Capítulo Único

Normalmente as pessoas têm uma ideia errada sobre a morte. Ela não anda por aí usando uma capa negra e carregando uma foice afiada. Ela também não é assustadora, ela é uma gata. E bem, eu acabei me apaixonando por ela.



La vida me empezó a cambiar
La noche que te conocí
Tenía poco que perder
Y la cosa siguió así

16 anos atrás...

Observo a estrada na minha frente. Os carros passam rapidamente, mas as pessoas dentro deles não me veem. Eu não permito.
Estou aqui para um trabalho. Um dos trabalhos mais importantes. Segundo Miguel, essa missão poderia libertar minha alma para retornar ao ciclo terrestre.
Não que eu ansiasse fervorosamente ser humana de novo, mas passar a eternidade auxiliando almas dos mortos também pode se tornar uma atividade entediante.
Olho para o céu e percebo que faltam poucos minutos.
Bato minhas botas no chão para tirar a poeira que se acumulou, mas acabo sujando-as mais ainda. Franzo os lábios, irritada.
Um pássaro perdido voa sob minha cabeça, fugindo na direção oposta. Animais sabem o que eu represento e sempre fogem quando percebem que estou por perto. Alguns humanos também podem sentir minha presença, porém são raros.
Provoco diferentes sentimentos neles, que varia entre tristeza, dor ou medo. Mas nenhum bom. Bem, só se estiver morto. A sensação de estar sendo vigiado pelo seu predador. Pela morte.
Chegou a hora.
Vejo um carro Ford azul elétrico se descobrir na curva, vindo na direção da estrada onde estou esperando.
O carro tenta ultrapassar um ônibus que vem na sua frente, mas o carro vermelho que vem atrás do Ford azul tem a mesma ideia e se choca na traseira do carro azul.
Tudo acontece rapidamente. Uma explosão é ouvida dos pneus traseiros. Com o impacto, o carro azul capota no meio da pista, indo na direção da lateral, a um palmo de onde estou. O acidente pode ser espantoso para olhos humanos, mas não para mim.
Eu ando na direção do Ford azul que agora está parado e destruído, rodeado por uma nuvem de poeira. Encontro um homem e uma mulher desacordados e um bebê. Esse último está chorando assustado.
Eu não espero muito.
A alma da mulher é a primeira a sair do corpo. Percebo que sua alma já estava se preparando há algum tempo, pois ela sorri serenamente para mim quando lhe ofereço a mão.
A mulher não sente mais medo ou receio. Minha aparência a tranquiliza. Ao contrário do que dizem, eu não uso capa preta e nem carrego uma foice comigo, e muito menos pareço uma caveira.
Tenho aparência de uma jovem humana que provoca a sensação de segurança aos mortos. Se eu fosse como me descrevem, ninguém iria querer ir comigo. HÁ.
O homem já está em processo final de desprendimento do corpo. Sua alma finalmente sai e olha para a mulher e para mim, confuso.
– O que está acontecendo? – ele pergunta para ninguém em particular. – Onde está ?
Ele olha para dentro do carro e encontra o seu corpo e o da mulher sem vida. Agora são apenas cascas vazias. Ele parece surpreso por um segundo.
No entanto, isso não impede o homem de procurar o bebê no banco traseiro do carro. Eu me aproximo do bebê e ele se cala. Franzo as sobrancelhas, confusa. Bebês em geral têm mais facilidade em sentir a presença da morte e isso faz com que eles fiquem inquietos. Mas esse, pelo contrário, parece calmo por hora.
– Por favor, não o leve. – O homem pede para mim.
Eu olho para ele, vendo em seu rosto que ele já sabe quem eu sou e qual é o meu propósito.
– Eu não posso. – digo, usando meu poder sobre ele para que fique calmo e aceite o que irá acontecer, mas ele pede novamente.
– Por favor.
Eu olho nos olhos do homem e vejo.
Reconheço imediatamente por que ninguém nunca olhou assim para mim. O amor que ele possui pelo menino e sua força de vontade em me convencer.
Acho que ele era advogado em vida.
Algo dentro de mim esquenta. Eu olho para o bebê, tão calmo e pacífico. Seus olhos brilhantes me encaram de repente e eu não consigo desviar. Existe uma conexão entre nós que eu não consigo explicar o que é. Como um elástico me puxando para ele. Tudo dentro de mim se derrete e eu me sinto viva, se é que eu sei o que significa estar viva.
O bebê fecha os olhos, cansado. Sua alma começa o processo de saída do seu pequeno corpo. Ao longe escuto uma sirene se aproximando. Pela primeira vez em séculos não sei o que fazer. Minha energia está confusa e está absorvendo um pouco da energia desesperadora do homem, que me empurra e me faz tomar uma decisão.
Eu me aproximo do bebê, abrindo a porta amassada do carro e o seguro delicadamente como se ele fosse se desintegrar nos meus braços. Ele abre novamente os olhos e olha diretamente para mim. Uma de suas mãos aponta na direção do meu rosto, querendo tocá-lo, mas não alcança.
Antes que eu pense novamente, beijo sua cabeça e me embriago temporariamente com seu odor suave e cálido.
Com o beijo, selo sua alma para que ela não abandone seu corpo agora.
Eu suspiro, deixando bebê no banco novamente, sentindo um vazio nos meus braços que tento ignorar. Sei que é um erro e que provavelmente seguirei trabalhando como morte por causa dessa infração, mas não me arrependo.
Me viro para as almas. O homem parece realmente agradecido.
– Temos que ir agora. – eu falo para os dois, um pouco seca.
Eu devia levar três almas. Três pessoas estavam marcadas para morrer ali naquele dia. E então eu passaria pelo mesmo ciclo que aquelas almas iriam passar, mas isso não vai acontecer.
Pela primeira vez na minha existência, eu não cumpro com o que me foi ordenado.
Seguro as mãos dos dois para fazer a passagem. Agora é esperar pelas consequências.

