Capítulo Único
- Peter Pan
Algumas noites eram piores que as outras.
Algumas noites eram mais frias sem isso ter absolutamente nada a ver com o que diriam os termômetros na rua.
Algumas noites demandavam um escapismo que superasse os ímpetos mais íntimos da poesia árcade e da romântica também.
Essa definitivamente era uma daquelas noites.
pôs os olhos sobre o letreiro do bar, tendo a impressão quase mórbida que eram as letras luminosas que haviam encontrado-o naquela noite. Apertou o blazer contra o corpo e atravessou a rua, nutrindo um fiapo de autocuidado que torcia para que pudesse comer algo e não só jogar toda a sua piedade por si mesmo em cada gota de álcool.
O ‘Hot Bird’ não estava exatamente lotado, mas comportava uma boa clientela, já tradicional da casa. Cervejas, uísque e rum viajavam sobre as bandejas, mesas e balcões, ocupando os mais variados tipos e comprimentos de copo, com as repetições sendo solicitadas pelos clientes com certa frequência para os garçons.
pediu uma IPA e tentou a sorte ao perguntar o que eles serviam de comida. Surpreendeu-se ao receber como resposta mais do que porções simples de aperitivos e pediu um prato de bife mal passado com fritas e salada da casa. Não queria nutrir altas expectativas já que a comida parecia ser item esquecido do cardápio, mas seu estômago já havia decidido reagir à fome, lembrando-o do quão estúpida havia sido a decisão de adiantar todo o trabalho possível sem se dar uma folga sequer para almoçar.
Não que fosse um motivo de surpresa. Ultimamente, decisões estúpidas pareciam resumir grande parte do que ele vinha fazendo.
O pedido demorou menos do que ele esperava e cheirava bem melhor do que suas expectativas poderiam ter aguardado. Agradeceu o garçom e não demorou a experimentar. A carne era suculenta e macia, as fritas estavam crocantes e a salada acompanhava um molho que basicamente a mudava por completo, trazendo sabores intensos. Ele raspou cada pedaço do prato com gosto, encontrando algo para verdadeiramente valorizar e apreciar naquela noite. Uma das últimas coisas que ele poderia cogitar era realizar uma de suas melhores refeições recentes em um pequeno bar à beira da estrada chamado Hot Bird.
Ergueu o indicador e o dedo médio, sinalizando para o garçom que logo estava em sua mesa.
— Gostaria de mais alguma coisa, senhor?
— Na verdade, eu apenas gostaria de agradecer ao chef pela comida.
O rapaz sorriu educadamente, assentindo.
— Vou avisar que o senhor gostou.
— Eu queria fazer isso pessoalmente, se possível.
Era um hábito que ele havia desenvolvido puramente por conta do pai. Como político, o mais velho sempre havia reforçado a importância de olhar nos olhos de cada pessoa e agradecer pelo seu trabalho, pelo seu esforço, pela sua colaboração. No fundo, sabia que não se tratava de algo cujo cerne dificilmente se estendia o bastante da motivação de cativar os eleitores ao demonstrar, verdadeiramente ou não, o quanto cada um desempenhava um papel importante na sociedade e, por isso, deveria receber o devido valor. copiava a ação pelo simples fato de se sentir bem demonstrando sua gratidão. E por haver algum pedacinho nele que realmente era fascinado por conhecer as pessoas e suas histórias.
— Certo, direi isso - o garçom garantiu. — Só um momento.
Enquanto aguardava, virou o último gole de sua cerveja, posicionando o copo vazio ao lado do prato. Sentiu o celular vibrando no bolso - um novo que o pai lhe dera pelo simples fato de que ele se recusava a trocar o antigo, que mal funcionava - e decidiu ignorá-lo. Outra coisa que havia aprendido era como evitar que os problemas e questões da vida invadissem o momento de outra pessoa ou atitude, tirando-lhe a atenção merecida. Esse hábito, com certeza, não havia sido herdado do pai.
Foi quando o chef finalmente apareceu. E ele descobriu que estava usando o artigo errado desde o princípio.
Com os lábios pintados de batom preto e os cabelos descoloridos presos em um coque no topo da cabeça, ela o fitou como se estivesse prestes a sugar a sua alma.
não fazia o tipo que acreditava em amor, paixão ou qualquer coisa próxima disso à primeira vista. Mas ele acreditava no poder de uma primeira impressão. E aquela havia sido consolidada como um decreto imutável, aguardando apenas a cessão de sua assinatura. Algo nela parecia inevitável.
— Você é a chef? - A pergunta tinha sido feita apenas no intuito de dar início a algum tipo de diálogo, já que ele mal precisava esforçar suas áreas cerebrais para concluir que a resposta seria positiva.
A mulher moveu a cabeça.
— A chef, a gerente, a dona… Pode chamar como quiser.
Ele ergueu as sobrancelhas. Dentre todas as obviedades que ela poderia responder, acompanhada de qualquer grosseria que fosse, por algum motivo, aquela não era a resposta que ele esperava.
— Você é a dona do Hot Bird? Sem ofensas, mas por essa eu não esperava.
Ela soltou uma risada anasalada. Não era a primeira vez que ouvia algo semelhante.
— Posso perguntar o porquê?
— Porque você parece…
— Mulher?
— Nova - ele disse. — Nova demais para ter um bar. Ainda mais um que, com todo o respeito, parece mais velho que você.
Ela sorriu, olhando em volta. Os móveis eram rústicos por uma escolha totalmente proposital, mas a ambientação não enganava ninguém, nem sob o pretexto da arquitetura e da decoração.
— O lugar era do meu pai, mas ele sumiu e eu assumi - ela contou e deu um longo suspiro. — É uma longa história.
— Bom, eu tenho tempo.
— E eu preciso voltar para a cozinha - ela disse, pisoteando em suas esperanças de desenvolver melhor aquela conversa.
— Ah, sim, claro. Desculpa. Por sinal, a sua comida é ótima, eu queria agradecer.
— Agradecemos a preferência - ela respondeu com um sorriso cordial. — O senhor deseja mais alguma coisa?
O vocativo pela primeira vez soou estranho, de alguma forma errado, mesmo que fosse fruto da mais pura educação.
— Posso perguntar seu nome?
— .
— Muito prazer, . Eu sou o .
— O prazer é meu - ela respondeu porque parecia o certo a se fazer.
Ele pagou pelo consumo e deixou uma gorjeta generosa que fez os olhos do garçom brilharem em agradecimento. Deixou o Hot Bird com o estômago cheio, mil ideias na cabeça e a certeza de que precisava voltar àquele lugar.
estava varrendo da entrada do bar a poeira e os pequenos rastros de terra de um tempo seco que clamava por chuva há certo tempo. Os cabelos soltos caíam sobre os ombros e os olhos, misturando-se às mangas do cardigan bege surrado, com pequenos detalhes em azul marinho que ela constantemente chegava a se esquecer que sequer existiam.
— Não estamos abertos - ela disse, observando enquanto estacionava o carro e se aproximava do local a passos largos.
— Eu sei - ele concordou. — O que é bom, porque significa que agora você tem tempo para me contar aquela longa história.
Ela riu.
— Você tem alguma noção do quão bizarro parece quando simplesmente surge no local de trabalho de alguém que você nem conhece, fora de hora, pedindo para ouvir alguma história aleatória?
Ele acabou concordando.
— Quando você coloca nessas palavras, parece bem estranho mesmo.
— Pois é. Não consigo mesmo entender seu interesse a não ser que você seja algum tipo de maníaco.
respirou fundo, lembrando-se em flashes do que ele havia visto na noite anterior e preferido, sem hesitar por um segundo sequer, guardar silenciosamente para si.
— Você falou que seu pai sumiu.
— Como grande parte deles faz por aí - ela comentou simplesmente, sabendo que sua história, infelizmente, não era uma raridade ao se observar as estatísticas gerais.
— , eu vi seu braço - ele admitiu, sentindo o ambiente pesando subitamente, como se o ar tivesse adquirido algumas toneladas extras a troco de nada.
Ela apertou os braços ao redor do corpo, como se realmente acreditasse que a reação defensiva fosse capaz de protegê-la de alguma forma. Usou as pontas dos dedos para segurar as extremidades das mangas, assegurando-se que a pele dos membros superiores estivesse completamente coberta.
