Capítulo Único
O som da caneta sendo apertada com certa força ao correr em uma linha quase reta sobre a agenda era como uma bela música para os ouvidos de . Poder riscar mais uma das pendências de sua agenda na hora marcada era uma das coisas mais satisfatórias e apaziguadoras de todo o universo para seu coração levemente obcecado por organização.
Seu planner era sistematicamente dividido ao longo de cada dia, com os horários apropriados à rotina, as metas do mês e pequenas citações que lhe serviam como lembrete de que ela merecia viver cada dia ao máximo e agarrar as oportunidades que aparecessem com ambas as mãos, sabendo que ela era plenamente competente e merecedora - com todo o seu esforço - para simplesmente permitir que elas passassem e escapassem pelos míseros vãos entre seus dedos.
Até aquele momento, havia usado o cardápio plastificado apenas como algum protótipo de leque. O clima em Austin, mais quente do que aquele com o qual ela havia se acostumado na Pensilvânia, quase a fazia implorar de joelhos para que o verão terminasse mais rápido. Mas poderia fazer o calor que fosse; o inferno podia subir para a Terra e, mesmo assim, ela se recusaria fervorosamente a abrir mão de um café.
Rezou para que o ventilador que rodava lentamente sobre sua cabeça - parecendo mais um simples objeto decorativo do que realmente uma forma de refrescar o ambiente - fosse suficiente para que ela sobrevivesse enquanto desistia de seu leque para, de fato, olhar para o cardápio do local e se decidir pelo que pedir.
Correu os olhos por cada uma das palavras, quando decidiu se aproximar do balcão para pedir ajuda para decifrar aqueles enigmas.
— Com licença - pediu, vendo o rapaz que cuidava do moedor de café se virar para ela. — Eu queria saber qual a diferença do café ‘cowboy’ para o ‘cowboy completo’.
— O ‘cowboy completo’ tem canela e chantilly a mais - ele respondeu, com a sua voz levemente rouca.
Quando ele jogou o pano por cima do ombro e apoiou as mãos sobre o balcão, a visão de foi drasticamente atraída para seus braços levemente tensionados por baixo de toda a tinta preta das tatuagens que cobriam toda a sua extensão. Poderia facilmente perder horas ali até distinguir cada uma delas, mas ainda havia uma coisa que ela não conseguia entender.
— Esse tipo de coisa já não deveria estar escrita no cardápio para facilitar?
O sorriso de canto que ele lhe deu fez com que ela arqueasse uma sobrancelha instantaneamente.
— E perder a chance de poder te ajudar?
Isaac Newton havia estabelecido a sua terceira lei, explicando o conceito de ação e reação de uma forma que se tornasse relativamente intuitiva mesmo para assuntos que extrapolassem os cálculos físicos e as preocupações da mecânica. Mas como explicar a reação a uma ação que ela ainda tentava definir? Aquilo havia sido um flerte, uma demonstração gratuita de presunção ou um oferecimento desmedido de charme que o tal cara tatuado deveria jogar para cima de absolutamente qualquer cliente em potencial que atravessava as portas de madeira desenhada da cafeteria?
costumava detestar não ter as respostas para todas as perguntas que rondavam sua cabeça. Era cansativo e um grande gatilho para que ela ficasse se questionando em ciclos e terminasse mais ansiosa do que havia começado. Naquele momento, contudo, ela decidiu que não precisava se preocupar. No fim das contas, era só um atendente qualquer em uma cafeteria estranha com ares que pareciam quase querer remontar ao faroeste dos filmes antigos e ovacionar a cultura country. Ela provavelmente nem se daria ao trabalho de voltar àquele lugar depois que finalmente se estabelecesse no pequeno apartamento que havia alugado e conhecesse melhor a cidade. Poderia considerar sua presença ali como um mero erro de principiante.
— Você não é daqui - o rapaz constatou.
Ela sentiu os ombros despencarem minimamente para frente. Por que estava tão tensa? Aquela não era literalmente a primeira coisa listada entre as coisas que ela sabia que precisava mudar? Não precisava sempre se colocar na defensiva como se o universo estivesse pronto para atacá-la a qualquer instante.
— É tão óbvio assim?
Ele soltou uma leve risada anasalada, enquanto puxava um copo para começar a preparar o seu pedido.
— Você parece perdida. Foi um chute fácil.
Ela assentiu, encontrando certo conforto no aroma do café torrado que começava a subir rodopiando pelos ares com menos discrição, confirmando a sua presença.
— Chegou quando?
Ela puxou o celular do bolso, olhando o relógio no visor.
— Há uns trinta minutos.
O rapaz arqueou as sobrancelhas, encaixando uma tampa ao copo.
— Nesse caso, não sei se alguém já te disse isso, mas bem-vinda a Austin.
— Obrigada - ela respondeu, sorrindo levemente pela primeira vez.
— E qual é o seu nome?
— Por que a curiosidade? - tinha previsto soar brincalhona, mas acabou parecendo bem mais ríspida do que o necessário.
— Na verdade, é porque eu preciso escrever seu nome no copo - ele respondeu, erguendo o café.
— Só tem eu aqui e você está literalmente de frente para mim. Isso é mesmo necessário?
O rapaz deu de ombros.
— Por mais idiota que eu também ache, infelizmente é o protocolo do estabelecimento.
Ela balançou a cabeça vagarosamente, concordando.
— - respondeu.
Ele lhe ofereceu mais um daqueles sorrisos que apertavam as suas bochechas e pareciam fazer suas covinhas pularem para cumprimentá-la.
— Muito prazer, - respondeu, escrevendo no copo. — Eu sou o .
Seus dedos logo encontraram o calor oferecido pela bebida. Ela quase riu ao perceber que ele havia acertado seu nome em todas as suas letras. Já estava ficando acostumada a receber uma nomeação nova em cada visita a uma cafeteria. Costumava brincar que deveria andar com um crachá colado ao peito para ver se alguém finalmente conseguiria soletrar o seu nome adequadamente, sem se esquecer de alguma letra do alfabeto e sem adicionar novas que, com certeza, não haviam sido convidadas para estar ali.
— Está só de passagem ou vai passar um tempinho aqui em Austin?
— Na verdade, estou de mudança.
— Sério? De onde você é?
afastou os pensamentos de que não deveria sair oferecendo informações pessoais para um completo estranho. O que ele poderia fazer? Invadir sua cidade natal e contar que a conhecia? Havia literalmente saído de lá porque ninguém se importava com a sua existência ou com o seu trabalho. Não fazia sentido se preocupar.
— West Reading, na Pensilvânia.
assentiu, antes de admitir:
— Nunca ouvi falar.
Ela não conseguiu evitar uma risada curta.
— Acredite, você não é a primeira pessoa de quem ouço isso.
— Veio por causa da faculdade? A Universidade do Texas costuma receber vários calouros nessa época do ano.
— Bom, talvez fosse uma ideia mais inteligente e segura, mas não é o caso. Eu vim pela música, na verdade.
— Desenvolva - ele pediu, puxando um banquinho que estava escondido sob o longo balcão e se sentando de frente para ela.
quase se sentiu de volta ao salão de beleza que costumava frequentar quando mais nova, acompanhada de sua mãe. Um lugar aconchegante da forma mais esquisita possível onde as pessoas pareciam querer saber mais de sua vida do que poderia ser considerado normal e, mesmo assim, você falava porque às vezes ser ouvida era exatamente aquilo de que precisava, mesmo que a outra pessoa só estivesse ali para concordar com tudo o que você falasse para te agradar e conseguir fazer com que você voltasse mais vezes.
— Eu canto e toco - ela explicou. — Um pouco só. Não é nada demais. E eu também componho.
— Isso é muito legal.
— É, mas não ia para lugar algum se eu continuasse onde estava. Eu fiquei completamente estagnada lá. Passei o ensino médio inteiro pensando no que fazer de faculdade, mas acho que não é para mim. Sei que é arriscado e louco e provavelmente uma péssima ideia, mas eu quero viver da minha música e pensei que aqui pudesse ser um bom lugar para isso.
— Bom, você veio para a cidade número um em apresentações ao vivo do país - comentou. — Não dá para passar por uma rua sequer nessa cidade sem encontrar alguém se apresentando a qualquer hora. Acho que sua escolha faz sentido.
— Eu espero que sim. Investi basicamente todas as minhas economias dos últimos anos trabalhando como garçonete e ensinando crianças a tocar violão para me mudar para cá. E meu pai está esperando ansiosamente que eu falhe, então eu realmente espero não ter que dar esse gostinho de vitória a ele.
— Nós não podemos deixar isso acontecer - concluiu.
fez uma careta. Estava tentando assimilar a escolha lexical da primeira pessoa do plural por alguém de quem ela não sabia mais do que o primeiro nome.
Antes que pudesse pensar em alguma resposta, ouviu o sininho da entrada acusar que a porta havia sido aberta, indicando que um novo cliente chegava. O rapaz se levantou, empurrando o banquinho com o pé de volta a seu local de origem.
— E aí, Jimmy? Como foi o encontro?
O senhor de cabelos bastante grisalhos sorriu, sentando-se ao lado de . Ele a cumprimentou com um aceno simples de cabeça antes de se dirigir ao rapaz.
— Bem melhor do que eu esperava, meu filho. Vamos sair de novo nesse fim de semana.
— Esse é meu garoto - riu, estendendo a mão para que ele batesse. — O mesmo de sempre? Tem um pão de banana quentinho lá na cozinha.
Jimmy confirmou, vendo o rapaz sumir de vista por alguns segundos para ir até a cozinha buscar o tal pão. desbloqueou o celular, passando seus aplicativos para os lados como se buscasse algo com o qual se distrair e evitar de expressar o sorriso fácil que quase se esboçava em seu rosto após aquela curta interação, aparentemente tão cheia de carinho e consideração que a havia feito se sentir, de certa forma, mais próxima de quem aquele cara tatuado atrás de um balcão parecia ser.
voltou com uma fatia do pão de banana e a entregou a Jimmy, juntamente com um chá cujo aroma ela não reconheceu.
— Você consegue me encontrar amanhã por volta do meio dia na universidade? Tem alguém que quero te apresentar. Acho que ele pode te ajudar - ele disse.
Apesar do estranhamento, assentiu. Não estava em condições de recusar qualquer tipo de ajuda e, estivesse sua primeira impressão certa ou não, confiava nele.
🎤🎤🎤
tinha o hábito de estalar os nós dos próprios dedos sempre que ficava nervosa. Mesmo a sensação levemente dolorida se tornava quase agradável quando suas dúvidas e expectativas internas eram tão barulhentas que pareciam prestes a zunir em seus tímpanos em um processo desnecessariamente incômodo de somatização.
Havia encontrado uma sombra considerável embaixo de um toldo de estrutura pouco confiável e estava sob ele, rezando para que nenhuma viga decidisse ceder ao próprio peso enquanto não chegasse.
Apesar do cutucão em sua insegurança lhe avisando que criar expectativas nunca acabava bem, ela era obrigada a admitir que havia passado as últimas horas torcendo para que o rapaz realmente pudesse ajudá-la. Tudo o que mais queria era poder dar uma boa notícia para a mãe ao fim da tarde e ver sua vida finalmente parecendo prestes a entrar nos trilhos, independentemente do destino ao qual eles levariam.
Sair de West Reading com malas debaixo do braço e um sonho fixado em mente tinha sido um grande tiro no escuro e era mais do que óbvio e incontestável que ela estava com medo. Apavorada, para ser sincera. Era uma cidade nova, onde ela não conhecia absolutamente ninguém enquanto tentava conseguir algum espaço e autossuficiência. E, se tudo desse errado, não tinha o conforto da presença da mãe para o qual correr ao fim do dia.
Fechou os olhos, inalando o ar profundamente e o expirando com calma até que o movimento passasse a se tornar forçado. Quando já estava prestes a começar a se preocupar de verdade com as grandes chances de que sua pressão logo abaixasse e a levasse a um encontro casual com o chão, ouviu a voz masculina que permanecia em sua lembrança soando atrás de si.
— Chegou há muito tempo?
se virou para o rapaz, que tinha os cabelos um pouco bagunçados e a mão segurando uma mochila que não parecia nem de perto tão cheia e abarrotada como a que ela costumava carregar anos antes. A camisa branca simples, com as mangas minimamente dobradas, permitia que ela visse de novo aquelas tatuagens que conseguiam continuar chamando-lhe a atenção. Já havia assimilado um navio pirata, uma rosa, uma âncora e um coração realista. Ainda permanecia curiosa em tentar ler e identificar aquelas que eram palavras e frases, mas não podia se demorar tanto de uma só vez sem escancarar seu interesse repentino e, possivelmente, gritante.
— Tem alguns minutos só - respondeu, mesmo sabendo que sua expectativa havia transformado-os em uma eternidade.
— Ótimo! Ah, aí está o cara - exclamou, vendo outro rapaz, com a franja comprida demais caindo sobre o olho, aproximando-se. — , esse é o Scully. Ele estuda comigo e o pai dele é dono de um lugar bem conhecido aqui na cidade exatamente pela música ao vivo nas noites de sábado.
O rapaz passou as mãos nos cabelos tentando se livrar da franja para manter o contato visual sem a barreira capilar. Ofereceu um sorriso simpático que a mulher retribuiu imediatamente.
— Oi, ! O disse que você se mudou para cá recentemente e estava procurando algumas oportunidades de mostrar sua música. Ele disse que você é incrível e, apesar de tudo, eu aprendi a confiar no gosto dele. Então passa lá no sábado. Com certeza conseguimos te colocar na escala.
— Claro! Uau, com certeza! Muito obrigada mesmo, Scully!
— Não por isso - respondeu, olhando para o relógio prata preso ao pulso. — Olha, eu tenho uma reunião com meu orientador e, se eu me atrasar, eu meio que tenho certeza de que ele me expulsa da pesquisa e ainda desenvolve a minha ideia sem nem se importar em me dar créditos. Então eu preciso ir. Vejo você no sábado?
moveu a cabeça em concordância, observando-o se afastar correndo de volta em direção à universidade. Ela permaneceu ali, estática por alguns segundos, tentando canalizar toda a energia de seu corpo para absorver o que havia acabado de acontecer. Algo borbulhava dentro de si e, pela primeira vez, ela podia afirmar com toda a certeza do universo que não era refluxo. A adrenalina e a euforia lhe entorpeciam. Ela queria gritar, queria gargalhar, queria sair pulando e rodando por aquela calçada mal acabada até ficar tonta ou tropeçar em um dos paralelepípedos desajustados.
— Sabia que ele ia topar na hora - falou atrás de si, fazendo-a se virar para ele.
Ela, até então completamente indecisa e dividida entre qual dentre todas as pequenas demonstrações de surto escolher, arremessou os braços ao redor do rapaz, apertando-o com todo o contentamento e a gratidão que suas palavras não seriam capazes de expressar enquanto seu cérebro fervilhava com a mais nova informação. sorriu, retribuindo o gesto.
— Obrigada, obrigada, obrigada - ela repetiu sem parar, finalmente soltando-o. Seus pés mal conseguiam sustentar seu próprio peso sem ficar dividindo-o entre os calcanhares extasiados que pipocavam alternadamente contra o chão.
— Não precisa agradecer. Não foi nada, sério.
Ela respirou fundo, expirando o ar calmamente pela boca. Naquele momento, repassando os últimos minutos como um filme, ela percebeu um detalhe que lhe tinha escapado na fala daquele que acabara de conhecer.
— Espera aí… O Scully realmente disse que você falou para ele que eu era incrível ou eu delirei por um segundo?
— Ah, não. Ele disse mesmo.
Ela fez uma careta.
— Como você fala uma coisa dessas para o cara? Você nem me ouviu cantar. Eu posso ser horrível. Posso ser esganiçada e desafinada que nem naqueles desenhos que os vidros todos começam a estourar.
Ele não conseguiu segurar a risada, mesmo percebendo na cara dela que seu nervosismo era legítimo e não uma tentativa de parecer bem humorada de alguma forma.
— Tenho certeza de que, se você realmente fosse horrível, alguém na sua cidade ou na sua família teria te mandado a real antes de você decidir se mudar completamente para tentar carreira. Você vai mandar bem, relaxa.
— Não sei, não.
— Mas eu sei - ele garantiu, fazendo soltar o ar em um sopro pelo nariz, descrente de toda aquela autoconfiança aparentemente descabida. — Você já almoçou?
— Ainda não.
— Tem um lugar bem legal aqui perto. Me acompanha?
sabia que seu estômago responderia antes dela se pudesse. Sabia também que meio que devia a ele pela ajuda e que, mesmo se não devesse, ainda havia uma mistura de sua gratidão, solidão e interesse que a faria concordar sem precisar de grandes reflexões.
Caminhou ao lado do garoto por pouco mais de uma quadra até segui-lo para o interior de um restaurante cujo aroma remetia a tomates, manjericão e queijo gratinado.
— Meu Deus, me deixa morar na soleira dessa porta - ela pediu, fechando os olhos para inalar profundamente mais uma vez, sentindo a boca se enchendo em expectativa.
riu alto, estufando o peito orgulhoso. A cantina era uma cartada que absolutamente nunca falhava.
— Arrisco dizer que essa é a casa da melhor massa que tem na cidade inteira.
— Tem cheiro de comida de vó italiana.
O rapaz aquiesceu.
— Tem esse gosto também. Só não venho aqui sempre por falta de dinheiro e metabolismo suficiente para isso.
Quando sua lasanha chegou, aproveitou cada pequeno pedaço, sentindo as várias camadas de massa caseira e queijo derretido lhe abraçando com o conforto de um cobertor felpudo em um dia rigoroso de inverno.
— Meu Deus. Esse prato saiu diretamente das mãos dos deuses, eu não tenho dúvidas.
— Concordo - ele respondeu.
Mas por mais imersa que ela estivesse em sua experiência gastronômica, não conseguia se livrar do incessante questionamento que persistia martelando em sua mente.
baixou o garfo, ouvindo o tilintar do talher contra a porcelana branca como clara de ovo.
— , posso te perguntar uma coisa?
— Quantas quiser.
Ela queria poder dizer que estava acostumada a ser tratada com tanta simpatia gratuita, mas sua mãe lhe tinha criado para evitar qualquer tipo de mentira que não se colocasse como extremamente necessária frente a uma situação de vida ou morte.
— Por que você me ajudou?
O rapaz pareceu genuinamente confuso por alguns instantes, antes de encontrar o desfecho de sua expressão em um dar de ombros.
— Sei lá, acho que porque eu podia. Eu sabia de algo que poderia te ajudar e não me custava absolutamente nada fazê-lo. Então acho que a pergunta mais correta seria: por que não?
— Mas você nem me conhece.
reprimiu o ímpeto de, mais uma vez, movimentar seus membros superiores em um ato descomprometido. Não queria parecer repetitivo, por mais que achasse que as indagações dela estivessem praticamente lhe implorando por isso.
— Isso pode ser facilmente mudado se você deixar.
gostaria de poder culpar o tempo atmosférico em Austin pelo enrubescimento irritante de sua tez. Sempre que sentia suas bochechas respondendo ao próprio calor emocional, julgava-se por ser tão transparente quanto aos seus sentimentos.
— Você vai sábado?
Ela sabia perfeitamente que aquela pergunta estava longe de representar um convite propriamente dito, mas esperava que ele assim a compreendesse.
— É claro que sim. Eu não perderia por nada.
— E se eu for péssima e seu amigo decidir te culpar?
