Finalizada em: 02/02/2021

Prefácio

Se a minha vida fosse um romance, eu poderia te contar tudo sobre como eu o conheci, como a noite foi tão afortunada e que, naquele momento, o tempo parou para mim. Era como se em um segundo todos os meus desalinhos tivessem sumido, os problemas, as dúvidas. Em um milissegundo, só ele.
Eu sabia mais ou menos como o amor funcionava. Deveria sentir as mãos molhadas de suor e o coração palpitando. Mas com ele tudo foi diferente. Entre nós, as coisas nunca foram urgentes. E era o que mais me assustava. Toda aquela calmaria que eu sentia cada vez que o via, um sorriso leve e os olhos brilhantes. E todas elas me remetiam à primeira vez, num restaurante, à meia luz.
A minha vida, porém, não é um romance. E se um dia eu talvez tivesse chegado perto disso, tinha sido com ele. Mesmo sabendo toda a extensão da dor que eu sentiria quando ele foi embora, não mudaria nada, nem mesmo um detalhe. Ou mudaria, o ponto crucial que mudou tudo. Só que ainda não estamos lá. Não ainda, não sem conhecer toda a história.

Capítulo Único

|| Julho, 2008 ||

Era uma noite de verão como qualquer outra.
Quer dizer, não como qualquer outra. Eu tinha um compromisso bastante peculiar. Polly, minha melhor amiga, estava completamente caidinha por Scott Luther, um rapaz que ela conhecera no trabalho e depois de meses com várias insinuações (sutis, ou pelo menos ela queria acreditar que sim) de que estava interessada, ele finalmente se tocou. Ela parecia que ia explodir de felicidade quando me contou, então como eu poderia negar o pedido para a acompanhar?
E aqui estava eu, dentro do meu carro, verificando o batom vermelho nos meus lábios uma última vez. Era um restaurante simples, as paredes em um tom escuro, mesas circulares com panos de mesa listrados, as mesmas cores que podiam ser vistas no letreiro do lado de fora. Hannah’s era o lugar onde todos os pombinhos da cidade iam se encontrar, o que me fez pensar mais uma vez que eu não deveria estar ali, segurando vela para um casal que nem estava formado, que, por sinal, não tinham chegado também.
Escolhi uma mesa no fundo, um garçom se dispondo quase que de forma instantânea para me atender. Fazia sentido a quantidade de comentários positivos que o lugar tinha. Em questão de minutos, eu tinha uma gin tônica na minha frente com uma fatia fina de limão adornando o copo. Sorri grata para o rapaz e ele desapareceu, deixando-me sozinha com a minha bebida.
Nunca tinha sido convidada para vir aqui antes, não por qualquer um dos rapazes com quem já tinha saído. Eu não precisava de ninguém para ir a um restaurante ou mesmo esperar ser convidada, a realidade é que eu nunca tinha tido um relacionamento sério o suficiente para o fazer.
Suspirei, brincando com o meu canudo por um momento, olhando para o relógio no meu pulso mais uma vez. Polly sempre chegava atrasada nos lugares para adicionar um ar de drama na entrada, só que hoje ela estava se superando. Tudo bem que eu tinha chegado ligeiramente mais cedo, só que já tinham se passado dez minutos do horário que nós marcamos. Ela sabia perfeitamente que eu odiava quando ela demorava demais.
Estava prestes a ligar para ela quando o vi entrar. Com jeans escuros e Nikes, ele era o homem mais bonito que eu já tinha visto na minha vida: a barba por fazer, os cabelos jogados sem preocupação para o lado, e, claro, as covinhas. Eu tinha certeza absoluta de que aquele sorriso conseguiria iluminar uma cidade inteira e… Minha nossa, desde quando eu falo assim de alguém?
Mesmo se tratando de uma situação embaraçosa, não conseguia desviar o olhar. Uma faísca de curiosidade me deixando vidrada. Então ele olhou em minha direção e eu soube, num instante, que tinha de o conhecer.
E eu teria ido na direção dele, se ele já não estivesse em curso para a minha mesa. Minhas mãos tremeram em antecipação. O perfume dele era forte, amadeirado, e eu consegui senti-lo quando ele estava a meros passos de mim.
"?" Como era óbvio, ele tinha uma voz grave, intoxicante até. O sotaque escorregava como mel em panquecas quentes. "É você, não é? A Polly me disse que eu ia te encontrar aqui."
Confusão me atingiu. Eu fiquei sem palavras por um breve momento e certamente nesse meio tempo ele deve ter pensado que eu era maluca.
“Você não é a .” Ele murmurou então, aqueles olhos lindos arregalados. “Droga. Uh, desculpa então.”