— Não precisa falar sobre isso se não quiser - ele voltou a falar, ao perceber que ela não parecia disposta a fazê-lo. — Mas eu sei o que é viver com um pai violento. E eu me preocupei. Eu queria ser uma pessoa menos estranha e intrometida e simplesmente dar meia volta e não me preocupar com isso, mas eu pensei nisso a noite toda. Eu não consegui evitar voltar e ver se você estava bem.
não sabia exatamente em que ponto dos últimos minutos ela havia soltado os braços novamente, permitindo-se parecer minimamente mais aberta.
— Está tudo bem. Como eu disse, ele foi embora.
assentiu lentamente.
— De repente?
Sua inspiração foi lenta e profunda, como se estivesse travando um duelo interno para decidir como proceder a seguir. E sua resolução era basicamente a pior de todas. A falta do que fazer ainda seria seu fim.
— Eu ia preparar alguma coisa para almoçar. Quer entrar?
Ela quase ouvia a voz antiga da mãe, cujo verdadeiro timbre praticamente havia se apagado por completo de sua mente àquela altura, alertando-a sobre os estranhos, sobre a ingenuidade daquela fase e os perigos da juventude que pouco sabia das coisas. Mas, dentro dos limites falíveis de qualquer ser humano, ela acreditava ter amadurecido o suficiente - e muitas vezes à força pela mais pura necessidade - para saber mais do que deveria.
— Não quero incomodar - disse.
— Não foi isso que você pensou quando decidiu aparecer aqui de repente - ela pontuou, mantendo um sorriso que minimizava o quão grosseira aquela fala poderia ter parecido. De certa forma, havia uma faísca intencional disso.
poderia ter se sentido ofendido, por mais que soubesse que ela não estava dizendo nenhuma mentira. Poderia ter levado aquelas palavras para o pior lado possível. Mas ele riu.
— Se você insiste.
revirou os olhos comicamente, adentrando o Hot Bird com o rapaz em seu encalço. a seguiu até a cozinha, olhando em volta com atenção a cada detalhe. Demorou pouco para que ela tivesse uma panela com água fervendo e outra com um molho de tomate sendo encorpado enquanto ela adicionava pequenas folhas absurdamente aromáticas que já haviam enchido todo o ambiente.
puxou uma carreira e ficou observando-a, rindo sozinho ao perceber que só conseguia parecer ainda mais como um stalker problemático naquela situação. Então decidiu puxar assunto.
— Você aprendeu a cozinhar há bastante tempo?
— Era uma coisa minha e da minha mãe. Ela cozinhava sempre por aqui. Quando eu não estava na escola, vinha para cá. No começo, ela só me deixava jogar os ingredientes na panela para eu achar que estava ajudando em algo e sair falando para todo mundo que eu que tinha cozinhado. - Ela sorriu com a lembrança. — Conforme fui crescendo, ela realmente me deixou fazer algumas coisas e me ensinou a cozinhar. Quando ela faleceu, eu comecei a cozinhar aqui para ajudar. A gente não tinha dinheiro e nem tempo para contratar outra pessoa e pelo menos eu ocupava a minha cabeça com alguma coisa além do luto.
sorriu automaticamente, percebendo naquelas palavras o quão genuíno era aquele amor e também aquela saudade.
— Ela parece ter sido uma mulher incrível.
— A melhor de todas - ela respondeu. E acreditava completamente naquilo. — A morte dela foi um baque enorme para todo mundo.Um infarto era literalmente a última coisa que qualquer um poderia imaginar.
Ela respirou fundo, enquanto colocava sal e o macarrão na água fervida.
— O luto foi doloroso e destrutivo de várias formas para mim, exatamente da forma que eu tinha certeza de que seria. Eu perdi a minha pessoa favorita, meu alicerce, meu cuidado, minha mãe. Mas meu pai desmoronou de vez.
sentiu uma pontada no próprio peito.
— Ele começou a beber algumas doses todos os dias depois de fechar o bar - ela continuou. — Mas é claro que não parou por aí.
Nunca parava.
— Ele passou a ser o maior companheiro dos próprios clientes. Bebia junto com eles enquanto os servia e não parava quando eles iam embora. Depois dormia o dia todo e acordava estressado, descontando tudo em mim. Era um show de horrores - admitiu.
Ela tirou a panela do fogão, virando o conteúdo em um escorredor de plástico vermelho. O vapor subiu como um pequeno gêiser particular.
— E eu rezei por dias para que ele parasse, superasse isso. Implorei de todos os jeitos possíveis para que ele tentasse abandonar o vício. Quando vi que não adiantava pedir por isso, me atrevi a pelo menos orar para que ele não se tornasse violento.
A risada de veio de forma dolorosa, diretamente de algum lugar no fundo de sua garganta.
— Acho que não tinha ninguém lá em cima muito a fim de me ouvir e atender aos meus pedidos. O resultado você já viu.
Ela puxou o cardigan até a altura dos cotovelos, expondo as cicatrizes esparsas e já esbranquiçadas.
— Ele estourou uma garrafa na parede do meu lado na última vez que eu tentei pedir para que ele parasse, que já era o suficiente para aquela noite. Não sei se foi o barulho que o assustou, meu choro assustado ou o conjunto da obra. Ou nada disso, sinceramente eu nunca soube dizer o que se passava pela cabeça dele desde o funeral. A questão é que ele foi embora. Deve ter sido na madrugada depois que eu me tranquei no meu quarto, porque eu só descobri na manhã seguinte. Isso foi há uns três meses, eu acho - Ela deu de ombros. — Ele não vai voltar. Às vezes me pergunto que tipo de filha horrível eu sou por admitir que essa informação me conforta.
— Não acho que isso faça de você uma pessoa ruim - ele comentou. — Provavelmente só alguém com senso de autopreservação.
Ela expirou de uma forma pesada e quase distorcida, enquanto levava os pratos à pequena mesa e lhe entregava os talheres.
— Bom, essa é a história. Eu precisava de alguma renda, então mantive o bar. Sem contar que partia meu coração pensar nos nossos funcionários desempregados, quando sei exatamente como as famílias deles dependem de cada centavo desse dinheiro.
— Viu? Pessoas horríveis não fazem isso.
— Nunca disse que era uma pessoa horrível - ela o corrigiu. — Falei que talvez fosse uma filha horrível. Mas nem nisso eu sei se realmente acredito.
Ele riu, concordando. Ela tinha razão. No fim das contas, fazia, sim, uma grande diferença.
— E você? - o questionou entre uma garfada generosa e outra.
franziu o cenho por um instante.
— O que tem eu?
— Você disse que entendia - ela o lembrou. — Qual é a sua história?
Ele inspirou profundamente, entremeando os próprios dedos como se fossem a coisa mais interessante de todo o universo.
— Meu pai nunca foi exatamente o tipo carinhoso e compreensivo. Ele era bem explosivo, metódico e queria que nós nos comportássemos estritamente dentro dos padrões e expectativas que ele tinha. Por sinal, eram expectativas bem surreais para uma criança de cinco anos.
“O ponto é: qualquer ação que ele considerasse imprópria era repreendida com violência. Ele dizia que sentir o quão errado aquilo era faria aprendermos a não repetir nunca mais.”
— E sua mãe? Se não for demais perguntar.
De alguma forma, não parecia ser demais. Fitar os olhos de , ora escondidos pelos cílios grossos, era ter o conforto e a estranha certeza de que poderia abrir ali mesmo todos os seus medos e inseguranças como se estivesse simplesmente virando a chave certa em um cadeado.
— Ela tentou - ele disse simplesmente, antes de tomar algum fôlego restaurador para cumprir a própria linha de raciocínio. — Nos afastava dele sempre que ele sinalizava estar em um daqueles momentos e estava sempre ouvindo as piores coisas enquanto tentava convencê-lo a procurar ajuda.
ouviu o barulho metálico do garfo batendo agudamente contra a porcelana do prato.
— Ele só se convenceu de que precisava de terapia e qualquer outra coisa quando ela finalmente conseguiu colocar em sua cabeça que aqueles acessos repressivos de raiva não seriam nada bons para a carreira política. Foi só quando ele entendeu que não poderia resolver as coisas dessa forma sem ser mal visto que ele decidiu tentar mudar. O cargo sempre foi muito mais importante do que a gente - disse com algum pesar. — Mas se essa era a barganha necessária para que ele mudasse, então que assim fosse.
