Última atualização: 30/09/2019

Capítulo Único


Gray



Foi como o despertar de um sono profundo. Estar no breu de uma caverna de Platão e finalmente conseguir vislumbrar a realidade. Do profundo abissal em que estava submerso, uma luz emergiu. Um único foco capaz de esclarecer todas as questões existenciais ao mesmo tempo. A ausência de dúvidas foi sufocante. Não estar sujeito ao acaso ou possuir a ansiedade do mistério me atormentando pareceu um castigo. Fora me dada uma segunda chance, ou melhor, uma última e derradeira oportunidade e desperdiçá-la seria meu fim.


Em um piscar estava naquela mesma sala abafada. Era um daqueles dias irritantes. Chovia uma leve mas dispersa e perene chuva, mas a temperatura tropical trazia um bafo quente para qualquer recinto. O pequeno armazém abaixo da minha casa e de não era exceção. Estar de volta em meu corpo foi como aterrisar na terra após experimentar a gravidade da lua.
Novamente podia sentir cada terminação nervosa despontar de minha pele. Meu respirar fundo e engasgar aliviante em oxigênio, o suor em minha testa, o brilho da luz que trazia-me a cor âmbar do vestido da mulher a minha frente. me encarava como se aguardasse uma resposta, e realmente o fazia como recordei-me segundos depois. Não fazia nem mesmo uma hora que eu vivera aquela mesma situação, mas era como se as lembranças povoassem minha mente como um sonho difícil de se recordar em detalhes. Em contraste, a mágoa da briga que eu provocara podia ser sentida na boca de meu estômago, como um lembrete do que podia acontecer se eu repetisse os eventos que ocorreram naquele mesmo dia em outra realidade, mas que haviam sido apagados a borracha para que eu os pudesse refazer.
- E então? - A mulher perguntou, com um tom irritado.
- Eu te amo. - Repliquei sem me conter. - Hmm… - Pigarreei, sem desviar meu olhar de seu confuso encarar. - Se é importante para você que nosso noivado seja o mais longe que cheguemos em nossa relação, eu entendo.
- De verdade? - Arregalou os olhos brilhantes apertando meu braço. - Pensei que fosse reagir mal a isso. É só que depois de tanto tempo bastando para mim mesma, sendo a maior interessada em me fazer feliz, não conseguiria me comprometer com uma pessoa dessa forma.
- Sua mãe chorou quando você anunciou que iria morar comigo e que não tinha planos de casar. - Gargalhei, alisando a face de tentando memorizar cada linha de seu rosto. Desenhado em um formato delicado que aquecia meu peito, preenchendo-me de paixão somente ao visualizá-lo sempre que fechava os olhos.
- E meu pai queria me deserdar. - Ela abriu um meio sorriso torto, que se transmutou em um amargo. - Eu não posso mudar por você, . Não é certo para mim. Ao menos não as grandes coisas que me fazem como sou.
- Agradeço todos os dias por isso, . - Anunciei, balançando a cabeça com a simplicidade do que eu devia ter percebido na primeira vez que eu tivera esta conversa com ela. - Eu a amarei da forma em que me aceitar e pelo tempo que eu tiver a honra de estar a seu lado. - Engoli em seco sabendo o quão breve isto podia ser, independente de nossa vontade.
- Como tive essa sorte? - olhou-me como se tivesse terminado de correr uma maratona e eu fosse a linha de chegada. Não muito diferente de como eu mesmo a observava. - Quer dizer, você acrescenta tanto para mim. Não quero dizer que não tenho planos de passar o resto de minha vida contigo. Somente não quero ter de registrar legalmente que Gray e Reed são casados. Esta instituição é totalmente ultrapassada na minha cabeça. Qual o sentido de obter um papel que certifique nossa união?
- É…
- Opa, eu sei o que esta expressão significa.
- Amor, sei que abomina o vínculo legal e o quanto te parece um elemento de posse. Sendo uma advogada de divórcios não imagino as atrocidades que já tenha visto. Mas e se não tivéssemos uma cerimônia tradicional?
- O que quer dizer?
- O que me importa é celebrar nosso amor. É dizer para cada pessoa que conhecemos que você é a pessoa que me faz acordar com um sorriso no rosto. O objetivo não é mostrar que “pertencemos um ao outro” ou qualquer delirar possessivo.
- Mostrar que você me faz feliz nos dias tristes, que me deixa post-its para que eu ainda sinta sua presença quando não está lá. E ainda sim respeita meu espaço quando só quero um dia para mim. - avançou para mais perto sem quebrar a intensidade de nosso encarar.
- Reed. - Pronunciei, aproximando-me de seu ouvido. - Você aceitaria ter uma festa de não-casamento comigo?
- Gray… - Inspirou fundo em suspense, dissipando o véu de nervosismo que nos encobria. - Seria uma honra. - Sorriu a mulher, beijando-me e abraçando-me forte.
Senti um aperto no peito, uma sensação que foi tomando meu corpo como se estivesse sem ar. Minha pele arrepiou-se de forma quase irreconhecível a princípio. Mas logo entendi o que significava aquilo. Era esperança. Uma paz interna que me lançava direto para a incerteza mais sombria. Se nossa discussão não ocorrera, se eu encontrara uma forma de atender às expectativas de mim e minha noiva, será que estava fadado a terminar o dia da mesma maneira? Só havia uma forma de descobrir.
- Afinal, já escolheu o vinho que iremos abrir? - Perguntei, olhando a pequena adega a nossa volta.
- Só quero tinto. Pegue algum qualquer para levarmos para a casa de meus pais.
Inspirei fundo ao ouvi-la novamente dizer as palavras que selariam nosso destino.
- Amor, será que não podemos adiar o jantar para amanhã? Não sei se hoje… É o melhor dia. - Encarei o teto, nervosamente.
- Você está bem, ? Parece pálido… - olhou-me com estranheza.
- Somente estou com dor de cabeça, querida. - Repliquei, suando frio. - Por que não vai somente você hoje e amanhã repetimos a dose?
- Se não se sente bem posso ficar com você, querido. - Afirmou, cerrando o cenho.
- Não! - Rapidamente neguei, balançando a cabeça. - Não. - Repeti suavemente. - Vá se divertir, eu dormirei cedo. - Sorri de lado.
Da primeira vez em que vivenciara aquele dia, eu e tivemos uma grande briga que fez com que ela fosse sozinha para a casa de seus pais. Se ficasse comigo teria o mesmo destino que eu tivera. O mesmo fim. Por isso agora não poderia ser diferente. Você não foi mandado de volta para mudar o fim. Senti um sussurrar em minha mente, como um sopro angelical.