“Espera!” Disse num rompante, alto o suficiente para todas as pessoas no restaurante olharem para mim. “Eu sou a sim. É só que a Polly não me avisou nada disso. Só estou surpresa.”
O homem estendeu uma mão em minha direção, um sorriso pintado. Não, não, esculpido. Tinha de investigar se ele não era talvez uma estátua de mármore que ganhara vida da noite para o dia. Ri também, estendendo a minha mão.
.”
A mão dele era quente, consideravelmente maior que a minha. Não era uma surpresa quando, de pé ao seu lado, acrescida de saltos altos vermelhos, ele ainda era alto o suficiente para eu ter de olhar para cima enquanto falávamos.
Então a noite se transformou em uma daquelas noites. Aquelas que parecem durar para sempre, que você conversa e conversa e conversa, mas o assunto não acaba.
Descobri que a Polly nunca teve a intenção de me fazer de vela, mas sim servir de "distração" para o primo inglês do Scott que estava no país para fazer uma visita. Claro que não usou essas palavras, mas era fácil de perceber a intenção da minha melhor amiga enquanto ele falava que tinha pensado ser uma enorme gentileza da minha parte me oferecer para fazê-lo companhia por uma noite. Nunca imaginou que tudo tinha sido orquestrado pela namorada do primo.
Nós continuamos bebendo, ele gostava bastante de uísque e até me encorajou a experimentar, o gosto amargo na minha língua trouxe uma careta, e a bebida descia quente pela garganta. Não foi uma das minhas melhores experiências, e riu abertamente das expressões que fiz.
Deveria ser pouco mais de meia noite quando os garçons nos expulsaram do lugar. Nós dois estávamos altos, gargalhando em êxtase, andando trôpegos pelas ruas vazias. Era óbvio que nenhum de nós estava em condições de dirigir, então procurei dentro da minha bolsa pelo o meu celular cinza, com esperança de ligar para alguém vir nos pegar. Só que ele não estava lá, e não obteve sucesso em falar com o primo.
Sussurrei, alguns passos adiante, que meu apartamento não era muito longe dali. Uns vinte minutos andando. Ele concordou. Acho que nós estávamos bêbados demais para ligar. Eu sentia pequenos beliscões em minha pele, o frio da noite demasiado para o vestido de verão branco, com pequenas flores vermelhas bordadas no tecido, que tinha escolhido para sair.
Esses arrepios não eram nada comparados ao que eu senti quando ele tocou a minha mão, entrelaçando os nossos dedos. Um suspiro escapou e olhei de lado para ele. tinha os cabelos loiros desgrenhados, mas o sorriso de menino ainda estava lá. Ele tinha mesmo uma cara de menino danado, que gosta de aprontar. E por estranho que pareça, isso me fazia gostar ainda mais dele.
Meu apartamento não era lá grandes coisas, ser professora de educação infantil não era exatamente uma fonte de renda que me permitia esbanjar. Ainda mais vivendo próximo de Nova York, onde tudo tinha preços mais elevados. De qualquer forma, eu tinha transformado o lugar no meu cantinho, com paredes cor de lavanda, e quadros de barquinhos flutuando no mar, mesmo a mobília, caramelo, complementava o lugar. Não era grande, mas certamente era o meu lar.
não se importou com o tamanho. Ou com os meus tênis espalhados e as calças jeans jogadas no chão. Não tinha quarto de hóspedes, como é claro, e eu não iria deixar ele dormir no meu sofá de dois lugares. Foi então que a minha noite acabou com um homem desconhecido deitado do meu lado, os Nikes jogados num canto, o suéter pendurado na minha porta e os jeans no sofá.
“Eu nunca fiz isso antes.” Sussurrei.
“O quê?” Ele perguntou, a voz baixa e mais grave do que nunca. “Dormiu com um homem do teu lado?”
Ri, virando-me para o lado dele, observando por um segundo aquela imensidão .
“Trazer um estranho para minha casa e deixar ele dormir na minha cama.”
“Você me conhece. , lembra? Ou já me esqueceu tão rápido?”
Empurrei-o para o lado, rolando os olhos e balançando a cabeça. Mal pude assimilar quando ele disse que ia arranjar uma maneira de eu nunca o esquecer, então os lábios estavam nos meus. Um beijo lento, as mãos dele apertando o tecido da minha camisola enquanto eu puxava o cabelo macio dele.
Entre arfadas e sons baixos, ele tornou-se a primeira vez que eu tinha feito aquilo. Com um estranho, alguém que me trazia tantos conflitos internos. E eu não tinha certeza de nada na minha vida, nem o que aconteceria daqui pra frente, mas estava segura de que, não importava quanto tempo passasse, ou quem aparecesse na minha vida no futuro, nunca ia esquecê-lo.