— Bom, apesar de não ser a sua intenção, você acabou de confirmar o meu estereótipo de políticos. Fico feliz de não estar desperdiçando minhas más impressões.
gargalhou, encontrando-se bem longe de qualquer possibilidade de se sentir ofendido. No fundo, havia convivido o suficiente com eles para conhecer todos os estereótipos e saber perfeitamente quais deles se aplicavam. Não era exatamente o seu círculo social favorito, mas tinha se tornado aquele que mais frequentava, mesmo a contragosto, apenas para sustentar a postura e a imagem da família perfeita para qualquer comercial que os pais precisavam manter.
se livrou dos resquícios daquela pose de durona que sustentava enquanto erguia todas as barreiras que rodeavam o forte de seu castelo quebrado como se fosse apenas mais uma das tarefas diárias e cotidianas de uma mulher jovem cuja vida parecia ter rachado de uma forma irreparável.
Em uma cidade pequena como aquela, as palavras corriam como se estivessem disputando o novo recorde olímpico para a prova de cem metros rasos. Ela tentava manter os motivos e os porquês longe da luz, mas todos sabiam que ela estava tão sozinha quanto alguém poderia estar.
E não era como se aquelas fronteiras acomodassem uma grande população de sua idade. A maioria daqueles que com ela haviam crescido tinham virado as costas e se dedicado ao máximo para conquistar a vida mais longe dali possível. Faculdades do outro lado do país, intercâmbios sem previsão de retorno, a busca por algum sonho que havia deixado os cabelos dos pais brancos antes do previsto pela cronologia do passar dos anos. Cada um tinha seus motivos, fabricados por necessidade e vontade ou naturalmente erguidos do solo, semeados com a vitalidade do escapismo.
Mas ela tinha ficado. Por falta de opção, talvez. Por falta de perspectiva em um raio maior do que poucos quilômetros, com certeza. achava injusto se intitular como uma pessoa infeliz, pois estava longe disso. Mas sentia falta de ter alguém da própria idade, com maior chance de compartilhar e compreender os próprios gostos e experiências. tinha devolvido naquela tarde um pedaço que ela não havia se dado conta de que tinha perdido. E nem do quanto precisava dele de volta.
As discussões, de cunho primordialmente familiar - com pequenas divagações por outros caminhos da vida a partir disso -, prosseguiram durante mais algum tempo. Ele fez questão de ajudá-la com a louça, apenas pela simples desculpa de ter mais tempo para prolongar a conversa ali.
— Posso fazer mais uma pergunta?
sorriu, virando-se para ele.
— Nesse tempo de interação, acho que já te conheço o suficiente para dizer que você vai perguntar de qualquer jeito.
Ele foi obrigado a concordar.
— Tem razão. Então, de onde veio o nome ‘Hot Bird’?
fechou a torneira e foi enxugar as mãos em um pequeno pano preso a um pino na parede.
— Essa é uma história para outro momento.
estreitou os olhos.
— Você sabe que a minha curiosidade não vai me deixar em paz.
— Eu sei - ela concordou. — É assim que eu sei que você vai voltar.
O relógio estava prestes a completar as dez horas da noite quando ele atravessou as portas do bar.
Eles haviam se esbarrado pela cidade nos dias que se acumulavam no calendário entre os dois momentos. Trocavam palavras rápidas, brincadeiras entre si como se fossem amigos de longa data. havia decidido perguntar o que raios, afinal de contas, ele estava fazendo na cidade já que não era dali. Ninguém fazia questão alguma de estar ali a não ser que fosse tão parte do município quanto suas avenidas e edificações.
— Meu pai tem um investimento alto em uma rede hoteleira que pretende construir por aqui. Pediu que eu fizesse algumas análises, compras, relatórios e reuniões em nome dele - disse.
— Logo aqui? Meu Deus, seu pai realmente quer tudo - ela caçoou e ele não precisava esboçar uma palavra sequer para que ela soubesse que ele concordava.
realmente não tinha muito o que falar. Apenas estava fazendo um trabalho que não era dele, mas que havia se tornado. Enquanto tudo o que realmente gostaria de estar fazendo era poder dar utilidade ao diploma de arquitetura, emoldurado e guardado como um tesouro de outrora, amaldiçoado por alguma lenda antiga apenas para que nunca pudesse ser realmente aproveitado. Mas sempre que ele tentava dar dois passos para o lado oposto, ouvia os lembretes de que a família vinha em primeiro lugar. De alguma forma, sabia que eram eles que ainda o prendiam pelos pés quando seu âmago desejava ir embora e buscar uma vida onde pudesse apenas ser seu próprio eu e não a sombra de quem deveria ser para não desequilibrar a torre de cartas que era a sustentação da imagem de alguém que se vendia como o defensor da família e dos bons costumes.
, contudo, havia encontrado, ali naquela cidade - que diziam que ninguém fazia questão de estar -, o mais próximo de liberdade que havia se permitido experimentar na vida. E, junto dela, a certeza de que suas previsões assim que chegara estavam certas: era mesmo inevitável. E os dias eram melhores e as maçãs de seu rosto doíam de sorrir nos dias em que esbarrava nela, de propósito ou não. Era quase o suficiente para se lembrar de que teria que voltar para casa. Quase.
— estava te esperando - o garçom disse para ele, ao mesmo tempo em que acenava para os senhores que se retiravam, agradecendo e prometendo que voltariam na segunda-feira, exatamente como sempre faziam.
— Estava?
A mulher colocou a cabeça para fora da cozinha subitamente.
— Ainda está, no caso - disse. — Já vou aí.
— Eu posso ir aí, se quiser.
— Ela detesta que entrem na cozinha enquanto trabalha - o rapaz avisou. — E ela está com um bom humor que eu não via há tempos, então vamos manter assim.
riu, concordando e torcendo silenciosamente para que ele fosse a razão por trás disso. Modéstia à parte, ele acreditava que era. Até porque ela era a dele.
Ele se sentou no balcão e aceitou o whisky oferecido, saboreando as notas da bebida com cada gole de expectativa.
entregou o último pedido para viagem e se despediu dos funcionários, agradecendo pelo trabalho duro e pela dedicação de cada e todo dia. Retiraram-se com as gorjetas do dia no bolso e os sorrisos cansados estampados na face após um dia de movimento atipicamente elevado ao qual seriam ainda mais gratos no fim do mês, quando as contas fechassem com menos desespero embutido no processo.
— Quer dizer que você estava me esperando?
ergueu uma sobrancelha, deixando clara sua intenção de provocá-la.
— Quer saber? Na verdade não. Acabei de mudar de ideia e, não sei se você percebeu, mas estamos fechados, então pode ir.
Ele soltou uma risada alta, enquanto rodava ligeiramente sobre o assento da cadeira elevada.
— Como você sabia que eu viria?
deu de ombros, enquanto retirava o avental e soltava os cabelos. se sentiu patético por observar cada um de seus movimentos, separando os fios, com tanta atenção, como se estivesse vidrado e hipnotizado, incapaz de desviar de uma colisão cujos prenúncios de ocorrência já haviam se mostrado indiscretamente há tempos.
— Eu só… Sabia. Eu sei das coisas, ok? É meu talento natural.
— Achei que seu talento natural fosse aquele molho de tomate caseiro.
— Não. Aquela é uma receita de família, isso é meu. Assim como a história que ainda te devo. Quer dizer, agora que os outros envolvidos não estão aqui para contá-la, acho que a história é minha.
Ele esperou, virando o resto do conteúdo de seu copo.
— Quer dizer que eu finalmente vou entender o porquê da escolha do nome?
sorriu levemente.
— Meus pais decidiram abrir um bar antes de pensar em qualquer burocracia ou em simplesmente como fazer isso. Foi algo que simplesmente surgiu e pareceu uma boa ideia, sabe? Ali, crua, sem desenvolvimento nenhum.
Enquanto falava, ela virava os rótulos para as bebidas para frente, mantendo-os milimetricamente alinhados para o seu próprio prazer.
— Ele ficaria com os clientes e os atendimentos, porque sempre foi uma pessoa totalmente extrovertida e mais comunicativa do que minha adolescência pôde tolerar em vários momentos - ela brincou. — E ela cozinharia, porque era basicamente a melhor cozinheira que qualquer um de nós conhecia e não falávamos isso só para agradá-la.
tinha os olhos fixos nela, absorvendo cada uma de suas palavras. Poderia só ouvi-la falando por horas. Era simples assim.
— E eles realmente demoraram para decidir qualquer coisa. Mas minha mãe ficou tão animada com a ideia de se ocupar fazendo algo que ela gostava que logo começou a fazer uns pratos que achava que venderiam bem para experimentarmos.