— Nesse caso, eu provavelmente já terei desaparecido em meio a multidão antes que ele possa fazer isso. Mas fica tranquila. Vai dar tudo certo.
A mulher assentiu, mantendo um sorriso singelo enquanto usava o guardanapo para limpar possíveis resquícios de molho dos cantos de seus lábios. Quando pequena, costumava dizer aos pais que parte do processo de verdadeiramente saborear uma refeição implicava sujar-se com ela. Duas décadas depois, sua conclusão sobre o assunto e suas implicações sociais não poderia ser mais diferente.
— Como você veio até aqui?
— Peguei um uber - ela respondeu. — Vou chamar outro já.
— Nada disso. Eu te dou uma carona até onde você está morando. Meu turno na cafeteria só começa daqui duas horas. Posso te deixar lá tranquilamente.
— Não, , é sério. Eu não quero te incomodar.
Do lado de fora, apertou os olhos, tentando protegê-los do sol.
— Eu vou até o estacionamento e volto para te buscar. Não sai daqui.
— - ela aumentou o tom de voz ao vê-lo se afastando rapidamente. — Volta aqui!
— Não estou te ouvindo - ele gritou da esquina, com um sorriso que lhe fazia ter certeza de que ele era um grande sonso.
Puxou o celular do bolso, abrindo seus aplicativos de redes sociais apenas para se livrar dos pequenos ícones vermelhos com números de notificações que tanto lhe irritavam. Ações que levavam, literalmente, poucos segundos e lhe garantiam igualmente pequenos momentos de paz.
O barulho de motor e engrenagens lhe fez devolver o aparelho ao local de origem, erguendo a cabeça para ver a cena que tinha acabado de se tornar um grande pesadelo.
— Pronto, podemos ir.
O rapaz lhe estendia um capacete casualmente como se aquele gesto não significasse nada. sentiu seu coração acelerar sem sequer pedir permissão só de se imaginar na garupa daquela moto. tinha cara de quem havia escolhido uma motocicleta propositalmente para sentir o vento no rosto e poder acelerar, costurando por entre os carros que seguiam pelas vias duplas e triplas das avenidas. E aquela era uma conclusão completamente precipitada na qual ela arriscaria todas as suas fichas.
— Eu não vou subir nisso.
quase pareceu ofendido.
— Qual o problema?
— Só pessoas loucas dirigem motocicletas.
— Isso me soou totalmente preconceituoso.
— Ah, sim. Perdão. Espero que a minoria desprivilegiada dos motoqueiros de jaqueta de couro não se sinta ofendida pelo meu posicionamento precoce e generalizante.
Ele revirou os olhos, tentando mais uma vez estender-lhe o capacete preto.
— Anda, . Eu não sou louco, tá? Eu tenho uma habilitação para isso. Você quer ver?
— A menos que você tenha saído péssimo na foto três por quatro, não vejo necessidade.
— Para o seu azar, eu contrariei a ordem do universo e saí lindo.
— E ainda quer me convencer de que não é louco.
— Eu vou devagar, prometo. Você pode me segurar e me apertar com força se eu estiver indo rápido demais, ok?
— Vou te machucar.
— Não vai, . Fica tranquila.
— Não faz mais isso.
O movimento de seus olhos e sobrancelhas demonstrou o quão desconcertado se sentia naquele momento.
— Isso o quê?
— O que você acabou de fazer.
estreitou os olhos, reavaliando suas palavras e procurando o problema nelas. Com um sorrisinho de canto, percebeu que só poderia ser uma coisa.
— Te chamar de ?
Ela bufou exageradamente, dando-lhe uma resposta bastante clara para a sua pergunta. Ele não se preocupou em tentar conter o riso.
— Tarde demais, . Pega o capacete.
— Você é ridículo.
— Não é a primeira a me dizer isso. Sem contar que fica meio difícil de acreditar, considerando que dez minutos atrás você me achava o cara mais incrível do mundo pelo show e pelo almoço.
— Vai a merda, .
Por fim, ela aceitou o capacete, encaixando-o na cabeça e fazendo questão de apertá-lo ao máximo como se a sensação de enclausuramento de seu crânio fosse capaz de lhe trazer uma maior sensação de segurança. Subiu na garupa da moto, rezando para não se desequilibrar.
pegou as mãos dela e as puxou, cruzando os seus braços ao redor de sua cintura. agradeceu pela posição embaraçosa, próxima e encaixada demais por garantir que ele não a visse corando. A menos que ela estivesse no campo de visão de seus retrovisores. Que inferno.
— Onde você está morando mesmo?
— Naquele prédio amarelo de quatro andares perto de onde você trabalha.
— Excelente - ele respondeu e acelerou.
apertou os braços em volta dele quase com tanta força quanto empregou para pressionar seus olhos, esforçando-se ao máximo para não ter de visualizar seu trajeto com passagem expressa para a morte. Se fosse verdade que toda a vida passava em flashes na mente nos últimos segundos de sua persistência, seria melhor mesmo assistir àquele filme com os olhos fechados.
De repente, sentiu a máquina abaixo de si desacelerando gradualmente, perdendo a sua velocidade para os freios até parar de vez. Abriu os olhos, tentando se acostumar com a luz.
— A gente já chegou?
— Não, . É só um semáforo. E esse é longo para caralho, mas é o caminho mais tranquilo até sua casa. Eu não ia te jogar em um monte de curva e estreitamento logo na sua primeira vez em uma moto.
— E última - ela completou rapidamente. — Mas obrigada pela consideração.
— Disponha - ele respondeu, vendo a luz vermelha sendo substituída pela verde. — E se segura de novo.
A mulher repetiu os movimentos, mas dessa vez arriscou não fechar os olhos e observar conforme as árvores, postes, carros e pessoas passavam por eles - ou eles passavam por elas, para ser mais factível quanto à relatividade de movimento. De alguma forma, por mais que seu medo estivesse bem longe de desvanecer, conseguia quase compreender o porquê dos discursos de liberdade irrefreável que bradavam aqueles a quem chamava de loucos.
Não demoraram a finalmente estacionar de vez na frente do seu prédio. Ela desceu da moto, tentando não errar o chão, tropeçar e acabar precisando ser levada para o hospital com algum tipo de fratura. Por mais extremo que parecesse, ela tinha plena consciência de que poderia facilmente passar por aquilo.
Retirou o capacete, devolvendo-o a e passou as mãos avidamente pelos cabelos, tentando arrumá-los na raiz, mesmo sabendo que aquilo provavelmente apenas terminaria por torná-los oleosos.
— Fala sério - ele chamou a sua atenção. — Foi tão ruim assim?
— Foi - mentiu. — Esse deve ser o maior pesadelo da vida da minha mãe. Vou ligar para ela de noite e falar ‘O que eu fiz hoje? Ah, eu passei meu endereço para um estranho e deixei ele me dar uma carona até lá em uma moto. Nada de interessante. E você?’.
riu. Uma gargalhada tão gostosa e expansiva que sentiu seus músculos da face se movendo contra a sua vontade para rir junto com ele.
— Eu não sou um desconhecido - ele apontou. — Nessa conversa você pode falar para a sua mãe que eu te consegui uma apresentação no sábado também. Assim ela vai gostar de mim.
— Não vai, não. Sua imagem vai acabar para ela assim que eu falar da moto.
— Você é muito preocupada. Um dia eu te levo para pegar estrada com ela. Você vai adorar.
— Não vai acontecer.
Ele sorriu, esbanjando toneladas de presunção que poderiam muito bem ser empacotadas e vendidas.
— Veremos. Até sábado, .
🎤🎤🎤
A previsão do tempo tinha conseguido errar feio. Se deixasse sua insegurança de repente começar a acreditar em superstições e sinais do universo, com certeza já teria desistido de tudo e decidido se enfiar embaixo do cobertor até se convencer de que estaria protegida de tudo o que poderia dar errado fora daquele casulo.
Enquanto passava iluminador no rosto, repetia a si mesma algo que sua mãe sempre havia lhe dito: quando o tempo parece escuro e carregado demais, crie seu próprio raio de sol.
Com dois toques leves na porta, Scully anunciou a própria entrada no pequeno camarim que ela ocupara assim que o primeiro artista da noite subira ao palco. Havia um esquema de rodízio ali que fazia tudo funcionar de forma metódica e satisfatória.
— Você está incrível - o rapaz comentou.
agradeceu, sem jeito, enquanto passava a mão pelas franjas do vestido, que já havia tentado arrumar algumas dezenas de vezes.
— Sua vez em três minutos.
Novamente só no ambiente, virou-se para o espelho, checando os cabelos uma última vez. Afinou o violão habilmente e respirou fundo, convencendo seu coração a se tornar mais baixo e permitir que apenas sua música dominasse seus pensamentos.
Da coxia, viu a plateia aplaudindo a última canção de um homem bem mais alto e corpulento do que ela, que parecia um grande fã de camisas xadrez de flanela e chapéus de cowboy. Uma estética que confirmava que tinha ido parar no lugar certo.
— Obrigado, Russell - Scully agradeceu, conforme as palmas foram sumindo. — E agora, com vocês, uma estreante na casa. !
Ela subiu ao palco com um largo sorriso, encontrando na primeira fila, fazendo questão de gritar mais alto do que todos os outros ao recebê-la. Apenas meneou a cabeça para ele, silenciando sua vontade de lhe mostrar o dedo do meio, tendo certeza de que aquele anúncio havia sido completamente proposital e planejado por ele.
— Oi, pessoal. Todos estão bem? - Ela manteve o sorriso, comprimindo os lábios, enquanto recebia alguns sons indissociados como resposta. — Bom, hoje, se vocês não se importarem, eu gostaria de começar com uma música que eu compus. Pode ser?
Os gritos em afirmação lhe ofereceram a confiança para prosseguir.
— Bom, essa música foi escrita para alguém que se tornou memorável em minha vida pelos motivos errados.
Deixou sua cabeça pender levemente, enquanto garantia que seus dedos estivessem posicionados nas casas e cordas certas, por mais que eles já soubessem instintivamente para onde ir.
— You, with your words like knives
(Você, com suas palavras feito facas)
And swords and weapons that you use against me
(E espadas e armas que usa contra mim)
Conforme ia seguindo pela letra, sentia cada uma das palavras que, tempos atrás, havia rabiscado em um caderno, com a letra pouco caprichosa pela pressa em tentar acompanhar com os dedos o turbilhão de pensamentos que fervilhavam sua mente no momento da raiva e da descrença.
Cantou o refrão, sendo acompanhada por algumas palmas no ritmo da canção que sua audiência começava a capturar. Tentou não se agarrar às suas expressões, por medo de se perder, mas queria enquadrar em sua memória aquele momento em que tantos rostos animados pareciam se envolver e acompanhá-la naquele momento da forma mais genuína possível.
— And I can see you years from now in a bar
(E eu consigo te ver daqui alguns anos em um bar)
Talking over a football game (Falando sobre um jogo de futebol)
With that same big loud opinion
(Com aquela mesma grande e barulhenta opinião)
But nobody's listening
(Mas ninguém está ouvindo)
Washed up and ranting about the same old bitter things
(Em decadência e reclamando sobre as mesmas coisas velhas e amargas)
Drunk and grumbling on about how I can't sing
(Bêbado e resmungando sobre como eu não sei cantar)
But all you are is mean
(Mas você só é cruel)
All you are is mean
(Você só é cruel)
And a liar, and pathetic, and alone in life
(E um mentiroso, e patético, e sozinho na vida)
And mean, and mean, and mean, and mean
(E cruel, e cruel, e cruel, e cruel)
Àquela altura, o público já havia aprendido consideravelmente o refrão, acompanhando suas palavras como se pudessem sentir tudo o que ela sentia colocando-as para fora com todas as suas forças.
— But someday, I'll be living in a big old city
(Mas um dia, eu estarei vivendo em uma grande e antiga cidade)
And all you're ever gonna be is mean
(E você será simplesmente cruel)
Someday, I'll be big enough so you can't hit me
(Um dia, eu serei tão grande que você não conseguirá me atingir)
And all you're ever gonna be is mean
(E você será simplesmente cruel)
Why you gotta be so mean?
(Por que você tem que ser tão cruel?)
dobrou o corpo para frente em agradecimento, enquanto suas risadas se perdiam entre o alvoroço que tinha conseguido causar no público. Era uma sensação simplesmente indescritível. Poder finalmente fazer aquilo que mais amava e tocar as pessoas ao longo do caminho era muito mais do que ela poderia ter sonhado conquistar tão cedo. Seus ouvintes ainda eram seletos e seu tempo de palco escasso, mas, de forma contrária, o sorriso em seu rosto e a alegria em seu peito pareciam apenas se estenderem infinitamente como se não enxergassem motivos para parar.
Após tocar algumas de suas canções favoritas de outros artistas, finalmente desceu do palco, encontrando o responsável por aquela oportunidade no meio do caminho, com os olhos brilhando quase tanto quanto os dela. Talvez, pensou, fosse apenas um reflexo do que se passava nela mesma. As coisas simplesmente pareciam mais belas e reluzentes quando estávamos no auge de nossa própria felicidade.
— , isso foi simplesmente incrível - ele falou, soando o mais sincero que ela já havia ouvido na vida de alguém que não fosse obrigado a amá-la, como sua mãe.
— Eu ainda estou em transe com tudo isso, como se eu estivesse levitando por aí - admitiu. — É só por isso que eu não vou te matar por ter me inscrito como .
O rapaz soltou uma gargalhada, passando a mão direita entre os cabelos levemente desgrenhados na sequência.
— Fala sério. É um ótimo nome artístico. Soou perfeitamente bem. Acho que você deveria lançar sua carreira com ele.
Ela revirou os olhos, decidindo poupá-lo de sua ferrenha discordância. Seguiram até o bar, pedindo dois grandes - bem maiores do que ela esperava - copos de chopp.
— Era sobre o seu pai, não era?
assentiu, enquanto dava um jeito de equilibrar o copo, virando um longo gole. Definitivamente precisaria de álcool em sua corrente sanguínea para ter aquela conversa.
— Era. Ele nem merecia o tempo e o esforço de ter uma música para ele; mas, de alguma forma, é estranhamente reconfortante poder cantar abertamente e a plenos pulmões o quão escroto e patético ele é.
— Bom, ele com certeza merece - comentou. — E se realmente disse que você não sabe cantar, deveria ir ao médico verificar a audição. Até porque, o que eu vi aqui hoje, é digno de um Grammy.
Ela deu uma risada, quase engasgando com a própria bebida.
— Até parece.
— Eu estou falando sério. Melhor performance country solo.
— Que exagerado.
— Nem um pouco. Sou um poço sem fundo de sinceridade e honestidade.
— E que sonha alto demais - ela acrescentou. — Pensar em um Grammy já está um pouco fora da realidade.
Ele deu de ombros, posicionando o copo no balcão à sua frente antes de se virar para olhá-la diretamente nos olhos.
— Tudo é um caminho, não? Você canta aqui, escreve outras músicas, consegue um contrato, grava um álbum, faz uma turnê e ganha um Grammy.
— Acho que já deu de álcool para você por hoje - ela disse, puxando o copo dele para si.
a fuzilou com os olhos.
— Não toca na minha cerveja. E não duvide de mim. Eu sei o que estou falando. Entendo de música.
Ela deu uma risada irônica.
— Ah, entende, é?
— Claro - ele concordou. — Eu ouço música e gosto de música. Logo, eu entendo do assunto. Simples assim.
— Tenho a leve impressão de que não é bem assim que funcionam as coisas.
— Daqui uns anos, você vai estar no palco recebendo um prêmio grande e vai me agradecer por ter sido o primeiro a confiar que você chegaria lá. Pode fazer um daqueles discursos super emotivos. Com lágrimas nos olhos, dizer: “Obrigada por ter confiado tanto em mim quando nem eu pude confiar”. Meu Deus, soa tão dramático e poderoso.
— Cala a boca - ela o empurrou de leve. — Quando eu for famosa a esse ponto, nem vou me lembrar de você.
fingiu estar realmente ofendido com a brincadeira.
— E pensar que eu te deixei andar na minha moto.
— É esse o seu argumento? Aquilo foi um castigo, não uma recompensa.
— Você adorou. Sei que, lá no fundo, você sabe disso.
— Mantenha os pés no chão. Seus sonhos já estão ficando absurdos demais.
Ele gargalhou, terminando o conteúdo de seu copo e fazendo um sinal para o barman pedindo que o preenchesse mais uma vez.
— Brincadeiras à parte, a música é realmente muito boa. Deu para ver como todo mundo estava realmente curtindo. Não tem como não se identificar com uma letra daquelas, sabe? Todo mundo já teve alguém na vida para podar seus sonhos e te dar um chute na boca do estômago dizendo que você é um inútil incompetente. Só é uma bosta que essa pessoa na sua vida tenha sido o seu próprio pai.
assentiu, virando seu chopp para que o barman pudesse aproveitar a viagem e já retornar com os dois copos cheios.
— Ele é um escroto. Não é à toa que minha mãe o largou. Ela pediu o divórcio quando eu tinha uns seis anos de idade.
— Ele tratava ela assim também?
— Acho que ele trata todo mundo assim. Minha mãe sempre fala que não sabe o que aconteceu com ele. Óbvio que ele nunca foi dos caras mais românticos e dedicados a demonstrar todo seu amor e gratidão, mas ele não era… Assim.
“Ela diz que ele sempre foi quieto e mais de agir do que falar, mas que sentia amor, dedicação e qualquer coisa boa nele ou não teria se casado e nem decidido ter um filho dele. Talvez o problema tenha sido exatamente o momento em que ele decidiu começar a falar demais. Parece que todo o vocabulário dele é limitado a coisas negativas e isso vai exaurindo as pessoas ao seu redor, sabe?”
aquiesceu.
— É exaustivo ficar perto de alguém que só sabe falar de coisas ruins. Ainda mais quando isso vai além do pessimismo individual e começa a ser usado para atingir as outras pessoas.
— É exatamente isso. Só reclamações, só negações. Até os elogios sempre vinham embutidos em algo problemático. Era sempre um “ainda bem que pelo menos isso você consegue fazer direito”.
— Daí sua mãe pediu o divórcio - ele concluiu e agradeceu ao barman pelas novas bebidas, tão geladas que o vidro dos copos já começava a embaçar.
— Ela aguentou aquela palhaçada toda por um ano ainda, tentando acreditar que era só uma fase e ele ainda voltaria a ser o homem que ela havia amado. Mas não adiantou. Na verdade, as coisas só pioraram porque ele começou a beber, voltava para casa só de madrugada, deixava uma puta bagunça pelo caminho e ela que se virava todo dia para reparar os danos que ele deixava para trás.
Mesmo tão nova, se lembrava com clareza e completa lucidez daqueles momentos. Ao acordar pela manhã, encontrava pegadas de terra molhada, cacos de garrafas que ele derrubara e quebrara e o cheiro do álcool que havia secado no chão por onde ele passara, arrastando o estrago consigo. Parecia a versão alcoólatra e deslocada do público infantil de João e Maria.
— Eu fui morar com ela, é claro. Ela tentou unir testemunhas e documentos que pudesse usar no tribunal caso ele pedisse a minha guarda, mas ele não ligava o suficiente para mim para isso. No fim das contas, o descaso dele acabou se tornando um alívio.
— Mas você ainda o via.
— Sim, sim. Minha mãe não queria que eu me afastasse completamente do meu pai. Em alguns dias de sobriedade, eu passava a tarde com ele. Às vezes tudo ficava bem. Nós tomávamos sorvete, eu permanecia o mais quieta possível e o dia acabava sendo positivo. Mas era só eu falar sobre alguma coisa que ele fazia questão de me lembrar de como estava quase literalmente cagando e andando para o que eu pensava ou fazia.
