Capítulo Único
Se não me engano fora mesmo Dickens quem dissera, “cada fracasso ensina ao homem algo que ele precisava aprender”. Curioso que era exatamente esta frase que martelava em minha mente naquela manhã chuvosa em Suffolk. Nada indicava que seria uma semana incomum, mas somente ao final dela eu verificaria a ironia da passagem gravada em minha cabeça.
Fora todo o alvoroço no escritório pela edição comemorativa do Jornal em que trabalhava, tudo parecia nos conformes. Como um dos escritores mais antigos dali, eu fora escolhido para produzir a matéria de capa do domingo seguinte. Algo que certamente eu já fizera antes, mas de alguma forma, sendo a matéria que antecedia minha promoção, era especialmente enervante mesmo para um veterano.
Em uma feliz ou infeliz coincidência dependendo do ponto de vista, eu descobrira que tal data comemorativa do Allfolks Journal coincidiria com os dez anos após os roubos e furtos mais famosos do Condado. Quando ali mesmo, ao sul com Essex e à oeste do condado de Cambridgeshire, haviam ocorrido diversos relatos de furtos das mais diferentes escalas. Laurel Parsons, minha chefe, me incentivara a perseguir tal tema e fora nele que baseara-me para escrever até a data de entrega.
- Bom dia, Clyde. - Cantarolou Briggitta, trazendo-me um café forte e direto ao ponto, assim como gosto de tudo.
- Bom dia. - Repliquei, fazendo uma careta ao queimar minha língua com o líquido quente que me acordaria para mais um dia no ofício.
- Clyde, já está pronta a estória sobre a inauguração do novo Boticário?
- Sim, Ulrich, já mandei para revisão.
- Colabora comigo na matéria de saúde da semana, Clyde?
- Cheque com Briggita minha agenda, Carson, se conseguir a peripécia de encontrar um único dia vazio esta semana me diga. - Brinquei, respondendo a todos meus colegas com a agilidade de costume, sem desfocar da tarefa que estava a minha frente.
- Reunião com a Senhora Parsons agora, chefe. - Murmurou Briggita, passando novamente em minha mesa.
- Refresque minha memória, por favor. - Respondi, franzindo o cenho ainda sem desviar meus olhos da máquina à minha frente.
- Ela havia ficado de aprovar o material para a edição comemorativa. - Replicou, voltando a sua própria mesa.
Assenti, dirigindo-me ao único escritório de todo o recinto que continha uma porta. Respirei fundo e li os dizeres “Laurel S. Parsons, Editora-chefe” gravados em uma placa de metal, antes de dar algumas batidas e entrar em sua sala.
- Bom dia, Clyde. - A mulher acenou, mandando-me sentar com um gesto ligeiro.
- ‘Dia, Parsons. Já teve a oportunidade de aprovar a matéria para os cinquenta anos do Jornal?
- Sim. - Apertou os lábios em um biquinho. - E não considerei dos seus melhores trabalhos. - Suspirou.
- Compreendo, gostaria que eu fizesse algum tipo de ajuste?
- Na verdade, foi o ângulo escolhido que não me agradou, provável que leve um sério trabalho de reescritura.
- Sei. - Engoli em seco, pensando em todo o trabalho já atrasado em minha mesa que se acumularia, pela prioridade daquela matéria a ser refeita.
- Está tudo muito impessoal, entende? Normalmente isso não traz muitos problemas, mas o tema desta edição especial é justamente ficção, Clyde. Usaremos de instrumentos ficcionais para recontar casos controvertidos, teremos diversas colunas caricatas e estórias contadas por testemunhos reais de pessoas, com diferentes ângulos sobre o mesmo crime. Tudo para evidenciar os detalhes que a criatividade humana pode adicionar à não-ficção que possam ser reconduzidos à uma ficção.
- Havia sido mencionado na reunião, mas pensei que a menção ao caráter ficcional que os jornais da época fizeram uso já bastaria para suplantar tais exigências de tema. - Repliquei.
- Não basta. Quero que reescreva dando sua própria visão acerca de tudo. Que use sua criatividade para preencher os buracos do que não sabemos desses crimes. Me dê mais ficção, algo que transmita emoções a nossos leitores, mais envolvente, entende?! E que ao mesmo tempo possam identificar os fatos reais nesse meio, por estarmos a tratar de matérias de casos já muito discutidos.