|| Julho, 2010 ||

Não tinha sequer uma nuvem no céu, a areia branca da praia reluzindo sob o sol que brilhava com fúria. Próximas do mar, onde ondas baixinhas quebravam, várias crianças estavam brincando animadas, gritinhos de satisfação e risadas gostosas. Eu adorava assistir eles brincando. Adorava crianças no geral, não era mesmo nenhuma surpresa que acabei sendo professora de montes deles.
Saindo da água, com uma prancha de surf debaixo de braço e a roupa de borracha que ele usava apertada o suficiente para marcar todos os músculos do corpo dele, eu não conseguia parar de pensar em como eu tinha feito para tirar do mercado o homem mais lindo do mundo. E não era porque ele era meu namorado que eu o achava lindo, bastava olhar para qualquer mulher, e alguns homens também, para perceber que chamava a atenção pela beleza aparente.
Muito mais do que isso, a personalidade dele era cativante. Era a nossa piada interna de que ele fizera eu me apaixonar na noite em que nos conhecemos. De certa forma, era até verdade, naquela noite eu senti uma porção de sentimentos diferentes.
colocou a prancha na areia, se juntando a mim na toalha colorida em que eu estava deitada com óculos escuros e biquíni. Era bom sentir o calor contra a minha pele, o inverno parecia ter se estendido demais, e eu, particularmente, não era a maior fã da estação. Preferia os dias quentes, , do que os frios, sempre cinzentos.
“Eu vi.” Ele disse, surrupiando a garrafa de água que estava dentro da minha bolsa, tomando um gole.
“Viu o quê?”
“Você olhando para aquelas crianças. Com aquela cara que você fica sempre que aparece uma foto de bebê no seu Facebook.”
Tirei os meus óculos, o encarando com confusão.

“Do que é que você tá falando, ?”
“Ai, .” Ele raramente me chamava pelo meu nome, era sempre um apelidinho estúpido que me fazia sorrir. “Conversa comigo, por favor. E não adianta mentir, porque eu te conheço bem demais.”
Toda aquela conversa estava muito estranha para mim. tinha as pernas cruzadas, o olhar intenso no meu, uma leve ruga entre as sobrancelhas, um ar inquisitivo como se fosse roubar a verdade dos meus lábios. A mesma verdade que eu omitira dele, ou melhor, não tive coragem suficiente de o contar. Era tão dolorido pensar sobre isso que eu raramente me permitia abrir o suficiente para confiar aquele segredo. Mesmo depois de tanto tempo.
Durante os primeiros meses, nós conversamos sobre muitas coisas, era um amor novo, uma página em branco, e existem certas coisas que não se contam. Não no começo. É claro que o meu namorado sabia que eu era louca por crianças, adorava as carinhas redondas, a curiosidade, os olhos investigativos… E que eu queria ser mãe. Isso eu era bem transparente sobre. “No futuro”, lembro de ter dito enquanto guardava um prato no armário. Aquele jantar tinha sido um divisor de águas. Uma conversa, que com apenas sete meses de namoro, me assustou bastante.
Ele não era de uma família grande. Sem irmãos, e os pais tinham se divorciado alguns anos antes. Conseguia reviver a memória daquela tarde, em que tinha aulas para planejar, livros para ler, a tese de mestrado para escrever… interrompeu tudo, com beijos no meu pescoço, depois na minha bochecha, não tinha jeito de me concentrar. A voz rouca no meu ouvido pedindo para conversar, ser claro sobre as coisas que ele pretendia ao me namorar. Foi a primeira vez que dissemos “eu te amo” um para o outro, na mesma tarde onde ele disse que queria tudo comigo: casamento, paternidade, os dois velhinhos em uma casa de praia qualquer.
Todos os meus pensamentos estavam embaçados de medo, inseguranças, mas, por alguma razão, eu acreditei, dei minha mão para ele e finalmente disse as três palavras. O choque nos olhos me fez sorrir, lágrimas escorrendo de felicidade. Nunca pensei que encontraria alguém que iria me fazer sentir daquela forma. Tão intensamente.
E aqui estamos. Com um último segredo para contar. Algo que poderia mudar tudo e deveria ser por isso que eu tinha tanto receio de o contar, de achar que todos os nossos momentos se tornariam pó quando eu o fizesse.
“O que é que você quer saber, ?” Eu tinha um sorriso no meu rosto e tinha me sentado do seu lado, com as pernas abraçadas contra o meu peito. “Acho que não é uma novidade que eu gosto de crianças.”
“Não é.”
Um silêncio caiu sobre nós como véu fino, nos embalando por um momento. Vamos lá, eu precisava de coragem.
“Tá bem, tem algo que você precisa saber.” Ergui os braços, declarando trégua. “Quando eu tinha quinze anos, fui diagnosticada com endometriose e não parece tão sério quanto é. Na época eu nem pensava nisso, mas aos 21, pensei estar grávida. Tinha sido uma noite qualquer, fiquei cheinha de medo.”
“E o que aconteceu?” Ele questionou baixinho, uma mão desenhando formatos aleatórios na minha coxa.
“Eu não estava… E o meu médico me disse, pela primeira vez, que dado o meu quadro atual, era mesmo bem difícil que um dia acontecesse.”
“Engravidar?”
Balancei a cabeça positivamente, chorando antes que eu pudesse evitar, observando as pessoas que caminhavam, distantes, totalmente ignorantes a nós dois. Ele me abraçou, minha bochecha contra a roupa molhada, e deixou que eu desabasse, sem nenhuma palavra de consolo, sem dizer nada, na verdade. Os dedos dele, um pouco úmidos ainda, se perderam nos meus cabelos, acariciando, me confortando.
Depois de alguns minutos, ele ergueu o meu queixo e me deu um beijo cheio de ternura. Muito parecido com o primeiro beijo que trocamos. Um que eu sabia que estava costurado no meu cérebro. Não ia esquecer nunca como me beijava quando queria me deixar feliz. Lento, mordendo meu lábio inferior. Não conseguia querer nada que não fosse aquela boca tão linda.
Eu o olhei, tímida.
“Eu entendo se isso mudar as coisas entre nós. De verdade. Sei quanto você quer ser pai.”
tinha o rosto indecifrável, não conseguia dizer o que ele estava sentindo naquele momento. Estranho, porque normalmente era fácil, meu namorado nunca foi um homem de muitos segredos e eu me senti culpada por ocultar esse fato por tanto tempo.
.” Nossos olhos se encontraram e eu finalmente desvendei o mistério das emoções: só tinha amor. Puro. Casto. “Não muda nada. Se não pudermos ter filhos biológicos, a gente adota. Quando o assunto é você… Não tem nada que mude o que eu sinto.”
Respirei, aliviada, sentindo como se um peso tivesse sido retirado das minhas costas. Ele estava sorrindo para mim, as covinhas que davam aquele ar de menino que eu amava tanto… Eu me assustava demais com a intensidade dos meus sentimentos, porque sempre tinha a sensação de que se um dia a gente terminasse, era o tipo de coisa que eu não ia conseguir me recuperar totalmente.