— E você falou sobre a música?
— Era a única coisa que me trazia alegria de verdade, sabe? Sem precisar de justificativas, de compreensão… Era só um sentimento de preenchimento e completude que eu sabia que não conseguiria encontrar em mais nada na vida. Foi ele quem pediu para me ouvir quando um amigo comentou que tinha me visto cantar no aniversário de uma garota lá em West Reading.
“E sabe o que mais me dói? Eu tive esperanças. Pensei que ele pudesse realmente se interessar uma vez na vida pelo que eu estava fazendo e sentir orgulho de mim. Eu queria esse orgulho. Estava em êxtase por dentro imaginando que meu pai finalmente enxergaria meu valor. Mas aquele momento foi completamente oposto a tudo que eu pudesse ter esperado dele.
Ele disse que eu não sabia cantar e que até o gato estridente do vizinho conseguia produzir sons menos insuportáveis do que eu. Disse para eu desistir da música e procurar algo simples e que uma mulher como eu conseguiria fazer na vida, que fosse o suficiente para não morrer de fome.”
— Que filho da puta - interveio, balançando a cabeça com fúria genuína. — Meu Deus, sério. Como ele tem coragem de ser tão sem noção?
deu de ombros, com um sorriso entristecido.
— Ele só não se importa. Parece que o satisfaz saber que está destruindo a felicidade alheia.
— Mas sua mãe sempre te apoiou?
— Sempre, independentemente do que fosse. Ela me apoiou até quando eu disse que queria ser jogadora profissional de basquete e olha a minha altura - ela disse rindo. — Mas ela levou muito a sério quando eu comecei a cantar. Ela me comprou o violão e me incentivou em cada segundo disso tudo. Tanto que, mesmo com o peso no coração, ela foi a primeira pessoa a quase me empurrar para dentro de um avião e me mandar vir para cá, para tentar conquistar algo que eu pudesse realmente chamar de meu.
— Viu só? E eu ajudei nisso. Eu disse que ela vai me adorar.
— Você está destruindo o meu momento fofo maternal.
— Chama quebrar o gelo - ele a corrigiu. — Mas fico feliz de verdade que você tenha encontrado alguém para te apoiar a seguir nesse sonho. E que não seja surda que nem o otário do seu pai. Eu estou realmente puto com ele. É sério. Eu iria facilmente para a Pensilvânia só para meter o meu dedo na cara dele e falar tudo o que já me deixou entalado aqui.
gargalhou, sendo obrigada a concordar.
— Tudo bem, ele tem esse poder sobre as pessoas. Acredite, eu entendo bem.
O que ela não verbalizaria, contudo, era que estava realmente feliz de poder compartilhar aquele sentimento com alguém. De alguma forma, aquela compreensão lhe fazia sentir como se o peso sobre seus ombros não fosse tão insuportável assim. Dividir a sua história - e também a sua angústia, a sua raiva e a principal fonte de todas as suas inseguranças - era algo que ela não costumava fazer com frequência. Ao menos, não a história completa. Sempre se resumia ao fato de que seus pais haviam se separado por desentendimentos, como se a história começasse e terminasse ali. Mas não havia sentido, naquele momento, a vontade de se calar. Não tinha medo dos questionamentos, das suposições, dos julgamentos. Havia algo no rapaz que lhe estendera a mão sem esperar nada em troca que lhe transmitira confiança o suficiente para se abrir desnuda de amarras ou hesitações.
— Meu Deus, eu adoro essa música - ele comentou, ouvindo um som que ela também conhecia muito bem. — Vamos dançar!
— Nem que me paguem - ela respondeu. — Pode ir, eu vou ficar aqui com a minha cerveja.
— Não, . Você vai dançar comigo!
— Eu vou pisar no seu pé, isso sim.
— E daí? Quem se importa com isso? Eu já falei que você se preocupa demais.
E era verdade, não era? Ela não precisava ir tão fundo em sua alma e pensamentos para saber que concordava plenamente com aquilo. Nem para saber que estava disposta e desejosa por mudanças.
— Ah, que se dane - disse e aceitou a mão dele, que a puxou animadamente para o meio das outras pessoas.
Em meio a mais risadas do que passos certos, girava vez ou outra, gargalhando ao ponto de sentir lágrimas despontando de seus olhos. Nem todas as pessoas em volta eram capazes de romper o invólucro da bolha em que se encontravam naquele momento, divertindo-se de uma forma despreocupada e especial que dependia diretamente da pessoa com quem cada segundo daquela experiência era compartilhado.
Em seu coração, sabia que havia entrado naquele lugar com um sonho e saído com muito mais do que isso.
🎤🎤🎤
Quando o som do grasnar de um pato ressoou pelo ambiente, ela soube exatamente de quem era a notificação. Afinal, fora ele que havia escolhido aquele toque bizarro por um motivo que nem ele soubera justificar no fim das contas.
Estavam trocando mensagens e marcações no facebook com frequência há pelo menos uns treze dias, após trocarem números em mais uma das noites em que ela se apresentara sob contrato firmado com o pai de Scully. Já contabilizava seis apresentações e seis presenças marcadas e firmadas de .
Ela não ficava para trás. Nesse meio tempo, havia se convencido de que precisava tomar o ‘café cowboy’ para ter um dia proveitoso e produtivo várias vezes. Estranhamente, todas as vezes em que aquela vontade repentina havia surgido, encontrava-se no meio do turno do rapaz na cafeteria. O mundo era mesmo repleto de coincidências.
Correu para sua mesa de cabeceira, encontrando o aparelho ainda plugado na tomada depois de uma noite em que ela havia simplesmente se esquecido de carregá-lo. Chegava tão cansada após as performances que simplesmente se estirava na cama depois de um banho e ali ficava, toda torta até o amanhecer.
“Tenho planos. Estou te esperando aqui embaixo.”
colocou um cardigan por cima da blusa de alcinha que usava e calçou um par de rasteirinhas que deixava no canto do quarto especialmente para momentos em que saía sem planejamento prévio. Abriu a janela do cômodo, encontrando o rapaz lá embaixo, encostado à própria moto, usando óculos de sol pretos que se encaixavam perfeitamente aos ângulos de seu rosto.
— Agora é assim? Você já chega mandando?
Ele olhou para cima, dando um sorriso de canto ao vê-la.
— Exatamente. Desce.
— Não sou fácil assim.
— Desce, por favor, . Vai ser legal, eu prometo.
Ela revirou os olhos, dando uma risadinha. Aceitou a bateria semicarregada e colocou o celular na bolsa, transpassando a sua alça pelo ombro. Correu escadas abaixo, sem paciência para esperar o elevador em um trajeto tão curto. O problema era subir, descer era simples.
— Oi - disse.
— Oi. Para onde vamos e precisamos mesmo ir no trem da morte?
— Primeiro, mais respeito com a minha moto. Segundo, lembra aquele dia em que eu disse que ia te levar para saltar de paraquedas?
A mulher fez uma careta, concordando.
— Lembro. E sabe do que mais eu acabei de me lembrar? Eu preciso fazer biscoitos para ajudar as escoteiras do bairro, então eu já vou entrando, ok? Até mais.
— Ah, mas não vai mesmo. Pode voltar aqui. Nós não vamos saltar de paraquedas.
— É claro que não. A menos que você queira ligar para a minha mãe e avisar o endereço para o meu velório.
— Nós vamos fazer uma coisa legal e divertida, que também tem adrenalina envolvida, mas sem te matar do coração.
— Repete essa frase na sua cabeça até você perceber que ela continua incoerente.
— Eu juro que é seguro. Por favor, confia em mim. Quando eu te dei motivos para não confiar?
Ela ergueu a mão, utilizando os dedos para adicionar ao gestual teatral de sua contabilização.
— Bom, quando você me fez experimentar uísque dizendo que era refrigerante, quando me fez dançar quadrilha, quando disse que eu estava ótima sendo que tinha uma espinha gigante no meu nariz… Preciso continuar?
Ele a ignorou completamente, entregando-lhe o capacete do qual ela já era relativamente familiarizada.
— Eu não vou.
— , relaxa. E coloca o capacete.
Ela bufou, mas obedeceu. Não precisava mais forçar os braços excessivamente ao ponto de quase estrangulá-lo, mas não precisava contar isso a ele. Estava confortável agarrada a ele e aproveitando o vento no rosto, no caminho que ela já começava a reconhecer.
Ao chegarem ao seu destino, ela confirmou sua hipótese, não dispensando estranhamentos.
— O que viemos fazer na sua faculdade?
— Você já vai ver.
o seguiu, sem mais questionar. O campus era arborizado e estava vazio como ela imaginava não ficar em dias letivos comuns. Ouvia o farfalhar das folhas e o som do universo orgânico que lhe rodeava. Havia um quê de pacífico naquilo.
— Você tem certeza de que nós podemos estar aqui hoje?
pigarreou de leve, antes de engrossar a sua voz para dizer com dicção e entonação exageradas:
— Toda pessoa tem o direito de ir e vir livremente, sem ser molestada. Chama Direitos Humanos.
Caminharam por mais algumas centenas de metros, subindo por uma rampa adaptada que os colocava em um dos pontos mais altos da universidade. Olhando para baixo, ela viu o declive acentuado de grama que ligava os dois patamares distintos de edificações.
— Meu Deus, devia ter uma grade de proteção aqui. Já pensou se alguém cai?
— Já pensei, sim. E é mais ou menos o que nós vamos fazer - ele anunciou, entregando-lhe um pedaço grande de papelão, retirado de uma caixa aberta que um dia havia embrulhado algum tipo de mobília não mais identificável nas letras gastas.
— , não. É sério. Não mesmo.
— Eu também estou falando sério, . Esse é o tipo de coisa que toda criança faz e eu tenho certeza de que você não fez, então a gente precisa preencher esse espaço na sua vida.
— Não, obrigada.
— Você pode descer comigo se quiser. Só nunca saberemos se eu vou te segurar ou te empurrar do papelão. Fica por sua conta e risco.
— Eu não sei mesmo porque ainda aceito fazer as coisas com você.
— Ah, eu sei! É porque você me adora. E eu sei que nesse exato momento você está se contorcendo pra não dizer: "Obrigada, , por ser essa pessoa maravilhosa e essencial na minha vida. Eu nunca poderia ser feliz e completa sem você.”, mas vou te poupar porque já sei de tudo isso. Não precisa me falar.
Ela apenas ergueu o dedo do meio para ele, tomando o papelão de suas mãos.
— Eu vou sozinha. Não confio em você. Ainda mais em um penhasco.
— Do jeito que você fala parece que vamos escorregar no Grand Canyon. Você vai adorar, eu garanto.
— Se eu não gostar, posso te socar?
— Pode. E se você gostar?
— Você não vai me socar.
— Óbvio que não. Coloca o papelão na grama, senta, segura firme e dá impulso para frente. Eu vou logo atrás.
sentia o coração descompassado, mais apavorado a cada movimento que ela fazia. Mas era isso. Ela não desistiria. Não era do seu feitio, para seu azar.
Quando deu o maldito impulso, arrependeu-se instantaneamente. Tinha quase certeza de que era uma péssima ideia gritar tanto sendo que precisava cantar no dia seguinte.
Perto da base inferior, seu equilíbrio finalmente cedeu, fazendo-a rodar sobre a própria bunda na grama, caindo deitada com as costas contra o chão.
chegou logo em seguida, correndo atrás dela ligeiramente apavorado após o tombo. Tinha grama em excesso espalhada pelos fios de seus cabelos e uma certeza pairando no ar de que sua lombar provavelmente doeria por várias horas depois daquilo, apenas para lembrá-la de como aquela havia sido realmente uma péssima ideia.
— Você está bem? ?
A mulher levou alguns segundos - suficiente para ele quase infartar - para cair na gargalhada.
— Sua escrota. Eu achei que tivesse se machucado.
— Eu sei. Foi hilário - ela acrescentou, rindo ainda mais.
— Meu Deus do céu, o que foi que eu vi em você?
— Beleza, inteligência, talento, bom humor, simpatia - ela listou. — Ah, e modéstia, com certeza.
deu de ombros, oferecendo-lhe um sorrisinho que pendia entre a malícia e o charme despropositado. Foi só ao se perder observando cada detalhe daquele sorriso e das covinhas que o emolduravam que percebeu como estavam extremamente próximos.
Mas não o suficiente. Naquele momento, ela finalmente concebeu que queria mais. Ansiava pela aproximação, pelo contato, pelo toque.
Como se, telepaticamente, tivesse compreendido cada um de seus pensamentos, finalmente colou seus lábios aos dela, concretizando e potencializando o turbilhão de reações bioquímicas que aconteciam a cada instante.
As mãos dele se perderam em meio aos cabelos da mulher, encontrando e puxando de leve os pelos da nuca, em uma ânsia por trazê-la mais para perto e senti-la por completo. Ela, por sua vez, distraía-se, inebriada pelos próprios sentidos toda vez que o tocava, dividida entre o desejo de continuar avidamente e a vontade quase juvenil de sorrir.
E, naquele momento, percebeu que aquela deveria ser a sensação sobre a qual tantas músicas eram sempre escritas. Aquela sim poderia vir a ser a melhor canção country do ano em um Grammy.
🎤🎤🎤
— Se eu cair, você vai junto.
dava passos duros e pesados em direção a sabe-se lá onde sabe-se lá porquê, sendo guiada pelas mãos firmes de nas suas costas. Infelizmente, pensar que eram elas as únicas coisas que lhe impediam de tropeçar com aquela venda horrorosa não lhe dava muita segurança.
— Você anda absurdamente vingativa - ele comentou.
— Do jeito que você fala, nem parece que já me conhece há séculos.
— Ontem mesmo você disse que alguns meses não significavam muita coisa - a lembrou.
— Porque as coisas funcionam de acordo com o que me convém. Você me pediu em namoro completamente consciente disso.
Havia acontecido há pouco mais de três meses. havia aprendido a fazer desenhos na espuma do café e decidira que exibir seus talentos precários era a forma perfeita de fazê-la rir o suficiente para valorizar sua tentativa, por mais tosca que fosse.
Sua técnica e dom, entretanto, só tinham sido desenvolvidos até o ponto de ele conseguir esboçar um ponto de interrogação que deixou completamente confusa, longe de começar a sequer cogitar poder entender qualquer coisa. Quando finalmente se explicou, arrancou dela risadas altas e um sim, um tanto emocionado, de quem pularia da cadeira no instante seguinte, disposta a se agarrar ao seu pescoço como um bicho preguiça.
Haviam feito um pacto naquele meio tempo, prometendo sempre buscar coisas diferentes para fazerem juntos, lugares novos para conhecer e conversas novas para se conhecerem cada vez melhor. Era absurdo como se davam bem e se divertiam, fosse no bar de Scully ou no tapete do apartamento de , com uma garrafa de vinho barato aberta e um filme dos anos 1900 e algo com resolução tão baixa que parecia fazer jus ao século quase completo de diferença.
A venda, naquele momento, fazia parte do tal pacto. Assim como o destino - com horário marcado - que ele havia planejado por tanto tempo.
— É sério, amor. Onde a gente está indo?
— Tudo bem, tudo bem. Pode tirar a venda.
puxou o tecido escuro dos olhos com pouquíssima delicadeza, sem se importar com a bagunça que havia criado entre as madeixas recém cortadas.
A placa preta e branca trazia escritas as últimas palavras que ela esperava ler naquele fim de tarde colorido pelo lusco-fusco celeste de Austin.
— Ah, não. Eu não vou fazer isso, não.
— Você disse semana passada que achava legal, . Não foge agora.
Ela engoliu sua resposta instantânea e imediata, sabendo que precisaria de uma elaboração mais adequada e bem pensada se não quisesse ser contraditória. Até porque, no fim das contas, ela sabia que ele não estava mentindo. E ela se arrependia profundamente do momento estúpido em que decidira ceder às tentações do álcool, deitada com a cabeça apoiada no peito nu do namorado e rodeada pelo braço cheio de desenhos que ela adorava delinear com os dedos, como se pudesse sentir os movimentos de cada um deles.
— Não era de verdade.
— Eu sei que era, porque você mesma fez questão de garantir isso umas mil vezes quando eu comecei a rir.
— Tudo bem, mas era tipo “é sério que eu gostaria de fazer uma tatuagem um dia” e não “é sério que eu toparia fazer uma tatuagem semana que vem”.
— E que diferença faz?
Ela fez uma careta, incrédula.
— O tempo que eu teria para me preparar psicologicamente para ser mutilada e marcada pelo resto da minha vida é bem diferente.
— Não é tão ruim assim. Eu juro. E você pode segurar minha mão e esmagar cada um dos ossos dos meus dedos se precisar descontar a dor.
Ela respirou fundo, ponderando todos os prós e contras, receios e completos pavores que conseguiram circular sua mente em um período tão curto de tempo. No fundo, conseguia encontrar, escondidas ali como as cartas da adolescência que ficavam esquecidas nos fundos das gavetas amontoadas de um armário, vontade e curiosidade de seguir em frente; entrar naquele lugar, ver pessoas que conseguiam se parecer com um gibi humano até mais que o próprio e terminar com uma marca em si mesma. Só não sabia se elas eram suficientes.
— Eu nem saberia o que tatuar - confessou.
repuxou o canto dos lábios, silenciosamente contente ao perceber sua abordagem do assunto oscilando.
— Isso é o de menos. Pode ser um coração, borboleta, flores…
— Achei estereotipado da sua parte. E você já tatuou tudo isso, então perde um pouco da graça.
— E daí?
— A resposta é não, .
O rapaz revirou os olhos, aceitando a contragosto.
— Deveria pensar em algo que é importante pra você, sabe?
— Não vejo muito sentido em tatuar um temaki.
— Você entendeu - ele reclamou, rindo. — Algo com um significado especial para você.
— Meu Deus, eu acho que eu tive uma ideia.
Seus olhos se iluminaram como membros perdidos de uma grande constelação. A resposta óbvia estava bem ali em sua mente o tempo todo.
— É sério ou você está preparando uma resposta sarcasticamente dolorosa para mim?
Ela o empurrou, achando um absurdo aquele nível de calúnia. Não admitiria o quão compreensível era aquela estranha suposição.
— É bem sério - contou, engasgando as palavras em meio à risada de quem também não acreditava por um segundo sequer que estava mesmo prestes a fazer aquilo.
— Nós vamos mesmo fazer isso?
Sua surpresa e animação eram palpáveis.
— Nós vamos mesmo fazer isso - ela confirmou, sendo imediatamente arrastada para o lado de dentro.
*
sentia as mãos suando frio e estava tentando ignorar o fato de que, àquela altura, já deveria ter criado uma poça de fluidos corporais indesejados contra a pequena concavidade que a palma de criava logo abaixo da sua. E isso porque o processo sequer havia começado.
— Onde? - A tatuadora lhe perguntou, sentando-se ao seu lado.
— Acho que aqui no braço mesmo.
— É um lugar menos dolorido. Bom para a sua primeira - comentou.
— Para o bem dos seus dedos, acho bom mesmo.
— Está contente com a arte?
observou a frase que ela mesma havia escrito com o maior esforço para a sua melhor caligrafia. Sorriu levemente, aquiescendo.
— Estou, sim.
— Bem, nesse caso, vou começar. Preciso te avisar que o atrito da agulha raspando pode ser incômodo e doloroso. Se pensar que não aguenta e decidir parar, é só me avisar. Vai ser rápido.