- Compreendo, Parsons, mas o prazo será para quando, se neste domingo já teremos de realizar a distribuição?
- Tem até sexta-feira para deixar a nova versão comigo. E sem erros desta vez, ou terei de colocar a matéria substituta do Mark. - Fez uma careta desgostosa.
- Sexta-feira me dá…
- Quatro dias. - Assentiu. - Sinto muito, mas terá de ser desta forma.
- Tudo bem, verei o que posso fazer com estas notas.
- Faça valer, Clyde. Afinal, são suas útlimas semanas aqui...
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- … E não sei se conseguirei fazer o que ela deseja, querida. - Tagarelei, horas mais tarde, recostado à lápide de minha antiga esposa.
O cemitério de Suffolk não me era estranho. Ao menos uma vez por semana desde que Bonnie havia morrido, eu o visitava. Somente não trazia nossa filha, Brianna, por ainda ser demasiado jovem. De certa forma, também um pouco deprimente, por mais que eu tentasse fazer com que não o fosse. Fazia questão de sempre contar-lhe pequenas histórias de tom bem humorado sobre sua mãe e quanto ela a amava.
- Esta semana Bree arrumou a maior confusão na festinha de aniversário da vizinha. Tudo porque vira o pequeno Timmie sendo castigado por comer todos os quitutes. Sabe como nossa filha é defensora dos oprimidos. Correu para defendê-lo e de quebra ainda conseguiu deixar aos Montgomery’s insultados. Você ficaria orgulhosa. - Pronunciei com um amplo sorriso, elevando-me da grama. - Até semana que vem, carinho. - Despedi-me, depositando as flores que trouxera onde antes repousava e caminhando para casa.
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- Princesa? Alba? Cheguei! - Berrei, dramaticamente, ao abrir a porta de casa no final daquele dia.
- Papai! Papai! - Ouvi com uma pontada em meu coração, agachado-me para receber em meus braços meu pequeno furacão de cachinhos morenos.
- Princesinha Bree. - Cumprimentei, beijando a testa da pequena e pegando-a em meu colo. - Como foi seu dia?
- Bom, papai! Alba levou prô parque!
- Jura, filha?
- Sim! A Julia foi, o Danny foi, todo mundo, papai!
- Que bagunça! E a senhorita já tomou banho depois desse dia de pestinha?
- Já sim, senhor Clyde. - Disse Alba, materializando-se do cômodo adjacente. - E não jantou direito, então não acredite na chantagem desta aí por sorvete. - Piscou para mim, com um olhar zombeteiro.
- Eu estou mesmo enrolado ao redor do pequeno dedinho dela, não estou? - Brinquei, soltando minha princesa ao chegarmos a seu quarto.
- Nem me diga. - Riu, buscando sua bolsa da cadeira de balanço e prendendo seu cabelo. - Até amanhã, vocês dois. - Despediu-se, fechando a porta atrás de si.
- O que faríamos sem a ajuda da Alba? - Perguntei retoricamente, mas recebendo resposta de minha filha.
- Nada, papai. - Deitou-se em sua caminha, com os olhos cansados.
- Está certa. - Sorri, cobrindo-a. - Boa noite, então, pequena.
- História! - Berrou, quando fiz menção de ir para meu próprio quarto.
- Quase escapei desta vez. - Sussurrei, mas feliz com aquele momento que se repetia toda noite.
- Qual vai querer hoje? - Indaguei, deitando-me a seu lado na cama.
A face de Brianna se torceu em diferentes expressões enquanto pensava no não tão vasto repertório de livros infantis de sua estante. Torci para que naquela noite ao menos, não tivesse de criar um novo enredo como o tivera de realizar diversas vezes. Estava esgotado daquele dia, já que tivera de adiantar todos os trabalhos da semana para que conseguisse deixar os demais dias livres somente para a edição comemorativa.
- Aquele ali, papai. - Apontou para o mais lido e gasto, fazendo-me suspirar em alívio.
- Os piratas da Ilha Azul. - Pronunciei o título. - Era uma vez… Um pirata chamado Jack. Ele vivia viajando com seus companheiros de ilha em ilha, procurando por ouro e metais preciosos. Um belo dia, Jack encontrou um mapa desenhado em uma caverna. Ambicioso, pensando se tratar de um mapa do tesouro, copiou-o para um pergaminho e pegou um barco sozinho até a ilha que ele indicava. Por desejar todo o suposto tesouro só para si, e ter deixado seus companheiros para trás, Jack quase não conseguiu operar o barco até o porto da Ilha Azul.