O resto do dia passou rápido. Ele estava de férias, assim como eu, então nós não tivemos pressa em nada. Comemos em um restaurante próximo da praia, a comida era mesmo gostosa naquele lugar, os comentários na página não mentiram. Caminhamos de volta para a areia, estendi minha toalha e puxei um livro da minha bolsa enquanto ele regressava para a água. Às vezes eu achava que ele era um peixe que nasceu no corpo errado, porque adorava surfar. E eu, claro, adorava assistir.
No caminho de volta para casa, ele estava com uma mão no volante e outra no meu joelho. A pele dele tinha adquirido um tom a mais, bastante bronzeado de passar o dia sob o sol escaldante. Vindo de Londres, ele realmente não estava habituado àqueles dias, com tanto calor e céu .
Uma música de fundo, baixinha, e o ar-condicionado no máximo, mais o cansaço, foi o suficiente para que eu cochilasse, sem sonhos e com muita tranquilidade. Estar com ele era seguro, uma respiração profunda depois de passar alguns segundos debaixo d’água, desde o primeiro instante, ele me transformou nessa poça romântica. Aquele tipo de casal que alguém olha e pensa “eca, muito romance”, o tipo de amor que eu nunca achei que merecesse.
Fui acordada com beijos por todo o meu rosto, a barba por fazer adicionando uma leve sensação de calor na minha pele. Fiz uma careta, recusando-me a abrir os olhos, senti a vibração da risada dele e não consegui suprimir um sorriso. Beijei a bochecha dele, o observando se afastar, ainda piscando para voltar ao estado consciente. Ele tinha minha bolsa em um obro e esperava por mim na entrada do meu apartamento, nosso apartamento. Fui até ele, então.
Senti a mais acentuada felicidade ali. Naquele cenário comum. No nosso pequeno apartamento, descalços, tomando uma taça de vinho depois de um dia comprido. E eu sabia que tudo aquilo estava atrelado a ele, não ao lugar onde eu estava, ou o que eu estava fazendo.
Faria de tudo para que aquele estado de euforia durasse para sempre.