A mulher assentiu, apertando ainda mais as falanges do namorado assim que sentiu a agulha desenhando as letras sobre sua pele.
— Tudo bem? - sussurrou perto de seu rosto, passando o polegar sobre sua testa em um movimento carinhoso e preocupado. Ela precisou se esforçar para não rir.
— Sabe que isso está parecendo uma cena de parto normal sem anestesia, não sabe?
— Mas isso é só porque somos atores maravilhosos.
— Nem você acredita nisso.
— Que bom que você é uma ótima cantora e eu sou um ótimo… Sei lá, namorado.
— Você vai encontrar um emprego na sua área logo. E, acima de tudo, um em que seja feliz fazendo o seu trabalho. Sério.
— Eu espero que sim. Por mais que eu goste da cafeteria, não pretendo preparar cafés cowboy para sempre.
— Nossa, eu adorava - a tatuadora comentou. — Tomava sempre na faculdade. Era literalmente a única coisa capaz de me manter acordada nas aulas de antropologia.
— Viu só? Todo mundo adora - reforçou.
deu um sorriso educado que não parecia real o suficiente. Era frustrante, ela sabia. E desumano também. Sem contar o quanto era patético ouvir que a vaga demandava experiência quando ninguém estava disposto a oferecer algo que lhe permitisse adquirir alguma experiência.
— Ei, olha para mim - ela pediu. — Vai dar tudo certo.
Ele concordou, observando a frase terminando de tomar forma no braço da namorada.
‘create your own sunshine’
— Serve para você também - ela comentou, vendo os olhos dele sobre a frase que sua mãe sempre lhe dizia.
— Ela deve ser uma mulher incrível. Que nem a filha.
— E ela, com certeza, vai adorar você.
— Quer dizer que você finalmente aceitou essa verdade inevitável.
Com a tatuagem finalizada, retornaram para o apartamento dela.
— Agora me diz se foi assim tão ruim.
— Não vou te dar esse gostinho. Mas vou ficar olhando para ela o tempo inteiro agora.
sorriu, indo até a pequena geladeira e enchendo dois grandes copos de água para eles.
— Obrigada.
O toque do celular fez com que ela parasse subitamente, virando a tela do aparelho para si.
— Olha só, acho que você vai finalmente realizar o seu sonho.
— Como assim?
Ela deslizou o dedo pela tela, aceitando a ligação de vídeo solicitada.
— Oi, mãe! Como vai?
Do outro lado da mesa, engasgou com a água, tossindo desenfreadamente, com todo o ódio e agonia que davam momentos com aquela sensação de que o líquido havia decidido descer para o lado errado.
— Filha, você está bem?
— Estou maravilhosa. O que está morrendo aqui do lado.
— Ah! O seu namorado! Não sabia que ele estava por aí, querida. Ligo depois.
— Deixa disso, mãe. Até porque ele me diz todo dia que você amaria conhecê-lo. Então… Diga oi ao .
Ela virou o celular para ele de uma só vez. Ele sorriu automaticamente, vendo a mulher mais velha que saberia ser mãe de mesmo que não tivesse sido alertado disso com antecedência. A genética era, no mínimo, forte.
— Tudo bem, querido?
— Tudo ótimo. E com a senhora?
— Tudo bem também. Estou feliz por finalmente te conhecer. Você é bem mais bonito do que a contava.
A filha virou o celular de volta para o próprio rosto, em uma careta.
— Não fala isso para ele. Ele não sabe lidar com elogios sem ficar insuportável.
se levantou, puxando uma cadeira para se encaixar ao lado dela.
— Dá para parar de queimar meu filme?
— Acho que não.
A mais velha riu, do outro lado da tela, apreciando verdadeira e sinceramente a alegria óbvia da filha, estampada em cada sorriso que dava em direção ao namorado.
— Ah, mãe! Adivinha o que eu fiz hoje - ela pediu, animada, apertando a mão de por baixo da mesa.
— Pulou de paraquedas?
— Isso ainda estou no processo de convencimento - respondeu.
— Então o que foi dessa vez?
ergueu o braço, tentando focalizar a tatuagem em sua câmera.
— Consegue ler?
Ela conseguia. A mais nova teve certeza disso assim que viu os olhos da progenitora se enchendo de lágrimas ao mesmo tempo em que um pequeno sorriso florescia em seus lábios.
— Filha, ficou linda.
— E assim eu posso me lembrar de você e do meu raio de sol, todo santo dia.
Continuaram conversando por mais alguns minutos, até que a mulher decidisse se despedir para preparar o jantar. devolveu o celular à mesa e deixou a cabeça ceder ao próprio peso, aconchegando-se ao ombro daquele que vinha ocupando o lugar ao seu lado sempre que possível.
— Será que ela gostou de mim?
— Ah, ela te adorou.
— Quem disse?
— Ninguém precisa me dizer. Conheço minha mãe o suficiente para poder te afirmar isso com certeza.
— Acho que vou acreditar, então.
— Deveria mesmo - ela respondeu, beijando-lhe na sequência.
a puxou pela cintura, enchendo seu rosto de selinhos por cada um dos cantos enquanto ela ria.
— Posso te contar um segredo?
— Estou ouvindo.
— Você é a melhor coisa que eu posso chamar de minha.
Ela tentou não derreter, evitando ceder ao clichê completo daquele instante.
— E por que isso é um segredo? Deveria tatuar isso também, já que tatua tudo o que vê pela frente.
— Você é ridícula.
Ela riu, dando de ombros conforme se aproximava dele até que seus narizes se encostassem.
— E, mesmo assim, você me ama.
— Absurdamente.
Com um último sorriso, tão próximo que ela quase pôde sentir, ele a tomou para si, confirmando em ações a veracidade e intensidade de cada uma de suas palavras.
🎤🎤🎤
Ela só precisava de um banho. De preferência um bem longo e quente o suficiente para derreter suas angústias e preocupações. Seu cérebro já tinha fritado mesmo, espiralando continuamente com os acontecimentos recentes, então não poderia ser prejudicado pela temperatura da água vinda direto dos lares de Hades e Perséfone.
Estava exausta da viagem de Dallas, cidade na qual havia conseguido um show de repente por convite de um amigo do pai de Scully. não conseguiu acompanhá-la por conta do trabalho, mas havia feito questão de ligar para lhe desejar boa sorte mais vezes do que o necessário.
Tinha dado tudo certo. No caso, para seu total desespero, os dois últimos dias tinham dado certo até demais. O amigo do pai de Scully tinha outro amigo - nunca pensou que as amizades alheias lhe dariam tanta dor de cabeça -, que vinha embutido de ideias e propostas sobre as quais ela esperava não ter que voltar a pensar tão cedo.
Virando a chave do apartamento, assustou-se ao perceber uma luz leve, fraca e amarelada demais para ser de uma das lâmpadas de LED que havia instalado recentemente, para manter a coesão do ambiente.
— Surpresa - ele murmurou, usando uma camisa social branca, uma calça preta colada e segurando um buquê de flores lilases.
A mesa estava posta, com duas cloches de aço prateado reluzente e velas delicadamente acesas.
— Meu Deus do céu, . São quase duas da manhã - ela disse, vacilando entre o choque e o cansaço.
— E é por isso que eu pulei a parte do jantar chique e fui direto para um de seus favoritos.
Ele evidenciou o que havia ali, expondo dois milkshakes de morango com canudos de biscoito crocante de chocolate.
— Eu não acredito - admitiu, rindo, ao pegar sua bebida de sorvete.
— Feliz aniversário de namoro - sussurrou, sustentando o sorriso que a fazia ceder a absolutamente qualquer coisa com uma facilidade que conseguia lhe deixar um tanto irritada.
caminhou a passos arrastados até ele, esticando-se nas pontas de seus pés para tomar a boca dele na sua.
— Feliz um ano - respondeu. — E obrigada por ser tão… Você. Sempre.
— E como foi em Dallas? Morreu de saudades de mim?
— Chorei rios de sangue de tanto sentir sua falta. - Deu um longo gole no seu milkshake, apreciando cada estímulo doce ao seu paladar, antes de continuar. — Foi você quem fez?
Ele assentiu, orgulhoso de si mesmo, enquanto experimentava sua própria bebida.
— Passei os últimos dois dias aperfeiçoando a receita. Eu sou genial. E você ainda não me contou sobre a viagem.
— Pode ser depois? Eu mataria por um banho quente agora. Mas depois eu te conto tudo o que você quiser saber.
— Só quero saber como foi.
— Foi ótimo. O público foi bem receptivo e eu realmente acho que as coisas funcionaram. Já estou planejando um jantar para nós dois naquele restaurante chique que abriu do outro lado da cidade para aproveitar o cachê.
riu, selando seus lábios rapidamente.
— Você é incrível. Não duvidei por um segundo sequer que daria tudo certo. Agora vai lá tomar seu banho.
não precisou que ele dissesse duas vezes. Logo correu para seu quarto, arremessando a bolsa sobre a cama de qualquer jeito. O conteúdo de seu interior se esparramou pelo colchão, fazendo-a respirar fundo e contar até vinte para não se xingar por ter esquecido a porcaria do zíper aberto. O comichão conhecido em sua nuca assinalava a necessidade antiga de organizar tudo; um resquício de aflição por encontrar as coisas fora de seu devido lugar.
Mas não. Ela estava realmente se esforçando para superar aos poucos aquilo. E sua meta da madrugada seria deixar aquela pequena zona existir por mais alguns instantes.
Tomou seu banho, aproveitando o calor e o aconchego da água quente. Pegou-se sorrindo sozinha ao repassar em sua mente a cena que capturara como em uma fotografia. de social, esperando-lhe às duas da manhã com um milkshake só para recebê-la com um beijo e a lembrança daquela data tão importante para eles. Mal podia acreditar que havia se passado um ano. Tinham vivido tantas coisas, passado por tantos momentos… Não poderia ser mais grata pelo dia em que escolhera aquela cafeteria aleatoriamente e decidira descobrir a diferença entre o cowboy normal e o cowboy completo.
Colocou um vestido florido levemente surrado, amarrou os cabelos em um coque mal feito e saiu do banheiro, sendo acompanhada pela fumaça.
— Meu Deus, que susto - comentou, rindo, ao ver sentado em sua cama. — Esperava te encontrar na cozinha com nossos maravilhosos milkshakes.
ergueu os olhos, finalmente a encarando. O vazio que viu em seus olhos naquele momento fizeram seu mundo se despedaçar em vários pedacinhos, mesmo que não fizesse ideia do porquê.
— Eu vim para cá porque queria te assustar - disse, com uma seriedade que ela não pensava já ter ouvido dele. — Vi a bagunça e pensei em guardar as coisas só para te agradar, já que você está cansada.
Ela finalmente entendeu o que tinha acontecido quando viu o cartão branco em suas mãos.
— , o que é isso?
— Não é nada.
— Sério? Porque aqui está escrito claramente “me ligue se mudar de ideia”. Isso me parece qualquer coisa, menos nada.
A passos dolorosos, ela caminhou até ele, sentando-se ao seu lado.
— Apareceu esse cara por lá. Ele disse que representa uma gravadora e me convidou para gravar umas músicas. Um álbum, na verdade.
— E isso é nada? , isso é uma coisa enorme.
— Eu sei, eu sei - admitiu, pesarosa. — Mas é em Nashville.
— E, por isso, decidiu que não precisava me contar?
respirou fundo, soltando o ar com força. Aquela era a última conversa que ela esperava ter àquela hora.
— Será que a gente pode não fazer isso?
— Não, , a gente não pode. Você não pode simplesmente fingir que isso não aconteceu, sabe?
— Não é uma questão de fingir que não aconteceu. Eu só quero descansar. É o nosso aniversário. A gente deveria estar feliz e comemorando, não tendo esse tipo de discussão.
— Eu não quero discutir, . Eu só quero saber porque você não me contou.
Ela respirou fundo, sentindo as lágrimas enchendo os olhos e as mãos tamborilando contra o colo, inquietas frente à mísera expectativa de que as coisas pudessem desandar.
— É em Nashville - ela repetiu.
— Você ia embora sem nem se dar ao trabalho de me oferecer consideração o suficiente para me dar um aviso prévio?
— Eu nunca disse que ia embora, . É esse o problema. Você simplesmente assumiu as coisas por mim.
Nervosa, ela se colocou de pé, sentindo a agitação dos membros superiores se espalhar para as extremidades inferiores, encontrando também seus pés nervosos.
— Não era para ser assim. Não era mesmo.
— Então era para ser como? Se importa de me explicar?
Ela bufou, arrependendo-se no mesmo instante. O ar já lhe faltava o suficiente com o desespero para que ela ainda terminasse expulsando o pouco que lhe restava do elemento vital para sua sobrevivência.
— Eu preciso de ar. Eu… Não consigo estar aqui agora.
não sabia de onde tinha arranjado energia suficiente para se mover, mas só parou quando encontrou o banco de pedra gelada da praça que se colocava em frente ao prédio. Com a mão no peito, tentou controlar a sua respiração e se convencer de que aquilo não podia ser real.
Tinha que ser mesmo a pessoa mais azarada do mundo para que ele encontrasse uma porcaria de cartão que ela ia rasgar e jogar no lixo, mesmo que isso lhe custasse, simultaneamente, a consciência de que estava jogando no lixo também aquela que provavelmente viria a ser a sua maior oportunidade de realmente consolidar algo.
E, o pior de tudo, tinha deixado seu medo e sua indiferença tomarem de si duas das melhores coisas que tinha de suas.
Olhou para os dedos finos, tornando-se cada vez mais gelados na companhia da brisa e do orvalho da madrugada. A tatuagem parecia queimar em sua pele, lembrando-a de que, em vez de criar, tinha conseguido destruir tudo.
Puxou as mangas do cardigan para baixo, apertando os braços ao redor do corpo, como se aquilo fosse suficiente para criar alguma ilusão de proteção e de que o mundo ao seu redor não parecia estar prestes a explodir e levar todos os bloquinhos que ela havia lutado para empilhar e construir em meio aos letais destroços.
— Tem alguém sentado aqui?
Assim que ouviu a voz cujo timbre ela conseguiria reconhecer a quilômetros de distância, em qualquer disposição na escala musical, ela soube que deveria ter forçado os seus pés a gastar os últimos impulsos de adrenalina para procurar um lugar mais distante do que alguns metros. Se ela realmente queria ficar sozinha, aquela havia sido uma péssima decisão de seu subconsciente. Aparentemente, ele era tão idiota quanto sua consciência efetiva.
— Eu realmente não tenho condições físicas ou psicológicas para ter essa conversa - ela encontrou forças para responder, sentindo a garganta mais seca do que esperava. — Eu não quero brigar, .
— E quem foi que falou sobre brigar?
Ignorando a ausência de resposta à sua pergunta inicial, ele se sentou ao seu lado, olhando para o plano mais profundo daquela paisagem, que parecia quase factível de ter sido retirado diretamente de uma obra que flertasse com algum tipo de impressionismo contemporâneo de gostos noturnos. Ao menos, ele pensava ser impressionista. Não tinha sido exatamente o melhor aluno na disciplina de história da arte.
— Na verdade, eu vim te pedir desculpas.
— Por quê?
riu, tomando a mão dela na sua e entrelaçando os seus dedos.
— Qual é? Vai me dizer que não achou a cena lá dentro, nem um pouquinho que seja, patética? Sobre o que eu estava surtando sem você nem se explicar? Que merda foi aquela?
o encarou, com as sobrancelhas pressionadas, expressando toda a sua confusão.
— , desde quando nós somos o tipo de casal que não consegue conversar sem surtar?
— Às vezes a gente conversa até demais - ela comentou, fungando os sinais do choro recente.
Ele riu, apertando a mão dela de leve.
— Pois é. Acho que você só está cansada e eu, inseguro. Eu não vou mentir pra você. Eu realmente surtei quando vi aquilo e perdi totalmente o chão quando ouvi você dizendo Nashville. Não consigo nem imaginar como seria te perder.
— Bom, como eu já disse, você não precisa se preocupar com isso, porque eu não vou. Eu recusei a proposta.
— É esse o ponto, meu amor - ele disse, forçando-a a se virar para ele, de forma que seus olhos se encontrassem na mais pura verdade das palavras que diria a seguir: — Você precisa ir.
— Como é que é?
Ele respirou fundo, antes de continuar. Por mais que estivesse em paz com sua própria decisão, precisava reunir toda a sensatez que tinha dispersa em sua corrente sanguínea para convencer não só a ela, mas também a si mesmo.
— Você sabe que essa é uma oportunidade imperdível e é literalmente o motivo pelo qual você começou a fazer tudo isso. Foi para viver esse tipo de coisa que você veio a Austin , em primeiro lugar. E está tudo dando maravilhosamente certo, mas agora em outro estado.
— Eu não vou.
— Vai sim. Precisa ir. Sei que, aí dentro, tem um pedacinho de você que sabe muito bem disso. É o caminho para o seu Grammy de melhor performance country solo, meu amor. Você precisa dar o próximo passo.
Ela meneou a cabeça, em completa negação.
— Não quero dar passo nenhum sem você.
— E quem disse que vai dar algum passo sem mim? - soou teatralmente ofendido; uma das várias manias com as quais ela tinha se acostumado ao longo daquele ano. — Essa é a sua forma nem um pouco sutil de me dar um pé na bunda, ? Pelo amor de Deus, são duas e meia da manhã, espera o dia começar de verdade antes de me largar.
Ela inclinou o ombro, empurrando-o pela brincadeira. Sabia que ele havia entendido cada letra do que ela dissera e, por mais que sempre apreciasse seu bom humor, não conseguia ver graça o suficiente em absolutamente nada em uma hora como aquela.
— A gente não precisa se separar. Você vai para Nashville, escreve suas músicas, grava o seu álbum, faz uma dedicatória melosa e cheia de adjetivos que eu nem conhecia para dizer como tem o namorado mais incrível do mundo e ama escrever as melhores canções de amor para ele. Eu te visito nos feriados e nas férias. E falta pouco mais de um semestre para eu me formar. Então acho que talvez eu já devesse começar a me preparar para enviar uns currículos para a galera de Nashville.
— O que você está dizendo?
— Eu vou até você quando acabar minha parte aqui. Não tem nada que me prenda de verdade a essa cidade depois que a faculdade acabar. E o único lugar em que eu quero estar é aquele que me permita viver ao seu lado.
— Isso é sério?
não saberia ao certo dizer se os olhos dela haviam se iluminado para ele ou se apenas estavam refletindo as luzes dos postes de iluminação da praça. Mas, de uma coisa ele tinha certeza: nunca vira nada mais lindo. E faria o possível para acordar do lado daquele olhar sereno e apaixonado todos os dias.
— Claro que é. A gente vai fazer funcionar - ele garantiu, passando o braço pelo seu ombro. — E a gente deveria mesmo entrar porque eu vou acabar perdendo a ponta do meu nariz nesse frio e eu tenho quase certeza de que não continuaria tão bonito assim sem ela.
gargalhou, inclinando os lábios para deixar um beijo na extremidade gelada que ele temia perder.
— Posso te contar um segredo?
— Quantos quiser - ele respondeu sorrindo.
— Você é a melhor coisa que eu já chamei de minha.
Seu planner era sistematicamente dividido ao longo de cada dia, com os horários apropriados à rotina, as metas do mês e pequenas citações que lhe serviam como lembrete de que ela merecia viver cada dia ao máximo e agarrar as oportunidades que aparecessem com ambas as mãos, sabendo que ela era plenamente competente e merecedora - com todo o seu esforço - para simplesmente permitir que elas passassem e escapassem pelos míseros vãos entre seus dedos.