- Ele devia dividir com o amigo. - Bree torceu seu narizinho.
- Ao chegar na pequena ilha deserta, com o barco destroçado, percebeu que aquele mapa fora armadilha das sereias para atrair homens cativos. Decidiu-se por resistir às sereias, mas era tarde demais, e foi pego por seu canto sedutor até a costa. Foi então que pouco antes de ser capturado pela Sereia Nadine, ela se apaixonou por Jack. Sua armadilha teve o efeito reverso, fazendo com que ambos fossem expulsos da ilha porque nenhuma outra sereia aceitava a decisão de se amarem. - Pausei, observando os olhos pesados de Brianna cedendo ao cansaço. Desliguei o abajur ao lado da cama, já tendo decorado o final. - E viveram felizes, passeando de ilha a ilha a lutar para que seu amor não fosse nunca mais reprimido. - Terminei, fechando o livro e saindo do quarto.
Caminhei até meu escritório, aprontando meus materiais e meu brandy habitual para escritas da madrugada. Dei as primeiras batidas de texto e suspirei ao ver que meu “e” estava indistinguível de um “o”. Já sabendo do que se tratava, abri a gaveta de meu escaninho buscando a escova de cerdas duras. Olhei os tipos de minha máquina de escrever, vendo que haviam acumulado tinta e fibras da fita. Umedeci a escova com querosene e comecei a manutenção habitual. Um pouco de limpeza e os borrões iriam parar de aparecer. Sentei-me novamente em minha cadeira agoniado. Eu tinha de arrumar uma forma de tornar aquela história mais ficcional a partir de fatos já deturpados de várias outras fontes. Como poderia fazer para achar minha própria voz narrativa em uma história contada e recontada ao longo de tantos anos?
Foi então que me atingiu uma ideia, tão rápido que em segundos arregalei os olhos e comecei a bater nas teclas…
Tudo começou com uma mera nota de canto de um jornal regional. Até então, não se sabia de nada em concreto sobre a série de furtos a casas ao sul de Essex. Considerava-se até a possibilidade de constituírem eventos isolados coincidentemente semelhantes. A maior certeza de que se pode ter, é de que ninguém à época, nem mesmo a responsável por todos estes delitos poderia imaginar o que estava por vir. Muito menos a magnitude dos eventos que teriam como epítome, a sepultura de dois jovens no auge de sua fama.
Série de furtos a casas domina Essex. Especula-se a presença de grupo criminoso.
Polícia ainda não possui suspeitos, qualquer informação comparecer à delegacia.
Governo recomenda reforço de trancas e cuidado redobrado com chaves.
“- Isto é uma piada. - Bufou Colin, passando o jornal para o pai e concentrando-se em seu prato.
O mais velho espiou a matéria que seu filho se queixara e abriu um sorriso contido e irônico.
- Somente trogloditas caem neste tipo de batota!
- Bennedict, por favor, não levante a voz à mesa. - Pediu Delphine, a matriarca.
- Os tempos já não são os mesmos. Como que se põe na primeira capa de um jornal uma propaganda destas?
- Pois então, quantos não gastarão em artigos de segurança após um anúncio destes? - Colin balançou a cabeça, trocando um olhar atinado com seu pai. Ambos então tomaram um gole de café e encheram o peito com sua perspicácia autodeclarada.
Foi então que Clyde, o filho mais jovem penetrou o recinto espreguiçando-se. Possuía somente uma calça e suspensórios ao corpo, não se incomodando nem ao menos de vestir uma camisa. Murmurou um genérico bom dia e agarrou um pão antes de voltar para seu quarto e deixar a todos à mesa estupefatos.
- Delphine, seu filho não podia estar menos interessado em fazer parte desta família. - Resmungou Bennedict. - Algum dia destes vou deserdá-lo. - Completou, sem perceber Colin empertigando-se com a possibilidade.
- Querido, aquela... jovem moça… - Pronunciou com cuidado para não soltar insultos. - quebrou o coração dele.
- Molenga… - Tossiu Colin, revirando os olhos.