|| Julho, 2012 ||

Não estava claro do lado de fora ainda quando eu me levantei, correndo para o banheiro e colocando para fora o pouco do jantar que tinha ficado. Ainda bem que o estava dormindo profundamente, pois de outra maneira ele me arrastaria até o hospital, coisa que não era necessária. Era uma virose, ia passar eventualmente, e não fazia muito tempo, uns dois ou três dias. Tinha tomado alguns antiácidos, mas não conseguia segurá-los no meu estômago por muito tempo.
O chão do banheiro estava gelado quando me sentei, os joelhos encolhidos e apertados contra o meu peito. Com certeza tinha sido aquele jantar, o do nosso aniversário de namoro. Sabia que aquela comida toda sofisticada ia acabar me descendo mal, só que eu perdoava, olhando para o delicado anel que estava no meu dedo anelar direito, lembrando das palavras doces dele.
Um sorriso se esticou. Nunca pensei que ia amar alguém assim.
?” A voz rouca ecoou pelo banheiro, os olhos sonolentos, “Aconteceu alguma coisa?”
“Eh.” Dei de ombros, balançando a cabeça. “Nada sério. Só um enjoo. Aquela comida toda emperiquitada não me desceu bem.”
Uma ruguinha de preocupação se formou entre as sobrancelhas dele, inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse me questionando silenciosamente o porquê eu não tinha o acordado imediatamente. Abanei com a mão, bem mais fraca do que achei estar. Odiava ter problemas de estômago, sempre me deixavam baqueada.
“Vai dormir.” Disse, depois de alguns segundos de silêncio. “Você tem de ir trabalhar em duas horas.”
Ele se sentou do meu lado, encostando a cabeça no meu ombro, uma mão sobre a minha. Beijei o topo da sua cabeça. Realmente não sabia o que tinha feito de tão bom para encontrar alguém como ele. E uma parte de mim esperava que ele se sentisse da mesma forma com que eu me sentia.
“Se você não tivesse problemas com isso.” disse baixinho, os lábios agora pressionados contra a minha pele. “Diria que você estava grávida.”
Empurrei-o delicadamente, fazendo uma careta de confusão. Que tipo de ideia era aquela? É claro que eu, por mais que fosse improvável engravidar, tomava pílula anticoncepcional, não ia arriscar assim. Foi então que eu tive um momento de clareza. Algumas semanas atrás, três ou quatro, não conseguia lembrar direito. Nós dois estávamos na casa de praia dos pais dele.
As minhas memórias daquela noite em particular estavam bastante enevoadas, eu tinha bebido demais. também não tinha estado numa situação melhor que a minha. A gente voltou para o quarto, rindo alto e agindo como completos adolescentes. Ele tirou a minha roupa, que já não era muita, com pressa, atirando as peças para todos os lugares do quarto. Eu fiz o mesmo, apreciando a imagem na minha frente, o corpo bronzeado, a cara linda olhando para mim com tanto desejo.
Nessa noite, nós nos amamos com alguma urgência. Beijos molhados, puxões de cabelo, e eu lembro-me de acordar com algumas marcas espalhadas pelo meu corpo. Claro que eu não tinha ligado muito de não ter tomado o anticoncepcional por um dia ou dois, é óbvio que ele tinha pensado em usar preservativo.
“Naquela noite…” Comecei, incerta de como conduzir o assunto, “Em que a gente tava na casa dos seus pais, você usou camisinha, certo? Porque você sabe que eu tinha esquecido de tomar a pílula quando viajamos.”
“Uh, eu acho que sim?” Ele olhou para mim, confuso. “Lembro muito pouco de tudo que aconteceu. Só que foi muito bom. A noite das cinco vezes.”
Um sorriso malicioso apareceu no rosto dele e eu não consegui suprimir uma risada. Era mesmo um palhaço.
“É sério!”
"Sério, , eu tenho…” Por um breve segundo, meu noivo parou para pensar, a testa franzida. “Tenho 87% de certeza que usei camisinha.”
“Todas as vezes?” sorriu de novo, dessa vez ganhando uma cotovelada nas costelas. “Sabe, se você não tem certeza… Eu posso estar… Quero dizer, não vou alimentar nenhuma esperança, pode não dar em nada mesmo...”
“Vamos numa farmácia, minha ursinha.” Com beijo na minha bochecha, ele me ajudou a ficar de pé, nós dois com pressa para trocar de roupa e sair de casa.

Algumas horas depois, estávamos sentados de novo no chão do nosso banheiro, uma fileira de testes de gravidez na nossa frente. A maioria tinha dado positivo. Eu ainda faria uma ultrassonografia para confirmar, já que esses caseiros podiam falhar, tinha uma dolorosa experiência com isso, mesmo assim, senti um calorzinho no estômago, uma faísca de felicidade.
Nós nem sequer estávamos tentando ter um neném. Tinha sido um deslize. Agora não importava. Meu namorado, noivo, corrigi-me mentalmente, tinha lágrimas escorrendo pelas bochechas, um sorriso largo na cara enquanto me puxava para um abraço. Não estava tão diferente dele, só nós dois sabíamos o quanto aquilo era importante. Parecia até o destino que eu passasse mal justamente depois do nosso noivado, quando a sementinha já estava lá, despercebida por mim. Por ele.