Até aquele momento, havia usado o cardápio plastificado apenas como algum protótipo de leque. O clima em Austin, mais quente do que aquele com o qual ela havia se acostumado na Pensilvânia, quase a fazia implorar de joelhos para que o verão terminasse mais rápido. Mas poderia fazer o calor que fosse; o inferno podia subir para a Terra e, mesmo assim, ela se recusaria fervorosamente a abrir mão de um café.
Rezou para que o ventilador que rodava lentamente sobre sua cabeça - parecendo mais um simples objeto decorativo do que realmente uma forma de refrescar o ambiente - fosse suficiente para que ela sobrevivesse enquanto desistia de seu leque para, de fato, olhar para o cardápio do local e se decidir pelo que pedir.
Correu os olhos por cada uma das palavras, quando decidiu se aproximar do balcão para pedir ajuda para decifrar aqueles enigmas.
— Com licença - pediu, vendo o rapaz que cuidava do moedor de café se virar para ela. — Eu queria saber qual a diferença do café ‘cowboy’ para o ‘cowboy completo’.
— O ‘cowboy completo’ tem canela e chantilly a mais - ele respondeu, com a sua voz levemente rouca.
Quando ele jogou o pano por cima do ombro e apoiou as mãos sobre o balcão, a visão de foi drasticamente atraída para seus braços levemente tensionados por baixo de toda a tinta preta das tatuagens que cobriam toda a sua extensão. Poderia facilmente perder horas ali até distinguir cada uma delas, mas ainda havia uma coisa que ela não conseguia entender.
— Esse tipo de coisa já não deveria estar escrita no cardápio para facilitar?
O sorriso de canto que ele lhe deu fez com que ela arqueasse uma sobrancelha instantaneamente.
— E perder a chance de poder te ajudar?
Isaac Newton havia estabelecido a sua terceira lei, explicando o conceito de ação e reação de uma forma que se tornasse relativamente intuitiva mesmo para assuntos que extrapolassem os cálculos físicos e as preocupações da mecânica. Mas como explicar a reação a uma ação que ela ainda tentava definir? Aquilo havia sido um flerte, uma demonstração gratuita de presunção ou um oferecimento desmedido de charme que o tal cara tatuado deveria jogar para cima de absolutamente qualquer cliente em potencial que atravessava as portas de madeira desenhada da cafeteria?
costumava detestar não ter as respostas para todas as perguntas que rondavam sua cabeça. Era cansativo e um grande gatilho para que ela ficasse se questionando em ciclos e terminasse mais ansiosa do que havia começado. Naquele momento, contudo, ela decidiu que não precisava se preocupar. No fim das contas, era só um atendente qualquer em uma cafeteria estranha com ares que pareciam quase querer remontar ao faroeste dos filmes antigos e ovacionar a cultura country. Ela provavelmente nem se daria ao trabalho de voltar àquele lugar depois que finalmente se estabelecesse no pequeno apartamento que havia alugado e conhecesse melhor a cidade. Poderia considerar sua presença ali como um mero erro de principiante.
— Você não é daqui - o rapaz constatou.
Ela sentiu os ombros despencarem minimamente para frente. Por que estava tão tensa? Aquela não era literalmente a primeira coisa listada entre as coisas que ela sabia que precisava mudar? Não precisava sempre se colocar na defensiva como se o universo estivesse pronto para atacá-la a qualquer instante.
— É tão óbvio assim?
Ele soltou uma leve risada anasalada, enquanto puxava um copo para começar a preparar o seu pedido.
— Você parece perdida. Foi um chute fácil.
Ela assentiu, encontrando certo conforto no aroma do café torrado que começava a subir rodopiando pelos ares com menos discrição, confirmando a sua presença.
— Chegou quando?
Ela puxou o celular do bolso, olhando o relógio no visor.
— Há uns trinta minutos.
O rapaz arqueou as sobrancelhas, encaixando uma tampa ao copo.
— Nesse caso, não sei se alguém já te disse isso, mas bem-vinda a Austin.
— Obrigada - ela respondeu, sorrindo levemente pela primeira vez.
— E qual é o seu nome?
— Por que a curiosidade? - tinha previsto soar brincalhona, mas acabou parecendo bem mais ríspida do que o necessário.
— Na verdade, é porque eu preciso escrever seu nome no copo - ele respondeu, erguendo o café.
— Só tem eu aqui e você está literalmente de frente para mim. Isso é mesmo necessário?
O rapaz deu de ombros.
— Por mais idiota que eu também ache, infelizmente é o protocolo do estabelecimento.
Ela balançou a cabeça vagarosamente, concordando.
— - respondeu.
Ele lhe ofereceu mais um daqueles sorrisos que apertavam as suas bochechas e pareciam fazer suas covinhas pularem para cumprimentá-la.
— Muito prazer, - respondeu, escrevendo no copo. — Eu sou o .
Seus dedos logo encontraram o calor oferecido pela bebida. Ela quase riu ao perceber que ele havia acertado seu nome em todas as suas letras. Já estava ficando acostumada a receber uma nomeação nova em cada visita a uma cafeteria. Costumava brincar que deveria andar com um crachá colado ao peito para ver se alguém finalmente conseguiria soletrar o seu nome adequadamente, sem se esquecer de alguma letra do alfabeto e sem adicionar novas que, com certeza, não haviam sido convidadas para estar ali.
— Está só de passagem ou vai passar um tempinho aqui em Austin?
— Na verdade, estou de mudança.
— Sério? De onde você é?
afastou os pensamentos de que não deveria sair oferecendo informações pessoais para um completo estranho. O que ele poderia fazer? Invadir sua cidade natal e contar que a conhecia? Havia literalmente saído de lá porque ninguém se importava com a sua existência ou com o seu trabalho. Não fazia sentido se preocupar.
— West Reading, na Pensilvânia.
assentiu, antes de admitir:
— Nunca ouvi falar.
Ela não conseguiu evitar uma risada curta.
— Acredite, você não é a primeira pessoa de quem ouço isso.
— Veio por causa da faculdade? A Universidade do Texas costuma receber vários calouros nessa época do ano.
— Bom, talvez fosse uma ideia mais inteligente e segura, mas não é o caso. Eu vim pela música, na verdade.
— Desenvolva - ele pediu, puxando um banquinho que estava escondido sob o longo balcão e se sentando de frente para ela.
quase se sentiu de volta ao salão de beleza que costumava frequentar quando mais nova, acompanhada de sua mãe. Um lugar aconchegante da forma mais esquisita possível onde as pessoas pareciam querer saber mais de sua vida do que poderia ser considerado normal e, mesmo assim, você falava porque às vezes ser ouvida era exatamente aquilo de que precisava, mesmo que a outra pessoa só estivesse ali para concordar com tudo o que você falasse para te agradar e conseguir fazer com que você voltasse mais vezes.
— Eu canto e toco - ela explicou. — Um pouco só. Não é nada demais. E eu também componho.
— Isso é muito legal.
— É, mas não ia para lugar algum se eu continuasse onde estava. Eu fiquei completamente estagnada lá. Passei o ensino médio inteiro pensando no que fazer de faculdade, mas acho que não é para mim. Sei que é arriscado e louco e provavelmente uma péssima ideia, mas eu quero viver da minha música e pensei que aqui pudesse ser um bom lugar para isso.
— Bom, você veio para a cidade número um em apresentações ao vivo do país - comentou. — Não dá para passar por uma rua sequer nessa cidade sem encontrar alguém se apresentando a qualquer hora. Acho que sua escolha faz sentido.
— Eu espero que sim. Investi basicamente todas as minhas economias dos últimos anos trabalhando como garçonete e ensinando crianças a tocar violão para me mudar para cá. E meu pai está esperando ansiosamente que eu falhe, então eu realmente espero não ter que dar esse gostinho de vitória a ele.
— Nós não podemos deixar isso acontecer - concluiu.
fez uma careta. Estava tentando assimilar a escolha lexical da primeira pessoa do plural por alguém de quem ela não sabia mais do que o primeiro nome.
Antes que pudesse pensar em alguma resposta, ouviu o sininho da entrada acusar que a porta havia sido aberta, indicando que um novo cliente chegava. O rapaz se levantou, empurrando o banquinho com o pé de volta a seu local de origem.
— E aí, Jimmy? Como foi o encontro?
O senhor de cabelos bastante grisalhos sorriu, sentando-se ao lado de . Ele a cumprimentou com um aceno simples de cabeça antes de se dirigir ao rapaz.
— Bem melhor do que eu esperava, meu filho. Vamos sair de novo nesse fim de semana.
— Esse é meu garoto - riu, estendendo a mão para que ele batesse. — O mesmo de sempre? Tem um pão de banana quentinho lá na cozinha.
Jimmy confirmou, vendo o rapaz sumir de vista por alguns segundos para ir até a cozinha buscar o tal pão. desbloqueou o celular, passando seus aplicativos para os lados como se buscasse algo com o qual se distrair e evitar de expressar o sorriso fácil que quase se esboçava em seu rosto após aquela curta interação, aparentemente tão cheia de carinho e consideração que a havia feito se sentir, de certa forma, mais próxima de quem aquele cara tatuado atrás de um balcão parecia ser.
voltou com uma fatia do pão de banana e a entregou a Jimmy, juntamente com um chá cujo aroma ela não reconheceu.
— Você consegue me encontrar amanhã por volta do meio dia na universidade? Tem alguém que quero te apresentar. Acho que ele pode te ajudar - ele disse.
Apesar do estranhamento, assentiu. Não estava em condições de recusar qualquer tipo de ajuda e, estivesse sua primeira impressão certa ou não, confiava nele.
tinha o hábito de estalar os nós dos próprios dedos sempre que ficava nervosa. Mesmo a sensação levemente dolorida se tornava quase agradável quando suas dúvidas e expectativas internas eram tão barulhentas que pareciam prestes a zunir em seus tímpanos em um processo desnecessariamente incômodo de somatização.
Havia encontrado uma sombra considerável embaixo de um toldo de estrutura pouco confiável e estava sob ele, rezando para que nenhuma viga decidisse ceder ao próprio peso enquanto não chegasse.
Apesar do cutucão em sua insegurança lhe avisando que criar expectativas nunca acabava bem, ela era obrigada a admitir que havia passado as últimas horas torcendo para que o rapaz realmente pudesse ajudá-la. Tudo o que mais queria era poder dar uma boa notícia para a mãe ao fim da tarde e ver sua vida finalmente parecendo prestes a entrar nos trilhos, independentemente do destino ao qual eles levariam.
Sair de West Reading com malas debaixo do braço e um sonho fixado em mente tinha sido um grande tiro no escuro e era mais do que óbvio e incontestável que ela estava com medo. Apavorada, para ser sincera. Era uma cidade nova, onde ela não conhecia absolutamente ninguém enquanto tentava conseguir algum espaço e autossuficiência. E, se tudo desse errado, não tinha o conforto da presença da mãe para o qual correr ao fim do dia.
Fechou os olhos, inalando o ar profundamente e o expirando com calma até que o movimento passasse a se tornar forçado. Quando já estava prestes a começar a se preocupar de verdade com as grandes chances de que sua pressão logo abaixasse e a levasse a um encontro casual com o chão, ouviu a voz masculina que permanecia em sua lembrança soando atrás de si.
— Chegou há muito tempo?
se virou para o rapaz, que tinha os cabelos um pouco bagunçados e a mão segurando uma mochila que não parecia nem de perto tão cheia e abarrotada como a que ela costumava carregar anos antes. A camisa branca simples, com as mangas minimamente dobradas, permitia que ela visse de novo aquelas tatuagens que conseguiam continuar chamando-lhe a atenção. Já havia assimilado um navio pirata, uma rosa, uma âncora e um coração realista. Ainda permanecia curiosa em tentar ler e identificar aquelas que eram palavras e frases, mas não podia se demorar tanto de uma só vez sem escancarar seu interesse repentino e, possivelmente, gritante.
— Tem alguns minutos só - respondeu, mesmo sabendo que sua expectativa havia transformado-os em uma eternidade.
— Ótimo! Ah, aí está o cara - exclamou, vendo outro rapaz, com a franja comprida demais caindo sobre o olho, aproximando-se. — , esse é o Scully. Ele estuda comigo e o pai dele é dono de um lugar bem conhecido aqui na cidade exatamente pela música ao vivo nas noites de sábado.
O rapaz passou as mãos nos cabelos tentando se livrar da franja para manter o contato visual sem a barreira capilar. Ofereceu um sorriso simpático que a mulher retribuiu imediatamente.
— Oi, ! O disse que você se mudou para cá recentemente e estava procurando algumas oportunidades de mostrar sua música. Ele disse que você é incrível e, apesar de tudo, eu aprendi a confiar no gosto dele. Então passa lá no sábado. Com certeza conseguimos te colocar na escala.
— Claro! Uau, com certeza! Muito obrigada mesmo, Scully!
— Não por isso - respondeu, olhando para o relógio prata preso ao pulso. — Olha, eu tenho uma reunião com meu orientador e, se eu me atrasar, eu meio que tenho certeza de que ele me expulsa da pesquisa e ainda desenvolve a minha ideia sem nem se importar em me dar créditos. Então eu preciso ir. Vejo você no sábado?
moveu a cabeça em concordância, observando-o se afastar correndo de volta em direção à universidade. Ela permaneceu ali, estática por alguns segundos, tentando canalizar toda a energia de seu corpo para absorver o que havia acabado de acontecer. Algo borbulhava dentro de si e, pela primeira vez, ela podia afirmar com toda a certeza do universo que não era refluxo. A adrenalina e a euforia lhe entorpeciam. Ela queria gritar, queria gargalhar, queria sair pulando e rodando por aquela calçada mal acabada até ficar tonta ou tropeçar em um dos paralelepípedos desajustados.
— Sabia que ele ia topar na hora - falou atrás de si, fazendo-a se virar para ele.
Ela, até então completamente indecisa e dividida entre qual dentre todas as pequenas demonstrações de surto escolher, arremessou os braços ao redor do rapaz, apertando-o com todo o contentamento e a gratidão que suas palavras não seriam capazes de expressar enquanto seu cérebro fervilhava com a mais nova informação. sorriu, retribuindo o gesto.
— Obrigada, obrigada, obrigada - ela repetiu sem parar, finalmente soltando-o. Seus pés mal conseguiam sustentar seu próprio peso sem ficar dividindo-o entre os calcanhares extasiados que pipocavam alternadamente contra o chão.
— Não precisa agradecer. Não foi nada, sério.
Ela respirou fundo, expirando o ar calmamente pela boca. Naquele momento, repassando os últimos minutos como um filme, ela percebeu um detalhe que lhe tinha escapado na fala daquele que acabara de conhecer.
— Espera aí… O Scully realmente disse que você falou para ele que eu era incrível ou eu delirei por um segundo?
— Ah, não. Ele disse mesmo.
Ela fez uma careta.
— Como você fala uma coisa dessas para o cara? Você nem me ouviu cantar. Eu posso ser horrível. Posso ser esganiçada e desafinada que nem naqueles desenhos que os vidros todos começam a estourar.
Ele não conseguiu segurar a risada, mesmo percebendo na cara dela que seu nervosismo era legítimo e não uma tentativa de parecer bem humorada de alguma forma.
— Tenho certeza de que, se você realmente fosse horrível, alguém na sua cidade ou na sua família teria te mandado a real antes de você decidir se mudar completamente para tentar carreira. Você vai mandar bem, relaxa.
— Não sei, não.
— Mas eu sei - ele garantiu, fazendo soltar o ar em um sopro pelo nariz, descrente de toda aquela autoconfiança aparentemente descabida. — Você já almoçou?
— Ainda não.
— Tem um lugar bem legal aqui perto. Me acompanha?
sabia que seu estômago responderia antes dela se pudesse. Sabia também que meio que devia a ele pela ajuda e que, mesmo se não devesse, ainda havia uma mistura de sua gratidão, solidão e interesse que a faria concordar sem precisar de grandes reflexões.
Caminhou ao lado do garoto por pouco mais de uma quadra até segui-lo para o interior de um restaurante cujo aroma remetia a tomates, manjericão e queijo gratinado.
— Meu Deus, me deixa morar na soleira dessa porta - ela pediu, fechando os olhos para inalar profundamente mais uma vez, sentindo a boca se enchendo em expectativa.
riu alto, estufando o peito orgulhoso. A cantina era uma cartada que absolutamente nunca falhava.
— Arrisco dizer que essa é a casa da melhor massa que tem na cidade inteira.
— Tem cheiro de comida de vó italiana.
O rapaz aquiesceu.
— Tem esse gosto também. Só não venho aqui sempre por falta de dinheiro e metabolismo suficiente para isso.
Quando sua lasanha chegou, aproveitou cada pequeno pedaço, sentindo as várias camadas de massa caseira e queijo derretido lhe abraçando com o conforto de um cobertor felpudo em um dia rigoroso de inverno.
— Meu Deus. Esse prato saiu diretamente das mãos dos deuses, eu não tenho dúvidas.
— Concordo - ele respondeu.
Mas por mais imersa que ela estivesse em sua experiência gastronômica, não conseguia se livrar do incessante questionamento que persistia martelando em sua mente.
baixou o garfo, ouvindo o tilintar do talher contra a porcelana branca como clara de ovo.
— , posso te perguntar uma coisa?
— Quantas quiser.
Ela queria poder dizer que estava acostumada a ser tratada com tanta simpatia gratuita, mas sua mãe lhe tinha criado para evitar qualquer tipo de mentira que não se colocasse como extremamente necessária frente a uma situação de vida ou morte.
— Por que você me ajudou?
O rapaz pareceu genuinamente confuso por alguns instantes, antes de encontrar o desfecho de sua expressão em um dar de ombros.
— Sei lá, acho que porque eu podia. Eu sabia de algo que poderia te ajudar e não me custava absolutamente nada fazê-lo. Então acho que a pergunta mais correta seria: por que não?
— Mas você nem me conhece.
reprimiu o ímpeto de, mais uma vez, movimentar seus membros superiores em um ato descomprometido. Não queria parecer repetitivo, por mais que achasse que as indagações dela estivessem praticamente lhe implorando por isso.
— Isso pode ser facilmente mudado se você deixar.
gostaria de poder culpar o tempo atmosférico em Austin pelo enrubescimento irritante de sua tez. Sempre que sentia suas bochechas respondendo ao próprio calor emocional, julgava-se por ser tão transparente quanto aos seus sentimentos.
— Você vai sábado?
Ela sabia perfeitamente que aquela pergunta estava longe de representar um convite propriamente dito, mas esperava que ele assim a compreendesse.
— É claro que sim. Eu não perderia por nada.
— E se eu for péssima e seu amigo decidir te culpar?
— Nesse caso, eu provavelmente já terei desaparecido em meio a multidão antes que ele possa fazer isso. Mas fica tranquila. Vai dar tudo certo.
A mulher assentiu, mantendo um sorriso singelo enquanto usava o guardanapo para limpar possíveis resquícios de molho dos cantos de seus lábios. Quando pequena, costumava dizer aos pais que parte do processo de verdadeiramente saborear uma refeição implicava sujar-se com ela. Duas décadas depois, sua conclusão sobre o assunto e suas implicações sociais não poderia ser mais diferente.
— Como você veio até aqui?
— Peguei um uber - ela respondeu. — Vou chamar outro já.
