Última atualização: 02/12/2017

Capítulo Único

“Desde a criação do universo, tudo foi destinado.”


Coreia do Sul, 1950.

sorriu sozinho no escuro ao ouvir os passos apressados da mulher, seguido por um miado alto.

— O que nós combinamos, Mana? Você pode vir comigo desde que fique em silêncio. — a voz suave de repreendeu e a gata miou novamente, fazendo rir da conversa entre elas, segundo antes das duas surgirem em sua frente.

A mulher ainda vestia o uniforme branco de enfermeira, perfeitamente limpo, com a gata laranja, preta e branca seguindo-a de perto e tentando se esfregar em suas pernas.

— Eu não sei qual das duas é mais barulhenta. — brincou e a ela revirou os olhos.
— Você deveria ser um pouco mais compreensivo, , estamos nos arriscando aqui. — reclamou, mas sorriu abertamente ao sentir o braço forte do rapaz cercar sua cintura e a puxar para perto, beijando seu rosto diversas vezes em seguida.
— Se tem alguém que entende os riscos que estamos correndo, sou seu. — garantiu, antes de beijar os lábios dela suavemente. — Como você está?
— Eu só quero que tudo isso acabe. — suspirou. — Há tanto trabalho a ser feito. Eu adoro ajudar as pessoas, mas me sinto mal de vê-las tão feridas.
— Sei como se sente. — murmurou, a mão livre acariciando a bochecha dela com cuidado.
— Me preocupo tanto o tempo todo, principalmente com você.
— Ficaremos bem. — ela sorriu ao ouvi-lo prometer algo sob o qual não tinha controle apenas para acalmá-la. — A guerra vai acabar em breve e nós poderemos voltar para casa. — riu ao sentir a gata se esfregando em suas pernas. — Nós três.
— E vamos casar?
— Vamos. Assim que voltarmos. — abriu um grande sorriso. — E teremos quantos filhos você quiser.
— Promete?
— Prometo.

Incapaz de ficar separado dela mais do que o necessário, deixou um beijo na testa da moça antes de abraçá-la e ficaram em silêncio por longos segundos, apenas aproveitando a presença do outro. O lugar onde estavam não era tão seguro e ele sorriu com a ideia que lhe surgiu, afastando-a delicadamente e pegando sua mão. Começou a guiá-la até um lugar um tanto afastado que havia visitado com outros soldados alguns dias antes. Sentou-se no gramado e a puxou para se sentar em seu colo.

— Do que mais sente falta de casa? — ela perguntou calmamente.
— Da comida. — ele riu baixo e deu de ombros. — E você?
— A tranquilidade. — ela suspirou pensativa. — Mas você me proporciona isso, de certa forma. Principalmente em momentos como esse.

sorriu e beijou o rosto da mulher em seu colo uma porção de vezes. O casal ficou em silêncio observando as estrelas que pareciam ainda mais brilhantes naquela noite. apoiou a cabeça no leito do rapaz, sorrindo ao ouvir seu coração batendo forte e não demorou a dormir.
Ao surgirem os primeiros raios de sol na manhã seguinte, abriu os olhos, piscando algumas vezes devido à claridade. Ao olhar para baixo, se sorrindo ao encontrar a namorada o abraçando, profundamente adormecida. Sabia que deveriam voltar para o acampamento em breve, mas não tinha coragem de tirá-la do pequeno paraíso que formavam juntos, longe de toda a confusão no país. Ficou surpreso ao encontrar a pequena gata de três cores adormecida ao lado deles, ressonando.

? Temos que ir. — chamou e sorriu fraco ao ouvi-la resmungar algo. — Vamos, querida, não podemos arranjar problemas, lembra? As atividades vão começar logo.

Após alguma insistência, a moça finalmente acordou e esfregou os olhos como uma criança.

— Queria que pudéssemos ficar aqui para sempre.
— Eu também. — sorriu torto antes de erguer a mão e tocar sua bochecha quente. — Mas temos trabalho a fazer, certo?

assentiu e ele a ajudou cuidadosamente a se levantar, beijando o rosto da moça pela última vez naquela manhã. Caminharam até o acampamento em silêncio, desfrutando da companhia do outro, com a gata os seguindo de perto. O clima no local estava anormalmente agitado e eles se despediram apressadamente antes de se mesclarem na confusão de pessoas apressadas carregando equipamentos e suprimentos.

— O que está acontecendo? — questionou ao se aproximar de um colega e pegar metade das caixas que ele carregava.
— Em que mundo você estava, ? O Coronel Choi disse que precisamos chegar em Seul ainda hoje. Algo grande vai acontecer.
— Alguma ideia do que seja?

O homem balançou a cabeça.

— Só disse que devemos chegar à ponte Hangang antes do meio dia e protegê-la. Muitos refugiados estão chegando à cidade, teremos muito trabalho.

