Capítulo Único
estava parada exatamente naquela mesma posição há pelo menos uns dez minutos. As solas de seus pés já estavam sentindo as consequências de sustentar o peso sobre os saltos finos sem se dar ao trabalho de dar um passo sequer para lembrar seus músculos plantares da própria existência.
‘Bailarinas Descansando’ pairava em sua frente, sobre a placa minimalista que a informava o ano em que Edgar Degas tinha finalizado sua obra. Os traços típicos do impressionismo francês em suas pinceladas certeiras tinha construído a imagem que transmitia a uma sensação de vazio que a consumia por dentro. De todos os sentimentos do mundo, a inércia completa era o pior deles. Preferia estar sentindo raiva, ódio, angústia, tristeza, dor… Mas já tinha passado por todos aqueles estágios em um looping horrível até atingir o ponto em que não sentia mais nada.
Sua única vontade naquele instante era rir. Rir alto. Rir escandalosamente até incomodar todas as outras pessoas daquela exposição. Rir até as pessoas começarem a cochichar palavras desprezíveis e ofensas politicamente incorretas e, possivelmente, aversas à importante e inquestionável luta anti-manicomial. Quão patético era perder tanto tempo observando bailarinas descansando quando sentia um grito quase visceral lhe lembrando de que já tinha descansado por tempo demais? Quão autodepreciativo era se atentar aos detalhes de uma obra que a apunhalava silenciosamente várias vezes, ao perceber que uma só injúria não seria o suficiente para arrastá-la para longe do lugar sobre o qual estava parada há tanto tempo que parecia prestes a criar raízes?
— , você é absolutamente patética - murmurou para si mesma, forçando-se a se dirigir, finalmente para fora da exposição.
Todas as bailarinas encantadoramente interpretadas sob o ponto de vista artístico de Degas estavam lhe dando dor de cabeça. Para alguém que tinha feito mais da metade de suas duas mil obras de arte sobre aquele tema, o homem deveria ser a única pessoa em toda a história do universo mais obcecada com o ballet do que ela própria.
Os relatos históricos e artísticos diziam que Edgar havia desenvolvido um fascínio inigualável e, de certa forma, até mesmo obsessivo sobre todas as possibilidades de jogar com a figura humana em cada um dos movimentos corporais complexos e sutis, ostentando a beleza e a delicadeza que apenas uma bailarina era capaz de ter. Havia criado esculturas em cera, recusando a ideia de realizar cópias em bronze por ser este um material que dura pela eternidade. Acreditava ser responsabilidade demais criar algo que não sofreria, tal como seu criador, com a passagem do tempo. Não que seu medo tivesse surtido algum efeito, considerando que seus herdeiros não obedeceram suas vontades e transformaram suas obras que agora eram expostas em Nova York para um público apreciador quase dois séculos depois.
Quando encontrou o museu em seu caminho, entrou sem pensar duas vezes. Parecia algum tipo de piada de mau gosto do universo ter colocado a exposição bem no meio de seu trajeto entre a fisioterapia e seu apartamento. Depois de cansativos três meses de sessões constantes e choros frustrados, as lindas ‘Bailarinas Descansando’ tinham conseguido completar seu vazio de uma forma que ela não esperava voltar a sentir.
Há três meses e duas semanas, estava estreando no clichê - e ainda assim tocante - O Lago dos Cisnes, como a primma ballerina que seu esforço de anos havia lhe feito ser. Alcançar aquele nível de prestígio e confiança dentre os tão importantes e renomados chefões e coreógrafos do American Ballet Theatre era literalmente tudo o que ela sempre quisera desde que decidira, ainda no início de sua adolescência, que o diploma escolar era apenas uma maçante necessidade a ser cumprida ao longo de sua vida e que a física, a química, a matemática e a política poderiam muito bem ir passear enquanto ela esfolava os próprios pés em sapatilhas de ponta.
Há exatos três meses, no entanto, a turnê de seu ballet de repertório tinha sido interrompida precocemente por uma lesão durante os ensaios no palco. Seria imediato e coerente pensar que o estrago teria sido causado durante aquele que era considerado pela abominável física como o passo mais difícil existente. A sequência quase interminável de piruetas que o Cisne Negro tinha de realizar no terceiro ato, subindo e descendo sequencialmente das pontas dos pés era de cair o queixo exatamente pela sua força e dificuldade, afinal. Toda a graça estava na dramaticidade do ato e no pensamento da plateia de como era humanamente impossível realizar aquela sequência, mesmo que um ser humano tivesse literalmente acabado de realizá-la.
Mas não. Não foram as piruetas as responsáveis pelo seu fim. Em um retorno ao chão cujo piso parecia levemente descolado, seu grand jeté tinha encontrado uma finalização nem um pouco grandiosa como previsto pelo nome. Nem todas as milhares de vezes em que havia treinado aquele passo ao longo da vida ou as infinitas vezes em que praticara grand battement em excesso apenas para fortalecer os músculos glúteos seriam capazes de evitar a queda e o entorse de seu tornozelo, com estiramento do ligamento talofibular anterior; o nome mais feio, complicado e horroroso que tinha sido obrigada a decorar como algum tipo de sentença de morte tatuada em seus ossos.
Fora afastada e substituída na turnê, encaminhada para fisioterapia intensa e para os melhores ortopedistas e médicos esportivos de que a companhia tinha conhecimento na cidade de Nova York. Não era falta de humildade ou modéstia, mas, sim, senso de realismo que a fazia ter plena consciência de que sua perda era sentida com impacto entre a equipe e todos estavam tão interessados quanto ela própria em qualquer mísera possibilidade de recuperação possível. E esse era o único motivo que a obrigava a se levantar todos os dias, pegar um táxi e se dirigir a mais uma exaustiva sessão de fisioterapia, apenas para deixar o consultório com a certeza de que não estava conquistando os avanços que tanto almejava. E de que seu pé jamais seria o mesmo.
De volta ao seu apartamento, permitiu que os ombros cedessem ao próprio peso enquanto preparava uma xícara de café em sua querida e inseparável cafeteira moka; o melhor e mais valioso presente de noivado que tinha ganhado de uma amiga, que agora morava do outro lado do oceano, deixando para trás apenas saudade e a felicidade de um café bem feito. Por que Linda tinha que estar na Suécia bem quando tudo o que ela mais precisava era de uma noite falando besteiras, ouvindo músicas de fossa e tomando vinho seco até seus olhos rodarem nas próprias órbitas?
— Oi, amor!
deu um pulinho em sua cadeira, assustando-se com a presença repentina. Estava tão absorta em seus pensamentos sobre a amiga que sequer tinha ouvido o som da porta se abrindo para que entrasse.
— Te assustei?
Ela deu um sorriso mínimo, meneando a cabeça em negação.
— Só não te ouvi chegando - explicou. — Como foi o seu dia?
respirou fundo, abandonando a pasta sobre a mesa da cozinha e soltando o próprio corpo contra uma das cadeiras.
— Exaustivo - respondeu simplesmente. — Sobrou café?
— Acho que tem um pouco na cafeteira. Se soubesse que viria mais cedo tinha preparado mais.
— Não faz mal. Só de estar em casa e poder esticar um pouco as pernas já fico feliz.
assentiu, saboreando mais um gole torrado e forte do líquido escuro.
— E como foi o seu dia?
O esforço que precisou depreender para evitar dar de ombros era notável. Não queria perpetuar aquele ciclo de indiferença e inanição que, provavelmente, já estavam se tornando um fardo para quem convivia com ela também. Mas era difícil não demonstrar o desânimo grudado como ervas daninhas em seus ossos quando as maiores novidades de seus dias eram sobre que música estaria tocando na sala de espera enquanto aguardava seu horário na fisioterapia.
— O mesmo de sempre - respondeu. — Passei no supermercado para comprar seu shampoo e umas pastas de dente e fui para a fisioterapia.
— Só isso?
A mulher quis socá-lo. Jamais fora adepta à violência ou qualquer forma de resolver as coisas que envolvesse alterar o tom de voz ou levantar a mão para alguém, mas conseguia tirá-la do sério com apenas duas palavras. ‘Só isso?’ era a pergunta que ele sempre fazia para a pessoa que tinha que lidar com a carreira de sua vida sendo interrompida e com os esforços biomédicos para reverter qualquer porcentagem daquela maldição lastimável. sinceramente não saberia dizer se ele a desdenhava por fazer tão pouco ou se queria confirmar cada um de seus passos enquanto ele não estava por perto. Não conseguiria dizer qual das duas hipóteses doía mais. Talvez fosse essa dor que clamava por uma reciprocidade impiedosa, envolvendo os nós dos dedos fazendo um nariz sangrar. Ele precisava mesmo corrigir o seu desvio de septo, afinal. No fim das contas, seu ímpeto poderia ser de grande serventia.
Mas ela não o fez, nem seria capaz de fazê-lo. Por mais que a raiva fizesse seu cérebro ferver e os olhos arderem, aquela não era ela.
— Na verdade, fiz algo diferente hoje - comentou, contornando as intenções pouco positivas do assunto. — Fui a uma exposição de arte.
— Para quê?
A forma calma e impassível que ele utilizava para fazer uma pergunta absurda e idiota daquelas fazia com que ela precisasse contar até dez antes de inventar um novo nível de ironia.
— Para passar o meu tempo já que eu não tenho nada para fazer. Vi os quadros, as esculturas, andei um pouco. Faz bem para a alma espairecer, ainda mais em meio à arte.
soltou uma risada nasalada.
— Se te fez feliz, fico contente. Sobre o que era?
— Era do Edgar Degas.
— O cara das bailarinas, ? Sério? Você precisa superar isso, já fazem três meses.
sentiu o ácido do suco gástrico subindo pela garganta.