“Ela fez uns lanches, umas carnes, uns aperitivos comuns, mas temperados do jeito dela. Mas o ponto é: ela fez umas asinhas de frango apimentadas, sabendo que era o favorito dele e acreditando que poderia ser o carro chefe do bar. Só que meu pai comia asinhas apimentadas em lugares que mal tinham cheiro de pimenta e minha mãe realmente fez seu trabalho para cumprir a proposta do prato e quase o matou.”
A risada que entrecortou seu discurso foi nostálgica de uma forma quase triste.
— Ele entrou em desespero e eu tenho essa imagem muito vívida na minha mente, mesmo sendo de tantos anos atrás. Ele tomou um monte de água, enquanto ela perdia o fôlego rindo e tentava avisar que era para ele tomar leite. E foi assim que o Hot Bird surgiu. Não é o nome mais legal do mundo, mas foi um momento tão representativo para os dois, que o sentimento e o significado por trás acabam valendo muito mais do que qualquer estética.
riu.
— É uma boa história - admitiu.
— Eram bons tempos - ela emendou. — Às vezes parece que eu inventei todas essas histórias e lembranças no fundo da minha cabeça, porque nada disso parece possível para um desfecho como o de hoje. Chega a ser ridículo.
— Eu sinto muito. De verdade. Não posso te dizer que entendo o que você sente, porque não faço ideia de como deve ter sido horrível, mas eu realmente sinto muito que tudo isso tenha acontecido.
Os movimentos de foram tão rápidos que, uma pessoa minimamente desatenta, poderia ter perdido o exato momento em que ela levou a ponta do dedo médio ao olho, livrando-se de uma pequena lágrima como se ela nunca houvesse surgido ali. Como se fosse absolutamente nada. Como se, exatamente da mesma forma daquela história, fosse simplesmente passado. E tão rápido quanto havia vindo, já havia ido embora, substituída por um sorriso pretensioso de forma quase desafiadora.
— Eu encontrei a receita dele esses dias - ela contou. — E já que você é tão curioso, acho que essa é uma parte bastante essencial da história.
Em um pulo, ela correu até a cozinha e retornou com um prato de asinhas, fazendo-o gargalhar.
— Você só pode estar brincando comigo.
Ela meneou a cabeça em negação completa.
— De forma alguma. Como eu disse, você tem que ter experimentado para entender.
cedeu, sabendo que teria aceitado qualquer coisa vinda dela, sem mesmo que ela precisasse se esforçar para convencê-lo a favor de suas vontades.
Puxou um guardanapo, já se preparando para a grande bagunça que faria. O cheiro estava impecável. Quase tão aguçador de seu paladar a ponto de fazê-lo esquecer dos avisos de que aquele poderia ser um déjà vu na história.
— Tem leite na sua cozinha, não tem?
riu alto.
— Você não vai precisar. Eu já disse; meu pai que era fraco demais para isso. Não é tão forte quanto ele fez parecer.
Ele aquiesceu, aceitando seu destino. Com uma asinha em mãos, deu uma mordida, sentindo imediatamente a explosão do tempero, acompanhando a ardência da língua, queimando com o contato com a capsaicina picante. Não era tão forte assim, mas estava perto o suficiente de quase sê-lo. Era apenas mais uma das tantas coisas naquele dia que pareciam pender e variar sobre a longa corda bamba do ‘quase’.
— Isso é muito, muito bom - ele admitiu, partindo para comer mais uma.
— Eu avisei - ela disse, sem se esforçar para disfarçar uma vírgula sequer de seu orgulho. E também tomou uma para si.
levantou o braço em sua direção, fazendo-a recuar levemente.
— O que foi?
— Minha boca está suja? - Ela não esperou a resposta e passou o guardanapo sobre os lábios. — Eu não posso deixar você se envergonhar sendo clichê a esse ponto.
Ele riu, negando. Ergueu o braço mais uma vez e colocou uma mecha de seu cabelo atrás de sua orelha.
— Você estava quase mergulhando seu cabelo em pimenta - justificou-se.
— Continua clichê - ela ponderou. — Mas vou deixar passar.
— Isso não é exatamente deixar passar.
— Ah, se você prefere que seja assim, eu posso realmente pegar no seu pé - ela disse, rindo e sendo acompanhada por ele.
— Vou educadamente recusar a oportunidade.
E, por mais que a fonética não tivesse sido amplamente adotada e utilizada nos instantes que se sucederam, eles não precisavam de muito para compreender a tensão que se construía silenciosamente de uma forma contraditoriamente sutil, como se tivesse acabado de ser convidada para o momento e puxado sua própria cadeira, mais preocupada em assistir do que interferir.
— Acho que eu deveria ir para casa - ele disse, deixando que as palavras se assentassem como bem entendessem nas camadas da atmosfera, pairando entre a dualidade de um comentário e algo próximo de um convite.
pareceu quase chocada com a escolha lexical.
— Você tem uma casa aqui? Que tipo de pessoa você é?
— Eu aluguei uma casa aqui - ele a corrigiu. — Aparentemente o dono aluga por poucas semanas para fazer dinheiro extra desde que se mudou. Só aproveitei uma oportunidade.
Ela simplesmente aceitou, indisposta a dizer o óbvio - que pessoas normais simplesmente ficavam em hotéis e pronto. Ao olhar pelos vidros da fachada, encontrou o automóvel que já havia se tornado facilmente reconhecível, mesmo à distância.
— Você veio dirigindo - ela concluiu.
— Como sempre - ele respondeu.
— Eu não posso deixar você dirigir de volta. Você bebeu.
— Eu não bebi quase nada - ele rebateu.
— A lei é não dirigir tendo bebido. Não é não dirigir se beber muito. E você está no meu bar, então meio que é minha responsabilidade.
Ele riu.
— Eu já saí do seu bar tendo bebido mais do que isso.
— Mas eu não sabia, então não podia controlar a situação.
— Olha, se você precisa de uma desculpa para passar mais tempo comigo, saiba que eu aceito. Mas eu aceitaria mesmo sem essa desculpa esfarrapada.
revirou os olhos, aceitando as chaves do carro.
— É pelo seu bem. E não me irrita. Não esquece que eu vou estar dirigindo.
explicou para ela onde ficava a casa, oferecendo alguns pontos de referência que logo a fizeram compreender o destino.
Dirigiram ao som de um CD qualquer de rock dos anos 80, cujas músicas foram suprimidas pela voz de indicando as casas cujos moradores ela conhecia e contando pequenas fofocas sabidas por toda a cidade, apenas para colocá-lo a par da situação, mesmo que não fizesse diferença alguma em sua vida.
— Bom, acho que chegamos.
Ela olhou para a fachada, apreciando o aspecto recém-pintado das paredes e da armação das janelas em tons claros e neutros. Chegava a ser triste pensar que aquele não era um lar como poderia ser.
— Obrigado por ter me trazido. Graças a você, estou são e salvo. E, adivinha só? Sóbrio.
revirou os olhos.
— É isso o que eu recebo por ter consideração pelos outros.
— E como você pretende ir para a sua casa agora?
— Eu pego um táxi.
— Até parece que eu vou deixar você voltar de táxi. Ainda mais sozinha a essa hora.
— E vai fazer o quê? Me levar para casa?
— Ou te convencer a ficar aqui.
Ela precisou de poucos segundos para moldar sua reação àquela proposta, antes que precisasse reagir a outra coisa.
O toque da boca de na sua tinha conseguido acender todas as terminações nervosas espalhadas por cada parte de seu corpo. Seu coração batia com tanta força que ela temeu que ele pudesse ouvi-lo, enquanto movia a própria cabeça como se pudesse se aproximar ainda mais. Suas mãos encontraram a nuca dele e suas unhas arranharam a pele exposta, sentindo a textura dos fios que começavam a se esforçar para crescer na região.
Naquele momento, amaldiçoou quem tivesse criado a ideia de colocar um câmbio bem ali, separando o contato pelo qual ela tanto ansiava. Seus lábios estavam colados, suas mãos exploravam cada canto com curiosidade e devoção, mas nada disso parecia o suficiente. Queria derreter e se fundir a ele, criando um amálgama indissociável.
Foi necessário apenas um olhar de para que ela entendesse o pedido e o seguisse para fora do carro, para dentro da casa.
O peso de seu corpo sobre o dela era estranhamente confortável e se encaixava como se fosse exatamente isso que deveria estar fazendo há muito tempo.
Quando puxou a blusa de por cima do pescoço, expôs uma tentação completamente nova. Enquanto seus beijos desciam, caminhando até seu colo, seus dedos passearam por seus braços, encontrando as cicatrizes pelo caminho em um reconhecimento silencioso e transformador, como se aquelas linhas pudessem ser unidas em pequenas estrelas.