- Há muitas jovens no condado que são muito mais adequadas para um homem da linhagem de nossa família. Além disso, sofrer por um motivo destes é inadmissível. Faça com que ele mude completamente de atitude até o baile do próximo mês ou perderei de vez minha paciência! - Proferiu com tom fatalista. Colin sorriu por trás da xícara de café e Delphine suspirou, pedindo para retirar-se. Queria muito ajudar a seu filho, mas ele era como ela mesma e não como o pai. Nada o fazia sofrer mais do que problemas do coração e por um amor, faria de tudo.
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Polícia apreende diversos suspeitos da onda de furtos, que agora acredita-se que sejam relacionados.
Todos estão sendo retidos para questionamento.
Será mesmo que o criminoso está entre eles?
- Irá cumprir sua promessa e se comportar?
- Só o faço por você, mãe. - Clyde revirou os olhos, repuxando a gravata italiana ao redor de seu pescoço.
- Oh Clyde, esqueça a moça. - Replicou a Briggita, dando um tapinha na mão do filho e reajustando seu terno para que ficasse impecável. A mulher era demasiado perfeccionista para o gosto de seu filho. - Quem sabe não encontramos uma boa e adequada parceira para você hoje?
- Desista logo, mãe. Não vou arrastar uma interesseira ou mosca morta alienada para o altar. - Bufou, cruzando os braços.
- Você verá, criança. - Suspirou a mais velha desistindo. Apertou seus lábios vermelhos de batom em uma linha fina e olhou-lhe com uma premonição. - Sinto que hoje por algum motivo, muitas coisas irão mudar para você.
- Ainda fixada naquela ciência das estrelas, senhora? - Indagou Colin, passando com uma risada. Seu terno azul escuro fazia seus olhos brilharem em um tom ainda mais ácido que o habitual.
A matriarca somente suspirou e apressou os filhos para o grande salão. Antes de passar pela porta ao ser anunciado, Clyde inspirou fundo em preparação mental para as horas de adulação e puxa saquice que estavam por vir. Mas consolou-se em seu habitual refúgio do open bar.
Apesar de não ter feito os pais passarem vergonha novamente, Clyde era famoso por este tipo de momento, isto não foi o suficiente para seu pai. O filho havia dominado uma espécie de educação indiferente que era venenosa mas velada, beirando os limites da provocação toda vez que abria a boca. Tanto que nenhum convidado o percebera o disparate, exceto seu pai, que o lia como um livro, que para ele na parte cerebral estava em branco.
- Amanhã bem cedo contatarei o advogado. Você está fora de minha herança. - Murmurou o homem em seu ouvido pouco antes de Clyde abandonar a festa. Tropeçava de vez em quando, alcoolizado um pouco além do que devia para a ocasião formal. Passou pelas alas de sua casa até achar seu refúgio preferido. Abriu a porta, estremecendo ao perceber que o ambiente havia sido modificado para servir de guarda roupas e ítens dos visitantes.
- Merda. - Tossiu, indo por entre as baias de casacos até a janela. Sentou-se na beirada com cuidado e observou a quietude do belo jardim cuidado por seu tio. A fonte bem ao centro de um pequeno labirinto era a paixão do homem.
Uma rajada dourada passou na visão periférica de Clyde, fazendo-lhe procurar por sua fonte. Mas tão rápido quanto viera, pareceu esconder-se novamente entre as árvores do jardim. Expirou o ar que prendera, olhando novamente para a lua cheia em contemplação silenciosa.
Não mais do que dez minutos depois, a porta abriu-se e se fechou rapidamente. Clyde escondido detrás de várias baias de roupa não se incomodou em se mexer, franzindo o cenho, porém, ao ouvir um cantarolar. Era um som quase que etéreo. Daqueles capazes de trazer recordações que o homem pensava haver esquecido. Quase salivou ao sentir o gosto de “pain au chocolat” em sua língua. A delícia do doce francês ingerido ao pôr do sol da casa de veraneio da família. A voz de sua própria mãe a niná-lo em seus pesadelos de infância. A rajada de recortes de memórias desordenadas fez com que Clyde congelasse ainda mais de seu esconderijo especial, mas não era mais a lua que mirava, e sim a escuridão do quarto. Sua imobilidade era proporcional a seu momento contemplativo.