— Ele é um ótimo artista e tem trabalhos incríveis. E o ballet vai ser sempre uma parte gigante da minha vida, quer você goste ou não disso.
— Não se trata de gostar ou não - ele continuou. — Você sabe o que eu penso sobre esse seu ócio. Você está ficando deprimida por passar tanto tempo parada desde a lesão. Deveria procurar outro foco para a sua vida. Tudo o que você fez sempre foi por essa obsessão bizarra pela dança. Agora é hora de seguir novos rumos.
— Essa obsessão bizarra é a minha arte, a minha paixão e também o meu emprego.
— Era o seu emprego - ele deu ênfase no tempo verbal escolhido. — Você precisa se ocupar, amor. É só uma ideia, ok? Pensa com carinho.
Ela deu um sorriso falso, concordando da forma mais deliberadamente mentirosa possível. O sorriso que ele lhe devolveu causou-lhe repugnância profunda.
— Bom, acho que vou tomar um banho. Quer me acompanhar? - sugeriu, erguendo a sobrancelha de forma sugestiva.
— Hoje não - ela respondeu, sustentando a fisionomia sorridente. — Acho que vou passar um creme no cabelo.
O homem pareceu decepcionado, mas assentiu, deixando a cozinha. finalmente respirou fundo, torcendo para que seu esquecimento não tivesse sido longo o suficiente para permitir que o pote de creme embaixo do gabinete do banheiro tivesse vencido. Se não começasse a desfilar pelo apartamento com uma touca vergonhosa na cabeça, retomaria o drama que ela não tinha paciência alguma para presenciar mais uma vez.
✩✩✩
Até do cheiro do linóleo ela havia sentido falta. O toque dos pés descalços contra o piso era um tanto estranho após tantos anos precisamente equilibrada sobre as pontas das sapatilhas, mas também era aconchegante e acolhedor como retirar os sapatos apertados ao chegar em casa após um longo e cansativo dia de trabalho duro. Era essa a sensação de estar ali: a sensação de quem volta ao lar e percebe como sentiu falta de cada mísero centímetro quadrado. Pertencimento.
Desbloqueou o celular, encontrando rapidamente o aplicativo do Spotify e dando play na música que tinha ouvido durante a noite anterior, enquanto tinha a péssima ideia de tentar pegar no sono fazendo qualquer coisa que não fosse fechar os olhos.
Naquele momento, contudo, ao ouvir os primeiros acordes da versão acústica da canção de Francois Klark, ela permitiu que os cílios se encontrassem em um abraço calmo e cuidadoso, enquanto sua mente se conectava a cada nota da música conforme seu corpo a reconhecia, ansioso por encontrar um ritmo frente ao qual se mover.
Começou arriscando permitir que seu tronco e pescoço balançassem suavemente para os lados, encontrando o ritmo que já parecia retumbar por cada um de seus músculos, confundindo-se com as batidas de seu próprio coração. Afastou os pés e deu início ao movimento das pernas, esticando-as e dobrando-as; apoiando-se sobre a porção anterior do pé para girar delicadamente, sem se preocupar com a forma que seus cabelos decidiam cair sobre seu rosto, como uma cortina espaçada conforme sua própria vontade.
Quando a voz doce e melodiosa de Francois disse as palavras “‘Cause you are my always” , sentiu cada uma de suas sílabas no coração. Era uma música deveras romântica e o intérprete com certeza pensava em alguém a quem amava com toda sua devoção. Mas não era sobre que ela pensava enquanto sorria, sem cogitar por um segundo sequer quebrar aquele momento abrindo os olhos.
Não era um sentimento adúltero ou um desejo silencioso que lhe causasse o tipo errado de borboletas no estômago. Seu “sempre” já tinha dono antes mesmo de ele pensar em tropeçar por sua vida. Seu “sempre” estava logo ali, em cada uma das pontas de seus dedos, em cada movimento impensado, mas que, de repente, parecia fazer todo o sentido porque, afinal, era para isso que ela havia nascido. Seu “sempre” e sua paixão eram dançar e se sentir parte de algo muito maior do que ela própria. Era sobre girar; sobre esticar os braços com a postura e a extensão que os faziam parecer capazes de alcançar os céus. Quando Einstein dissera que os dançarinos eram os atletas de Deus, talvez fosse a esse tipo de sentimento que ele se referisse.
— Esse lugar faz muito mais sentido com você nele - uma voz lhe chamou atenção, obrigando-a finalmente a abrir os olhos. — Esses últimos meses pareceram meio… Incompletos.
sorriu, desligando o som antes de responder o rapaz. estava encostado à porta, usando os trajes de ensaio e o sorriso largo e claro que já havia se tornado sua marca registrada. Se não fosse um dançarino tão bom, com certeza poderia ganhar a vida facilmente sendo modelo de campanhas odontológicas e estéticas.
— É, eu meio que sou a alma desse estúdio - ela brincou, enquanto prendia os cabelos em um coque bagunçado.
— Katerina com certeza concorda - ele emendou, aproximando-se dela. — Não houve um dia sequer durante esses três meses que ela não tenha rasgado elogios sobre você e soado bastante deprimida e revoltada por não poder escalá-la para seja lá que repertório ela tenha em mente.
A mulher expirou pela boca, soltando o ar como se bufasse. Queria poder se livrar de toda aquela frustração horrenda que acompanhava a sensação sufocante de estagnação e de que nada mais fazia sentido. Os quatro minutos em que tinha ocupado aquela sala - e esticado seu corpo de forma muito mais eficiente do que lhe tinham feito os três meses de fisioterapia - haviam sido os melhores e mais gratificantes que tinha vivido em muito tempo. A palavra que tinha escolhido lhe definia dolorosamente: incompleta .
— Acho que não dançar deixou em mim um vazio muito maior do que aquele que minha ausência deixou à companhia - admitiu. — Na verdade, esse vazio está mais para um grande rombo. Um maldito buraco negro sugando qualquer possibilidade de alegria ou vontade de viver.
— Bom saber que você não perdeu esse charme dramático ultrarromântico.
— E isso vindo de um cara que cresceu assistindo a telenovelas mexicanas. Eu juro que me sinto honrada.
riu abertamente, obrigando-a a rir também. O colega era um dos membros oficiais do clube de seres humanos capazes de te fazer achar tudo incrível e engraçado só porque eles acham graça.
— Como foi a fisioterapia?
— Um tédio.
— Você sabe que precisa fazer isso, independentemente do quanto odeie.
— Ah, eu sei! Pode ter certeza disso. Essa é literalmente a única motivação para eu sair da cama e cruzar a cidade para repetir os mesmos exercícios sempre.
— Imagino que sejam minutos sem fim remoendo a vontade de ir para casa.
assentiu de forma hesitante. Seu sorriso, de repente, parecia quase incerto. fingiu não ter percebido, por mais que a conhecesse bem demais para ser capaz de deixar passar aquele desânimo apagando a luz dos seus olhos como se fossem pequenos interruptores.
— Você deveria vir mais vezes - comentou. — Não só para dançar, mas para ver todo mundo, conversar um pouco. Vai nos fazer bem ter a sua companhia.
Ela aquiesceu, enxergando uma fagulha de esperança. Sabia claramente que a única pessoa que realmente tinha muito a ganhar com aquela ideia era ela própria, mas aceitaria a oferta de bom grado.
✩✩✩
— Pelo amor de Anna Pavlova, se eu tiver que corrigir mais uma vez a posição da sua cabeça, juro que a arremesso pela janela.
A bronca ríspida era de fazer qualquer um engolir em seco, implorando por misericórdia como se tivesse acabado de ser condenado à guilhotina em meio à Revolução Francesa. Com certeza a sentença conseguiria ser ainda mais humilhante, dolorosa e desagradável se Katerina sequer ouvisse qualquer menção que se achasse no detestável direito de lhe associar com a França, quando nenhuma relação tinha com aquele país. Já era demais ter de se acostumar com os Estados Unidos da América e sua crença de que eram algum tipo de umbigo no globo terrestre, ao redor do qual todo o universo orbitava em prol de atender aos seus desejos e demandas. Jamais seria capaz de evitar o revirar de olhos a cada vez que uma alma tediosa e egocêntrica decidia referir à sua pátria como América, ignorando o fato de que não eram o único território do continente. Se fosse sincera - e Katerina sempre fazia questão de ser excessivamente sincera -, teria de admitir que às vezes pensava que era mais uma questão de falta de aulas de geografia do que de simples descaso. A ignorância combinava com ambas.
— Está bom agora? - A jovem perguntou, esforçando-se para evitar que sua voz chacoalhasse pelo ambiente.
Tinha literalmente erguido o nariz em questão de, no máximo, meio centímetro. Katerina estreitou os olhos, analisando-a como se pudesse colar uma régua em seu rosto.
— Não está horrível - disse, e todos ali sabiam perfeitamente que aquele era um grande elogio vindo dela.
— Deixe a menina, Katerina. Ela está ótima - disse à porta, chamando a atenção da russa, que, logo abriu um sorriso mínimo, arqueando a sobrancelha de forma quase desafiadora.
A mecha de cabelo mais esbranquiçada que o resto dos fios caía sobre seus olhos, dando um ar quase de Cruella de Vil a ela. Algumas dezenas de dálmatas a mais e conhecimentos de dança a menos e ela já poderia ser uma representação fiel da vilã, mesmo que, no fundo, fosse bem claro que ela tinha um coração mole.
— Veio tentar deixar minhas bailarinas moles e mal acostumadas, ?
— Eu não ousaria me intrometer nos seus métodos. Vim só iluminar o seu dia com a minha beleza estonteante.