Ao sentir o calor de seus lábios descendo, arfou. E, naquele momento, ela se sentiu amada como não se sentia há tempo demais.
O cheiro que preenchia o ambiente a fez acordar com um sorriso. Vestiu-se com sua própria roupa espalhada pelo chão e logo viu retornando ao quarto com uma bandeja.
— Não que eu não adore suas roupas - ele disse -, mas eu meio que prefiro do outro jeito.
revirou os olhos, rindo de leve e voltando para a cama.
— Café da manhã na cama?
— Era o mínimo que eu poderia fazer como bom anfitrião. Mas eu só sei o básico. Nem de perto cozinho como você.
Ela analisou os ovos mexidos e os bagels torrados. Pegou a xícara de café e deu um longo gole, apreciando o sabor forte.
— Está ótimo - ela disse. — E você acertou no café, o que por si só já é mais do que o suficiente para me fazer feliz de manhã.
— Não pensei que você fizesse o tipo fácil de agradar - ele brincou, mordendo um bagel enquanto se encaixava ao seu lado na cama.
— Eu faço de manhã quando ainda estou grogue demais para estabelecer altos padrões. Depois disso você vai ter que se esforçar um pouco mais.
riu, acolhendo-se na proximidade dela de uma forma que lhe despedaçou por dentro. Aquela era a última conversa que ele queria ter naquele momento.
— Aconteceu alguma coisa? - perguntou, sentindo cada músculo dele se contrair ao seu lado.
O rapaz respirou profundamente, ocupando a mão no próprio cabelo como se isso pudesse tornar aquele momento menos duro.
— Eu preciso te falar uma coisa.
— Você já tem um relacionamento - ela o interrompeu.
fez uma careta, absorvendo aquelas palavras como um soco na boca do estômago.
— O quê? De onde você tirou isso?
simplesmente seguiu tomando seu café, dando de ombros de uma forma quase entediada que fantasiava e cobria as faíscas que crepitavam daquela fogueira de decepções.
— Eu ia dizer que preciso voltar para casa - ele falou, vendo que seu silêncio ensurdecedor não parecia ter hora para acabar.
Ela engoliu em seco com a informação, tentando parecer conformada pelo simples fato de já saber que esse momento chegaria. Apenas tinha torcido para que demorasse mais.
— Ok.
— Mas eu posso voltar no fim de semana - ele completou, tentando suavizar a situação. — Se você quiser, claro.
— Pode ser. Mas só se você quiser - ela enfatizou. — Se não houver ninguém te esperando lá.
soltou um suspiro pesado, percebendo o diálogo se tornando circular.
— O meu pai tem um velho grande amigo totalmente por conveniência - ele começou a falar, olhando fixamente para a parede em sua frente, sem coragem alguma de realizar contato visual. — O cara tem ações, cargos e influência ao redor de basicamente toda a indústria alimentícia do estado. Era uma pessoa importante de se ter por perto durante as campanhas eleitorais e as eleições, sabe?
“E ele tem uma filha. Dois anos mais nova que eu. Meu pai sempre disse que nos casaríamos um dia e eu só ria, levando na brincadeira. De uns tempos para cá, o assunto se tornou incomodamente recorrente e parece que ele realmente quer que isso aconteça o quanto antes, independentemente de quantas vezes eu já disse que não vou me submeter a isso.”
soltou o ar com força pelo nariz, em um movimento curto que quase parecia o princípio de uma risada carregada de sarcasmo.
— Então meio que existe um relacionamento.
— Não. Existe a expectativa de um na cabeça dele. Eu não tenho absolutamente nada com ela e nem quero ter. Para ser sincero, acho que não a vejo há anos.
apenas meneou a cabeça, puxou um garfo e levou um pouco dos ovos mexidos à boca. sentia o estômago revirar um pouco a mais a cada segundo que passavam em silêncio.
— Pelo amor de Deus, fala alguma coisa - implorou.
— Pode colocar mais sal nos ovos da próxima vez.
A risada que ele entoou foi de alívio e descrença simultaneamente. bateu o ombro de leve no dele, sorrindo.
— Eu vou voltar - ele prometeu.
— Eu sei.
A semana passou se arrastando. Um rastejar de cada vez, já que aquela vagareza provavelmente sequer poderia ser associada a passos.
Talvez a culpa fosse da expectativa que ela colocava a cada dia que riscava um X no calendário, vendo o mês passar e fingindo que não se importava com a chegada de mais um dia e a aproximação inevitável dos próximos.
Tentou se ocupar ainda mais na cozinha, experimentando receitas novas durante o dia, quando o bar ainda estava um tanto longe de ser aberto para mais um serviço. Limpando os armários da cozinha de casa, encontrou o caderno de receitas da mãe, amarelado pelo tempo guardado. Lutou contra a rinite e contra as lágrimas - que ela juraria serem em resposta alérgica à poeira - e folheou aquelas páginas, encontrando a letra desenhada da mãe explicando sobre os cozidos e os pães cujo sabor ainda conseguia acessar em sua memória afetiva.
Quando o sábado chegou, ela acordou com um suspiro. Passou o batom escuro nos lábios, escolhendo propositalmente o que não só não borrava como parecia não sair nem na base de uma limpeza agressiva. Não fez questão de esconder as olheiras, contudo; não se importava que vissem suas noites mal dormidas. Era uma das coisas que não tinha se preocupado em aprender a esconder.
Seguiu a pé até o bar, interrompendo-se ao encontrar um homem sentado na soleira de sua porta.
— Não está meio cedo?
sorriu, tomando seu tempo para observá-la com a atenção e o carinho que decidira guardar apenas para ela.
— Eu disse que estaria aqui no fim de semana. Isso inclui todos os minutos possíveis dele.
— Não deve nem ter dormido direito.
Ele deu de ombros.
— Não estou preocupado com isso. Estou acordado o suficiente. Dormir definitivamente não está na minha lista de prioridades.
ergueu uma sobrancelha, aguardando qualquer que fosse a tirada esperta que ele fosse tirar daquilo com aquela mania de sempre saber exatamente o que dizer. Às vezes tinha que se esforçar para não se perguntar se era a criação política fazendo por ele mais do que seu caráter.
— Qual sua prioridade?
O sorriso dele disse muito mais do que suas palavras seriam capazes. Ela quase se sentiu grata por isso.
— Posso te levar de volta à sua casa - ele falou. — Acho que é melhor você fazer uma mochila para os nossos planos de hoje.
— Os nossos planos sobre os quais eu não sei absolutamente nada?
— Exatamente - ele concordou. — Mas, se quiser saber, vamos passar o dia fora. Vamos pegar a estrada. Comprei entradas para um parque de diversões.
— Eu tenho o bar - ela retrucou, em tom de reclamação direcionada à sua própria responsabilidade.
— Conversei com o Augustus. Ele disse que dá conta da cozinha essa noite. Falou que sabe fritar batatas como ninguém.
— É realmente um grande talento - ela concordou. — Bom, se ele disse que dá conta, quem sou eu para duvidar?
Ela não precisou de muito tempo para arrumar a tal mochila com o que julgou que precisaria para passar o dia fora. Praticidade poderia tranquilamente ter sido seu nome do meio.
abriu o porta luvas do carro, encontrando os CDs de . Escolheu o álbum do Aerosmith e o encaixou no rádio.
— É um dos meus álbuns favoritos - comentou, enquanto começava a batucar os dedos no volante.
— A gente escutava muito Aerosmith quando eu era menor. Eu tinha certeza de que conseguia fazer os agudos do Steven Tyler. Mal sabia que estava só ferindo o tímpano do meu pai.
— Eu pagaria para ver essa cena.
— Não precisa pagar. Eu posso começar a berrar na sua orelha agora mesmo de graça.
— De repente não parece uma ideia tão boa - ele respondeu. — Acho que o ambiente fechado não ajuda. Quem sabe lá no parque?
— Ah, entendi. Você quer que eu me humilhe um pouco na frente de todo mundo. Logo na minha primeira vez em um parque.
— Vai ser a primeira vez?
Ela assentiu, enrolando uma mecha do cabelo entre as pontas dos dedos.
— Você tem medo de altura?
Ela negou.
— Quer dizer, não que eu saiba - comentou rindo. — Talvez eu mude de ideia e precise te ensurdecer de qualquer forma no fim das contas.
— Claro que não - ela garantiu, bocejando. — Você acabou de criar uma meta na minha vida.
— Por que não tenta tirar um cochilo?