A distração foi, contudo, tamanha para que quase não notasse quando a fonte do agradável som entrou em seu campo de visão. Era uma jovem, podia notar mesmo com a parca iluminação e apesar de seu jeito decidido de andar. Algo na postura da tal mulher lembrava a Clyde de atitudes que só presenciara no espírito dos mais experientes.
Ela passou as mãos casaco a casaco, deslocando-se entre as baias abarrotadas pelas vestes dos convidados. Seus dedos tamborilavam como se estivesse a tocar um piano imaginário. O movimento capturou sua atenção assim como tudo que a mullher fizera desde que Clyde pudera ser enlaçado pelo canto de sereia.
Mas o encanto não durou para sempre. Não quando a porta foi aberta com força minutos depois.
- O que faz aqui, senhorita? - Perguntou Hugh, o mordomo.
- Finalmente chegou aqui, senhor! Pensei que teria de procurar minhas vestes por mim mesma! - Reclamou, fazendo um biquinho.
- Peço perdão, senhori… - Começou o homem, corando de vergonha. - Espere aí, estou inteirado de todos os convidados da família Sheerwood. Quem é a senhora?
- Sou … - Começou a falar, porém foi interrompida por um Clyde se materializando instantaneamente a seu lado.
- Esta é Maggie, minha convidada, Hugh. - Franziu o cenho para o mordomo como se estivesse chocado com seu atrevimento. - E não gosto do tom que está se dirigindo à senhorita.
- Senhor Clyde, peço perdão.
- Gostaria de ter uns momentos à sós com ela, estamos tratando de… negócios.
- Isto é certo, senhorita? - O mordomo arregalou os olhos, horrorizado com tal possibilidade.
- Deixe-nos. - A mulher assentiu, inexpressiva.
Clyde acompanhou o mordomo até a porta do recinto e virou-se com uma fachada presunçosa acreditando que iria receber as devidas graças por ter “salvo a donzela em apuros”. Contudo, mal sabia ele que aquela não era nenhuma donzela. Não foi à toa que deu de cara com uma arma assim que pousou seu olhar novamente na intrigante criatura.
- Quem é você?! - Franziu a testa, levantando as mãos ao ar instantaneamente em autopreservação.
- Sou a mulher que você vai obedecer se não quiser um buraco bem no meio da testa. - Replicou, com palavras secas, mas em sua voz afinada.
- E o que a dama deseja? - Clyde abriu um sorriso admirado.
- Me leve até o escritório de seu pai. - Ordenou, resoluta.
- E como pretende fazê-lo? Caminhar pela casa com uma arma apontada para minha cabeça?
- Sou mais criativa que isto, Clyde. - Piscou, entregando a ele um longo e grosso casaco para vestir. A mulher abraçou-lhe pela cintura dentro do casaco, apontando a arma para suas costas por dentro do sobretudo. Genial, já que nenhum dos poucos empregados que por eles passaram lhes dedicaram mais do que um ou outro olhar reprovador pela proximidade tão latente entre os dois.
Logo ambos estavam no escritório o velho patriarca. Há muito que Clyde não punha os pés ali. Como a decepção ambulante para o pai, não haviam motivos que o homem tentasse se envolver nos negócios aos quais não era chamado. Os livros perfeitamente espanados nas prateleiras que cobriam quase toda a parede se acumulavam em uma visão exuberante para qualquer culto.
Clyde observou boquiaberto enquanto a mulher sem mesmo precisar escanear o recinto caminhou diretamente até o cofre mal escondido. Talvez o pai achasse que por sua conexão com o delegado da cidade nunca teriam a audácia de roubá-lo. Ledo engano…
A misteriosa mulher estava em só mais um batente, seu labor se resumia a conhecer bem seus alvos e furtar suas residências. Assim, mais um dia teria o que comer e o que vestir.
Não se considerava nenhuma espécie de Robin Hood, apesar de sempre escolher gente extremamente endinheirada para suas expedições. Ocasionalmente realmente distribuia parte de seus ganhos, mas não por um ânimus donandi meramente. A mulher tinha em si o individualismo da sobrevivência, afinal. Não, ela somente realizava tal pseudoliberalidade no caso de sua arte lhe ter rendido objetos demasiado pessoais, que se vendidos em conjunto denunciariam sua localização aos desnorteados chefes de polícia que a seguiam por tantos anos.