Alguns dias depois, pouco mais de sete horas da manhã, já estava de pé, jogando uma água gelada na cara e escovando os dentes rapidamente. Com uma calça jeans , uma blusa de alcinhas branca e tênis, estava pronta para ir ao consultório médico, sentindo um remexer no meu estômago, enjoo. Não sabia se era o meu sintoma recorrente ou do nervosismo.
demorou um pouco mais para se aprontar, piscando várias vezes enquanto trocava de roupa. Enquanto isso, com minhas mãos tremendo de ansiedade, comecei a mexer nos sacos com grãos de café, tirando um bom bocado para moer e tirar um espresso para ele, que ia dirigir. Normalmente eu também bebia um antes de sair de casa, mas estava muito alerta para tal.
Quase tive um treco de esperar até a manhã seguinte dos testes caseiros para ligar para o consultório do Dr. Millis, meu ginecologista. E pirei mais ainda no momento em que o assistente disse que ele só tinha vaga para quinta-feira, dois dias depois. Então neste momento, meus nervos estavam à flor da pele. Respirei, regressando ao meu quarto, a xícara quente nas minhas mãos, que ele recebeu com um beijinho na ponta do meu nariz em agradecimento.
Nós não conversamos muito no caminho. A mão dele estava na minha coxa, o olhar concentrado na estrada. Nunca ia me cansar do quão bonito ele ficava quando estava assim, dirigindo.
Suspirei, pegando o meu celular para ver se tinha alguma mensagem nova de Agatha, a diretora da escola de educação infantil que eu trabalhava. No dia anterior já tinha avisado que ia precisar me ausentar por razões médicas, e mandei outra para reafirmar que provavelmente só iria poder regressar às atividades na sexta. Também que tinha deixado todas as instruções necessárias para a pessoa que ia me substituir pelo dia.
Também tinha contado as novidades para Polly, que, por sinal, tinha alagado nossa conversa com múltiplas mensagens, perguntando cada detalhe. Sorri, respondendo que já estava a caminho do médico. Ela tinha ido até a minha casa, na noite anterior, já que lhe disse que ia jantar sozinha. Minha amiga achou de muito mau gosto me deixar só enquanto eu estava grávida.
tinha trabalho para fazer naquela noite e só ia chegar depois das onze. Estava até desorientada quando ouvi o trinco abrindo, vestida numa camiseta enorme que pertencia a ele, o cheirinho do perfume gostoso o suficiente para que eu adormecesse. Só que eu tinha o sono leve, qualquer barulhinho e eu estava de pé. Ele me abraçou, a barba me causando arrepios quando ele beijou minha boca, e perguntou por que eu ainda estava acordada, mesmo sabendo a resposta.
Observei-o com atenção, enquanto tirava os tênis , enfiando as meias de qualquer jeito dentro deles. Enquanto desabotoava a calça jeans, jogando-a numa pilha, junto com a camiseta verde. Não era raro eu ficar olhando, apreciando aquela visão. Sorri, deitando-me novamente. Não demorou muito para sentir o peso do corpo dele sobre o meu, quando se meteu entre as minhas pernas, beijando o meu maxilar lentamente.
Não houve urgência. Nada disso. Nós fizemos amor, como há muito tempo não acontecia. É piegas, eu sei, mas era como eu me sentia. Meu pequeno conto de fadas.
O consultório não era nada de outro mundo, as paredes austeras e um cheiro de antisséptico no ar. Uma das secretárias do Dr. Millis me atendeu prontamente, tinha um sorriso acolhedor. Gostava quando a Audrey me atendia.
Ela me conduziu para uma pequena salinha, onde pude trocar minhas roupas por uma espécie de camisola, daquelas que se usa em hospital. Era curioso estar tão… livre, vá. Na sala de exames, tive de esperar alguns momentos. apertava a minha mão, mas estava estranhamente calado.
O médico não demorou muito para chegar. A mesma cara que eu lembrava, talvez alguns cabelos grisalhos a mais.
"Pronta? Vamos ver esse bebê!"
Assenti. Senti o equipamento ser inserido e era ligeiramente desconfortável, por instinto, apertei a mão de .
"Então, doutor?" Minha voz soou baixinha, "Tem um bebê, sim?"
Mais um sorriso.
"Tem sim. Diria que umas sete semanas. Tá vendo esse pontinho aqui?" Gesticulou para a tela. "Esse é o bebê de vocês."
Chorei de novo. Era insuportável estar tão hormonal, mas não consegui aguentar. Não acreditava em destino, ou nada do tipo. Só que nesse momento, quando olhei para aquela imensidão que me encarava brilhante, os olhos mais bonitos do mundo, pareceu muito que era.