Katerina soprou o ar pelo nariz; o mais próximo de uma risada que ela era capaz de esboçar em público pelo simples prazer de se desenhar como superiormente inatingível.
— Bom, podem agradecer à senhorita , porque ela acabou de conseguir um intervalo de cinco minutos para vocês - disse aos bailarinos que ocupavam seus lugares na barra. — E reparem que eu claramente disse cinco minutos, não dez, não seis.
Não houve um milésimo de segundo de hesitação entre os dançarinos até que estivessem o mais longe possível da vista de Katerina. Suas ordens só faltavam ser acatadas com uma reverência para acompanhar a obediência com tendências à subserviência.
Finalmente a sós na sala, a mais velha permitiu-se abraçar a jovem, demonstrando seu raro, mas imenso afeto.
— Estamos começando a ensaiar para Coppélia e, ao mesmo tempo que todos estão tão animados por abraçar um repertório mais cômico e diferente do de costume, estamos também sentindo sua falta. Estou surpresa que nenhuma das meninas decidiu puxar as redes dos coques das outras para disputar a vaga principal literalmente com as próprias mãos.
riu, enquanto meneava a cabeça.
— Elas não farão isso porque foram muito bem ensinadas sobre méritos e sabem que o melhor jeito de conquistar algo na companhia é se sobressaindo. Elas provavelmente nem tem mais unhas de tanta ansiedade e noites mal dormidas ensaiando até tarde.
Katerina concordou, expirando o ar de seus pulmões com um pouco mais de força.
— Como está o pé?
A jovem estendeu o tornozelo, realizando os movimentos de eversão e inversão que já estava cansada de repetir insistentemente ao longo dos últimos meses.
— As dores são menos frequentes - respondeu. — Estou ganhando mais confiança para andar e pisar com mais firmeza, sabe? No começo, parecia que eu ia ser engolida pelo medo de pisar em falso em uma calçada e viver aquele pesadelo inteiro de novo.
— Então está recuperando sua confiança - a outra apontou. — Fico feliz. Insegurança não combina com você.
— Nem essa monotonia sem fim, mas cá estamos - brincou, não vendo graça nenhuma.
— Acho que basta de fornecer grãos para seu moinho de autopiedade. Por Deus, mulher! É um ligamento estourado não um diagnóstico terminal. E fazem meses.
— Não é tão simples assim quando a sua vida simplesmente para por causa disso.
— É sobre isso que eu queria falar com você. - Katerina respirou fundo, puxando a mecha branca de seus cabelos da frente de seus olhos. — O que acha de voltar?
apertou as sobrancelhas, como se aquele movimento fosse capaz de fazer seus neurônios se aproximarem mais rápido e entender o que lhe estava sendo sugerido naquele momento.
— Não estou entendendo.
— É claro que está, não estou falando russo. Estou sugerindo que você volte a frequentar os ensaios.
— Para dançar?
A gargalhada irônica de Katerina pareceu esmurrar a redoma de vidro de sua descrença completa.
— Não, bobinha. Para reformar os espelhos - disse, rindo. — É lógico que é para dançar, .
— Eu posso te jurar de pés juntos em nome de qualquer que seja o deus em que você acredita que não existe absolutamente nada nesse mundo que eu gostaria mais do que isso. Mas eu não sei se consigo.
— Bom, não vai saber se não tentar, não é mesmo? Você precisa começar em algum ponto.
— E eu estou bem enferrujada.
— Não é o que eu ouvi por aí. E, de toda forma, também estamos preocupados em preservar a sua saúde, então a ideia é um pouco diferente.
— Como assim?
— Pensamos em te direcionar mais para atos em dupla do que rotinas solo. Assim, você tem sempre alguém para te apoiar e te erguer nos passos mais difíceis e que possam, porventura, comprometer seu processo de recuperação.
— Vai colocar um desses meninos novos para dançar comigo e ficar berrando com eles até aterrorizá-los?
— Não. No caso, seu parceiro seria o . Tenho certeza de que está familiarizada com ele.
— Ele é bom demais para se contentar com atos menores em dupla. Jamais aceitaria isso.
— É aí que você se engana - Katerina disse. — Até porque foi ele quem sugeriu isso.
piscou algumas vezes, absorvendo o choque. era um ótimo rapaz e uma pessoa muito abnegada, mas aquilo parecia um tanto surreal até para ele.
— Nem mais um grão em seu moinho de autopiedade - Katerina ecoou, lembrando-a.
Fora o gatilho suficiente para que finalmente cedesse ao questionamento:
— Quando começamos?
✩✩✩
— Cinco, seis, sete, oito - Katerina gritou, estalando os dedos para marcar o compasso da coreografia.
posicionou as mãos na cintura de , enquanto ela realizava um développé com a perna invejavelmente estendida.
Katerina observava, berrando as coordenadas dos passo do canto da sala e reclamando sobre cada passo milimetricamente fora de sincronia ou de tempo, que nenhum ser humano além dela própria seria capaz de perceber em um grande palco.
sentia uma gota irritantemente resignada escorrendo pelo vale mínimo sobre sua coluna. Era obrigada a admitir que sentia falta até daquele desconforto. Cada passo e cada movimento parecia reeguer um pedacinho de algo dentro de si, como em uma torre de ‘Jenga’. Estava reconstruindo a fundação levemente instável daquilo que era. Silenciosamente, agradecia aos braços firmes de por ajudarem a impedir que seu alicerce desmoronasse sobre a própria cabeça. Ou sobre o próprio tornozelo.
O começo tinha sido difícil, obviamente. Sua insegurança ainda se externalizava por mais que tentasse com todo o seu afinco e disposição fingir que ela não estava ali. Queria acreditar que seria capaz de fazê-la sumir se simplesmente a ignorasse por tempo suficiente. Além disso, tinha sido solista nas coreografias principais há tempo demais. Deixar-se guiar e ser erguida por outro era estranho como se alguma coisa não estivesse certa.
Mas aí ela tinha . que se esforçava incansavelmente para desmontar a ideia de que a última peça para completar aquele quebra-cabeça tinha lascado e não encaixava mais, deixando-o inevitavelmente incompleto para sempre. que tinha um sorriso irritantemente tranquilizador sempre que ela demonstrava qualquer vestígio de preocupação ou hesitação. que repetia com seriedade que não a deixaria cair. Às vezes ela preferia que não fosse tão fácil assim acreditar piamente em cada palavra que saía da boca dele.
— Acho que terminamos por hoje - Katerina anunciou. — Descansem porque amanhã ensaiaremos o dobro, agora que já pegaram a coreografia. Nada de aventuras corporais durante à noite.
revirou os olhos, rindo. Se todos os bailarinos realmente levassem em conta todas as recomendações da mulher, estariam em algum tipo de celibato. Mas ela entendia e respeitava aqueles direcionamentos. Às vezes.
Passou todo o caminho balançando a cabeça ao som da melodia impregnada na cabeça, enquanto os dedos seguiam uma dança minimalista que não poderia ser acompanhada em maiores proporções dentro de um táxi. O motorista deveria achar que ela era maluca, mas ela não se importava. Estava tão feliz e contente que até o ar de Nova York de repente parecia incrível, com uma nota de lavanda desacompanhada da poluição sonora. Nada poderia acabar com o seu dia.
— Onde você estava?
A voz de , sentado na poltrona da sala, ecoou pelo apartamento assim que ela abriu a porta.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.” - ela repetia mentalmente, tentando respirar tranquilamente; uma habilidade vital para momentos como aquele que ela já sabia que terminariam em conflito.
— No estúdio - respondeu simplesmente, enquanto deixava seu molho de chaves sobre o aparador da entrada.
apertou os olhos, travando a mandíbula por uma fração de segundos.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Posso saber o porquê?
deu de ombros.
— Porque eu estava ensaiando.
— Você sabe que não pode dançar.
O esforço que o homem estava depreendendo para não alterar o seu tom de voz era palpável na atmosfera que os circundava. Ela conseguia senti-lo pesando sobre seus ombros.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Posso saber o porquê? - Repetiu a pergunta dele, cruzando os braços à frente do corpo como se aquilo fosse capaz de defendê-la de alguma forma metafórica e ilusória.
se atrapalhou com as palavras, quase gaguejando enquanto tentava dosar sua fúria com a inquietude em ter de dizer o que lhe parecia óbvio e não o que queimava suas entranhas de dentro para fora.
— Porque você acabou de estourar o seu ligamento!
Ela respirou fundo, tentando ignorar o pulsar latejante de uma dorzinha incômoda no fundo de sua cabeça.
— Acho que temos concepções relativas muito diferentes de tempo. Não acho que uma lesão de meses possa ser exatamente considerada como recente.
— Eu só me preocupo com a sua saúde.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Nós também - ela garantiu, reagindo mais rápida e rispidamente do que tinha previsto. — Estamos fazendo tudo da melhor forma possível para que o retorno não me cause problemas. Pode ficar tranquilo.
— Nós? - fez questão de questionar o uso da primeira pessoa do plural. apertou os braços com mais força ao redor do corpo, sentindo a tensão de seus músculos vibrar.
— Sim. Eu, Katerina e .
O homem poderia explodir a qualquer momento. A pressão que fazia sobre seu próprio crânio ao apertar todos os seus ossos reforçava a vermelhidão de sua face e avisava que seu pavio curto estava prestes a fazê-lo entrar em combustão. desejou poder correr a tempo de se esconder dos estilhaços.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Você sabe que eu não gosto nada desse .
— Bom, ele é meu colega de trabalho assim como as pessoas que trabalham no seu escritório.
— Você sabe que não é a mesma coisa.
— Não, eu não sei.
suspirou com força, passando os dedos pelos cabelos com certa violência.