Se deslocou pela costa dos Estados Unidos e agora finalmente chegara a Cambridgeshire. Não precisou de muitas semanas no cogitatio de seu crime, já que o ricaço da vez era um grande de um descuidado. Somente por suas ligações com o delegado Jameson, o qual a mulher já conhecia bem, sendo ele o mais recentemente em sua cola, Bennedict não era cauteloso. Em sua mente ele não precisava ser, já que tinha uma fama de extremamente cruel e vingativo.
Por isso em poucos minutos, a mulher já havia aberto o cofre e socava dinheiro em sua bolsinha de festa e em suas roupas com bolsos estrategicamente escondidos.
- Bem, foi um prazer, Clyde. - Abriu um pequeno sorriso, com certa malícia nos olhos, e guardou sua arma.
- O que te faz pensar que vou deixá-la ir? - Replicou o homem chegando mais perto. A mulher permaneceu com a face inalterada.
- Você sabe o porquê. - Riu, virando o rosto.
Ante a face confusa do homem, ela sentiu que não tinha escolha. Sacou a arma da bolsa com agilidade e apertou o gatilho apontada para Clyde. Ele mal teve tempo de se encolher com a surpresa do barulho seco de um tambor sem balas.
- Por que…?
- Eu o conheço, Clyde. Você é a ovelha negra da família. - Afirmou, suspirando com a lerdeza do homem em acompanhar seu raciocínio. - Você não me impediria de roubar seu pai, o homem que odeia. A arma que trouxe foi mero incentivo moral, mas se quisesse haver me denunciado já o teria feito desde o roupeiro. O mordomo notou algo estranho em mim, assim como você já havia notado que eu ia bater carteiras. Mas não, disse que me conhecia, provando que eu estava certa em minhas averiguações e realmente há algo quebrado em você que quer escapar daqui.
- Quem é você? Por que…
- Por que estou fazendo isso? Vamos lá, Clyde, você sabe que essas não são as perguntas corretas. - Ela piscou para ele, conseguindo enxergar o que os olhos âmbar do rapaz não haviam ainda realizado. Mas em alguns segundos, a face de Clyde sofreu uma completa transformação, a exata que ela sabia que ele teria.
- Eu vou com você. - Clyde afirmou, mirando bem nos olhos da jovem a sua frente. - Essa é minha oportunidade de fugir dessa loucura de vida.
- Finalmente, Clyde. Esta era a pergunta certa.
- Mas eu não estava perguntando. - Cruzou os braços, resoluto.
- Não? - A mulher fez um biquinho, passando pelo homem em direção à porta. - Ah… E me chamo Bonnie. - Disse com um meio sorriso enigmático.
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Polícia é massacrada pela opinião pública após apreender um inocente.
Neste sábado, o chefe da delegacia havia com toda pompa e circunstância, se pronunciado sobre o fim das semanas de terror para as famílias mais influentes do condado. Porém, em uma virada de eventos, desde então mais dois delitos foram denunciados, levando-lhes à brilhante conclusão de que prenderam a pessoa errada.
- Em alguns minutos Harisson deve sair para seu golfe semanal com meu pai. - Clyde comentou, nervosamente olhando pelo retrovisor do carro.
- Você já disse isto. - Disse Bonnie com um meio sorriso, enquanto observava calmamente a paisagem. - Não se preocupe, o nervosismo passa com um ou dois furtos.
- Sinceramente? Não sei se quero que passe. Adrenalina não é o que nos mantém vivos? - Perguntou o homem, checando o tambor de sua arma pela terceira vez desde aquela manhã. Bonnie fizera questão de contar para referências futuras.
- Você não devia ter trazido a arma. - A mulher balançou a cabeça.
- Você trouxe a sua… - Franziu. Ao roubarem seu pai, antes dele largar sua vida para se rebelar contra o sistema ou o que quer que fosse, Clyde lembrou-se de pegar uma última lembrança material do pai. - Afinal, pode ter sido a única coisa útil que meu pai me ensinou. - Deu de ombros.
- Hey, olha lá. - Bonnie chamou atenção para o carro saindo da residência. Ambos baixaram seus rostos quando este passou a seu lado e logo Clyde saiu do carro com a mulher a seu lado em direção aos fundos da residência.
- Hora do show.