— Nada disso. Eu te dou uma carona até onde você está morando. Meu turno na cafeteria só começa daqui duas horas. Posso te deixar lá tranquilamente.
— Não, , é sério. Eu não quero te incomodar.
Do lado de fora, apertou os olhos, tentando protegê-los do sol.
— Eu vou até o estacionamento e volto para te buscar. Não sai daqui.
— - ela aumentou o tom de voz ao vê-lo se afastando rapidamente. — Volta aqui!
— Não estou te ouvindo - ele gritou da esquina, com um sorriso que lhe fazia ter certeza de que ele era um grande sonso.
Puxou o celular do bolso, abrindo seus aplicativos de redes sociais apenas para se livrar dos pequenos ícones vermelhos com números de notificações que tanto lhe irritavam. Ações que levavam, literalmente, poucos segundos e lhe garantiam igualmente pequenos momentos de paz.
O barulho de motor e engrenagens lhe fez devolver o aparelho ao local de origem, erguendo a cabeça para ver a cena que tinha acabado de se tornar um grande pesadelo.
— Pronto, podemos ir.
O rapaz lhe estendia um capacete casualmente como se aquele gesto não significasse nada. sentiu seu coração acelerar sem sequer pedir permissão só de se imaginar na garupa daquela moto. tinha cara de quem havia escolhido uma motocicleta propositalmente para sentir o vento no rosto e poder acelerar, costurando por entre os carros que seguiam pelas vias duplas e triplas das avenidas. E aquela era uma conclusão completamente precipitada na qual ela arriscaria todas as suas fichas.
— Eu não vou subir nisso.
quase pareceu ofendido.
— Qual o problema?
— Só pessoas loucas dirigem motocicletas.
— Isso me soou totalmente preconceituoso.
— Ah, sim. Perdão. Espero que a minoria desprivilegiada dos motoqueiros de jaqueta de couro não se sinta ofendida pelo meu posicionamento precoce e generalizante.
Ele revirou os olhos, tentando mais uma vez estender-lhe o capacete preto.
— Anda, . Eu não sou louco, tá? Eu tenho uma habilitação para isso. Você quer ver?
— A menos que você tenha saído péssimo na foto três por quatro, não vejo necessidade.
— Para o seu azar, eu contrariei a ordem do universo e saí lindo.
— E ainda quer me convencer de que não é louco.
— Eu vou devagar, prometo. Você pode me segurar e me apertar com força se eu estiver indo rápido demais, ok?
— Vou te machucar.
— Não vai, . Fica tranquila.
— Não faz mais isso.
O movimento de seus olhos e sobrancelhas demonstrou o quão desconcertado se sentia naquele momento.
— Isso o quê?
— O que você acabou de fazer.
estreitou os olhos, reavaliando suas palavras e procurando o problema nelas. Com um sorrisinho de canto, percebeu que só poderia ser uma coisa.
— Te chamar de ?
Ela bufou exageradamente, dando-lhe uma resposta bastante clara para a sua pergunta. Ele não se preocupou em tentar conter o riso.
— Tarde demais, . Pega o capacete.
— Você é ridículo.
— Não é a primeira a me dizer isso. Sem contar que fica meio difícil de acreditar, considerando que dez minutos atrás você me achava o cara mais incrível do mundo pelo show e pelo almoço.
— Vai a merda, .
Por fim, ela aceitou o capacete, encaixando-o na cabeça e fazendo questão de apertá-lo ao máximo como se a sensação de enclausuramento de seu crânio fosse capaz de lhe trazer uma maior sensação de segurança. Subiu na garupa da moto, rezando para não se desequilibrar.
pegou as mãos dela e as puxou, cruzando os seus braços ao redor de sua cintura. agradeceu pela posição embaraçosa, próxima e encaixada demais por garantir que ele não a visse corando. A menos que ela estivesse no campo de visão de seus retrovisores. Que inferno.
— Onde você está morando mesmo?
— Naquele prédio amarelo de quatro andares perto de onde você trabalha.
— Excelente - ele respondeu e acelerou.
apertou os braços em volta dele quase com tanta força quanto empregou para pressionar seus olhos, esforçando-se ao máximo para não ter de visualizar seu trajeto com passagem expressa para a morte. Se fosse verdade que toda a vida passava em flashes na mente nos últimos segundos de sua persistência, seria melhor mesmo assistir àquele filme com os olhos fechados.
De repente, sentiu a máquina abaixo de si desacelerando gradualmente, perdendo a sua velocidade para os freios até parar de vez. Abriu os olhos, tentando se acostumar com a luz.
— A gente já chegou?
— Não, . É só um semáforo. E esse é longo para caralho, mas é o caminho mais tranquilo até sua casa. Eu não ia te jogar em um monte de curva e estreitamento logo na sua primeira vez em uma moto.
— E última - ela completou rapidamente. — Mas obrigada pela consideração.
— Disponha - ele respondeu, vendo a luz vermelha sendo substituída pela verde. — E se segura de novo.
A mulher repetiu os movimentos, mas dessa vez arriscou não fechar os olhos e observar conforme as árvores, postes, carros e pessoas passavam por eles - ou eles passavam por elas, para ser mais factível quanto à relatividade de movimento. De alguma forma, por mais que seu medo estivesse bem longe de desvanecer, conseguia quase compreender o porquê dos discursos de liberdade irrefreável que bradavam aqueles a quem chamava de loucos.
Não demoraram a finalmente estacionar de vez na frente do seu prédio. Ela desceu da moto, tentando não errar o chão, tropeçar e acabar precisando ser levada para o hospital com algum tipo de fratura. Por mais extremo que parecesse, ela tinha plena consciência de que poderia facilmente passar por aquilo.
Retirou o capacete, devolvendo-o a e passou as mãos avidamente pelos cabelos, tentando arrumá-los na raiz, mesmo sabendo que aquilo provavelmente apenas terminaria por torná-los oleosos.
— Fala sério - ele chamou a sua atenção. — Foi tão ruim assim?
— Foi - mentiu. — Esse deve ser o maior pesadelo da vida da minha mãe. Vou ligar para ela de noite e falar ‘O que eu fiz hoje? Ah, eu passei meu endereço para um estranho e deixei ele me dar uma carona até lá em uma moto. Nada de interessante. E você?’.
riu. Uma gargalhada tão gostosa e expansiva que sentiu seus músculos da face se movendo contra a sua vontade para rir junto com ele.
— Eu não sou um desconhecido - ele apontou. — Nessa conversa você pode falar para a sua mãe que eu te consegui uma apresentação no sábado também. Assim ela vai gostar de mim.
— Não vai, não. Sua imagem vai acabar para ela assim que eu falar da moto.
— Você é muito preocupada. Um dia eu te levo para pegar estrada com ela. Você vai adorar.
— Não vai acontecer.
Ele sorriu, esbanjando toneladas de presunção que poderiam muito bem ser empacotadas e vendidas.
— Veremos. Até sábado, .
A previsão do tempo tinha conseguido errar feio. Se deixasse sua insegurança de repente começar a acreditar em superstições e sinais do universo, com certeza já teria desistido de tudo e decidido se enfiar embaixo do cobertor até se convencer de que estaria protegida de tudo o que poderia dar errado fora daquele casulo.
Enquanto passava iluminador no rosto, repetia a si mesma algo que sua mãe sempre havia lhe dito: quando o tempo parece escuro e carregado demais, crie seu próprio raio de sol.
Com dois toques leves na porta, Scully anunciou a própria entrada no pequeno camarim que ela ocupara assim que o primeiro artista da noite subira ao palco. Havia um esquema de rodízio ali que fazia tudo funcionar de forma metódica e satisfatória.
— Você está incrível - o rapaz comentou.
agradeceu, sem jeito, enquanto passava a mão pelas franjas do vestido, que já havia tentado arrumar algumas dezenas de vezes.
— Sua vez em três minutos.
Novamente só no ambiente, virou-se para o espelho, checando os cabelos uma última vez. Afinou o violão habilmente e respirou fundo, convencendo seu coração a se tornar mais baixo e permitir que apenas sua música dominasse seus pensamentos.
Da coxia, viu a plateia aplaudindo a última canção de um homem bem mais alto e corpulento do que ela, que parecia um grande fã de camisas xadrez de flanela e chapéus de cowboy. Uma estética que confirmava que tinha ido parar no lugar certo.
— Obrigado, Russell - Scully agradeceu, conforme as palmas foram sumindo. — E agora, com vocês, uma estreante na casa. !
Ela subiu ao palco com um largo sorriso, encontrando na primeira fila, fazendo questão de gritar mais alto do que todos os outros ao recebê-la. Apenas meneou a cabeça para ele, silenciando sua vontade de lhe mostrar o dedo do meio, tendo certeza de que aquele anúncio havia sido completamente proposital e planejado por ele.
— Oi, pessoal. Todos estão bem? - Ela manteve o sorriso, comprimindo os lábios, enquanto recebia alguns sons indissociados como resposta. — Bom, hoje, se vocês não se importarem, eu gostaria de começar com uma música que eu compus. Pode ser?
Os gritos em afirmação lhe ofereceram a confiança para prosseguir.
— Bom, essa música foi escrita para alguém que se tornou memorável em minha vida pelos motivos errados.
Deixou sua cabeça pender levemente, enquanto garantia que seus dedos estivessem posicionados nas casas e cordas certas, por mais que eles já soubessem instintivamente para onde ir.
— You, with your words like knives
(Você, com suas palavras feito facas)
And swords and weapons that you use against me
(E espadas e armas que usa contra mim)
Conforme ia seguindo pela letra, sentia cada uma das palavras que, tempos atrás, havia rabiscado em um caderno, com a letra pouco caprichosa pela pressa em tentar acompanhar com os dedos o turbilhão de pensamentos que fervilhavam sua mente no momento da raiva e da descrença.
Cantou o refrão, sendo acompanhada por algumas palmas no ritmo da canção que sua audiência começava a capturar. Tentou não se agarrar às suas expressões, por medo de se perder, mas queria enquadrar em sua memória aquele momento em que tantos rostos animados pareciam se envolver e acompanhá-la naquele momento da forma mais genuína possível.
— And I can see you years from now in a bar
(E eu consigo te ver daqui alguns anos em um bar)
Talking over a football game (Falando sobre um jogo de futebol)
With that same big loud opinion
(Com aquela mesma grande e barulhenta opinião)
But nobody's listening
(Mas ninguém está ouvindo)
Washed up and ranting about the same old bitter things
(Em decadência e reclamando sobre as mesmas coisas velhas e amargas)
Drunk and grumbling on about how I can't sing
(Bêbado e resmungando sobre como eu não sei cantar)
But all you are is mean
(Mas você só é cruel)
All you are is mean
(Você só é cruel)
And a liar, and pathetic, and alone in life
(E um mentiroso, e patético, e sozinho na vida)
And mean, and mean, and mean, and mean
(E cruel, e cruel, e cruel, e cruel)
Àquela altura, o público já havia aprendido consideravelmente o refrão, acompanhando suas palavras como se pudessem sentir tudo o que ela sentia colocando-as para fora com todas as suas forças.
— But someday, I'll be living in a big old city
(Mas um dia, eu estarei vivendo em uma grande e antiga cidade)
And all you're ever gonna be is mean
(E você será simplesmente cruel)
Someday, I'll be big enough so you can't hit me
(Um dia, eu serei tão grande que você não conseguirá me atingir)
And all you're ever gonna be is mean
(E você será simplesmente cruel)
Why you gotta be so mean?
(Por que você tem que ser tão cruel?)
dobrou o corpo para frente em agradecimento, enquanto suas risadas se perdiam entre o alvoroço que tinha conseguido causar no público. Era uma sensação simplesmente indescritível. Poder finalmente fazer aquilo que mais amava e tocar as pessoas ao longo do caminho era muito mais do que ela poderia ter sonhado conquistar tão cedo. Seus ouvintes ainda eram seletos e seu tempo de palco escasso, mas, de forma contrária, o sorriso em seu rosto e a alegria em seu peito pareciam apenas se estenderem infinitamente como se não enxergassem motivos para parar.
Após tocar algumas de suas canções favoritas de outros artistas, finalmente desceu do palco, encontrando o responsável por aquela oportunidade no meio do caminho, com os olhos brilhando quase tanto quanto os dela. Talvez, pensou, fosse apenas um reflexo do que se passava nela mesma. As coisas simplesmente pareciam mais belas e reluzentes quando estávamos no auge de nossa própria felicidade.
— , isso foi simplesmente incrível - ele falou, soando o mais sincero que ela já havia ouvido na vida de alguém que não fosse obrigado a amá-la, como sua mãe.
— Eu ainda estou em transe com tudo isso, como se eu estivesse levitando por aí - admitiu. — É só por isso que eu não vou te matar por ter me inscrito como .
O rapaz soltou uma gargalhada, passando a mão direita entre os cabelos levemente desgrenhados na sequência.
— Fala sério. É um ótimo nome artístico. Soou perfeitamente bem. Acho que você deveria lançar sua carreira com ele.
Ela revirou os olhos, decidindo poupá-lo de sua ferrenha discordância. Seguiram até o bar, pedindo dois grandes - bem maiores do que ela esperava - copos de chopp.
— Era sobre o seu pai, não era?
assentiu, enquanto dava um jeito de equilibrar o copo, virando um longo gole. Definitivamente precisaria de álcool em sua corrente sanguínea para ter aquela conversa.
— Era. Ele nem merecia o tempo e o esforço de ter uma música para ele; mas, de alguma forma, é estranhamente reconfortante poder cantar abertamente e a plenos pulmões o quão escroto e patético ele é.
— Bom, ele com certeza merece - comentou. — E se realmente disse que você não sabe cantar, deveria ir ao médico verificar a audição. Até porque, o que eu vi aqui hoje, é digno de um Grammy.
Ela deu uma risada, quase engasgando com a própria bebida.
— Até parece.
— Eu estou falando sério. Melhor performance country solo.
— Que exagerado.
— Nem um pouco. Sou um poço sem fundo de sinceridade e honestidade.
— E que sonha alto demais - ela acrescentou. — Pensar em um Grammy já está um pouco fora da realidade.
Ele deu de ombros, posicionando o copo no balcão à sua frente antes de se virar para olhá-la diretamente nos olhos.
— Tudo é um caminho, não? Você canta aqui, escreve outras músicas, consegue um contrato, grava um álbum, faz uma turnê e ganha um Grammy.
— Acho que já deu de álcool para você por hoje - ela disse, puxando o copo dele para si.
a fuzilou com os olhos.
— Não toca na minha cerveja. E não duvide de mim. Eu sei o que estou falando. Entendo de música.
Ela deu uma risada irônica.
— Ah, entende, é?
— Claro - ele concordou. — Eu ouço música e gosto de música. Logo, eu entendo do assunto. Simples assim.
— Tenho a leve impressão de que não é bem assim que funcionam as coisas.
— Daqui uns anos, você vai estar no palco recebendo um prêmio grande e vai me agradecer por ter sido o primeiro a confiar que você chegaria lá. Pode fazer um daqueles discursos super emotivos. Com lágrimas nos olhos, dizer: “Obrigada por ter confiado tanto em mim quando nem eu pude confiar”. Meu Deus, soa tão dramático e poderoso.
— Cala a boca - ela o empurrou de leve. — Quando eu for famosa a esse ponto, nem vou me lembrar de você.
fingiu estar realmente ofendido com a brincadeira.
— E pensar que eu te deixei andar na minha moto.
— É esse o seu argumento? Aquilo foi um castigo, não uma recompensa.
— Você adorou. Sei que, lá no fundo, você sabe disso.
— Mantenha os pés no chão. Seus sonhos já estão ficando absurdos demais.
Ele gargalhou, terminando o conteúdo de seu copo e fazendo um sinal para o barman pedindo que o preenchesse mais uma vez.
— Brincadeiras à parte, a música é realmente muito boa. Deu para ver como todo mundo estava realmente curtindo. Não tem como não se identificar com uma letra daquelas, sabe? Todo mundo já teve alguém na vida para podar seus sonhos e te dar um chute na boca do estômago dizendo que você é um inútil incompetente. Só é uma bosta que essa pessoa na sua vida tenha sido o seu próprio pai.
assentiu, virando seu chopp para que o barman pudesse aproveitar a viagem e já retornar com os dois copos cheios.
— Ele é um escroto. Não é à toa que minha mãe o largou. Ela pediu o divórcio quando eu tinha uns seis anos de idade.
— Ele tratava ela assim também?
— Acho que ele trata todo mundo assim. Minha mãe sempre fala que não sabe o que aconteceu com ele. Óbvio que ele nunca foi dos caras mais românticos e dedicados a demonstrar todo seu amor e gratidão, mas ele não era… Assim.
“Ela diz que ele sempre foi quieto e mais de agir do que falar, mas que sentia amor, dedicação e qualquer coisa boa nele ou não teria se casado e nem decidido ter um filho dele. Talvez o problema tenha sido exatamente o momento em que ele decidiu começar a falar demais. Parece que todo o vocabulário dele é limitado a coisas negativas e isso vai exaurindo as pessoas ao seu redor, sabe?”
aquiesceu.
— É exaustivo ficar perto de alguém que só sabe falar de coisas ruins. Ainda mais quando isso vai além do pessimismo individual e começa a ser usado para atingir as outras pessoas.
— É exatamente isso. Só reclamações, só negações. Até os elogios sempre vinham embutidos em algo problemático. Era sempre um “ainda bem que pelo menos isso você consegue fazer direito”.
— Daí sua mãe pediu o divórcio - ele concluiu e agradeceu ao barman pelas novas bebidas, tão geladas que o vidro dos copos já começava a embaçar.
— Ela aguentou aquela palhaçada toda por um ano ainda, tentando acreditar que era só uma fase e ele ainda voltaria a ser o homem que ela havia amado. Mas não adiantou. Na verdade, as coisas só pioraram porque ele começou a beber, voltava para casa só de madrugada, deixava uma puta bagunça pelo caminho e ela que se virava todo dia para reparar os danos que ele deixava para trás.
Mesmo tão nova, se lembrava com clareza e completa lucidez daqueles momentos. Ao acordar pela manhã, encontrava pegadas de terra molhada, cacos de garrafas que ele derrubara e quebrara e o cheiro do álcool que havia secado no chão por onde ele passara, arrastando o estrago consigo. Parecia a versão alcoólatra e deslocada do público infantil de João e Maria.
— Eu fui morar com ela, é claro. Ela tentou unir testemunhas e documentos que pudesse usar no tribunal caso ele pedisse a minha guarda, mas ele não ligava o suficiente para mim para isso. No fim das contas, o descaso dele acabou se tornando um alívio.
— Mas você ainda o via.
— Sim, sim. Minha mãe não queria que eu me afastasse completamente do meu pai. Em alguns dias de sobriedade, eu passava a tarde com ele. Às vezes tudo ficava bem. Nós tomávamos sorvete, eu permanecia o mais quieta possível e o dia acabava sendo positivo. Mas era só eu falar sobre alguma coisa que ele fazia questão de me lembrar de como estava quase literalmente cagando e andando para o que eu pensava ou fazia.
— E você falou sobre a música?
— Era a única coisa que me trazia alegria de verdade, sabe? Sem precisar de justificativas, de compreensão… Era só um sentimento de preenchimento e completude que eu sabia que não conseguiria encontrar em mais nada na vida. Foi ele quem pediu para me ouvir quando um amigo comentou que tinha me visto cantar no aniversário de uma garota lá em West Reading.