— Meu trabalho não é físico, - ele murmurou; as fagulhas de raiva tomando o espaço do esforço em prol do autocontrole. — Você não pode esperar que eu fique confortável com algo assim.
— Não, eu não espero. Você sempre fez bastante questão de criticar o meu trabalho e deixar bem claro como detestava o que eu fazia. Ficou óbvio quando você não apareceu em nenhuma das minhas estreias.
— Não é um ambiente saudável.
— Na verdade, é um ambiente incrivelmente saudável. Literalmente eu trabalho fazendo atividade corporal e física e não poderia ser mais saudável por isso. Todos nós respeitamos e admiramos muito um ao outro e o público está ali por entretenimento artístico, que não deixa de ser uma forma saudável e cultural de lazer.
— , por Deus! A exposição, os movimentos… É promíscuo!
Ela queria gritar. Gritar usando todos os palavrões que tinha aprendido durante a adolescência. Respirar naqueles momentos era muito mais difícil do que controlar a sua respiração durante a dança. Sua frequência cardíaca queria revidar aquele absurdo.
— Promíscuo? Sério? , eu sou uma bailarina, não uma atriz pornô.
— Não faz tanta diferença assim quando você também tem as mãos dos outros sobre o seu corpo.
A mulher apertou os olhos enquanto respirava profundamente. Não queria acreditar que tinha mesmo ouvido aquelas palavras. Sempre que pensava que havia atingido o auge da falta de bom senso, ele parecia dar um jeito de acabar se superando.
— Sinceramente, eu não acredito que eu estou ouvindo esse tipo de merda - despejou. — Até porque você reclamava quando eu era solista também. Eu realmente não sei qual é a porra do seu problema.
apoiou os cotovelos contra os joelhos, enterrando a cabeça nas mãos. O peso do próprio corpo tinha sido solto de uma forma um tanto desajeitada sobre aquele apoio medíocre.
— Eu amo você, . É difícil para mim - murmurou.
desviou o olhar, encarando o corredor, tão tentador, à sua frente. Sabia exatamente qual seria a fisionomia de piedade que ele traria e ela não estava disposta a encará-la.
— Eu vou tomar um banho - colocou um fim à discussão e seguiu ao banheiro da suíte, certificando-se de que a porta estava trancada.
Inclinou a cabeça em direção aos ombros alternadamente, sentindo o pescoço dando leves estalos enquanto a água morna escorria pela pele nua. Os olhos fechados a acolhiam na agradável escuridão daquele vazio em que os problemas poderiam fingir estar ao lado de fora, mesmo que por míseros e ínfimos instantes.
Esfregou os braços, as axilas, os seios, as pernas e os pés, enquanto queria mesmo poder esfregar a sua memória e deletar as cenas tão claras, atormentadoras e recentes. A fricção exagerada da esponja contra a sua pele começava a sinalizar os primeiros sinais de dor e vermelhidão. não se importou. Estava inerte.
A única motivação para interromper o fluxo de água pelo chuveiro era a consciência ambiental corroendo-a por dentro. E talvez a conta ao fim do mês. E a infeliz consciência de que fechar o ralo e deixar o banheiro se encher causaria mais danos, prejuízos e dores de cabeça com reformas futuras do que algum tipo de satisfação e esquecimento efêmero de que a água não poderia levar os problemas embora pelo esgoto.
Vestiu um pijama confortável sem se preocupar com o fato de que o sol ainda não havia decidido se pôr. Encolheria-se entre os cobertores como uma lagarta em um casulo, mesmo que o dia estivesse um tanto distante de encontrar o seu fim. Duvidava fortemente de que pudesse metamorfosear-se em uma borboleta ao fim daquilo. Provavelmente apodreceria silenciosamente e só em seu próprio invólucro de falsa segurança.
— , podemos conversar?
A voz de , parado à porta sem coragem de erguer o olhar, era tão baixa que ela quase cedeu à vontade de ignorá-la como se não passasse de um zumbido inconveniente de um inseto insignificante.
— ? - Ele tentou de novo.
Ela sabia bem que a persistência era uma de suas virtudes mais insuportáveis.
Foi ela quem teve a coragem - se é que poderia chamá-la assim - de encará-lo; a fisionomia tão impassível que poderia muito bem estar exposta entre as estátuas de um dos acervos do museu.
— Me desculpa, ok? Eu extrapolei.
Ela não se moveu. Se pudesse, teria dado um jeito de nem sequer piscar.
— Eu sei que perdi a cabeça e disse coisas que não deveria ter dito. Você é maravilhosa e muito boa no que faz.
— Como você poderia saber se sempre se esforçou ao máximo para ignorar a origem do dinheiro que pagava as viagens que fizemos?
respirou fundo, apertando os lábios em uma linha tão fina que quase desapareceu como queria fazer naquele instante.
— O que eu quero dizer é que exagerei e estou pedindo desculpas. Espero que entenda.
Ela não entendia. Nem um pouco.
— Mas, poxa, você já parou para pensar como é difícil para mim? - Ele prosseguiu e ela soube que não havia reconhecimento algum de culpa assim que o primeiro “mas” surgiu em seu discurso. — Imaginar aquele cara te tocando do jeito que só eu deveria te tocar. Eu não tenho estômago para isso, . Eu sinto muito.
— Acho que o problema é que você ainda não entendeu o conceito de dança ou de arte performática. Você acha que as atrizes dos filmes que você gosta estão traindo os companheiros quando beijam ou até praticamente transam com outros em cena? Chama atuação e não é tão diferente do que eu faço. Com certeza eu não beijei ninguém e nem fiquei pelada para o mundo inteiro ver. A diferença é só essa.
— Eu sei, eu sei - garantiu; a respiração descompassada traindo a sua tentativa de manter uma postura calma e apaziguadora. — Só é… Difícil.
Ela evitou ceder à tentação de revirar os olhos. Aparentemente, ele gostava demais daquela palavra.
— Eu só tenho medo, , e você deve imaginar como é horrível para um homem ter que baixar a guarda e admitir algo assim. Todo santo dia eu morro de medo de te perder. Eu te amo. Quero me casar com você, quero ter os três filhos que sempre conversamos, quero que possamos nos mudar para uma casa com quintal para que eles vivam de uma forma mais saudável e possam ter cachorros se quiserem. Eu tenho literalmente uma vida inteira que rezo todas as noites para poder ter ao seu lado. Não me odeie por ter medo de perder isso. Não me culpe por te amar demais.
Ela mordiscou a parte interna da bochecha, dando tempo a si mesma para assimilar e absorver aquelas palavras. Uma enxurrada de belas memórias, planos e risadas tomando sua mente. Lembrava-se perfeitamente do dia em que dissera a Linda que tinha certeza de que era o grande amor de sua vida. Infelizmente, também se lembrava com precisão do momento exato em que sentira fiapos de dúvidas se entremeando à costura de tudo aquilo que teceram juntos.
Mas ele a amava. Ele tinha colocado uma aliança linda de ouro rosé em seu dedo anelar. Ele tinha ficado ao seu lado por todo aquele tempo e tinha conseguido três dias de folga no serviço para acompanhá-la nos primeiros exames quando se lesionou. Ele conhecia seus pais e jurara a eles que a faria a mulher mais feliz de todo o mundo. Ele queria três filhos, um quintal amplo e uma alegria que a invejava intensamente mesmo que só pertencesse a algum tipo de mundo das ideias de teor quase platônico.
Ela não poderia simplesmente desistir. Sua mãe fizera questão de assegurar que ela soubesse disso desde a primeira grande discussão que tiveram como casal.
“Os não desistem” ela dissera. “Homens são cabeça dura, estressados e não sabem o que dizem, mas isso não faz com que eles te amem menos”
Respirando fundo e empurrando o seu desconforto goela abaixo, permitiu que ele ocupasse o seu lugar ao lado da cama.
— Espero que essa seja a última vez - disse secamente.
— Será - ele assegurou.
A mulher pegou o controle remoto da televisão, ligando-a na tentativa de fazer com que o volume do aparelho conseguisse superar o som agudo e doloroso das sirenes dentro de si avisando-a de que ele estava mentindo, mesmo que não soubesse disso.
✩✩✩
— Perfeito, perfeito, perfeito! - Katerina bradou. — Não mudem absolutamente nada ou eu serei obrigada a iniciar uma revolução russa no país de vocês.
— Eu sou cubano - disse, recebendo uma careta de desprezo de quem não se importava e risadas de .
— Enfim, ficou incrível. Só precisam treinar o… Bom, vocês sabem.
perdeu o humor de segundos atrás instantaneamente, sentindo sua garganta secar. A coreografia estava perfeita: todos os passos tinham sido cuidadosamente repassados mil vezes, ela e tinham conseguido uma sincronia e química perfeitas e até mesmo Katerina, em toda a sua gigantesca exigência, parecia estar mais satisfeita do que nunca.
Havia apenas um pedaço da coreografia, um passo que levaria segundos, que eles ainda não haviam começado a ensaiar. Só de pensar nele ela já sentia todos os pelos de seu corpo se eriçando, reagindo ao instinto autonômico simpático de luta ou fuga. Nesse caso, especialmente de fuga.
— , você consegue - Katerina disse, calmamente, olhando no fundo de seus olhos como se pudesse derreter seus medos e receios encarando-a daquela maneira.
, entretanto, não tinha tanta certeza assim. Havia ganhado confiança e recuperado a prática de várias maneiras, ao ponto de, às vezes, conseguir passar vários minutos sem se lembrar da fatalidade que lhe ocorrera. Mas a sua segurança continuava encontrando como obstáculo o fantasma de seu passado, mesmo tão longe do Natal. A lembrança de seu corpo encontrando o chão sem graça e delicadeza alguma e dos exames de imagem lhe dando as más notícias lhe corroía.