— Minha companhia é tão ruim assim que você precisa me mandar dormir?
revirou os olhos, fazendo gargalhar.
— Só queria que você descansasse.
— Vou aceitar a proposta - ela decidiu, encostando contra a janela da forma mais confortável que o cinto de segurança permitia.
Com os olhos fechados e a sensação estranhamente reconfortante de saber que ele estava por perto, ela dormiu.
— Talvez seja a hora de eu repensar aquilo de não ter medo de altura.
raramente se sentia paralisada, mas ela não sabia se conseguiria encontrar uma definição melhor para o que estava sentindo ao ver a altura daquela queda.
— Acredite em mim, parece bem pior quando você fica olhando daqui de baixo.
— Não parece exatamente melhor quando me imagino lá em cima.
— Ah, mas de lá é tão mais legal.
não estava disposta a acreditar nisso.
— Não acredito que você vai amarelar - ele falou, meneando a cabeça. — Não esperava uma desistência de você.
E ele sabia que havia atingido seu objetivo assim que a viu respirando profundamente, tentando aguentar a eletricidade que despertou em seu peito, sabendo que não era de seu feitio não encarar de frente um desafio.
— Você faz de propósito - ela reclamou, estreitando os olhos.
sorriu de forma vitoriosa.
— Não importa se é de propósito. Só importa que funcionou.
o puxou pela mão, decidida a acabar logo com aquilo. Se era isso que ele queria, era exatamente isso o que ele teria.
— Mas já?
— O que foi? Agora é você quem quer desistir?
— Calma aí, não foi isso que eu disse - ele rebateu. — Só achei que a gente fosse dar uma volta primeiro, sabe? Não começar direto assim.
Ela fez um beicinho, correndo o indicador pela bochecha dele. Ele quase riu com a mistura de petulância e pena falseadas.
— Eu seguro sua mãozinha, pode ser? Prometo que não vou soltar.
— Você é ridícula.
— Acho que você escolheu o adjetivo errado. Mas depois te dou um tempinho para consertar esse absurdo.
e perderam pouco tempo na fila e logo estavam sentados e bem firmados no carrinho da montanha-russa. Ela respirou fundo algumas vezes, apertando os dedos ao redor das alças que tinha à sua disposição. Se tivesse coragem de desencaixar as mãos dali, tinha certeza de que encontraria as palmas repletas de um suor frio nervoso.
— Quer segurar minha mão? - perguntou, recebendo um olhar duro de completa reprovação.
— Vai à merda, - ela reclamou, com a voz se esvaindo pelo ar quando a velocidade súbita atingiu os dois ao longo dos trilhos.
Na subida, desaceleraram gradualmente, enquanto ganhavam inclinação.
— Eu não estou gostando disso, não - ela falou, sentindo o ar faltando.
— Quando a gente cair, grita - aconselhou. — Ajuda.
Ela não teve tempo de questioná-lo. Sua única resposta foi acatar a sugestão e trabalhar suas cordas vocais no grito mais libertador de toda a sua vida. A adrenalina pulsando em seus vasos deixava os olhos arregalados e o coração tão acelerado que ela chegou a ter medo de ter um ataque fatal ali mesmo. Mas, ao mesmo tempo, era incrivelmente satisfatório. Fazia sentido que algumas pessoas realmente se dissessem viciadas naquela sensação.
Quando desceram, ela precisou se apoiar na grade da saída enquanto seus pés bambeavam, procurando se reestabelecer no chão.
— E aí?
piscou pausadamente.
— Foi horrível - falou. — E maravilhoso ao mesmo tempo.
A gargalhada de causou um borbulhar em seu coração como se seu sangue tivesse sido substituído por uma bebida gaseificada. Ela não sabia como aquilo poderia lhe causar conforto em vez de dor.
— Esse momento merece um sanduíche de sorvete - ele declarou, entrelaçando os dedos aos dela e fingindo naturalidade, como se seu coração disparado pudesse culpar apenas os resquícios da agitação recente.
Ela se sentiu transportada diretamente de volta para a infância, enquanto equilibrava o doce e tentava não se sujar inteira ao mesmo tempo.
Tinha quase certeza de que não ria daquele jeito há muito tempo para sequer poder tentar localizar a última vez.
Foram na montanha-russa de novo, na xícara e no elevador - que a fez ameaçá-lo de morte por pelo menos quinze minutos completos e jurar que nunca mais confiaria nele depois de deixar a alma para trás naquela queda.
O sol já estava dando sinais de aproximação do poente quando eles aceitaram que já haviam caminhado por todo o parque, parado nas atrações e tirado fotos em todas as fontes e demais decorações.
Foi quando ele avistou uma barraca com pequenas cestas penduradas.
— Ah, não - ela disse ao reconhecer o caminho de seu olhar.
— Ah, sim. Eu preciso ganhar alguma coisa para reafirmar minha masculinidade - ele disse, rindo ao ver a careta que ela fez. — Só adiantei sua parte. Era algo assim que você ia dizer.
— Não era, não.
Mas era, sim.
ignorou as vezes em que ela o chamou e seguiu até a barraca, pagando pelas fichas e pegando as pequenas bolas de basquete que definitivamente não tinham o peso, o tamanho e nem a composição certa. Mas teriam que servir.
— Eu joguei basquete na escola, sabia?
— Jura?
Ele aquiesceu.
— O técnico disse que eu era tão ruim que ia matá-lo de desgosto. Mas eu me superei e provei o contrário ganhando a disputa de arremessos livres.
— E daí ele viu o incrível jogador que você era.
— Ah, não. Eu continuei sendo um péssimo jogador. De verdade, meus passes, meus dribles e até minha condução eram uma gigantesca bosta. Eu era ridículo em quadra. Mas eu sabia arremessar ali, parado, quando ninguém podia tomar a bola de mim.
— Bom, deve ser o suficiente para ganhar essa coisa - ela apontou.
— Vamos torcer para que sim. Ou eu acabei de perder três dólares em troca da chance de ser completamente humilhado na frente da mulher que eu quero impressionar.
Ele tinha cinco chances. Deveria acertar cada uma das três cestas, posicionadas em alturas e direções diferentes, ao menos uma vez para ganhar um dos prêmios disponíveis. Era simples. Ao menos ele esperava que fosse.
— Então vamos lá.
exalou o ar em um ritmo constante, enquanto flexionava e estendia os joelhos e simulava o movimento de arremesso dos braços. Mirou o lance e acertou a cesta do meio - a mais fácil.
— Só faltam duas - lembrou . — Só precisa acertar metade.
— Não sei se os números fazem muita justiça nesse momento.
Ela deu de ombros.
— Quem tem que entender de números é você. Ou vai terminar planejando a estrutura mais frágil da história.
não sabia porque estava tão surpreso ao perceber que ela se lembrava da arquitetura. Era claro que ela havia prestado atenção em todas as conversas que tiveram. Talvez ele só estivesse tão acostumado com os papos vazios que não pareciam importantes o suficiente para grudarem na memória que qualquer demonstração de consideração parecia tomar a posição de um estranho no meio do caminho.
A segunda cesta em dificuldade ainda era relativamente fácil para ele, que a acertou imediatamente. Estava começando a se perguntar se aquela não era uma brincadeira infantil quando decidiu que não importava. Não havia limite de idade em nenhuma placa e ninguém por ali pareceu disposto a recusar o seu dinheiro, então ele arremessaria a porcaria da bola até sair dali com uma pelúcia felpuda customizada com uma feição assustadora e quase maniacamente feliz.
A última era a pior. Era uma posição ruim considerando a marcação no chão que definia de onde ele deveria lançar e era também a mais alta. Sua confiança já estava longe dos níveis anteriores, descendo uma montanha-russa como eles haviam feito mais cedo.
Como já esperava, errou o primeiro arremesso, acertando o aro e vendo a bola quicar para fora com desdém. entrelaçou os próprios dedos, tentando conter o nervosismo que apareceu de repente enquanto torcia por ele.
— Vai dar certo - ela sussurrou, sem ter certeza de que ele tinha ouvido.
retomou a tentativa de fletir os joelhos como se estivesse ensaiando a elongação do próprio corpo. Respirou fundo, posicionando a bola por alguns segundos antes do rosto e lançou.