Sem perguntar mais nada, se juntou à multidão de homens trabalhando para desmontar o acampamento. Várias horas de viagem depois, o batalhão chegou à ponte próxima à capital. Os boatos eram de que o exército inimigo se aproximava e os civis estavam em risco. Os políticos mais influentes já haviam evacuado a cidade e o dever era proteger os cidadãos. Ele sabia que a equipe de saúde estava lá, provavelmente cuidando das pessoas que chegavam à cidade em busca de ajuda, mas não conseguia parar de pensar em e em como estaria se sentindo em meio aquela confusão.
Depois de serem divididos em equipes menores, o Coronel passou as instruções. Deveriam passar as horas seguintes plantando explosivos na ponte, para evitar que os norte-coreanos chegassem à capital. A noite caiu antes que se desse conta, mas o trabalho estava feito. Num momento de descanso, conseguiu escapar para checar , com a desculpa de que estava se sentindo mal depois de passar tanto tempo no sol.

— Com licença. — murmurou, entrando na barraca improvisada para atender os feridos — Eu preciso falar com a enfermeira .

As outras enfermeiras conversaram, repetindo a pergunta até que entrassem em um consenso e a que parecia ser a mais velha se pronunciou.

— Ela encontrou um garotinho perdido e disse que o levaria até o outro lado da ponte para encontrar a família.

assentiu e agradeceu, saindo apressado da barraca.

, onde pensa que está indo? — o soldado guardando a ponte perguntou, parando .

— Preciso encontrar uma pessoa do outro lado da ponte, é urgente. Estarei de volta logo.
— Ninguém atravessa. — o outro determinou.
— O que está dizendo? Milhares de pessoas estão atravessando. — disse confuso, apontando os refugiados na ponte.
— Ninguém do exército. — reforçou. — O Coronel já ordenou a explosão, estamos checando pela última vez antes de destruir tudo.
— E ninguém achou que seria interessante avisar aos civis?!
— Ordens do Coronel, .
— Quanto tempo?
— Cerca de trinta minutos.
— Eu volto antes disso! — prometeu. — É muito importante.

O soldado suspirou e deu de ombros, indicando que não diria mais nada. Revirou os olhos ao ver correndo contra o fluxo de pessoas que chegavam à cidade, empurrando-as em desespero. Por favor, , esteja por perto, ele implorava mentalmente enquanto corria, examinando a multidão em busca de qualquer sinal do uniforme branco da namorada. Minutos mais tarde, finalmente a avistou e correu até ela.

— Finalmente! — murmurou aliviado, segurando a namorada pelos ombros. — Precisamos sair daqui, , não temos muito tempo.
— O que quer dizer?
— O Coronel ordenou a explosão da ponte, temos que ir.
— Eu ainda não encontrei a família dele. — murmurou, olhando o menino que segurava sua mão.
, por favor, eu nem deveria estar aqui, vamos. Eu não posso perder você.
— Eu não posso largá-lo aqui, !
— Você tem alguma ideia de onde estão? — perguntou, olhando em volta.
— Do outro lado, talvez? Ele não falou muito. Mas sinto que estamos perto.

— Por favor, . — ela pediu, os olhos brilhando.
— Tudo bem, mas vamos logo.

Num movimento rápido, ele pôs o menino no colo e os dois começaram a correr juntos pela ponte em busca de sua família.

— Daehan! — o rapaz foi parado por uma senhora, que arrancou o menino de seus braços e o abraçou com força. — Eu estava tão preocupada com você. — então olhou para . — Muito obrigada!
— Enfermeira que o encontrou, eu só estava ajudando. — ele murmurou sem graça, indicando a namorada.
— Muito obrigada a vocês dois.
— Precisamos ir agora. — disse, colocando uma das mãos nas costas da mulher, guiando-a para longe.
— Não vai avisá-los sobre a destruição? — ela perguntou com urgência.
— As ordens do Coronal são para não avisar os civis. — respondeu, andando apressadamente em meio às pessoas.
! — parou. — Eu não posso deixar essas pessoas aqui, precisamos ajudá-las. Esse é o meu trabalho e o seu também.

Ele suspirou, passando as mãos pelo cabelo e sabendo que ela tinha razão.

— Tudo bem, mas seja discreta. Diga para se apressarem e, com sorte, conseguiremos passar a mensagem para a maioria. — assentiu e se virou, mas foi parada quando o rapaz agarrou seu pulso. — Onde pensa que vai?
— Será mais rápido se nos dividirmos. — argumentou.
— Eu me arrisquei para te salvar, , não posso fazer isso.
— Te encontrarei no fim da ponte, . Eu prometo. — o sorriso confiante o impediu de contestar a mulher e ela sumiu no meio da multidão segundos depois.

Ele xingou e chamou o grupo mais próximo, avisando o que aconteceria e que deveriam se apressar. Repetiu algumas vezes e a mensagem não demorou pra se espalhar conforme as pessoas apressavam seus passos para chegar ao outro lado o mais rápido possível. lutou para conseguir caminhar no contrafluxo, sem muito sucesso, atento para qualquer sinal de .