— Eu não posso - disse em um fiapo de voz.
— É claro que pode - a coreógrafa se manifestou novamente. — Acidentes acontecem. Algumas semanas atrás você achava que nem ia voltar a dançar tão cedo e agora executou uma coreografia complicada completa sem nenhuma possibilidade de se encontrar defeitos. Você consegue fazer o grand jeté.
meneou a cabeça lentamente, sem conseguir lutar contra seu próprio subconsciente sabotando-a. Aquela era uma ideia terrível. A pior de todas.
— A gente não pode simplesmente encontrar um outro passo para encaixar nessa transição?
Katerina permaneceu impassível. É claro que sua resposta seria uma indiscutível negativa.
— Espero não estar com a cabeça inteira branca quando você finalmente decidir sair do lugar.
inspirou profundamente, soltando o ar com força na sequência. Sua cabeça estava a mil, como se estivesse participando simultaneamente de uma festa de carnaval brasileira, uma corrida de fórmula 1 e um teste de motores de aeronaves. Definitivamente, havia muita coisa acontecendo ali dentro e ela não saberia distinguir várias delas além do óbvio e inevitável medo.
— Ei - chamou, oferecendo um sorriso tranquilizador e aconchegante. — Você consegue.
Ela assentiu nervosamente.
— Consigo, né? É claro que consigo - falava mais com si mesma do que com as pessoas ao seu redor. — Não, não consigo.
— Você estava indo bem - Katerina disse, esperando que ela recobrasse seus instantes de coragem.
— Eu te seguro - o rapaz se adiantou na oferta. — Quer dizer, se você preferir. Se for te deixar menos nervosa.
engoliu em seco, escutando seu conflito interno produzir ecos ensurdecedores. Precisava superar seu medo. Precisava desatar o nó daquela âncora prendendo seus pés a um receio traumático. Já tinha feito aquilo centenas de vezes perfeitamente e continuava se martirizando por um episódio único.
— Ok. Mas se você não me segurar, eu juro que vou embora e não volto.
concordou, posicionando-se a uma distância segura e, ao mesmo tempo, suficiente para apoiar sua cintura, impedindo que o retorno ao chão fosse mais brusco do que o necessário, oferecendo um reprise do acidente de meses atrás que não valia nada a pena ver de novo.
Ela inspirou e expirou repetidamente, tentando convencer a si mesma de que estava calma e, principalmente, pronta. Após alguns instantes, permitiu que seu corpo se movesse; as mãos posicionadas de forma precisa e delicada, o pescoço alongado e as pernas esticadas ao máximo, antes de ser devolvida ao chão.
Sentiu seu coração batendo excessiva e assustadoramente rápido, mas só conseguiu rir. Uma risada tão nervosa quanto ela. Havia conseguido. Katerina aplaudia alegremente, enquanto sorria, parabenizando-a.
— Eu não quero ser a pessoa a dizer que avisou. Mas eu bem que avisei - disse a coreógrafa. — De novo.
— Não sei se consigo fazer de novo - ponderou, tentando recuperar seu ritmo respiratório em meio à excitação que corria de repente pelas suas veias.
— Minha paciência para esperar sua boa vontade acabou - Katerina rebateu. — A partir do momento em que você consegue fazer uma vez, consegue repetir outras. Então, de novo.
caminhou sobre o linóleo mais uma vez, conseguindo o espaço na sala para realizar mais um grand jeté. Dessa vez, contudo, as mãos de , já tão familiares, não encontraram seu torso em momento algum do trajeto. Ao retornar ao chão, sentiu seu rosto ficando vermelho, borbulhando em desespero e vontade de socá-lo por não tê-la segurado.
— Seu idiota! Era para ter me segurado - reclamou, com a voz alterada, mais alta e estridente do que o necessário. — Era esse o nosso combinado. Eu avisei que iria embora.
— - ele tentou intervir, mas ela não pareceu disposta a lhe dar um segundo sequer de sua atenção.
— Nem começa. Eu nunca deveria ter aceitado essa ideia maluca de vocês. Eu sabia que não estava pronta. E vocês ainda ficam brincando comigo desse jeito.
— - ele falou mais alto dessa vez, obrigando-a a parar. — Será que você pode parar de surtar por dois segundos e perceber que você conseguiu? E conseguiu sozinha. Eu só queria te provar que você ainda era plenamente capaz.
Nunca em toda a sua vida ela tinha se sentido mais idiota e estúpida do que naquele momento. Chegava a ser vergonhoso perceber o quão bizarramente tosca ela precisava ter sido para não perceber o óbvio. Mas não foi difícil engolir o embaraço quando um sorriso largo e animado brotou em seus lábios.
— Eu consegui - disse baixinho, antes de quase berrar: — Eu consegui!
Lágrimas de alívio, orgulho e satisfação brotaram de seus olhos. Seu tornozelo estava ótimo. Parecia nem ter assimilado o que ocorrera ali ao longo dos últimos minutos. A adrenalina corria em conjunto com os neurotransmissores de seu sistema de recompensa, inundando-a com uma sensação infinita de gratificação pelo seu momento.
— Sem mais grãos para seu moinho de autopiedade - Katerina disse, recebendo um sorriso enorme e emocionado em resposta.
— Nem unzinho sequer - ela garantiu, limpando os cantos dos olhos de sua umidade contínua.
— Quer repetir? - A mais velha perguntou, tendo como resposta uma movimentação de cabeça que negava.
— Já está tarde - explicou-se. — vai me buscar para jantarmos em um lugar especial como comemoração ao nosso aniversário de noivado.
A outra mulher fez uma careta, não fazendo questão alguma de tentar esconder o revirar de olhos praticamente teatral desempenhado.
— Vocês comemoram cada coisa. Casem logo para comemorar o aniversário de casamento. Onde já se viu - reclamou, ranzinza.
deu de ombros, ainda sem conseguir desmanchar a fisionomia iluminada e contente que trazia.
— Quem sou eu para negar um jantar? Bom, vou aproveitar para tomar um banho antes que ele chegue.
Com acenos rápidos, afastou-se dos dois, correndo para o vestiário.
Tratou de logo ocupar um dos chuveiros individualmente fechados e deixou que a água escorresse livremente pelo rosto, incapaz de carregar a vontade engasgada de gritar e gargalhar pelo seu avanço. Havia sentido falta de momentos de felicidade plena como aquela, em que a mais pura alegria simplesmente se aloja no peito e não se apressa a ir embora. Queria aproveitar o seu tempo. Um belo jantar era exatamente o que ela precisava para fechar aquele lindo dia com chave de ouro.
Mais cedo, havia lhe acordado com um beijo carinhoso e sugerido um jantar romântico no mesmo restaurante em que lhe pedira em namoro anos atrás. Queria que curtissem aquela data especial, lembrando-se dos primórdios de como tudo começou; dos seus primeiros passos ao longo daquela caminhada.
não discutira. Sinceramente, estava contente que ele já tivesse lhe abordado com a decisão tomada. Preferia não ser obrigada a opinar em relação ao que comer, pois sempre demorava e nunca conseguia se decidir. Além disso, lembrava-se de forma afetuosa e esfomeada do prato divino de massa fresca com camarões vistosos que comera lá na primeira vez. Só a imagem em suas lembranças já parecia evocar os aromas, os gostos e a sua boca enchia d’água, preparando-se em expectativa.
Queria uma bela taça de chardonnay, uma música ambiente tranquila e a luz baixa, realçada pelas velas. Queria estampar seu sorriso juntamente à calça preta justa e à blusa vermelha decotada, mostrando mais pele do que costumava fazer em seu dia a dia. Era incrível como a felicidade lhe caía bem. Estava se sentindo ao menos cem vezes mais bonita.
Sentou-se em um dos bancos à frente da academia exatamente no mesmo instante em que pôde ouvir a primeira manifestação de um trovão não suficientemente distante dali. O céu parecia estar adquirindo mais tons de cinza do que os livros de E.L. James.
Seus calcanhares começaram a bater contra o chão, acompanhando algum compasso intermediário que demonstrava a ascensão gradual de sua ansiedade repentina. Não ia explodir. Não precisava se preocupar. Estava tudo bem e chegaria logo.
Puxou o celular da bolsa e abriu o contato do noivo, digitando uma mensagem apressada:
“Onde você está? Vai demorar muito?”
Logo viu seu status sendo alterado para online e, na sequência, pôde ler o “digitando…” dando graças a Deus por sua disponibilidade. Esperava que ele não estivesse mandando mensagens de texto enquanto dirigia, mas, ao mesmo tempo, meio que esperava que ele não estivesse tão longe dali. Soava bobo demais pedir para que a tempestade em formação esperar, mas ela estava disposta a ser tão boba quanto fosse necessário.
“Estou te esperando em frente ao consultório do seu fisioterapeuta. Achei que nos encontraríamos aqui.”
“Onde você está?”
O fato de ele ter repetido a sua pergunta fez seu estômago revirar em uma cambalhota única e desajeitada, sem cuidado algum. Ele sabia perfeitamente que ela tinha voltado a ensaiar. Não era como se aquele fosse algum tipo de segredo, especialmente quando tinha causado brigas e discussões tão intensas até tarde da noite.
Aquela só poderia ser uma piada. E uma piada de muito mau gosto.
“Na academia. Vai começar a chover logo.”
O alerta avisando-a de que ele estava digitando oscilou duas vezes antes de sumir por completo, devolvendo o lugar ao “visto por último” no aplicativo. respirou fundo, tentando afastar de sua mente a insistente imagem e apreensão de que isso seria motivo de conflitos por mais uma noite.