Nunca creí que fuera así
¿Cómo te fijaría en mí?
Toda la noche lo pensé
Este es pa’ mí o pa’ más nadie



Eu me sinto ansioso. Normalmente me sinto assim quando estou perto de um tráfico e esperar o ônibus da escola faz essa sensação incômoda aflorar.
Tinha certeza que esse trauma havia surgido por causa do acidente de carro que eu tinha sofrido quando tinha apenas um ano e três meses. Acidente esse que vitimou meus pais. Por pouco eu também não tinha morrido.
Eu tento me focar na conversa dos meus amigos ao meu redor e esquecer minhas mãos frias e suadas dentro do bolso do casaco, mas não consigo.
É doentia a forma que minha mente rebobina as cenas de quase acidentes que já havia sofrido na minha vida.
Minha respiração acelera descompensada e eu sei que estou começando a ter um ataque de pânico. Não é a primeira vez.
Eu me afasto devagar do grupo de estudantes, para que ninguém perceba meu estado e me apoio na vitrine de vidro de uma livraria que está atrás do ponto de ônibus.
Eu fecho os olhos por um momento, tentando me desligar dos sons externos e me concentro apenas na minha respiração.
Quando meus olhos se abrem, fixo o olhar em uma garota que está me encarando de dentro da livraria.
Por um momento eu fico sem reação. Nós continuamos nos fitando daquela maneira estranha e familiar, como se eu já a conhecesse.
A garota tem cabelos cacheados e volumosos e a única cor que ela está vestindo é preto. Provavelmente é a garota mais bonita que eu já tinha visto. Ela está segurando um livro aberto, mas sua atenção está em mim. Eu sinto meu rosto queimar quando constato essa última afirmação e nem percebo quando meus pés se movimentam para dentro da livraria.
Eu solto o ar pela minha boca.
Dizem que não podemos inventar a fisionomia de alguém durante os sonhos. Que provavelmente nós já vimos as pessoas com quem sonhamos em algum lugar.
Se você me perguntasse ontem se eu acreditava nessa teoria, provavelmente eu teria rido na sua cara.
Mas não hoje.
Eu olho para garota que não tinha desviado seus olhos de mim por um minuto.
Algo nela chama a atenção. É como se ela não pertencesse a esse lugar, não se enquadrasse no mundo real.
Apenas nos meus sonhos.
Sim, nos meus sonhos. Há quatro ou cinco anos eu vinha sonhando com aquela garota.
Todas as noites.
Eu me aproximo dela temeroso, mas curioso para saber se aquilo é mesmo real.
Devo parecer um louco, mas ela não foge e nem parece ter receio com a minha aproximação. Faltando dois passos para ficar na sua frente, o medo me domina e eu fico indeciso se devo continuar.
Eu não sei o que estou fazendo, mas acabo seguindo até ela. Isso não é um sonho, o que torna tudo mais assustador.
Ela fecha o livro já esquecido em suas mãos e sorri serenamente para mim.
– Olá, . – ela fala. Sua voz calma faz com que minhas mãos soem mais.
Ela é tão bonita que não parece ser real. Algo nela brilha, uma luz magnética que absorve as cores ao seu redor. Tudo é preto e branco perto dela e ela um eterno arco-íris.
Eu quero puxá-la para meus braços e deslizar minhas mãos em sua pele para provar que não é um sonho. Mas ao invés de fazer o que quero, faço-lhe uma pergunta.
– Como você sabe meu nome? – minha língua molha meus lábios secos.
É uma reação típica do nervosismo que estou sentindo, mas o ato chama a atenção dela, que encara descaradamente minha boca.
Seus olhos escuros mostram um desejo que provavelmente está sendo refletido no meu olhar.
Tudo dentro de mim incendeia. Labaredas de desejo percorrem meu corpo e eu tento me controlar, mas a situação acaba se tornando deliciosamente torturante.
Eu não estou pensando quando me inclino para frente e toco seus lábios com os meus.
Uma explosão formiga em meus lábios e caminha para todo meu corpo, enquanto eu coloco minhas mãos delicadamente em sua cintura e uma de suas mãos segura o meu ombro.
Sua boca se entreabre, um claro convite para que eu possa aprofundar o beijo, que é o que faço.
Eu puxo seu corpo mais para mim, como se isso fosse possível. Os lábios macios dela me beijam de volta, o sabor adocicado me deixa embriagado. A sensação de familiaridade me golpeia tão forte que eu fico sem ar e cambaleio para trás, ainda com um braço em volta da cintura dela.
Eu olho para a garota sem entender, e ela olha para mim com uma expressão triste.
Eu sinto a frieza dominar meu corpo, mas antes de fechar os olhos e a escuridão me levar, ainda escuto sua voz se desculpando.


Fim.



Nota da autora: Meu primeiro ficstape o qual eu finalizei nos quarenta e cinco do segundo tempo huahsauh. Eu perdi as contas das vezes que mudei esse plot, mas o resultado foi esse.
xx

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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