|| Julho, 2014 ||

Ao lembrar do momento em que descobri sobre o meu anjinho, conseguia sentir o gosto da felicidade, todas as lágrimas salgadas, as comemorações que vieram depois. O bom e o ruim. Só que, por uma ironia, não durou. E doeu muito, como se aquela perda tivesse feito um buraco dentro de mim, um vazio inexplicável para qualquer um.
Quando completei sete meses, recebi a pior notícia. As razões não eram mais importantes agora, tanto tempo depois, por mais que eu lembrasse de cada detalhe de forma vívida. A minha despedida do meu pacotinho, do meu menininho, que não teve chance de viver. As lágrimas enchiam os meus olhos.
, cheguei,” Ouvi a voz de vir da porta frente, “Onde você está?”
Desde o acontecimento, as coisas não foram as mesmas. Nós dois ficamos de luto no começo, abraçados dias a fio - era como se uma culpa nos unisse, não apenas a falta que nós sentíamos do serzinho que passamos vários dias esperando, almejando pela presença. Porém, como é óbvio, as coisas começaram a melhorar. Para ele. E eu não o culpava. A vida tinha que seguir em frente.
“No quarto.” Me forcei a responder, tentando enxugar ao máximo o meu rosto.
Não era fácil olhar no rosto da pessoa que você mais amava no mundo e perceber a distância. E o pior de tudo era saber que aquilo era culpa sua.
Ri amargamente, ficando de pé e finalmente decidindo que iria tomar um banho. Tinha passado a tarde inteira entre tomar xícaras de café e tentar escrever a minha tese de doutorado, me encorajou a buscar o título depois de uma das nossas discussões, que acabou com ele dizendo que eu estava com muito tempo livre. Era a verdade, parecia que eu estava sempre tentando atacar ele, mesmo quando não tinha a intenção.
Nunca fui boa em deixar as coisas em paz.
Nós fizemos as pazes, alguns momentos depois, e ele sugeriu que talvez eu devesse ocupar esse tempo com outras atividades. “Talvez aquele doutorado que você sempre quis fazer”, a voz rouca dele sugeriu, a mão esfregando as minhas costas nuas com afeto. E eu concordei que era uma boa ideia. No princípio, até as nossas discussões, que depois da perda do nosso filho se tornaram mais frequentes, diminuíram.
Só que a vida não era tão fácil assim.
Joguei o meu vestidinho de verão para um canto, tirando a calcinha e o sutiã em seguida. A toalha branca que eu normalmente utilizava estava dobrada cuidadosamente dentro do guarda-roupa, e o tecido era macio sob os meus dedos. Um banho seria bom para esquecer as memórias que insistiam em me perseguir.
Já no banheiro, liguei o chuveiro, deixando a água esquentar por alguns minutos, aproveitando para prender o meu cabelo, não tinha vontade nenhuma de o lavar. Estava tão entretida nos pequenos detalhes que nem percebi quando meu noivo entrou, a camisa branca de botões aberta e um sorriso cansado no rosto. Quis beijá-lo naquele instante, sussurrar que nós dois íamos conseguir passar por toda aquela maré de má sorte.
Suspirei.
“Posso tomar banho contigo?” Ele questionou, as mãos em meus ombros enquanto pressionava os lábios contra a minha bochecha. Assenti, balançando a cabeça e começando a limpar meu rosto. “Estou morto, hoje o Júnior decidiu não vir trabalhar e tive que fazer um malabarismo para dividir as tarefas entre os outros membros da equipe… Você não está me ouvindo, né?”
“Ãn?” Olhei para o reflexo. “Desculpa, , minha cabeça tá em outro lugar.”
“Imaginei.” A voz dele tinha um quê de amargura. “Hoje faz dois anos, não é?”
“Não quero falar sobre isso.”
“O seu problema é esse, , você nunca quer falar sobre isso.”
… Não vamos mais discutir sobre isso. Já entendi que, para você, esquecer do nosso filho foi algo fácil-”
“Fácil?” Os olhos que eu era completamente apaixonada se arregalaram, raiva transbordando deles. “Se você acha que tem um dia, sequer um, que eu esqueça daquela tarde, você está completamente errada. Não é porque eu escolhi não me afogar no luto como você, que eu não sofra.”
“Eu? Me afogar no luto? Não foi você que teve de passar por um parto, sentir todas aquelas dores, chorar, para no fim ter de segurar nos braços um bebê que tive de enterrar. Não é justo. Nada disso é justo.”
As lágrimas agora escorriam torrencialmente pelo meu rosto e eu me virei para ele, encarando-o e sentindo todo o ressentimento que tinha ali. Soube, pela primeira vez, naquele instante, que as coisas entre nós nunca mais seriam as mesmas. Eu era profissional na arte de destruir as coisas que eu amava e era por isso que tinha de ser eu a tomar a decisão que mudaria as nossas vidas para sempre. Todos os momentos que se seguiram até ali, todos eles eu sabia que ia guardar para sempre.
“Não é mesmo justo.” disse por fim. “, por favor, não quero mais brigar com você. Nós vamos nos casar em alguns meses… Não podemos começar nossa vida assim.”
“Não vamos…” Solucei e ele me beijou, pedindo, quieto, que não falasse bobagens. “, meu amor, você sabe que eu vou te amar pra sempre, hmm?”
“Eu também.” Mais um beijo, desesperado. “Para sempre. Você é o amor da minha vida.”
Pela primeira vez, também, soube que não ia ser suficiente toda a imensidão do meu sentimento por ele. Amor nem sempre é o alicerce para uma relação. E por mais que me doesse, eu tinha de fazer a escolha certa. Por nós dois, mesmo que fosse difícil. Mesmo que fosse amaldiçoar a mim mesma nas semanas seguintes, sentindo um buraco no lugar onde o meu coração habitava.
“A gente precisa terminar, .”