Não, não era possível. Ele sabia. Ele estava completamente ciente. Ele havia compreendido os próprios exageros e limites e pedido desculpas. Ele tinha dito que aquilo não se repetiria. Por menos intacta que estivesse sua confiança em suas palavras, contudo, sabia que precisava se agarrar a ela e simplesmente esperar. Com certeza ele só havia desistido de digitar porque seria mais prático e inteligente ir logo buscá-la, antes que a chuva torrencial começasse a produzir novos alertas de conscientização pela cidade sobre porque não jogar lixo nas ruas.
Então, ela esperou.
Fez as contas de quanto tempo levava de um lugar ao outro, já esperando a maior demora possível pelo tráfego do horário e considerando o azar de que acabasse enfrentando todos os semáforos fechados em cada um dos cruzamentos ao longo de seu caminho.
Ele já tinha demorado o dobro. Um trovão levando menos da metade do tempo recém-calculado até a chegada do próximo.
— Ele não fez isso comigo - murmurou sozinha, sentindo os olhos se enchendo da mais pura raiva.
A gota que escorreu pelo seu rosto, no entanto, não era de suas lágrimas. A chuva havia começado, engrossando rapidamente e se tornando tão pesada quanto seu peito naquele momento.
queria poder dizer que sentia tristeza. Seria um sentimento mais fácil de admitir e conviver. Mas a amargura de cada palpitação deixava claro o suficiente que o que ela sentia era ódio. Deus, como ela odiava aquela queimação no peito e o movimento involuntário de contração de seus dedos, fechando a mão em punho com força demais. Queria gritar com todo o vigor que restava em seus pulmões depois do choro e do esforço físico. Mas ele não valia aquilo. Ele não valia nada daquilo. Não valia por um segundo sequer de seu esforço.
O que mais lhe doía, entretanto, era perceber que não estava decepcionada com ele. A única pessoa com a qual estava decepcionada era ela própria. Ela quem cedera, ela quem decidira lhe dar mais uma chance mesmo sabendo, bem lá no fundo, que ele nunca mudaria. Que ele nunca seria capaz de suportar vê-la feliz. Não era capaz de vê-la tão feliz e não por causa dele. Ele que não sabia lidar com o fato de não ser o centro do universo. E ela que deveria saber melhor. Era uma idiota por estar bem ali, esperando na chuva forte por alguém que provara há tempo suficiente que não a merecia nem em seus piores dias. Ele não viria. Com a raiva que ela estava sentindo, era melhor mesmo que não se aventurasse a dar as caras.
Um carro cinza se aproximou de onde ela estava, abrindo a porta rapidamente. Embaixo de um guarda-chuva preto, caminhou a passadas largas até ela, tentando pular as poças correntes que se formavam no meio-fio.
— , pelo amor de Deus, o que você está fazendo aí parada no meio da chuva?
Ela cogitou ser sarcástica. Cogitou armar o escândalo que sua angústia queria fazer. Mas não era culpa dele. não merecia ser afetado pela bomba relógio que tinha feito dela.
— Ele não veio - respondeu, com um sorriso debochado. A piada? Ela própria.
— Puta merda - ele murmurou, descrente. Não poderia dizer que gostava do cara só pelas coisas que ouvira, mas aquilo era demais. — Entra, eu te dou uma carona.
— Não precisa se preocupar com isso. Eu peço um uber ou um táxi ou qualquer coisa.
— Até chegarem você já vai ter contraído uma pneumonia sentada aí. Não é hora de ser teimosa. Por favor.
finalmente cedeu, entrando no carro enquanto dava a volta e jogava o guarda-chuva ensopado no chão dos assentos traseiros. Ela olhou para a própria roupa encharcada, dando-se conta do óbvio:
— Puta merda, , eu vou molhar o seu carro inteiro.
— Água seca - ele afirmou, dando de ombros sem se importar. — Acho que não é uma boa ideia eu te deixar na sua casa.
Ela nem tinha chegado a pensar naquilo. Não estava pronta para bater de frente com . Precisava de tempo para digerir a situação internamente antes de decidir que passo daria a seguir.
— É. Acho que não.
coçou a cabeça, enquanto as engrenagens de seu cérebro giravam, tentando pensar em alguma coisa.
— Eu posso te levar ao meu apartamento. Você toma um banho, eu te empresto umas roupas. Podemos pedir alguma coisa para comer. Daí você tem um tempo para esfriar um pouco a cabeça.
— Acho que já fiz isso com essa chuva gelada do inferno.
— Engraçadinha. Estou falando sério. Por favor, me ajuda a te ajudar.
A mulher ponderou por alguns segundos. Não era como se tivesse uma opção melhor.
— Pode ser. Obrigada. De verdade.
— É para isso que os amigos servem - ele respondeu com um sorriso, antes de dar partida no carro.
passou todo o caminho em silêncio absoluto, olhando fixamente para a janela, apostando que gota venceria a corrida cruzando o vidro primeiro. Era a forma mais interessante de ocupar sua mente no momento.
No apartamento de , deixou os sapatos na entrada, recebendo logo duas toalhas grandes e felpudas, uma calça de moletom larga e uma blusa branca simples de algodão.
Após um banho quente, ela colocou as roupas dele, estranhando o perfume masculino novo em suas narinas. Era estranho, mas de um jeito agradável. Sentia-se indiretamente abraçada e, por mais que não fosse admitir de forma alguma, meio que precisava disso.
Tão logo saiu do banheiro, sentiu um novo aroma roubando sua atenção. apareceu rapidamente no corredor, também de banho tomado, com os cabelos molhados penteados para trás.
— Fiz um chá de camomila para ajudar a aquecer. Não sei se você gosta.
Ela aquiesceu, forçando um sorriso em agradecimento ao permitir que seus dedos encontrassem o calor da porcelana quente que lhe era gentilmente oferecida.
— Acho que você não deve querer falar sobre isso agora - ele começou. — Mas eu sinto muito que seu dia não tenha acabado da forma que você esperava.
Ela deu de ombros, enquanto deixava que um longo gole corresse quente por sua garganta.
— Não posso dizer que é uma atitude inesperada. Esse que é o problema, sabe? No fundo, eu sabia que seria exatamente assim. Então, a culpa é meio que minha.
franziu o cenho, fazendo um barulho estranho enquanto balançava a cabeça em negação, com a boca cheia.
— Não se culpe - disse, assim que engoliu. — Não faz sentido algum. Ele te deu o bolo. Em que universo isso poderia ser sua culpa?
esboçou um sorriso triste. Sentia-se culpada não por ter sido abandonada e, sim, por ter insistido e acreditado em uma noite agradável e um momento especial quando sabia que ele era o tipo de cara que a abandonaria. Especialmente no meio daquela chuva brutal que caía com toda a força lá fora, como se o mundo tivesse sido pausado apenas para que ela pudesse cumprir seu fim.
— Ele odiou quando eu contei que tinha voltado a ensaiar. Fez o maior escarcéu. Mme disse coisas horríveis que eu não merecia ouvir.
O homem à sua frente se ajeitou contra o sofá, demonstrando seu desconforto em cada detalhe de sua linguagem corporal. Dançarinos conseguiam ser expressivos até nisso.
— Ele nunca foi o maior fã de ballet, não é?
— Ele nunca foi o maior fã do fato de eu estar no ballet - corrigiu. — Acha que é uma exposição corporal gratuita e queria me convencer de que estava certo em ter ciúmes.
franziu o cenho, abandonando sua xícara de chá por alguns instantes.
— Ciúmes? De quê?
Quando a mulher não lhe deu uma resposta rápida, direta e objetiva, ele compreendeu quem era a raiz do suposto problema sob o ponto de vista de seu noivo.
— Droga, . Me desculpa. Eu não queria ter atrapalhado nada entre vocês. Juro do fundo do coração. Eu me sinto péssimo por isso.
repousou a mão em seu ombro, encarando-o com os olhos sérios e gentis, buscando transmitir a ele a única certeza que ela carregava consigo naquele momento:
— Não é culpa sua. Se fosse outra pessoa, ele também reagiria mal. Capaz de colocar na cabeça que eu nutria uma paixão ardente e proibida por Katerina.
riu de leve, concordando.
— Então… O que você vai fazer?
Ela respirou fundo, percebendo que verbalizar as coisas era sempre mais complicado do que parecia. Dizer aquilo com todas as letras e permitir que suas palavras ganhassem sonoridade a quem quisesse ouvir era torná-las irremediavelmente reais. Mas ela já tinha passado tempo demais escondendo-as em uma gaveta no fundo de si. Era hora de deixar que elas viessem conhecer o mundo do lado de fora.
— O que eu já deveria ter feito há muito tempo - disse, surpresa com a mansidão com a qual sua oração veio à tona.
Ele assentiu.
— Pode dormir aqui hoje, se quiser.
concordou prontamente.
— Obrigada, . De verdade.
— Disponha. Alguma oposição a pedirmos uma pizza?
— No dia em que eu me opuser, por favor, me mate.
Entre risadas, ele correu até o telefone, procurando o ímã da pizzaria em algum lugar sobre o armário. observou cada um de seus movimentos com o olhar vazio. Estava ocupada demais finalmente enxergando o que havia dentro de si.