Algumas horas depois, o casal degenerado retornou a seu lar, o quarto de hotel da semana, e abriu a custosa garrafa de uísque irlandês que haviam furtado, felizmente, sem precisar fazer recurso de nenhuma coação ou violência. A infância de Clyde fora brincar por aquelas casas supostamente seguras. Ele sabia cada esconderijo e saída secreta daqueles locais.
- Eu tinha reservas quanto a você, mas realmente se provou um ótimo instrumento no campo de batalha, senhor Clyde. - Replicou Bonnie, virando um copo.
- Eu iria atrás de você de qualquer maneira. - O homem falou, esticando sua mão para o rosto dela levemente. - A mulher que me enfeitiçou.
- Talvez fosse mesmo meu plano desde o início. - Piscou enigmática, servindo-lhes mais bebida. - Por que me escolheu no lugar de sua famÍlia, afinal?
- Não foi assim...
- Você estava lá quando disse “Bonnie, vamos roubar todos eles”, não foi?
- Meu pai tem mais do que precisa. - Abanou com a mão. - E conseguiu a custa de muito sofrimento alheio, tenho certeza disso.
- E os amigos dele são o bônus? Só para atingi-lo?
- Cada um daqueles homens faz parte da escória do pior tipo. - O homem fechou a cara, lembrando cenas que presenciara quando criança. Fechou os olhos, engolindo a bebida com amargor. Tudo ficaria no passado.
- Uh, um ladrão com senso moral. Onde é que já ouvi esta história?
- Não vou tentar me justificar. Ninguém é perfeito. - Riu, olhando para a mulher ao sentir suas mãos por seus braços.
- Quer dançar, meu Hobbin Hood? - Perguntou, estendendo a mão a ele.
- Está tentando me seduzir, senhorita Bonnie?
- De maneira alguma… - Mordeu o lábio, aproximando-se do homem.
- O que estou fazendo com você?
- Aprendendo a viver, Clyde. A definir sua vida pelos próprios termos pela primeira vez.
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Matéria completa detalha quem é o casal de que se deve temer.
Polícia oferece recompensa para a entrega de Clyde e Bonnie.
- Onde está? Clyde se perguntava, andando por seu antigo quarto da residência com irritação. Com o dinheiro que fizera junto a Bonnie nos últimos meses não precisaria de nada de suas antigas coisas, compradas por seus pais. Não fosse o maldito anel de noivado da família que herdara da avó, uma das únicas pessoas que amava de verdade. A mãe de sua mãe fora quem se assegurara de que fosse criado por ao menos um dos pais decentes.
- Clyde? - Como que convocada, a mãe apareceu na porta do quarto, com uma expressão vazia.
- Mãe. - Suspirou, em choque. Imaginou esta possibilidade, mas o reencontro doera mais do que imaginara.
- Eu sabia que viria atrás disto. - Estendeu para ele a caixinha preta. - Pode chamar de sentimento materno. - Seu olhar faiscou para o garoto.
- Obrigado. - Agradeceu, pegando-a para si e abraçando a mãe por uns segundos dolorosos. - Desculpe, mãe. Por tudo.
- Os joonais mentem. Sei o que você é por dentro, filho. Quando esta loucura acabar, espero que saiba que sempre terá refúgio comigo.
- Não tem volta, mãe. Eu amo a Bonnie. Mas de qualquer jeito, não é para sempre. Nós vamos mudar de vida e…
- Você realmente acredita? - Balançou a cabeça, com lágrimas contidas. - Sempre foi tão crédulo nas pessoas, filho. Aquela mulher é viciada nesse estilo de vida.
- A Bonnie está grávida, mãe. - Suspirou. - Vamos nos casar e viver bem longe daqui. A vida de confusão acaba no momento que uma criança for trazida para a mistura.
- Espero mesmo que esteja certo, filho. - A mulher beijou sua bochecha e o observou partir de sua vida pela segunda e definitiva vez.
A mestre por detrás dos panos, Bonnie Shaffer, contata nossa colunista e libera entrevista completa acerca de seus feitos.
Recebemos também um registro fotográfico da figura desta femme fatale portando uma arma de grosso calibre.
“Bonnie e Clyde não existiriam sem Bonnie.” Afirma a influente mente criminosa.