|| Julho, 2020 ||

Estava esperando no ponto de ônibus pelo próximo que passava pelo meu bairro, meu carro tinha ido para o conserto, então eu estava indo e vindo do trabalho para casa assim. Não me incomodava muito, eles eram até confortáveis e era apenas questão de alguns poucos minutos.
Hoje, entretanto, estava insuportável. O calor fazendo com que eu me sentisse sufocada dentro das roupas de trabalho, uma blusa de mangas que estavam enroladas até os cotovelos e uma calça jeans preta. Já eram quase seis horas da tarde, tinha certeza de que a já estava chateando o pai para comer sorvete antes do jantar. Aquela pestinha sabia que ele faria o impossível por ela.
Capturei meu celular do bolso de trás, vendo a nossa foto, nós três parecendo mais felizes do que nunca, no aniversário de dois aninhos da nossa meninota. Ela estava tão linda, de chuquinhas e as bochechas gordinhas meladas de chocolate, não consegui deixar de sorrir, o momento em que segurei o seu corpinho delicado no colo, soube que tudo que eu passei até aquele momento, tudo tinha valido a pena.
“Já estou quase chegando”, digitei rapidamente, guardando o celular novamente e olhando para ver se o ônibus já vinha. Foi então que eu o vi, de costas, os cabelos mais longos, a pele ainda queimada do sol. Só quando o homem virou de costas é que eu percebi que não era . Era apenas alguém que se parecia muito com ele. Ou talvez eu que não tinha feito um trabalho bom o suficiente para deixar o passado onde ele deveria estar.
Depois que a gente terminou, passamos muitos meses sem nos falarmos. Não que hoje, seis anos depois, isso acontecesse. Só tinha notícias através de posts no Instagram ou no Facebook. Era o máximo de contato que eu nos permitia ter. Tinha de frear todos os meus instintos para não mandar uma mensagem, para perguntar se nós poderíamos ter feito algo diferente. Se as coisas hoje seriam distintas. Mas olhando para carinha da minha , eu não queria que fossem. Nem quando via o rosto mais lindo que era o do , o homem que me ajudou a colar os pedacinhos do meu coração.
Imaginava que ele estava feliz também. Tinha se casado uns anos atrás, com uma mulher que parecia muito mais a cara dele do que eu. E soube que tinham tido um filhinho também. Eu estava realmente alegre por isso. Não desejava, nem por um momento, sofrimento para a pessoa que me teve tão profundamente apaixonada. Se eu fosse honesta, uma pequena parte de mim sonhava em ter conduzido as coisas de forma diferente, teria sido bem doce ter construído uma família ao lado dele.
Seria maravilhoso se ele tivesse sido o escolhido. E eu a escolhida.
Meu celular vibrou, uma foto de com uma menina de cabelos embaraçados e a cara toda suja de sorvete. Balancei a cabeça, rindo. Ele era mesmo um irreparável quando se tratava da filha.
O ônibus finalmente deu o ar da graça no horizonte, eu estiquei o braço para indicar que iria entrar. Era hora de ir para casa. Sem mais fantasias, apenas a vida real.



Fim!



Nota da autora: Se vocês chegaram até aqui, parabéns, guerreiras haha. Obrigada por lerem a minha história e espero do fundo do coração que vocês tenham gostado! Xx

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Nota da beta: Nossa, tô sentida, sério hahahah tô aqui com os olhos cheios de lágrimas de ler essa história. Eu amei tanto os dois, era tão intenso, mas fico extremamente feliz que ela tenha terminado muito bem e ele também, é realmente aquela questão de amor não ser tudo, né? Quando é pra ser, é pra ser! Amei demais a história 💙

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