✩✩✩
lhe ofereceu uma carona até seu apartamento pela manhã, depois de tomarem café pelo caminho. Só se convenceu a dar partida no automóvel e ir embora quando ela afirmou - pela quinta vez seguida - que conseguia dar conta da situação dali para frente e, por mais que agradecesse imensamente sua gentileza e preocupação, precisava enfrentar seus próprios demônios sozinha e de uma vez por todas.
subiu pelas escadas, em uma tentativa de aliviar seu estresse e ansiedade no esforço físico. Cada degrau acompanhava um pensamento, um receio, uma ideia de frase impactante para usar durante a inevitável discussão. Sabia que não adiantava planejar aquilo como em um roteiro de filme. No fim das contas, diria as primeiras coisas que viessem à cabeça, sem tempo de pensar direito enquanto as respostas problemáticas dele lhe acertassem. E, dessa vez, ela realmente não estava com um pingo sequer de paciência para elas.
Virou a chave na porta, sentindo o coração batendo acelerado. Assim que trancou a porta novamente atrás de si, ouviu a voz masculina pela qual estava esperando.
— Não faz nem questão de passar a noite em casa mais - seu tom era quase questionador, mas muito mais afirmativo. — Cansou de fingir que não me coloca um belo par de chifres sempre que sai por essa porta?
“Não” - ela repetia a si mesma. - “Você não vai virar a situação e fazer isso ser sobre mim.”
— Se eu bem me lembro, foi você quem me deixou plantada esperando no meio de uma puta chuva em vez de aparecer para me buscar como combinamos.
— Você sabe muito bem que eu nunca concordei com essa história de voltar à academia.
— E você sabe muito bem que eu não pedi a sua opinião e muito menos a sua autorização para voltar a trabalhar.
gargalhou com todo o peso da ironia que carregava como armas carregadas, tentando feri-la; tentando fazê-la recuar como se estivessem em um duelo de forças e ela precisasse saber que perderia.
— Eu sou o seu noivo, .
— Não o meu dono - ela emendou. — Não me lembro de ter assinado algum tipo de contrato dizendo que preciso que você decida a minha vida por mim.
— Isso aqui não deixa de ser meio que um contrato - ele disse, apontando para a aliança em seu dedo.
Ela sentiu o sangue fervendo. Retirou a aliança do dedo, jogando-a na mesa de jantar, praticamente a única coisa que se colocava entre eles, impedindo que as coisas fossem ainda piores.
— O que você pensa que está fazendo? - questionou, exasperado.
— Cancelando seu “contrato” ridículo e inexistente. Se um aro de metal no meu dedo significa que sou sua posse, pode ficar.
— Como se eu fosse permitir mesmo que a minha noiva, além de tudo, agora decida sair desfilando por aí sem aliança, apenas esperando algum marmanjo na espreita para se aproveitar da situação.
não conseguiu evitar a gargalhada de incredulidade.
— Meu Deus, a sua cabeça funciona de formas absurdamente bizarras. Você deveria se voluntariar para pesquisas psicanalíticas.
— Você está mesmo fazendo piada da situação?
— Não, querido. Você já se faz de piada bem o suficiente sozinho. E, caso não tenha entendido, eu posso te dizer com todas as letras e palavras. Não somos mais noivos. Não somos mais absolutamente nada.
“Eu cansei das suas merdas. Cansei dos seus surtos de ciúmes, do seu desrespeito ao meu trabalho e dessas brigas contínuas porque você não consegue aceitar quem eu sou. Eu não vou me moldar na boneca de escritório e saia nos joelhos que você quer só para melhorar o seu ego e a sua insegurança. Seu problema é com você mesmo, não comigo. E eu não vou perder mais um segundo sequer esperando que você magicamente entenda isso.”
— Ah, agora eu sou o problema? Foi você quem passou a noite fora!
— Eu passei a noite fora porque o imbecil do meu ex-noivo decidiu não cumprir com o combinado e me largar parada na chuva feito uma idiota só porque estava tendo mais um chilique baseado nas informações que você inventou na sua cabeça.
— Para com esse papo de ex, . Isso é ridículo.
— Não, . Ridículo seria eu te perdoar mais uma vez. Eu fui clara quando disse que esse tipo de coisa não se repetiria.
O homem engoliu em seco, parecendo transtornado, olhando para os lados como se buscasse o que poderia dizer, o que poderia fazer.
— Acho que você facilita a vida de todo mundo tendo a decência de não me esgotar mais com essa conversa que não vai nos levar a lugar algum.
— Você não entende - sua voz saiu mais baixa, mais mansa. — Eu surtei, ok? Eu sei disso. Mas o que você esperava? Eu ia te levar para jantar e comemorar nosso aniversário depois de você ter passado o dia nos braços de outro?
— Eu literalmente acabei de falar sobre esgotamento, . Esse papo furado já se esgotou. Não despeje suas inseguranças e expectativas sobre mim. Você soube quem eu era e o que eu fazia desde o primeiro dia.
— Eu pensei que você fosse parar quando nos casássemos.
Ela fez uma careta de choque. Não era possível que ele realmente tivesse se iludido a esse ponto.
— Você esperava que eu fosse largar o meu emprego, a minha carreira e a coisa que eu mais amo na vida só porque você criou paranoias na sua cabeça?
— Eu esperava que eu fosse a coisa que você mais amava - ele rebateu, ofendido. — Esperava que isso fosse o suficiente.
meneou a cabeça.
— Não é assim que o amor funciona, . Amor não destrói o outro só para reconstrui-lo do seu jeito. Se você quisesse mesmo me amar, teria de ser como sou. Não esperando a minha versão melhorada especificamente para você.
— Você não tem o direito de questionar os meus sentimentos por você.
— Acho que eu tenho, sim. Nunca vou ser quem você quer. Não vou deixar de dançar. Não vou deixar de ter colegas, sejam eles homens ou mulheres. Não vou viver trancada nesse apartamento só porque isso vai te fazer menos inseguro.
— , me escuta - suplicou. — A gente pode consertar as coisas. Sei que podemos.
— Não. Eu me machuquei por tempo demais me obrigando a acreditar nisso.
— Não podemos desistir fácil assim - ele tentou novamente, fazendo-a se lembrar do discurso de sua mãe. Deus, seus pais ficariam totalmente decepcionados quando soubessem que tinha colocado um ponto final naquele noivado.
Bom, eles também teriam que aprender a lidar com a própria frustração.
— , a gente acaba aqui. Por favor, arruma as suas coisas e vai embora.
Os movimentos dele se tornaram mais enérgicos, tendendo a uma agressividade da qual ela já estava preparada para se esconder. Não fora à toa que escolhera esperar tão perto da porta da cozinha, preparada para se trancar se fosse necessário.
— Eu não vou a lugar algum - ele rebateu, a voz vários tons acima do seu natural. — Essa é a nossa casa.
— Não. Esse é o meu apartamento. Eu o comprei com o dinheiro das turnês fazendo aquilo que você tanto ama - acrescentou, com um sorriso irônico. — Você teve uma estadia por aqui e ela chegou ao fim.
— Você é louca. Eu não vou fazer isso. Sei que você vai se arrepender e voltar para mim.
— Melhor esperar sentado. De preferência em uma cama confortável em um hotel, porque na minha que não vai ser.
— Vou fingir que não tivemos essa conversa, ok? Eu te perdoo pelo que fez. Vamos só seguir as nossas vidas.
Ela queria gritar de volta. Ele a perdoava? Que porra ele tinha para perdoar? Na primeira vez em que Linda tentara trazer à tona o tópico de abusos psicológicos dentro de um relacionamento - de forma nada sutil -, pensara ser exagero. Agora, ela enxergava a verdade despida bem à sua frente.
— Vou dar uma volta no parque. Você tem vinte minutos para tirar as suas coisas do meu apartamento antes que eu volte ou vou chamar a polícia.
Sem dar tempo para que ele respondesse, ela deixou o apartamento, pegando o elevador dessa vez. No caminho curto até o térreo, respirou fundo repetidamente, colocando para fora todo o peso que lhe assolava os ombros. Era assim que acabava. E, ao contrário do que ela esperava, não parecia prestes a desmoronar.
✩✩✩
— Não vale olhar - reclamou, vendo que ela tentava espiar pelo espaço entre os dedos cobrindo o rosto.
— Ai, que demora. Acho bom valer a pena.
— Certo, certo. Pode abrir.
finalmente olhou para a caixa que tinha sido colocada à sua frente, soltando um suspiro contente.
— Meu Deus, - comentou, ainda com sua atenção completamente focada no conteúdo. — Eu nunca te adorei tanto.
Pegou um dos morangos cobertos com chocolate e enfiou na boca, deixando um gemido de satisfação escapar pelos lábios.
— Fazia tanto tempo que eu não comia um desses.
— Sei que é seu doce favorito - ele disse, sorrindo. — Daí pensei que, bom, se vamos mesmo ficar ensaiando até tarde, merecemos um prêmio.
riu, escondendo a boca enquanto terminava de mastigar.
— Me sinto um cãozinho em adestramento.
— Existe algum concurso de dança para cachorros? Talvez devêssemos nos inscrever em um desses.
— Cuidado com o que fala - ela alertou. — Essas paredes têm ouvidos e todos eles cochicham diretamente para Katerina.
riu, pegando um morango.
— Sei disso por experiência própria.
Estavam sentados em uma das salas, comendo em um intervalo que eles mesmos decidiram se dar após horas de ensaio e antes de várias outras. Se já estavam sendo comprometidos ao extremo antes, agora que a estreia se aproximava, precisavam triplicar o empenho e o esforço. Por mais que parecesse que tudo estava perfeitamente sincronizado e decorado, sempre havia alguma forma de melhorar ainda mais a performance. E tinham prometido um ao outro que fariam o seu melhor para que aquele fosse um ato a ser lembrado.
— Eu tive uma ideia para a gente relaxar - comentou, tirando a caixa de perto dela e recebendo um grunhido em reclamação. — Vem, levanta.
— Eu só quero meus morangos, . Para de ser assim.
— , eu vou jogar esses morangos fora se você não levantar.