Clyde olhou para si no espelho com ódio. Não era possível que fora tão idiota. Sua mãe previra tudo aquilo e ele não ousara crer. Pouco tempo depois de se casarem e terem sua filha, Bonnie já estava inquieta acerca de um novo trabalho. “Agora temos a pequena”, dizia. “Precisamos de mais”. Para ela nunca parecia ser o suficiente. Bonnie era uma mulher forte e cheia de vida. Tivera muitas conversas profundas com sua noiva, muitas experiências que não ousaria sonhar. Coisas que pessoas passavam a vida sem testar, ele fizera junto a ela. Mas toda aquele vício em adrenalina e na atenção dos noticiários era mais intensidade do que ele poderia acompanhar.
- Vamos pequena. Preciso deixá-la com a vizinha. - Suspirou o homem, pegando a bebê no colo e envolvendo-a com uma pequena manta. - Tenho que ajudar a mamãe. - Resolveu, beijando a testa da filha e caminhando para a porta. Bonnie esperara que Clyde adormecesse para sumir e pôr seu plano em ação, mas ele a conhecia o suficiente para saber que sua ambição podia colocá-la em problemas. E apesar de tudo o que haviam passado e todas as discussões recentes, ainda a amava como o primeiro dia que ela mudara o curso de sua vida. Não seria agora que a abandonaria.
Neste domingo, os famosos Bonnie e Clyde foram alvejados em uma perseguição policial. Até o momento não se têm informações concretas sobre seus corpos.
Porém, é fato de que o condado aplaude a vitória policial, apesar de reprovar seus métodos. O casal criminoso, modelo para muitos, enfim descansa em paz.
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- Muitas versões já foram escritas da história deste casal tão icônico. Mas o retrato jornalístico nunca poderá ser completamente fiel a complexa personalidade desses personagens que se imaterializaram na história. O que realmente levou Clyde a largar sua família? Seria Bonnie realmente uma fanática por atenção ou somente estava tentando contar ao mundo sua história? Especulei nesta matéria sobre muitos porquês e dei asas a minha imaginação para preencher os buracos dos fatos que hoje, só podem ser escritos por nós através da ficção. Isto somente para provar que apesar de tantos que já tentaram passar estes fatos adiante, nunca chegaremos ao fundo das verdadeiras aventuras macabras de Bonnie e Clyde. - Laurel terminou de ler em voz alta, aplaudindo junto aos demais o sucesso e proporção que o artigo tomara na festa de comemoração da editora.
- Parabéns, Clyde. - Briggita sorriu. - Você fará falta neste jornal.
Agradeci, apertando a mão da mulher e indo fumar na varanda. Logo minha chefe apareceu a meu lado, sacando seu próprio cigarro e olhando-me com certa curiosidade.
- Há algo curioso sobre a propriedade que possuiu ao se apoderar da história, Clyde. Senti-me mais próxima dos criminoso de alguma forma.- Estalou.
- Foi o único olhar que ninguém em todos esses anos tinha se preocupado em retratar.
- Realmente acredita na versão do que escreveu? - Perguntou, com um olhar afiado.
- Talvez. - Repliquei, reprimindo internamente um sorriso ironico e olhando para as estrelas. Eu não somente sabia, mas me recordava de cada detalhe minimamente. Nunca mais vira minha família, ser reconhecido seria demasiado perigoso para minha filha. Mas prometera a mim mesmo nunca esquecer de quem fui. Aquela matéria me dera a oportunidade de desabafar para o mundo sem que este soubesse quem eu era. No escritório somente gargalhavam sobre a coincidência de Clyde escrever sobre a história de Bonnie e Clyde. Mas não existem coincidências, somente há a ilusão que pessoas preferem crer para sentirem-se mais seguras em um mundo tão violento. Em meio a toda confusão tive a oportunidade de descobrir o homem que realmente era, para somente depois investir em tornar-me o homem que queria ser.
FIM
Nota da autora: Olá, pessoal! Espero que tenham curtido este conto, é bem curtinho e feito para talvez provocar mesmo uma reflexão sobre as "verdades" que descobrimos todos os dias através das mídias. Obrigada por terem lido, espero que tenham gostado <3! Por favor, não se esqueçam de deixar seu comentário ali embaixo, seja surtando, elogiando ou fazendo uma crítica construtiva. Amarei ler seus feedbacks e reações. No mais, quem quiser, será super bem-vindo no grupo do face!
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You Give Love A Bad Name (Outros - Shortfic)
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