— Uma enfermeira se machucou lá atrás. — ouviu alguém comentar e aumentou a velocidade, sem poupar esforços para encontrá-la, pois sabia que o tempo estava acabando.
! — gritou ao passar pelo maior grupo de pessoas.
— Estou aqui! — a voz familiar soou e ele a viu alguns metros à frente, no chão.

Correu até a mulher, jogando-se ao seu lado e surpreso ao encontrá-la cheia de ferimentos, um sorriso fraco e culpado estampado em sua face.
— As pessoas se exaltaram um pouco quando contei. — disse baixo. — Antes que eu percebesse o que acontecia, estava no chão.
— Não se preocupe, vou te tirar daqui. — garantiu, passando os braços por trás dos joelhos e costas dela, tirando-a do chão com facilidade.
— Você estava certo. — murmurou, agarrando o uniforme do rapaz para ter mais firmeza. — Deveríamos ter ido.
— Não diga isso. — ele rebateu. — Pense em todas as pessoas que salvamos graças a você.

estava cansado e seu corpo implorava por descanso após toda a correria na ponte e carregá-la tornava tudo mais difícil. A moça suspirou e ergueu o olhar.

— Você deveria me deixar. Talvez consiga se salvar.

Ele riu, sem acreditar que ela pudesse sugerir tal coisa.

— Eu nunca faria isso, . Quando vai entender que eu não posso te deixar? Fiz uma promessa e pretendo cumpri-la. Vamos sobreviver essa guerra, casar e ter quantos filhos quiser.
— Achei que eu fosse a otimista. — riu sem humor. — Você sabe que não temos tempo.

Ele parou, observando a paisagem por alguns segundos. Ela tinha razão novamente. Ainda precisariam andar pelo menos mais trezentos metros em pouquíssimos minutos para ficar em segurança antes que a coisa toda fosse destruída, segundo as informações que tinha. Não tinham a menor chance. Suspirou e sentou no chão, ajeitando-a em seu colo do mesmo modo que faziam nas noites em que fugiam do acampamento.

— O que está fazendo?
— Já que não temos esperança, podemos aproveitar o tempo que nos resta.

Ela sorriu tristemente, concordando. Ergueu o olhar e se surpreendeu ao encontrar as estrelas brilhando no céu como sempre acontecia quando estavam juntos. Apoiou a cabeça no peito do rapaz como fazia todas as noites e perdidos no pequeno paraíso que eram os braços um do outro, deixaram esse mundo.


Coreia do Sul, 2017.

sorriu, satisfeito consigo mesmo por ter finalmente algum tempo sozinho. Os outros meninos haviam decidido ficar no dormitório, porém ele precisava sair e respirar um pouco de ar fresco. Adorava andar pela cidade e admirar todo seu esplendor.
Sentou-se no banco de madeira que estava vazio e continuou a admirar a paisagem, principalmente a ponte Hangang. Algo naquela estrutura e toda sua história chamava sua atenção de um modo que não sabia explicar. Principalmente a história em relação à guerra. Era incrivelmente triste e fascinante que tantas pessoas haviam morrido na explosão ali na última tentativa do exército para salvar a cidade.
Foi arrancado de seus pensamentos ao sentir algo se esfregando em sua perna e sorriu ao ver a gata de três cores querendo sua atenção.

— Olá. — cumprimentou, se abaixando para acariciá-la. — O que está fazendo aqui?

A gata miou alegremente, agora se esfregando em sua mão. riu e, num impulso, a puxou para seu colo, simplesmente por que ela parecia muito mais amigável do que qualquer outro gato que havia conhecido.

— Mana! — ouviu uma voz feminina chamar e então uma moça se aproximou. — Eu achei que tivesse te perdido. Nunca mais faça isso!

A gata miou novamente, totalmente relaxada e alheia à presença da dona. riu com a pequena conversa e se levantou.

— Acho que ela te pertence. — murmurou, sorrindo torto e entregando a gata para a moça.

Seus dedos se tocaram levemente e ele parou. De repente, tinha a sensação de que a conhecia de algum lugar. Um sentimento tão forte que ele não saberia descrever. O sorriso e os olhos lhe eram tão familiares que ele teve a certeza de que se conheciam de algum lugar.

— Obrigada. — ela murmurou ligeiramente envergonhada, ajeitando a gata em seu colo como se fosse um bebê.
— Eu sou . — ele se apresentou, na esperança de que ela fizesse o mesmo.
.

De uma maneira absurda e totalmente fora de seu controle, soube. Os sonhos que tinha com frequência e protagonizava com a mesma pessoa em diversas situações diferentes, como a Guerra da Coréia, realidades sociais diversas e até mesmo homossexualidade, diferentes vivências, mas a mesma personalidade todas às vezes. Não sabia explicar ou como tinha tanta certeza, mas ao ouvir aquele nome, tudo fez sentido. Era ela.





Fim.



Nota da autora: Sem nota.





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Afire

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