Horas mais tarde desfilava pelo quarto em um vestido de verão, sem pressa alguma apesar do atraso. Observei cada segundo de seu ir e vir, enquanto descansava em nossa cama e mandava mensagens conciliatórias para todos os que já houvesse discutido, mandava lembranças para aqueles que perdera contato e despedidas disfarçadas para os que mais amava. Inspirei fundo olhando para o relógio e preparando-me para cometer um grande mas delicioso erro.
- Querida, por favor, sente aqui comigo um segundo. - Sorri, apalpando o espaço a meu lado na cama.
- Estou atrasada. - Franziu a testa, mas dando de ombros e me encarando com curiosidade.
Peguei sua mão entre as minhas e fechei os olhos tentando recuperar minhas emoções.
- Sabe que eu a amo? Você é a mulher mais linda, teimosa e inteligente que eu já conheci. Se algum dia algo acontecer comigo, não quero que se feche para o mundo.
- Querido, no dia seguinte parti para outra. Está brincando? - Gargalhou, virando o rosto para esconder sua emoção por minha declaração. Sempre fui o coração mole do casal, e ela sempre foi meu cérebro, mantendo-me na linha. Mas sendo sincero, a seu jeito, ela nunca deixara de me demonstrar seus sentimentos. não precisava de palavras.
- Você é mais forte do que algum dia eu poderia ser. - Beijei sua testa, arrepiando-me com as mãos da mulher em minhas costas.
Só de sentir as mãos de através do tecido de meu sweater meu corpo esquentou-se instantaneamente. A cada segundo a ideia de fazer amor por uma última vez parecia menos e menos dolorosa. Se não podia evitar meu fim, me despediria de em grande estilo.
- Uma última vez. - Sussurrei antes de pegá-la em meu colo e abrir as pernas da mulher a minha volta. Beijando-a com a paixão combinada de todos nossos beijos em um só. Como se eu não fosse partir em poucas horas. Como se não fosse a última vez. A ferocidade dos últimos gramas de raiva pelo inevitável saíram de meu corpo com o suor de prazer.