“E sabe o que mais me dói? Eu tive esperanças. Pensei que ele pudesse realmente se interessar uma vez na vida pelo que eu estava fazendo e sentir orgulho de mim. Eu queria esse orgulho. Estava em êxtase por dentro imaginando que meu pai finalmente enxergaria meu valor. Mas aquele momento foi completamente oposto a tudo que eu pudesse ter esperado dele.
Ele disse que eu não sabia cantar e que até o gato estridente do vizinho conseguia produzir sons menos insuportáveis do que eu. Disse para eu desistir da música e procurar algo simples e que uma mulher como eu conseguiria fazer na vida, que fosse o suficiente para não morrer de fome.”
— Que filho da puta - interveio, balançando a cabeça com fúria genuína. — Meu Deus, sério. Como ele tem coragem de ser tão sem noção?
deu de ombros, com um sorriso entristecido.
— Ele só não se importa. Parece que o satisfaz saber que está destruindo a felicidade alheia.
— Mas sua mãe sempre te apoiou?
— Sempre, independentemente do que fosse. Ela me apoiou até quando eu disse que queria ser jogadora profissional de basquete e olha a minha altura - ela disse rindo. — Mas ela levou muito a sério quando eu comecei a cantar. Ela me comprou o violão e me incentivou em cada segundo disso tudo. Tanto que, mesmo com o peso no coração, ela foi a primeira pessoa a quase me empurrar para dentro de um avião e me mandar vir para cá, para tentar conquistar algo que eu pudesse realmente chamar de meu.
— Viu só? E eu ajudei nisso. Eu disse que ela vai me adorar.
— Você está destruindo o meu momento fofo maternal.
— Chama quebrar o gelo - ele a corrigiu. — Mas fico feliz de verdade que você tenha encontrado alguém para te apoiar a seguir nesse sonho. E que não seja surda que nem o otário do seu pai. Eu estou realmente puto com ele. É sério. Eu iria facilmente para a Pensilvânia só para meter o meu dedo na cara dele e falar tudo o que já me deixou entalado aqui.
gargalhou, sendo obrigada a concordar.
— Tudo bem, ele tem esse poder sobre as pessoas. Acredite, eu entendo bem.
O que ela não verbalizaria, contudo, era que estava realmente feliz de poder compartilhar aquele sentimento com alguém. De alguma forma, aquela compreensão lhe fazia sentir como se o peso sobre seus ombros não fosse tão insuportável assim. Dividir a sua história - e também a sua angústia, a sua raiva e a principal fonte de todas as suas inseguranças - era algo que ela não costumava fazer com frequência. Ao menos, não a história completa. Sempre se resumia ao fato de que seus pais haviam se separado por desentendimentos, como se a história começasse e terminasse ali. Mas não havia sentido, naquele momento, a vontade de se calar. Não tinha medo dos questionamentos, das suposições, dos julgamentos. Havia algo no rapaz que lhe estendera a mão sem esperar nada em troca que lhe transmitira confiança o suficiente para se abrir desnuda de amarras ou hesitações.
— Meu Deus, eu adoro essa música - ele comentou, ouvindo um som que ela também conhecia muito bem. — Vamos dançar!
— Nem que me paguem - ela respondeu. — Pode ir, eu vou ficar aqui com a minha cerveja.
— Não, . Você vai dançar comigo!
— Eu vou pisar no seu pé, isso sim.
— E daí? Quem se importa com isso? Eu já falei que você se preocupa demais.
E era verdade, não era? Ela não precisava ir tão fundo em sua alma e pensamentos para saber que concordava plenamente com aquilo. Nem para saber que estava disposta e desejosa por mudanças.
— Ah, que se dane - disse e aceitou a mão dele, que a puxou animadamente para o meio das outras pessoas.
Em meio a mais risadas do que passos certos, girava vez ou outra, gargalhando ao ponto de sentir lágrimas despontando de seus olhos. Nem todas as pessoas em volta eram capazes de romper o invólucro da bolha em que se encontravam naquele momento, divertindo-se de uma forma despreocupada e especial que dependia diretamente da pessoa com quem cada segundo daquela experiência era compartilhado.
Em seu coração, sabia que havia entrado naquele lugar com um sonho e saído com muito mais do que isso.
Quando o som do grasnar de um pato ressoou pelo ambiente, ela soube exatamente de quem era a notificação. Afinal, fora ele que havia escolhido aquele toque bizarro por um motivo que nem ele soubera justificar no fim das contas.
Estavam trocando mensagens e marcações no facebook com frequência há pelo menos uns treze dias, após trocarem números em mais uma das noites em que ela se apresentara sob contrato firmado com o pai de Scully. Já contabilizava seis apresentações e seis presenças marcadas e firmadas de .
Ela não ficava para trás. Nesse meio tempo, havia se convencido de que precisava tomar o ‘café cowboy’ para ter um dia proveitoso e produtivo várias vezes. Estranhamente, todas as vezes em que aquela vontade repentina havia surgido, encontrava-se no meio do turno do rapaz na cafeteria. O mundo era mesmo repleto de coincidências.
Correu para sua mesa de cabeceira, encontrando o aparelho ainda plugado na tomada depois de uma noite em que ela havia simplesmente se esquecido de carregá-lo. Chegava tão cansada após as performances que simplesmente se estirava na cama depois de um banho e ali ficava, toda torta até o amanhecer.
“Tenho planos. Estou te esperando aqui embaixo.”
colocou um cardigan por cima da blusa de alcinha que usava e calçou um par de rasteirinhas que deixava no canto do quarto especialmente para momentos em que saía sem planejamento prévio. Abriu a janela do cômodo, encontrando o rapaz lá embaixo, encostado à própria moto, usando óculos de sol pretos que se encaixavam perfeitamente aos ângulos de seu rosto.
— Agora é assim? Você já chega mandando?
Ele olhou para cima, dando um sorriso de canto ao vê-la.
— Exatamente. Desce.
— Não sou fácil assim.
— Desce, por favor, . Vai ser legal, eu prometo.
Ela revirou os olhos, dando uma risadinha. Aceitou a bateria semicarregada e colocou o celular na bolsa, transpassando a sua alça pelo ombro. Correu escadas abaixo, sem paciência para esperar o elevador em um trajeto tão curto. O problema era subir, descer era simples.
— Oi - disse.
— Oi. Para onde vamos e precisamos mesmo ir no trem da morte?
— Primeiro, mais respeito com a minha moto. Segundo, lembra aquele dia em que eu disse que ia te levar para saltar de paraquedas?
A mulher fez uma careta, concordando.
— Lembro. E sabe do que mais eu acabei de me lembrar? Eu preciso fazer biscoitos para ajudar as escoteiras do bairro, então eu já vou entrando, ok? Até mais.
— Ah, mas não vai mesmo. Pode voltar aqui. Nós não vamos saltar de paraquedas.
— É claro que não. A menos que você queira ligar para a minha mãe e avisar o endereço para o meu velório.
— Nós vamos fazer uma coisa legal e divertida, que também tem adrenalina envolvida, mas sem te matar do coração.
— Repete essa frase na sua cabeça até você perceber que ela continua incoerente.
— Eu juro que é seguro. Por favor, confia em mim. Quando eu te dei motivos para não confiar?
Ela ergueu a mão, utilizando os dedos para adicionar ao gestual teatral de sua contabilização.
— Bom, quando você me fez experimentar uísque dizendo que era refrigerante, quando me fez dançar quadrilha, quando disse que eu estava ótima sendo que tinha uma espinha gigante no meu nariz… Preciso continuar?
Ele a ignorou completamente, entregando-lhe o capacete do qual ela já era relativamente familiarizada.
— Eu não vou.
— , relaxa. E coloca o capacete.
Ela bufou, mas obedeceu. Não precisava mais forçar os braços excessivamente ao ponto de quase estrangulá-lo, mas não precisava contar isso a ele. Estava confortável agarrada a ele e aproveitando o vento no rosto, no caminho que ela já começava a reconhecer.
Ao chegarem ao seu destino, ela confirmou sua hipótese, não dispensando estranhamentos.
— O que viemos fazer na sua faculdade?
— Você já vai ver.
o seguiu, sem mais questionar. O campus era arborizado e estava vazio como ela imaginava não ficar em dias letivos comuns. Ouvia o farfalhar das folhas e o som do universo orgânico que lhe rodeava. Havia um quê de pacífico naquilo.
— Você tem certeza de que nós podemos estar aqui hoje?
pigarreou de leve, antes de engrossar a sua voz para dizer com dicção e entonação exageradas:
— Toda pessoa tem o direito de ir e vir livremente, sem ser molestada. Chama Direitos Humanos.
Caminharam por mais algumas centenas de metros, subindo por uma rampa adaptada que os colocava em um dos pontos mais altos da universidade. Olhando para baixo, ela viu o declive acentuado de grama que ligava os dois patamares distintos de edificações.
— Meu Deus, devia ter uma grade de proteção aqui. Já pensou se alguém cai?
— Já pensei, sim. E é mais ou menos o que nós vamos fazer - ele anunciou, entregando-lhe um pedaço grande de papelão, retirado de uma caixa aberta que um dia havia embrulhado algum tipo de mobília não mais identificável nas letras gastas.
— , não. É sério. Não mesmo.
— Eu também estou falando sério, . Esse é o tipo de coisa que toda criança faz e eu tenho certeza de que você não fez, então a gente precisa preencher esse espaço na sua vida.
— Não, obrigada.
— Você pode descer comigo se quiser. Só nunca saberemos se eu vou te segurar ou te empurrar do papelão. Fica por sua conta e risco.
— Eu não sei mesmo porque ainda aceito fazer as coisas com você.
— Ah, eu sei! É porque você me adora. E eu sei que nesse exato momento você está se contorcendo pra não dizer: "Obrigada, , por ser essa pessoa maravilhosa e essencial na minha vida. Eu nunca poderia ser feliz e completa sem você.”, mas vou te poupar porque já sei de tudo isso. Não precisa me falar.
Ela apenas ergueu o dedo do meio para ele, tomando o papelão de suas mãos.
— Eu vou sozinha. Não confio em você. Ainda mais em um penhasco.
— Do jeito que você fala parece que vamos escorregar no Grand Canyon. Você vai adorar, eu garanto.
— Se eu não gostar, posso te socar?
— Pode. E se você gostar?
— Você não vai me socar.
— Óbvio que não. Coloca o papelão na grama, senta, segura firme e dá impulso para frente. Eu vou logo atrás.
sentia o coração descompassado, mais apavorado a cada movimento que ela fazia. Mas era isso. Ela não desistiria. Não era do seu feitio, para seu azar.
Quando deu o maldito impulso, arrependeu-se instantaneamente. Tinha quase certeza de que era uma péssima ideia gritar tanto sendo que precisava cantar no dia seguinte.
Perto da base inferior, seu equilíbrio finalmente cedeu, fazendo-a rodar sobre a própria bunda na grama, caindo deitada com as costas contra o chão.
chegou logo em seguida, correndo atrás dela ligeiramente apavorado após o tombo. Tinha grama em excesso espalhada pelos fios de seus cabelos e uma certeza pairando no ar de que sua lombar provavelmente doeria por várias horas depois daquilo, apenas para lembrá-la de como aquela havia sido realmente uma péssima ideia.
— Você está bem? ?
A mulher levou alguns segundos - suficiente para ele quase infartar - para cair na gargalhada.
— Sua escrota. Eu achei que tivesse se machucado.
— Eu sei. Foi hilário - ela acrescentou, rindo ainda mais.
— Meu Deus do céu, o que foi que eu vi em você?
— Beleza, inteligência, talento, bom humor, simpatia - ela listou. — Ah, e modéstia, com certeza.
deu de ombros, oferecendo-lhe um sorrisinho que pendia entre a malícia e o charme despropositado. Foi só ao se perder observando cada detalhe daquele sorriso e das covinhas que o emolduravam que percebeu como estavam extremamente próximos.
Mas não o suficiente. Naquele momento, ela finalmente concebeu que queria mais. Ansiava pela aproximação, pelo contato, pelo toque.
Como se, telepaticamente, tivesse compreendido cada um de seus pensamentos, finalmente colou seus lábios aos dela, concretizando e potencializando o turbilhão de reações bioquímicas que aconteciam a cada instante.
As mãos dele se perderam em meio aos cabelos da mulher, encontrando e puxando de leve os pelos da nuca, em uma ânsia por trazê-la mais para perto e senti-la por completo. Ela, por sua vez, distraía-se, inebriada pelos próprios sentidos toda vez que o tocava, dividida entre o desejo de continuar avidamente e a vontade quase juvenil de sorrir.
E, naquele momento, percebeu que aquela deveria ser a sensação sobre a qual tantas músicas eram sempre escritas. Aquela sim poderia vir a ser a melhor canção country do ano em um Grammy.
— Se eu cair, você vai junto.
dava passos duros e pesados em direção a sabe-se lá onde sabe-se lá porquê, sendo guiada pelas mãos firmes de nas suas costas. Infelizmente, pensar que eram elas as únicas coisas que lhe impediam de tropeçar com aquela venda horrorosa não lhe dava muita segurança.
— Você anda absurdamente vingativa - ele comentou.
— Do jeito que você fala, nem parece que já me conhece há séculos.
— Ontem mesmo você disse que alguns meses não significavam muita coisa - a lembrou.
— Porque as coisas funcionam de acordo com o que me convém. Você me pediu em namoro completamente consciente disso.
Havia acontecido há pouco mais de três meses. havia aprendido a fazer desenhos na espuma do café e decidira que exibir seus talentos precários era a forma perfeita de fazê-la rir o suficiente para valorizar sua tentativa, por mais tosca que fosse.
Sua técnica e dom, entretanto, só tinham sido desenvolvidos até o ponto de ele conseguir esboçar um ponto de interrogação que deixou completamente confusa, longe de começar a sequer cogitar poder entender qualquer coisa. Quando finalmente se explicou, arrancou dela risadas altas e um sim, um tanto emocionado, de quem pularia da cadeira no instante seguinte, disposta a se agarrar ao seu pescoço como um bicho preguiça.
Haviam feito um pacto naquele meio tempo, prometendo sempre buscar coisas diferentes para fazerem juntos, lugares novos para conhecer e conversas novas para se conhecerem cada vez melhor. Era absurdo como se davam bem e se divertiam, fosse no bar de Scully ou no tapete do apartamento de , com uma garrafa de vinho barato aberta e um filme dos anos 1900 e algo com resolução tão baixa que parecia fazer jus ao século quase completo de diferença.
A venda, naquele momento, fazia parte do tal pacto. Assim como o destino - com horário marcado - que ele havia planejado por tanto tempo.
— É sério, amor. Onde a gente está indo?
— Tudo bem, tudo bem. Pode tirar a venda.
puxou o tecido escuro dos olhos com pouquíssima delicadeza, sem se importar com a bagunça que havia criado entre as madeixas recém cortadas.
A placa preta e branca trazia escritas as últimas palavras que ela esperava ler naquele fim de tarde colorido pelo lusco-fusco celeste de Austin.
— Ah, não. Eu não vou fazer isso, não.
— Você disse semana passada que achava legal, . Não foge agora.
Ela engoliu sua resposta instantânea e imediata, sabendo que precisaria de uma elaboração mais adequada e bem pensada se não quisesse ser contraditória. Até porque, no fim das contas, ela sabia que ele não estava mentindo. E ela se arrependia profundamente do momento estúpido em que decidira ceder às tentações do álcool, deitada com a cabeça apoiada no peito nu do namorado e rodeada pelo braço cheio de desenhos que ela adorava delinear com os dedos, como se pudesse sentir os movimentos de cada um deles.
— Não era de verdade.
— Eu sei que era, porque você mesma fez questão de garantir isso umas mil vezes quando eu comecei a rir.
— Tudo bem, mas era tipo “é sério que eu gostaria de fazer uma tatuagem um dia” e não “é sério que eu toparia fazer uma tatuagem semana que vem”.
— E que diferença faz?
Ela fez uma careta, incrédula.
— O tempo que eu teria para me preparar psicologicamente para ser mutilada e marcada pelo resto da minha vida é bem diferente.
— Não é tão ruim assim. Eu juro. E você pode segurar minha mão e esmagar cada um dos ossos dos meus dedos se precisar descontar a dor.
Ela respirou fundo, ponderando todos os prós e contras, receios e completos pavores que conseguiram circular sua mente em um período tão curto de tempo. No fundo, conseguia encontrar, escondidas ali como as cartas da adolescência que ficavam esquecidas nos fundos das gavetas amontoadas de um armário, vontade e curiosidade de seguir em frente; entrar naquele lugar, ver pessoas que conseguiam se parecer com um gibi humano até mais que o próprio e terminar com uma marca em si mesma. Só não sabia se elas eram suficientes.
— Eu nem saberia o que tatuar - confessou.
repuxou o canto dos lábios, silenciosamente contente ao perceber sua abordagem do assunto oscilando.
— Isso é o de menos. Pode ser um coração, borboleta, flores…
— Achei estereotipado da sua parte. E você já tatuou tudo isso, então perde um pouco da graça.
— E daí?
— A resposta é não, .
O rapaz revirou os olhos, aceitando a contragosto.
— Deveria pensar em algo que é importante pra você, sabe?
— Não vejo muito sentido em tatuar um temaki.
— Você entendeu - ele reclamou, rindo. — Algo com um significado especial para você.
— Meu Deus, eu acho que eu tive uma ideia.
Seus olhos se iluminaram como membros perdidos de uma grande constelação. A resposta óbvia estava bem ali em sua mente o tempo todo.
— É sério ou você está preparando uma resposta sarcasticamente dolorosa para mim?
Ela o empurrou, achando um absurdo aquele nível de calúnia. Não admitiria o quão compreensível era aquela estranha suposição.
— É bem sério - contou, engasgando as palavras em meio à risada de quem também não acreditava por um segundo sequer que estava mesmo prestes a fazer aquilo.
— Nós vamos mesmo fazer isso?
Sua surpresa e animação eram palpáveis.
— Nós vamos mesmo fazer isso - ela confirmou, sendo imediatamente arrastada para o lado de dentro.
sentia as mãos suando frio e estava tentando ignorar o fato de que, àquela altura, já deveria ter criado uma poça de fluidos corporais indesejados contra a pequena concavidade que a palma de criava logo abaixo da sua. E isso porque o processo sequer havia começado.
— Onde? - A tatuadora lhe perguntou, sentando-se ao seu lado.
— Acho que aqui no braço mesmo.
— É um lugar menos dolorido. Bom para a sua primeira - comentou.
— Para o bem dos seus dedos, acho bom mesmo.
— Está contente com a arte?
observou a frase que ela mesma havia escrito com o maior esforço para a sua melhor caligrafia. Sorriu levemente, aquiescendo.
— Estou, sim.
— Bem, nesse caso, vou começar. Preciso te avisar que o atrito da agulha raspando pode ser incômodo e doloroso. Se pensar que não aguenta e decidir parar, é só me avisar. Vai ser rápido.
A mulher assentiu, apertando ainda mais as falanges do namorado assim que sentiu a agulha desenhando as letras sobre sua pele.
— Tudo bem? - sussurrou perto de seu rosto, passando o polegar sobre sua testa em um movimento carinhoso e preocupado. Ela precisou se esforçar para não rir.
— Sabe que isso está parecendo uma cena de parto normal sem anestesia, não sabe?
— Mas isso é só porque somos atores maravilhosos.
— Nem você acredita nisso.
— Que bom que você é uma ótima cantora e eu sou um ótimo… Sei lá, namorado.