A esfera alaranjada rodou, rodou e rodou mais uma vez no aro, mas dessa vez decidiu entrar, quase como se estivesse com dó de fazê-lo sofrer mais um pouco.
deu pulinhos animados no lugar, enquanto batia palmas. sorriu, virando-se para ela e lhe roubando um beijo ali no meio, sem se importar com qualquer coisa que pudesse estar acontecendo no universo ao redor deles. Ele só precisava dela. E não importava que o pai sempre tivesse feito uma lavagem cerebral nos filhos, dizendo que não deveriam se contentar com pouco. Não importava porque aquilo não era pouco. Era tudo.
apontou para o prêmio que queria e recebeu um bichinho um tanto amorfo, que parecia um alienígena azul, com cara de bobo. não entendeu bem a escolha enquanto haviam tantos animais peludos e bonitinhos, mas decidiu não questionar suas decisões.
Com o azul mais escuro mostrando sinais de vitória na guerra sobre as cores do céu, decidiram que, infelizmente, era hora de voltar ao mundo real, à vida normal.
No caminho até o estacionamento, uma pequena garoa os atingiu, esfriando a pele exposta e despencando contra o asfalto. se sentia tão vivo naquele momento, sem dar a mínima para a água em seu Levi’s - afinal era só água e água secava, independentemente do cheiro estranho que poderia deixar para trás no processo -, que correu até o poste mais próximo do carro e rodou sob ele, cantarolando a trilha sonora homônima de ‘Singing in the Rain’.
— Sai daí, seu louco - reclamou enquanto ria. — As pessoas vão achar que você está bêbado e não é exatamente essa a imagem que você quer passar em um ambiente familiar lotado de crianças.
se aproximou dela, colando seus lábios mais uma vez, enquanto sua mão esquerda encontrava, sob seu suéter, o ponto exato em sua cintura que parecia ser um botão de gatilho para que todo seu corpo se arrepiasse instantaneamente. Era bizarro como ele a conhecia tão profundamente em tão pouco tempo.
— Acho melhor a gente entrar - ela disse, a contragosto. — Antes que você fique resfriado.
— E você não?
— Eu não fico doente.
— Deixa eu adivinhar: é mais um dos seus talentos.
— E ainda existem vários outros - ela completou.
e ocuparam os assentos no carro. Ele tinha uma toalha de banho na mochila e ambos a utilizaram para se livrar das pequenas gotas que haviam se instalado sobre seus corpos.
Antes de dar a partida no veículo, ele estendeu a sacola para ela.
tirou o alienígena que ele havia conquistado e o fitou.
— Você está me dando o seu ET?
riu, concordando.
— Era o que tinha o formato mais próximo de um travesseiro - ele explicou. — Assim você pode se encostar melhor e descansar agora na volta.
precisou se esforçar para não derreter sobre o banco do carona. Saber da motivação de sua escolha havia mudado completamente sua visão sobre a coisa toda.
Ela encostou o bichinho contra a janela e se aconchegou nele e na sensação terna de ter alguém que se importasse com você àquele ponto.
Esperava que ele soubesse, mesmo que ela se recusasse a dizer qualquer uma daquelas palavras, que ele a havia mudado de uma forma que ela chegara a pensar não ser mais possível.
Quando ela estava se sentindo como uma roupa velha, surrada e então descartada, esquecida debaixo de uma cama por não ter mais utilidade; ele havia decidido que aquela era sua peça favorita. E ela nunca poderia lhe explicar o impacto que isso tinha criado em seu coração.
estava apenas com o longo cardigan bege e uma calcinha de renda preta, andando pelos corredores da casa alugada, procurando o roupão que pediu, dizendo apenas que deveria estar em algum dos armários da casa.
Na terceira tentativa, ela finalmente o encontrou e o puxou da prateleira, esforçando-se para não derrubar todas as outras toalhas de banho e de rosto junto no processo. Voltou para o banheiro do quarto, abrindo a porta e colocando o roupão na maçaneta interior da porta.
— Obrigado - ele gritou lá de dentro, fazendo-a menear a cabeça e sorrir antes de se jogar na cama novamente.
Ainda estava bem sonolenta por mais que o relógio já acusasse a aproximação do horário do almoço. O carro de havia decidido que seria uma boa ideia quebrar a dez quilômetros do destino final, deixando-os parados no meio da noite, esperando que um guincho levasse o veículo até a oficina mecânica mais próxima. Acabaram pegando um táxi até a casa depois, rindo do grande azar com que o dia havia acabado.
E como não tinham exatamente dormido assim que chegaram, ela ainda estava cansada e aceitaria facilmente dormir mais um pouco. Contudo, não estava disposta a perder o tempo que restava ao lado dele até que ele tivesse que pegar o carro consertado e ir embora mais uma vez.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo som agudo do toque do celular dele, acusando um número desconhecido no visor.
— Atende para mim, por favor - gritou do banheiro.
— Vou dizer que sou sua secretária - ela brincou, ouvindo-o gargalhar.
Deslizou o dedo sobre a tela e atendeu a ligação.
— Alô.
— Era só o que me faltava - a voz masculina do outro lado da linha parecia frustrada e irritada. — ?
Foi a vez de ela franzir o cenho, estranhando o reconhecimento súbito.
— Sim - respondeu, sem saber se deveria falar alguma outra coisa ou sequer rebater com outra pergunta.
O homem bufou.
— Passa o telefone para o .
Ela deveria ter dito que ele ainda estava saindo do banho e que estaria preparado em alguns minutos, mas seu instinto lhe dizia que aquela não era uma resposta válida. Nenhuma resposta era. Aquela era uma ordem a ser seguida e ela simplesmente abriu a porta do banheiro e entregou o aparelho para seu dono, ignorando seu estado de seminudez.
Voltou para a cama e colocou o travesseiro sobre a cabeça, sentindo as têmporas latejando como se pudessem pressionar seu crânio o suficiente para fazê-la desmaiar a qualquer momento. Não queria ouvir o que estivesse falando porque ela sabia que não ia gostar. O tom drástico e rude era suficiente para que ela soubesse quem era e, mais ainda, para ter certeza de que não apreciaria a conclusão.
Manteve os olhos fechados tentando se convencer de que o que os olhos não viam, o coração não poderia sentir; mas não havia nada a ver ali. Os trovões começavam a cair e não havia nada a fazer para remediar a situação. Só lhe restava esperar pela tempestade.
Quando o som abafado da voz de sumiu e ela ouviu o barulho da porta do banheiro, ela tirou o travesseiro do rosto, tentando se mostrar inerte à situação.
O rosto de estava murcho, cravado com as marcas do cansaço de uma batalha que parecia cada vez mais perdida e inútil. Naquele momento, ela sentiu o coração cair. Nem todos os vasos seriam capazes de sustentá-lo quando todo o mundo parecia ruir, com cada um dos azulejos do piso sendo arrancados bruscamente debaixo de seus pés, tirando-lhe o chão.
— Era o seu pai - ela disse, sentindo o timbre da voz mais fechado, ecoando por trás de todas as muralhas que ela estava lutando para reerguer. Mas já era tarde demais para construir qualquer barreira quando o havia deixado entrar no cerne de sua fortaleza, erguendo suas bandeiras apenas em confirmação de que ali era o seu lugar.
— Era - ele concordou.
— E ele sabia meu nome.
— Sim - ele confirmou novamente. — Eu falei de você em casa. Disse que tinha essa pessoa de quem eu realmente gostava muito e que me fazia um bem que eles nunca seriam capazes de compreender. Não naquela casa estéril.
Ela assentiu. As palavras dele, que deveriam alegrá-la, apenas conseguiram deixá-la mais triste.
— Ele odiou que eu estivesse aqui - contou. — Ainda mais com você. Me mandou voltar agora. Disse que reservou a igreja para o casamento e já fez a lista de convidados.
— Imagino que eu não esteja incluída, então posso te desejar felicidades de uma vez - ela disse, as palavras pesando de rancor como se pudessem precipitar ali mesmo.
se sentou na cama, tomando as mãos dela nas suas, insistindo mesmo que ela tivesse se movido para trás, já em fuga.
— , eu não vou me casar - declarou. — Não existe a mínima possibilidade disso acontecer. Eu vou dar um jeito, eu juro. Vou resolver tudo isso e me livrar de uma vez por todas dessa família problemática.
— Não é sobre se livrar da sua família. Sua mãe ainda te adora, seu irmão sente sua falta. Não jogue tudo isso fora por causa dele.
O tópico familiar era um assunto ainda mais sensível para alguém que tinha perdido a sua.
— Certo, você tem razão. Como sempre - ele brincou, sentindo o coração apertar quando ela não riu e nem concordou. — Mas eu vou dar um jeito nisso. Largar os negócios deles e esses fingimentos.
não diria como ele já deveria ter feito isso há muito tempo. Não era da sua conta tentar entender como aquele disfuncional mecanismo funcionava e nem julgá-lo por ter a ele se agarrado quando essa era a única realidade que ele conhecia.