Reed



“Surpresa!” Todos na casa de meus pais berraram, fazendo com que Boone, o filhote do velho cachorro da família se assustasse latindo para longe. Já seu cansado pai, Remy, o labrador, não se perturbou, já acostumado com a bagunça da nossa família. Somente levantou suas orelhas em alerta, de seu local habitual de descanso. Deu uma balançada no rabo, em leve comemoração e voltou a deitar sua cabeça nas patas. Desde que eu saíra de casa, a energia da família baixara de tom drasticamente, mesmo o sentido canino podia captar aquele sentimento tão singular: a saudade.
- Mãe, pensei que tinham prometido não fazer festa de boas-vindas.- Gargalhei com um enorme sorriso, abraçando a matriarca Jane.
- Não olhe para mim, querida, foi tudo culpa de seu pai. - A mais velha deu de ombros, cedendo para que o homem tivesse sua vez amassando-me em seu abraço.
- Você merece, fille. - Gargalhou Jacques. - Não é todo dia que minha filha fica noiva. Não tivemos a oportunidade de comemorar isto ainda. Já tem data?
- Pai… - Suspirei entendendo a indireta. - Depois conversamos sobre isso. O sentiu-se mal hoje, mas amanhã vocês podem jantar lá em casa ou podemos vir e discutimos em privado.
Sob a mira esperançosa de meu pai, então cumprimentei grande parte de minha família e vizinhos, descobrindo que os pais também haviam feito surpresa para eles de meu noivado. Somente quando saí para tomar um ar que o avistei, Patrick Dawson. Sentado na cerca de duas casas vizinhas, estava o homem, com uma expressão confusa destruindo o rótulo de sua cerveja, o tinha o costume de fazer quando estava nervoso, deixando pedacinhos de papel por todo seu antigo apartamento em semanas estressantes da faculdade que havíamos frequentamos juntos.
Foi quando este elevou seu olhar para mim que fiz menção de caminhar até ele. Porém, parei, ao vê-lo pular da cerca e virar as costas caminhando até seu carro. Mandou-se dali em poucos segundos, deixando-me saudosista. Há muito tempo quando nós três, eu, ele e éramos jovens. Quando tudo era simples e sentimentos ainda não haviam entrado na mistura. Não culpava a Patrick pela mágoa que parecia haver represado em minha direção, mas o conhecia melhor do que ninguém. Sabia que se fosse preciso para evitar conflito, ele deixaria de ir ao suposto casamento, que todos acreditavam estar por vir.
Somente mais tarde tive a coragem de perguntar a minha mãe o que durante o resto da festa fizera força para disfarçar que não me incomodara.
- Mãe, vocês chamaram o Patrick?
- Oui, fille! - Papai respondeu, antes que Jane pudesse abrir a boca.
- Chamamos a todos querida, mas ninguém sabia que o motivo era seu noivado.
- Surpresa dupla. - Gargalhou meu pai, puxando levemente a esposa pela cintura e dando-lhe um beijo à testa.
- E vocês em nenhum momento acharam que ele merecia um aviso de que estava vindo para reencontrar a ex namorada que está noiva de seu melhor amigo? - Pronunciei, mas sem agressividade.
- Ah filha, esta velha história? Tenho certeza de que o pequeno Patrick não guarda rancores… Ele foi morar fora e seguir seus próprios sonhos e você e o naturalmente ficaram juntos. A vida segue.
- Mas… ele nunca me ligou… - Murmurei, franzindo a testa. - Pensei… Não sei. Eu só compreendi que estivesse ocupado indo atrás de seu sonho e respeitei o seu espaço.
Jane e Jacques trocaram um olhar conspiratório.
- Inconveniente que foi. - Bufou Jaccques. - Ele iria ser um ótimo genro.
- Credo, pére. Acho que não estava escrito nas estrelas. - Suspirei, recolhendo as últimas louças largadas pela casa. - Mas agora está feito, agradeço todos os dias por , somos muito felizes juntos. Tenho certeza de que podemos ser adultos sobre o assunto e considerar águas passadas.
A volta para casa foi uma caminhada pensativa. Morávamos somente a dois quarteirões de distância, mas meus pais viviam dramatizando sobre quase nunca nos víamos. Por isso não tardei a ver luzes de sirenes de ambulância em frente a minha casa. Comecei a correr com uma sensação ruim percorrendo meu corpo. Congelei já próxima ao veículo ao ver uma maca sendo arrastada com pressa de minha casa.
Senti braços segurando-me para não atrapalhar a entrada na ambulância. Mas não precisava daquela contenção. Não consegui me mover ou respirar a partir do momento que vi a face de inconsciente, com uma expressão pacífica e os lábios azuis.
- … O que? - Olhei para a pessoa que me segurava, confusa.
- Patrick, o que faz aqui? - Berrei, porém saindo somente um ganido.
- mandou-me uma mensagem e como estava por perto vim para podermos conversar. Só que quando cheguei ele estava na varanda desacordado.
- Senhorita… - Chamou o paramédico, que media o pulso de .
- Não. - Suspirei, desmaiando para o escuro confortável da inconsciência.




Gray



Podia ver tudo o que se desenrolava à minha frente. Porém não era bem como enxergar e sim como flutuar novamente fora de meu corpo. Senti uma presença a meu lado e não precisei pronunciar palavras para me comunicar com ele, que me mandara de volta.
- Não consigo entender o objetivo de voltar para ter o mesmo fim. precisava estar em paz comigo para seguir em frente?
- Sim e não. Você que precisava estar em paz com para seguir em frente. - A entidade replicou. - Ela ficará bem, mas se não houvesse feito as pazes com ela, ficaria com negócios inacabados e nunca poderia descansar.
- Tipo os fantasmas de Scrooge? - Pensei alto, sentindo o humor da entidade com meu comentário.
- Não é seu último encontro com , . - Simplesmente recebi como resposta. Foquei nos olhos de e de meu velho amigo uma última vez antes de mergulhar para o nada. Mas isto não era o fim, somente o começo.





Fim.



Nota da autora: Olá pessoal! Espero que tenham gostado do ficstape! Foi puxado para uma vibe mais sad, o que não costumo fazer, mas gostei de mudar um pouco o estilo. Bem, obrigada novamente por terem lido <3! Por favor, não se esqueçam de deixar seu comentário ali embaixo, seja surtando, elogiando ou fazendo uma crítica construtiva. Amarei ler seus feedbacks e reações. No mais, quem quiser, será super bem-vindo no grupo do Face ou do Whats!





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