— Você vai encontrar um emprego na sua área logo. E, acima de tudo, um em que seja feliz fazendo o seu trabalho. Sério.
— Eu espero que sim. Por mais que eu goste da cafeteria, não pretendo preparar cafés cowboy para sempre.
— Nossa, eu adorava - a tatuadora comentou. — Tomava sempre na faculdade. Era literalmente a única coisa capaz de me manter acordada nas aulas de antropologia.
— Viu só? Todo mundo adora - reforçou.
deu um sorriso educado que não parecia real o suficiente. Era frustrante, ela sabia. E desumano também. Sem contar o quanto era patético ouvir que a vaga demandava experiência quando ninguém estava disposto a oferecer algo que lhe permitisse adquirir alguma experiência.
— Ei, olha para mim - ela pediu. — Vai dar tudo certo.
Ele concordou, observando a frase terminando de tomar forma no braço da namorada.
‘create your own sunshine’
— Serve para você também - ela comentou, vendo os olhos dele sobre a frase que sua mãe sempre lhe dizia.
— Ela deve ser uma mulher incrível. Que nem a filha.
— E ela, com certeza, vai adorar você.
— Quer dizer que você finalmente aceitou essa verdade inevitável.
Com a tatuagem finalizada, retornaram para o apartamento dela.
— Agora me diz se foi assim tão ruim.
— Não vou te dar esse gostinho. Mas vou ficar olhando para ela o tempo inteiro agora.
sorriu, indo até a pequena geladeira e enchendo dois grandes copos de água para eles.
— Obrigada.
O toque do celular fez com que ela parasse subitamente, virando a tela do aparelho para si.
— Olha só, acho que você vai finalmente realizar o seu sonho.
— Como assim?
Ela deslizou o dedo pela tela, aceitando a ligação de vídeo solicitada.
— Oi, mãe! Como vai?
Do outro lado da mesa, engasgou com a água, tossindo desenfreadamente, com todo o ódio e agonia que davam momentos com aquela sensação de que o líquido havia decidido descer para o lado errado.
— Filha, você está bem?
— Estou maravilhosa. O que está morrendo aqui do lado.
— Ah! O seu namorado! Não sabia que ele estava por aí, querida. Ligo depois.
— Deixa disso, mãe. Até porque ele me diz todo dia que você amaria conhecê-lo. Então… Diga oi ao .
Ela virou o celular para ele de uma só vez. Ele sorriu automaticamente, vendo a mulher mais velha que saberia ser mãe de mesmo que não tivesse sido alertado disso com antecedência. A genética era, no mínimo, forte.
— Tudo bem, querido?
— Tudo ótimo. E com a senhora?
— Tudo bem também. Estou feliz por finalmente te conhecer. Você é bem mais bonito do que a contava.
A filha virou o celular de volta para o próprio rosto, em uma careta.
— Não fala isso para ele. Ele não sabe lidar com elogios sem ficar insuportável.
se levantou, puxando uma cadeira para se encaixar ao lado dela.
— Dá para parar de queimar meu filme?
— Acho que não.
A mais velha riu, do outro lado da tela, apreciando verdadeira e sinceramente a alegria óbvia da filha, estampada em cada sorriso que dava em direção ao namorado.
— Ah, mãe! Adivinha o que eu fiz hoje - ela pediu, animada, apertando a mão de por baixo da mesa.
— Pulou de paraquedas?
— Isso ainda estou no processo de convencimento - respondeu.
— Então o que foi dessa vez?
ergueu o braço, tentando focalizar a tatuagem em sua câmera.
— Consegue ler?
Ela conseguia. A mais nova teve certeza disso assim que viu os olhos da progenitora se enchendo de lágrimas ao mesmo tempo em que um pequeno sorriso florescia em seus lábios.
— Filha, ficou linda.
— E assim eu posso me lembrar de você e do meu raio de sol, todo santo dia.
Continuaram conversando por mais alguns minutos, até que a mulher decidisse se despedir para preparar o jantar. devolveu o celular à mesa e deixou a cabeça ceder ao próprio peso, aconchegando-se ao ombro daquele que vinha ocupando o lugar ao seu lado sempre que possível.
— Será que ela gostou de mim?
— Ah, ela te adorou.
— Quem disse?
— Ninguém precisa me dizer. Conheço minha mãe o suficiente para poder te afirmar isso com certeza.
— Acho que vou acreditar, então.
— Deveria mesmo - ela respondeu, beijando-lhe na sequência.
a puxou pela cintura, enchendo seu rosto de selinhos por cada um dos cantos enquanto ela ria.
— Posso te contar um segredo?
— Estou ouvindo.
— Você é a melhor coisa que eu posso chamar de minha.
Ela tentou não derreter, evitando ceder ao clichê completo daquele instante.
— E por que isso é um segredo? Deveria tatuar isso também, já que tatua tudo o que vê pela frente.
— Você é ridícula.
Ela riu, dando de ombros conforme se aproximava dele até que seus narizes se encostassem.
— E, mesmo assim, você me ama.
— Absurdamente.
Com um último sorriso, tão próximo que ela quase pôde sentir, ele a tomou para si, confirmando em ações a veracidade e intensidade de cada uma de suas palavras.
Ela só precisava de um banho. De preferência um bem longo e quente o suficiente para derreter suas angústias e preocupações. Seu cérebro já tinha fritado mesmo, espiralando continuamente com os acontecimentos recentes, então não poderia ser prejudicado pela temperatura da água vinda direto dos lares de Hades e Perséfone.
Estava exausta da viagem de Dallas, cidade na qual havia conseguido um show de repente por convite de um amigo do pai de Scully. não conseguiu acompanhá-la por conta do trabalho, mas havia feito questão de ligar para lhe desejar boa sorte mais vezes do que o necessário.
Tinha dado tudo certo. No caso, para seu total desespero, os dois últimos dias tinham dado certo até demais. O amigo do pai de Scully tinha outro amigo - nunca pensou que as amizades alheias lhe dariam tanta dor de cabeça -, que vinha embutido de ideias e propostas sobre as quais ela esperava não ter que voltar a pensar tão cedo.
Virando a chave do apartamento, assustou-se ao perceber uma luz leve, fraca e amarelada demais para ser de uma das lâmpadas de LED que havia instalado recentemente, para manter a coesão do ambiente.
— Surpresa - ele murmurou, usando uma camisa social branca, uma calça preta colada e segurando um buquê de flores lilases.
A mesa estava posta, com duas cloches de aço prateado reluzente e velas delicadamente acesas.
— Meu Deus do céu, . São quase duas da manhã - ela disse, vacilando entre o choque e o cansaço.
— E é por isso que eu pulei a parte do jantar chique e fui direto para um de seus favoritos.
Ele evidenciou o que havia ali, expondo dois milkshakes de morango com canudos de biscoito crocante de chocolate.
— Eu não acredito - admitiu, rindo, ao pegar sua bebida de sorvete.
— Feliz aniversário de namoro - sussurrou, sustentando o sorriso que a fazia ceder a absolutamente qualquer coisa com uma facilidade que conseguia lhe deixar um tanto irritada.
caminhou a passos arrastados até ele, esticando-se nas pontas de seus pés para tomar a boca dele na sua.
— Feliz um ano - respondeu. — E obrigada por ser tão… Você. Sempre.
— E como foi em Dallas? Morreu de saudades de mim?
— Chorei rios de sangue de tanto sentir sua falta. - Deu um longo gole no seu milkshake, apreciando cada estímulo doce ao seu paladar, antes de continuar. — Foi você quem fez?
Ele assentiu, orgulhoso de si mesmo, enquanto experimentava sua própria bebida.
— Passei os últimos dois dias aperfeiçoando a receita. Eu sou genial. E você ainda não me contou sobre a viagem.
— Pode ser depois? Eu mataria por um banho quente agora. Mas depois eu te conto tudo o que você quiser saber.
— Só quero saber como foi.
— Foi ótimo. O público foi bem receptivo e eu realmente acho que as coisas funcionaram. Já estou planejando um jantar para nós dois naquele restaurante chique que abriu do outro lado da cidade para aproveitar o cachê.
riu, selando seus lábios rapidamente.
— Você é incrível. Não duvidei por um segundo sequer que daria tudo certo. Agora vai lá tomar seu banho.
não precisou que ele dissesse duas vezes. Logo correu para seu quarto, arremessando a bolsa sobre a cama de qualquer jeito. O conteúdo de seu interior se esparramou pelo colchão, fazendo-a respirar fundo e contar até vinte para não se xingar por ter esquecido a porcaria do zíper aberto. O comichão conhecido em sua nuca assinalava a necessidade antiga de organizar tudo; um resquício de aflição por encontrar as coisas fora de seu devido lugar.
Mas não. Ela estava realmente se esforçando para superar aos poucos aquilo. E sua meta da madrugada seria deixar aquela pequena zona existir por mais alguns instantes.
Tomou seu banho, aproveitando o calor e o aconchego da água quente. Pegou-se sorrindo sozinha ao repassar em sua mente a cena que capturara como em uma fotografia. de social, esperando-lhe às duas da manhã com um milkshake só para recebê-la com um beijo e a lembrança daquela data tão importante para eles. Mal podia acreditar que havia se passado um ano. Tinham vivido tantas coisas, passado por tantos momentos… Não poderia ser mais grata pelo dia em que escolhera aquela cafeteria aleatoriamente e decidira descobrir a diferença entre o cowboy normal e o cowboy completo.
Colocou um vestido florido levemente surrado, amarrou os cabelos em um coque mal feito e saiu do banheiro, sendo acompanhada pela fumaça.
— Meu Deus, que susto - comentou, rindo, ao ver sentado em sua cama. — Esperava te encontrar na cozinha com nossos maravilhosos milkshakes.
ergueu os olhos, finalmente a encarando. O vazio que viu em seus olhos naquele momento fizeram seu mundo se despedaçar em vários pedacinhos, mesmo que não fizesse ideia do porquê.
— Eu vim para cá porque queria te assustar - disse, com uma seriedade que ela não pensava já ter ouvido dele. — Vi a bagunça e pensei em guardar as coisas só para te agradar, já que você está cansada.
Ela finalmente entendeu o que tinha acontecido quando viu o cartão branco em suas mãos.
— , o que é isso?
— Não é nada.
— Sério? Porque aqui está escrito claramente “me ligue se mudar de ideia”. Isso me parece qualquer coisa, menos nada.
A passos dolorosos, ela caminhou até ele, sentando-se ao seu lado.
— Apareceu esse cara por lá. Ele disse que representa uma gravadora e me convidou para gravar umas músicas. Um álbum, na verdade.
— E isso é nada? , isso é uma coisa enorme.
— Eu sei, eu sei - admitiu, pesarosa. — Mas é em Nashville.
— E, por isso, decidiu que não precisava me contar?
respirou fundo, soltando o ar com força. Aquela era a última conversa que ela esperava ter àquela hora.
— Será que a gente pode não fazer isso?
— Não, , a gente não pode. Você não pode simplesmente fingir que isso não aconteceu, sabe?
— Não é uma questão de fingir que não aconteceu. Eu só quero descansar. É o nosso aniversário. A gente deveria estar feliz e comemorando, não tendo esse tipo de discussão.
— Eu não quero discutir, . Eu só quero saber porque você não me contou.
Ela respirou fundo, sentindo as lágrimas enchendo os olhos e as mãos tamborilando contra o colo, inquietas frente à mísera expectativa de que as coisas pudessem desandar.
— É em Nashville - ela repetiu.
— Você ia embora sem nem se dar ao trabalho de me oferecer consideração o suficiente para me dar um aviso prévio?
— Eu nunca disse que ia embora, . É esse o problema. Você simplesmente assumiu as coisas por mim.
Nervosa, ela se colocou de pé, sentindo a agitação dos membros superiores se espalhar para as extremidades inferiores, encontrando também seus pés nervosos.
— Não era para ser assim. Não era mesmo.
— Então era para ser como? Se importa de me explicar?
Ela bufou, arrependendo-se no mesmo instante. O ar já lhe faltava o suficiente com o desespero para que ela ainda terminasse expulsando o pouco que lhe restava do elemento vital para sua sobrevivência.
— Eu preciso de ar. Eu… Não consigo estar aqui agora.
não sabia de onde tinha arranjado energia suficiente para se mover, mas só parou quando encontrou o banco de pedra gelada da praça que se colocava em frente ao prédio. Com a mão no peito, tentou controlar a sua respiração e se convencer de que aquilo não podia ser real.
Tinha que ser mesmo a pessoa mais azarada do mundo para que ele encontrasse uma porcaria de cartão que ela ia rasgar e jogar no lixo, mesmo que isso lhe custasse, simultaneamente, a consciência de que estava jogando no lixo também aquela que provavelmente viria a ser a sua maior oportunidade de realmente consolidar algo.
E, o pior de tudo, tinha deixado seu medo e sua indiferença tomarem de si duas das melhores coisas que tinha de suas.
Olhou para os dedos finos, tornando-se cada vez mais gelados na companhia da brisa e do orvalho da madrugada. A tatuagem parecia queimar em sua pele, lembrando-a de que, em vez de criar, tinha conseguido destruir tudo.
Puxou as mangas do cardigan para baixo, apertando os braços ao redor do corpo, como se aquilo fosse suficiente para criar alguma ilusão de proteção e de que o mundo ao seu redor não parecia estar prestes a explodir e levar todos os bloquinhos que ela havia lutado para empilhar e construir em meio aos letais destroços.
— Tem alguém sentado aqui?
Assim que ouviu a voz cujo timbre ela conseguiria reconhecer a quilômetros de distância, em qualquer disposição na escala musical, ela soube que deveria ter forçado os seus pés a gastar os últimos impulsos de adrenalina para procurar um lugar mais distante do que alguns metros. Se ela realmente queria ficar sozinha, aquela havia sido uma péssima decisão de seu subconsciente. Aparentemente, ele era tão idiota quanto sua consciência efetiva.
— Eu realmente não tenho condições físicas ou psicológicas para ter essa conversa - ela encontrou forças para responder, sentindo a garganta mais seca do que esperava. — Eu não quero brigar, .
— E quem foi que falou sobre brigar?
Ignorando a ausência de resposta à sua pergunta inicial, ele se sentou ao seu lado, olhando para o plano mais profundo daquela paisagem, que parecia quase factível de ter sido retirado diretamente de uma obra que flertasse com algum tipo de impressionismo contemporâneo de gostos noturnos. Ao menos, ele pensava ser impressionista. Não tinha sido exatamente o melhor aluno na disciplina de história da arte.
— Na verdade, eu vim te pedir desculpas.
— Por quê?
riu, tomando a mão dela na sua e entrelaçando os seus dedos.
— Qual é? Vai me dizer que não achou a cena lá dentro, nem um pouquinho que seja, patética? Sobre o que eu estava surtando sem você nem se explicar? Que merda foi aquela?
o encarou, com as sobrancelhas pressionadas, expressando toda a sua confusão.
— , desde quando nós somos o tipo de casal que não consegue conversar sem surtar?
— Às vezes a gente conversa até demais - ela comentou, fungando os sinais do choro recente.
Ele riu, apertando a mão dela de leve.
— Pois é. Acho que você só está cansada e eu, inseguro. Eu não vou mentir pra você. Eu realmente surtei quando vi aquilo e perdi totalmente o chão quando ouvi você dizendo Nashville. Não consigo nem imaginar como seria te perder.
— Bom, como eu já disse, você não precisa se preocupar com isso, porque eu não vou. Eu recusei a proposta.
— É esse o ponto, meu amor - ele disse, forçando-a a se virar para ele, de forma que seus olhos se encontrassem na mais pura verdade das palavras que diria a seguir: — Você precisa ir.
— Como é que é?
Ele respirou fundo, antes de continuar. Por mais que estivesse em paz com sua própria decisão, precisava reunir toda a sensatez que tinha dispersa em sua corrente sanguínea para convencer não só a ela, mas também a si mesmo.
— Você sabe que essa é uma oportunidade imperdível e é literalmente o motivo pelo qual você começou a fazer tudo isso. Foi para viver esse tipo de coisa que você veio a Austin , em primeiro lugar. E está tudo dando maravilhosamente certo, mas agora em outro estado.
— Eu não vou.
— Vai sim. Precisa ir. Sei que, aí dentro, tem um pedacinho de você que sabe muito bem disso. É o caminho para o seu Grammy de melhor performance country solo, meu amor. Você precisa dar o próximo passo.
Ela meneou a cabeça, em completa negação.
— Não quero dar passo nenhum sem você.
— E quem disse que vai dar algum passo sem mim? - soou teatralmente ofendido; uma das várias manias com as quais ela tinha se acostumado ao longo daquele ano. — Essa é a sua forma nem um pouco sutil de me dar um pé na bunda, ? Pelo amor de Deus, são duas e meia da manhã, espera o dia começar de verdade antes de me largar.
Ela inclinou o ombro, empurrando-o pela brincadeira. Sabia que ele havia entendido cada letra do que ela dissera e, por mais que sempre apreciasse seu bom humor, não conseguia ver graça o suficiente em absolutamente nada em uma hora como aquela.
— A gente não precisa se separar. Você vai para Nashville, escreve suas músicas, grava o seu álbum, faz uma dedicatória melosa e cheia de adjetivos que eu nem conhecia para dizer como tem o namorado mais incrível do mundo e ama escrever as melhores canções de amor para ele. Eu te visito nos feriados e nas férias. E falta pouco mais de um semestre para eu me formar. Então acho que talvez eu já devesse começar a me preparar para enviar uns currículos para a galera de Nashville.
— O que você está dizendo?
— Eu vou até você quando acabar minha parte aqui. Não tem nada que me prenda de verdade a essa cidade depois que a faculdade acabar. E o único lugar em que eu quero estar é aquele que me permita viver ao seu lado.
— Isso é sério?
não saberia ao certo dizer se os olhos dela haviam se iluminado para ele ou se apenas estavam refletindo as luzes dos postes de iluminação da praça. Mas, de uma coisa ele tinha certeza: nunca vira nada mais lindo. E faria o possível para acordar do lado daquele olhar sereno e apaixonado todos os dias.
— Claro que é. A gente vai fazer funcionar - ele garantiu, passando o braço pelo seu ombro. — E a gente deveria mesmo entrar porque eu vou acabar perdendo a ponta do meu nariz nesse frio e eu tenho quase certeza de que não continuaria tão bonito assim sem ela.
gargalhou, inclinando os lábios para deixar um beijo na extremidade gelada que ele temia perder.
— Posso te contar um segredo?
— Quantos quiser - ele respondeu sorrindo.
— Você é a melhor coisa que eu já chamei de minha.
FIM
Nota da autora: ALÔ ALÔ GRAÇAS A DEUS, que só Ele sabe o tanto que esse ficstape foi escrito a base de surtos nada leves e tênis. Socorro, de verdade. Eu apaguei e reescrevi isso tudo tantas vezes que não sei nem se lembro qual é a história completa, mas espero, mesmo assim, que vocês tenham gostado dela.
À Gigi, minha swiftie favorita e uma das melhores pessoas do universo todo, deixo aqui registrado todo o meu amor. Essa, mais do que nunca, foi totalmente para e por você.
No mais, espero que tenham gostado e, se você chegou até aqui, eu agradeço profundamente por me dar uma chance. Deixa um comentário aí embaixo para eu saber o que você achou!.
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
IMPORTANTE: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
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À Gigi, minha swiftie favorita e uma das melhores pessoas do universo todo, deixo aqui registrado todo o meu amor. Essa, mais do que nunca, foi totalmente para e por você.
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