— Talvez eu finalmente trabalhe com a arquitetura no fim das contas.
— Acho que é a melhor coisa que você pode fazer. Por você.
Ele assentiu. Não tentou corrigir o pronome por saber que pouco adiantaria e seria apenas espetar mais uma agulha na ferida, ainda recente demais para começar a cicatrizar.
— Eu vou pegar um trem de volta - ele falou. — Para resolver isso o mais rápido possível. Pode ficar com o meu carro enquanto isso.
— Não quero - ela respondeu bruscamente. — Não vou te prender aqui por manter seu bem material sob custódia. Tenho certeza de que vocês conhecem bastante gente. Alguém vai poder vir buscar para você.
Ele concordou.
— Me acompanha até a estação?
balançou a cabeça, assentindo. Aquele simples movimento parecia ter sugado suas últimas energias e a esgotado por completo.
Ajudou a arrumar a mala. Os minutos que se sucederam vieram acompanhados de um silêncio sepulcral. Pegaram um táxi até a estação e sentiram o peso da realidade tornar o carro sufocante e claustrofóbico. Ela experimentou abrir um pouco a janela, na esperança de se livrar fisicamente daquela sensação de aperto ao redor de seu pescoço, mas seu esforço fora tão inútil quanto ela previra.
arriscou pegar sua mão e soltou um suspiro de alívio quando ela deixou que ele o fizesse. Ficaram em pé na estação, sustentados pelo peso de todas as palavras que não poderiam ser ditas; por todas as promessas que não poderiam ser feitas simplesmente porque a vida era uma grande bagunça incerta e o futuro era amedrontador.
Quando o trem parou e as pessoas começaram a se enfileirar para embarcar, colou seus lábios uma última vez, sentindo o gosto salgado das próprias lágrimas misturadas às dela.
Olhou no fundo de seus olhos e fez menção de dizer algo, mas foi interrompido por .
— Eu sei - ela garantiu e se afastou dele, observando enquanto ele subia no trem, levando uma mala e um pedaço irremendável dela.
Cada dia dos meses que se passaram carregaram dela um pouco da esperança nutrida e de sua confiança. Conforme as horas se somavam até que ela não pudesse mais contabilizá-las, ela ia perdendo um pouco da certeza de que ele voltaria.
Os horários de chegada ao bar se tornaram vazios depois das dez primeiras vezes em que ela criara expectativa de que ele pudesse, mais uma vez, estar sentado na soleira da porta. Fechar o estabelecimento era apenas a constatação do fim do dia e de que, mais uma vez, ele não tinha vindo.
ensinou Augustus a fazer pães porque eles tomavam tempo e precisavam de dedicação para crescer. De alguma forma, conseguir fazer algo se desenvolver com seu esforço e cuidado era um lembrete de que talvez ela não estivesse tão quebrada assim. Talvez as partes que lhe sobraram ainda pudessem fazer grandes coisas.
E foi com essa ideia em mente que ela guardou o alienígena no fundo do armário que nunca abria e dele tirou seu certificado de conclusão do colégio para se inscrever na faculdade de Gastronomia. Na entrevista de admissão, falou sobre a família, contou sobre o Hot Bird - e sobre como as asinhas apimentadas eram as responsáveis por basicamente toda a história - e disse que assumira o bar como dona, gerente e chef, mesmo sem formação. No fim das contas, recebeu uma bolsa de estudos por ser, nas palavras do comitê de admissão “uma jovem com tantos talentos sozinha que, com certeza, só terá a crescer com algum conhecimento formal”. Seu professor favorito acabou se tornando cliente assíduo do bar apenas para ter a oportunidade de comer qualquer que fosse o tipo de macarrão que ela decidisse jogar no molho da família. Ele dizia que nunca havia experimentado nada como aquilo; com um gosto tão elaborado e, ao mesmo tempo, tão simples que tinha sabor de lar.
Com a graduação tomando cada vez mais de seu tempo, ela contratou um novo garçom e arrastou Augustus para a cozinha, a fim de que pudesse assumir o seu lugar quando ela estivesse ocupada demais estudando ou se preparando para alguma prova. Por sorte, o rapaz levava jeito para a coisa e estava realmente se animando e tomando gosto por ficar na cozinha. Os clientes elogiavam seus pratos e, por ser mais próximo deles, ele conseguia convencê-los quase sempre a pedir algo que ele tivesse feito, o que só fazia o caixa do Hot Bird agradecer ao fim do mês.
Naquela noite, ela havia convidado Augustus para ir até sua casa, decidida a ensiná-lo a fazer um ragu que havia aperfeiçoado na faculdade e que, tinha certeza, faria sucesso no bar.
Arrumou a mesa da cozinha, fez questão de verificar se o fogão estava limpo e deixou separadas as panelas que usariam - ela era muito específica e exigente com suas panelas, separando uma para cada tipo de alimento, a fim de que os gostos não se misturassem e modificassem alguma receita.
Ao ouvir a campainha, caminhou a passos rápidos até a porta, encontrando Augustus sorridente lhe esperando.
— Vem, entra - ela disse, simpática.
— Ah, eu trouxe um amigo - ele comentou. — Espero que não se importe.
estreitou os olhos, inclinando a cabeça para olhar atrás dele.
Sob a luz de sua varanda, com a barba por fazer e o olhar de quem havia finalmente voltado para casa, estava ele.
E ela sorriu, aliviada por perceber que não havia criado expectativas permeadas por ilusão ao se convencer de que ele voltaria para ela.
Peter: Eu? Esquecer? Nunca.”
- Peter Pan
FIM
Nota da autora: UM MINUTO DE SILÊNCIO PARA MILENA MAIS UMA VEZ PODER SURTAR EM PAZ POR TAYLOR SWIFT. Fim do tempo.
Ai, gente. Essa música é linda, perfeita, uma obra-prima da composição contemporânea e eu espero ter escrito uma história que seja 1% disso tudo. Tentei encaixar a letra nas cenas, então várias coisas específicas que aconteceram são créditos de inspiração direto à Taylor, também conhecida como a indústria musical.
Quero muito muito saber o que vocês acharam então comentem ou me chamem em algum canto, algum grupo, NÃO SEI! Mas não me deixem falando sozinha, por favor, ou eu vou chorar no cantinho em posição fetal.
Obrigadinha por ter lido e aguentado mais um dos meus surtos de ficstape (pelo amor de Deus, eu passei das 50 histórias escritas O QUE EU ESTOU FAZENDO DA MINHA VIDA?!).
ENFIM, TODO MEU AMOR POR VOCÊ QUE PASSOU POR AQUI. UM BEIJO E UM QUEIJO!
PS.: essa história é para a minha Wendy, que tem o nome mais legal do mundo e a energia mais linda e contagiante do universo. Bebelle, que o mundo receba seus sorrisos e sua dedicação de coração aberto. Que a vida sempre lhe traga todo o amor que você merece.
E que você nunca, nunca deixe de sonhar
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
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04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. All of Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Boys Will Be Boys
11. Nós
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
Evermore
MV: deja vu
MV: Golden
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallfower
Ai, gente. Essa música é linda, perfeita, uma obra-prima da composição contemporânea e eu espero ter escrito uma história que seja 1% disso tudo. Tentei encaixar a letra nas cenas, então várias coisas específicas que aconteceram são créditos de inspiração direto à Taylor, também conhecida como a indústria musical.
Quero muito muito saber o que vocês acharam então comentem ou me chamem em algum canto, algum grupo, NÃO SEI! Mas não me deixem falando sozinha, por favor, ou eu vou chorar no cantinho em posição fetal.
Obrigadinha por ter lido e aguentado mais um dos meus surtos de ficstape (pelo amor de Deus, eu passei das 50 histórias escritas O QUE EU ESTOU FAZENDO DA MINHA VIDA?!).
ENFIM, TODO MEU AMOR POR VOCÊ QUE PASSOU POR AQUI. UM BEIJO E UM QUEIJO!
PS.: essa história é para a minha Wendy, que tem o nome mais legal do mundo e a energia mais linda e contagiante do universo. Bebelle, que o mundo receba seus sorrisos e sua dedicação de coração aberto. Que a vida sempre lhe traga todo o amor que você merece.
E que você nunca, nunca deixe de sonhar
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03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. All of Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Boys Will Be Boys
11. Nós
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
Evermore
MV: deja vu
MV: Golden
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallfower