensaiar o que pedem e…
— E nada. — minha voz ficou um pouco alterada.
— E tenho certeza que irá conseguir, não conheço bailarina mais forte e dedicada que você.

Lá no fundo, eu gostaria de ter essa segurança e certeza que ele tinha, acreditava mais em mim do que eu mesma.

— Para ser sincero, eu já iria indicar seu nome para a audição. — ele caminhou até a mesinha que estava a cesta de frutas e pegando uma maçã — Eu sei que já estava com pensamentos de sair da companhia que está atualmente.
— Jullie andou entregando sobre minha vida? — perguntei já imaginando a resposta.
— Assim como eu, ela se preocupa com você. — ele se sentou na beirada da cama — E vamos admitir que uma companhia que possui três bailarinas profissionais, não é um lugar saudável de trabalhar.
— Em alguns momentos um pouco de competição é saudável. — bufei um pouco — Além do mais, era a uma das mais conceituadas de Paris.
— Me desculpe, mas ainda não consigo levar sua queda algo totalmente acidental, e não os considero tão profissionais assim.
Nem eu! Pensei comigo.

— Esqueça isso, de qualquer forma, meu contrato com a companhia Dellare termina no próximo mês, já estava pensando em não renovar.
— Que bom, pois você vai fazer a audição que te indiquei.
— Ai, para de insistir nisso, nem sabemos se vou me recuperar com precisão. — cruzei meus braços.
— É claro que vai, já disse. — ele sorriu enquanto brincava com a maçã em suas mãos — A menos que você faça corpo mole.
— Yah, eu nunca fui assim.
— Eu sei. — ele esticou a maçã para mim — E vamos começar isso se alimentando bem.
— Pelo que sei, maçã faz bem às cordas vocais e não às pernas. — retruquei segurando o riso, enquanto pegava a fruta.
— Acho que estava sentindo falta das nossas conversas. — ele riu.
— Não posso negar que ainda estou preocupada com… Bem, você viajou horas para estar aqui em Moscou.
— Pare de se preocupar e finja que estou de férias.
— Por seis meses? — o olhei séria.
— Sim, por seis meses. — ele suspirou fraco — Está preocupada comigo, mas a Jullie não?!
— A Jullie mora no Japão, de qualquer forma as horas de voo são menores e a passagem é barata. — expliquei — Além do mais, foi ela quem disse que não tinha mais aulas após a semana de provas.
— Não me convenceu.
— Só estou repetindo as palavras dela.

Logo a maçaneta da porta se mexeu e ao abrir Jullie entrou com algumas bolsas.

— Ah, já chegou. — disse ela com um largo sorriso.
— Sim, o médico disse mais algumas coisa? — indagou .
— Não. — respondeu ela deixando as bolsas ao lado da cama — Trouxe todas as roupas que ela vai precisar, já que ficarei somente até amanhã, vou fazer o check-out do albergue, obrigada pela passagem.
— AH. — eu olhei para ambos — Então os dois já estavam trocando planos sobre mim.
se ofereceu para cuidar de você logo que soube do acidente e que faria a cirurgia. — explicou ela.
— E você não falou… — a olhei.
— Porque sabíamos que não aceitaria. — respondeu .
— E eu teria outra escolha? — olhei para ele.
— Deixe de ser chata , tenho certeza que vai se divertir mais com ele do que comigo, ainda mais que vou passar as férias de verão estudando.
— Uau. — ele a olhou surpreso.
— Estou desenvolvendo um projeto com uns amigos para a universidade.
— O que aconteceu com seu tempo livre? Semana pós-provas? — perguntei.
— Eu disse que não tinha aula, não disse que não tinha que estudar. — ela riu.
— Não achei graça. — desviei meu olhar para meu tornozelo enfaixado, estava começando a sentir um certo desconforto.
— Está tudo bem? — perguntou .
— Sim, só estou sentindo uma certa dormência no tornozelo, mas acho que não é nada demais. — expliquei.
— Melhor chamar o médico. — alertou ele.
— Também acho. — concordou Jullie.

De fato não era nada demais, somente um dos efeitos do remédio que estava tomando para cicatrização e dor, segundo as palavras do Dr. Romanov. Como Jullie havia dito, ela embarcou no dia seguinte, algumas horas depois da minha primeira sessão de fisioterapia, algo que me causou ainda mais dores de quedas. Uma novidade? impediu todas as visitas dos artistas e funcionários da Dellare, segundo ele não era confiável e só iria me deixar ainda mais cansada, o que me fazia pensar que ele sempre foi contra minha mudança para Paris, mesmo me apoiando tanto.

Não seria fácil para mim, mas não desistiria de lutar, ainda mais tendo para não me deixar desanimar em momento algum.

- x -

— E como estamos? — perguntou ele ao entrar no quarto. — Uah, olhe a força do progresso.
— Só se passaram algumas semanas, o fato de eu conseguir ficar de pé sozinha não significa nada. — eu me sentei na cama novamente e coloquei minha perna esquerda para cima, meu tornozelo já estava dilatando um pouco de dor.
— Yah, deixe de ser chata, é claro que significa, e por isso vamos comemorar. — ele pegou o copo de água e me entregou com o remédio — Estava pensando em te levar para sair, mas não acho que esteja merecendo.

Eu o olhei séria, pegando o remédio e a água.

— Mas, como sou uma pessoa boa, acho que podemos jantar no jardim do hospital. — ele sorriu de leve.
— Engraçadinho. — joguei o remédio na boca e tomei toda água do copo.
— Continua sentindo dores?
— Só dilatações e sensações, mas estou bem. — respirei fundo — Hum…
— O que?
— Estou pensando, existe mesmo um teste?
— Por que a pergunta?
— Por que você fala sobre isso o dia todo, mas até agora não me disse nada específico a respeito. — cruzei os braços.
— Sabe o quanto sou uma pessoa influente na elite do ballet clássico. — começou ele de forma tranquila e nada humilde.
— Sei, o que tem?
— E qual a melhor companhia de ballet da rússia, elogiada no mundo todo?
— Ballet Bolshoi. — disse quase em sussurro — O que tem eles?!
— Ainda não ligou os pontos?
— O que? — o olhei não acreditando — Minha audição é para o Ballet Bolshoi? Não brinca com coisa sério.
— Estou com cara de quem brinca? — ele me olhou ainda mais sério — Eu acabei de dizer que sou influente, graças a minha carreira acadêmica. — Mas… — comecei a me sentir zonza — Como?
— Hum, digamos que sou um excelente professor que acabou conhecendo pessoas que conhece pessoas, e conhecendo pessoas… — ele começou a rir — Não importa como, mas conheci um dos diretores de espetáculos, mostrei alguns de nossos vídeos, você está sendo a favorita até agora, basta apenas não me decepcionar na audição.
— Acabo de me sentir mais pressionada ainda.
— Relaxa. — ele sentou do outro lado da cama e encostou na almofada da cama — Já disse que você vai conseguir, agora deite aqui do meu lado, vamos ver um filme.

Ele retirou o celular do bolso e abriu o aplicativo da Netflix. Eu me deitei ao seu lado segurando o riso, ele tinha razão eu realmente conseguiria, era a chance que eu esperava toda a minha vida e estava grata por ter, mesmo que nessas circunstâncias. O lado bom, ainda mantinha seu bom gosto para filmes, mas é claro que eu o faria fazer algumas maratonas de dorama comigo, afinal Jullie já tinha me viciado nessas novelas asiáticas.

Mais semanas se passaram e agora entre as sessões de fisioterapia, eu tinha também que fazer pequenos exercícios de alongamento e movimentos básicos do ballet. Isso faria com que todos os músculos do meu corpo acordasse e voltasse ao ritmo clássico da dança, uma coisa era certa, nunca esquecemos algo que aprendemos e meu corpo já estava relembrando automaticamente os passos.

havia me passado o vídeo, com a coreografia que seria avaliada na audição, memorizar não seria o problema, mas executar ainda era um receio muito forte em mim, mesmo com o médico dando sinais positivos para que eu voltasse a praticar a dança. Eu já não estava mais no hospital, havia alugado um loft para ficarmos por um tempo indeterminado, o lugar era amplo e com poucos móveis, serviria também para que eu pudesse praticar.

— Não aguento mais. — disse ao me sentar no chão e pegar a garrafinha de água — Ainda sinto meu tornozelo, não quero forçá-lo.
— Acho melhor pararmos mesmo por hoje. — ele se sentou ao meu lado — Mas se quer saber, está indo muito bem, até o dr. Romanov disse que estava impressionado por sua recuperação.
— Espero mesmo conseguir, nunca quis tanto estar em uma companhia como essa, ainda mais para estrelar em Diamond Heart. — disse mencionando o nome da peça que a companhia estava promovendo.
— Já consigo te ver você performando no palco. — ele sorriu ao olhar para mim.
— Acho que eu também! — sorri de volta — Devo te agradecer por tudo?
— Me agradeça após sua estreia. — ele voltou seu olhar para a janela.

Foram momentos inesquecíveis e divertidos, estar com ele me fazia lembrar de nossos tempos na Escola de Artes InH. Felizmente, ao final daqueles seis meses, mesmo com algumas dúvidas se realmente meu tornozelo estaria pronto para tamanho esforço, iria encarar de frente mais este desafio. No dia da audição, me levou até o Teatro Bolshoi, onde faria minha apresentação.

— Está tudo bem? — perguntou ele assim que entramos na coxia, para que eu pudesse me preparar.
— Sim, meu coração que está um pouco acelerado. — disse respirando fundo — Mas estou bem.
— Eu poderia até desejar sorte, mas tenho certeza que não precisa. — ele sorriu de leve — Estarei te vendo da plateia.

Assenti com a face, assim que ele se afastou um pouco saindo.

— Obrigada. — disse num tom um pouco mais alto.
— Por que está agradecendo, não conseguiu ainda. — retrucou ele ao me olhar.
— Eu vou conseguir, por isso estou agradecendo.

Ele abriu um largo sorriso e ao piscar de leve, saiu.

Respirei fundo novamente e me posicionei no meio do palco, fechei os olhos e me concentrei deixando minha mente limpa, a única coisa que faria agora, era deixar meu corpo seguir o curso natural daquela coreografia. Não seria somente uma dança, mas meu coração estaria presente nos meus suaves movimentos.

“Eu posso não ser perfeita, mas você sabe
Que eu tenho um coração de diamante.”
- Diamond Heart / Lady Gaga

OPORTUNIDADE: Mesmo com todas as quedas e tropeços que temos em nossas vidas, transforme todas as dificuldades em oportunidades.” - by: Pâms




The End!



Nota da autora:
Espero que tenham gostado, confesso que não sabia ao certo o que poderia escrever nesse ficstape, mas felizmente escrevi!!!
Bjinhos... By: Pâms!!!!
Jesus bless you!!!




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