A mulher revirou os olhos, obedecendo-o a contragosto. Ficou observando emburrada enquanto o homem colocava uma música conhecida no celular.
— Sério? - Ela perguntou, rindo.
— Muito sério. Tenho certeza de que você sabe a coreografia.
E como sabia. Dirty Dancing tinha cumprido um importante papel no processo de enfiar em sua cabeça que dançar era tudo o que ela queria fazer da vida.
sabia precisamente cada um dos passos dentro do tempo exato entre as palavras entoadas por Bill Medley e Jennifer Warnes. não ficava para trás. Mesmo que nenhum dos dois tivesse maturidade para não rir na primeira vez em que ele a jogou para trás.
Era tão diferente do ballet, mas estavam mesmo se divertindo, estando - talvez literalmente - mais próximos do que nunca.
— Because I’ve had the time of my life - cantou desafinadamente, fazendo rir, enquanto tentava não perder o ritmo.
— Entendi porque seu negócio é dançar e não cantar.
Ela mostrou o dedo do meio para ele, enquanto continuava girando com a destreza de quem já tinha feito aquilo muitas vezes.
O grande e impactante momento da canção - graças à cultura de massa produzida pelo filme - se aproximava e tomou distância, encarando-a de forma desafiadora.
— Pronta?
— Cala a boca, tem coisa pior até na nossa coreografia - ela pontuou, antes de correr até ele e se jogar, abrindo os braços e usando a força abdominal para centralizar seu ponto de gravidade onde os braços dele a seguravam.
Terminaram a coreografia se jogando no chão e rindo, enquanto recobravam o fôlego.
— Você até que daria uma boa Frances - ele comentou.
— Acho que prefiro o Johnny Castle original.
— É isso, agora chega - ele definiu, levantando-se. — Você não merece mesmo os meus morangos com chocolate.
gargalhou, enquanto soltava os cabelos apenas para prendê-los de novo com mais firmeza.
— E você ainda tenta me convencer de que eu sou a dramática da dupla.
— Talvez seja meio contagioso. É o preço que eu pago por passar tanto tempo perto de você.
E enquanto riam e conversavam sobre todas as besteiras aleatórias do universo, riu como não fazia há tempos. Riu até sua barriga doer, como se ela não tivesse acabado de demonstrar preparo abdominal o suficiente durante a dança. Era tão fácil estar por perto de . Ele conhecia seus doces favoritos, suas fraquezas, seus receios e limitações. Infelizmente, também sabia exatamente o ponto na costela que lhe causava uma série de cócegas absurdas.
Tinha relutado e estranhado um pouco a ideia de dançar em dupla no início, mas agora percebia que poucas coisas eram mais bonitas na dança do que encontrar a verdadeira sintonia com o outro. Dançaria mais mil shows ao lado dele. Nunca tinha se sentido tão leve.
sorriu, olhando-a no fundo dos olhos, enquanto estavam deitados contra o piso, as cabeças viradas diretamente para o outro. Ele aproximou a mão de seu rosto, puxando uma pequena mecha que ela havia esquecido e a colocando atrás de sua orelha.
sentiu as correntes elétricas descendo pelo pescoço e obrigando o seu coração a acelerar como um idiota.
Algumas pessoas simplesmente não eram certas umas para as outras e a insistência apenas causava dor e estrago. Algumas pessoas mudavam no meio do caminho e se desencontravam, sem que isso anulasse por um segundo sequer tudo de genuíno e intenso que viveram até aquele ponto. Várias poderiam até ser as pessoas certas, mas apareciam no momento errado e perdiam a oportunidade.
pensava muito sobre as chances perdidas e as inúmeras formas de se destruir o amor. Mas não tinha percebido, até aquele instante, que as chances não eram únicas. Encontrar o amor uma vez - ou pensar tê-lo encontrado - não anulava as chances de que aqueles momentos se repetissem. De outra forma. Sob outra perspectiva. Com uma nova pessoa.
Talvez , anos atrás, tivesse sido sua pessoa certa na hora errada. Talvez, se ele estivesse disposto a ficar por mais um tempo, ele pudesse ser a pessoa certa na hora perfeita.
— Podemos ir com calma? - Ela perguntou, num fio de voz, permitindo que suas palavras fossem sopradas quase em um sussurro.
O sorriso dele se tornou mais largo. Mais compreensivo. Mais carinhoso. Mais feliz de saber que, fosse lá o que sentia, não o sentia sozinho.
— Como você quiser - respondeu baixinho, incapaz de tirar os olhos dela.
Ficaram ali mais um tempo, aproveitando o momento.
Foi quem decidiu ser a voz da razão e intervir, mesmo que se odiasse por fazê-lo:
— Acho que precisamos voltar a ensaiar.
moveu a cabeça levemente, concordando enquanto se levantava.
— Eu só vou pegar mais um morango e podemos voltar.
✩✩✩
Inspirar profundamente, expirar com calma.
já havia repetido aquele processo algumas - muitas - vezes, enquanto fitava o próprio reflexo no espelho, checando o cabelo bem penteado e fixado com laquê e a maquiagem à prova d’água bem marcante nos olhos. Sua roupa tinha uma aplicação de brilho que a fazia se lembrar mais de patinação artística do que de ballet precisamente, mas tinha a achado deslumbrante.
Ouviu a movimentação ao lado de fora do camarim, dando-se conta de que também era sua hora de ir. Sorriu ao dar a última checada no espelho, agradecendo a si mesma por não ter se permitido esperar sentada que alguém lhe trouxesse felicidade servida em uma bandeja de prata. As coisas ficavam difíceis às vezes, isso era bem verdade; mas ela não precisava daquele drama e percebia o quão forte era por ter se livrado dele. Bem mais forte do que ela havia pensado que poderia ser algum dia.
— Pronta? - perguntou, abrindo a porta delicadamente e colocando a cabeça para dentro.
Ele abriu o sorriso largo digno de campanhas odontológicas que ela havia aprendido a adorar cada vez mais, especialmente quando percebia ser o motivo dele.
— Sempre - respondeu, tomando a mão dele na sua e entrelaçando os seus dedos.
Dirigiram-se às coxias e, quando as luzes baixaram e a música começou a ecoar, tomaram o palco com a leveza e a graça que carregavam em cada um de seus dias, mesmo fora da Academia.
Era a sua milésima noite de estreia, mas reconhecia perfeitamente o que havia de especial nessa. Era diferente, pois ela sabia que estaria ali, apoiando-a, pronto para segurá-la; mas, acima de tudo, era diferente porque ela reconhecia que tinha dentro de si mesma a força para se reerguer.
Enquanto se moviam pelo palco em perfeita harmonia, ela já sabia que seriam aplaudidos com fervor ao fim do número e novamente quando chegasse o término do espetáculo.
Tinha as felicitações, o amor, a alegria, a força e a origem de tudo isso: a dança.
E como era bom dançar de novo.
‘Bailarinas Descansando’ pairava em sua frente, sobre a placa minimalista que a informava o ano em que Edgar Degas tinha finalizado sua obra. Os traços típicos do impressionismo francês em suas pinceladas certeiras tinha construído a imagem que transmitia a uma sensação de vazio que a consumia por dentro. De todos os sentimentos do mundo, a inércia completa era o pior deles. Preferia estar sentindo raiva, ódio, angústia, tristeza, dor… Mas já tinha passado por todos aqueles estágios em um looping horrível até atingir o ponto em que não sentia mais nada.
Sua única vontade naquele instante era rir. Rir alto. Rir escandalosamente até incomodar todas as outras pessoas daquela exposição. Rir até as pessoas começarem a cochichar palavras desprezíveis e ofensas politicamente incorretas e, possivelmente, aversas à importante e inquestionável luta anti-manicomial. Quão patético era perder tanto tempo observando bailarinas descansando quando sentia um grito quase visceral lhe lembrando de que já tinha descansado por tempo demais? Quão autodepreciativo era se atentar aos detalhes de uma obra que a apunhalava silenciosamente várias vezes, ao perceber que uma só injúria não seria o suficiente para arrastá-la para longe do lugar sobre o qual estava parada há tanto tempo que parecia prestes a criar raízes?
— , você é absolutamente patética - murmurou para si mesma, forçando-se a se dirigir, finalmente para fora da exposição.
Todas as bailarinas encantadoramente interpretadas sob o ponto de vista artístico de Degas estavam lhe dando dor de cabeça. Para alguém que tinha feito mais da metade de suas duas mil obras de arte sobre aquele tema, o homem deveria ser a única pessoa em toda a história do universo mais obcecada com o ballet do que ela própria.
Os relatos históricos e artísticos diziam que Edgar havia desenvolvido um fascínio inigualável e, de certa forma, até mesmo obsessivo sobre todas as possibilidades de jogar com a figura humana em cada um dos movimentos corporais complexos e sutis, ostentando a beleza e a delicadeza que apenas uma bailarina era capaz de ter. Havia criado esculturas em cera, recusando a ideia de realizar cópias em bronze por ser este um material que dura pela eternidade. Acreditava ser responsabilidade demais criar algo que não sofreria, tal como seu criador, com a passagem do tempo. Não que seu medo tivesse surtido algum efeito, considerando que seus herdeiros não obedeceram suas vontades e transformaram suas obras que agora eram expostas em Nova York para um público apreciador quase dois séculos depois.
Quando encontrou o museu em seu caminho, entrou sem pensar duas vezes. Parecia algum tipo de piada de mau gosto do universo ter colocado a exposição bem no meio de seu trajeto entre a fisioterapia e seu apartamento. Depois de cansativos três meses de sessões constantes e choros frustrados, as lindas ‘Bailarinas Descansando’ tinham conseguido completar seu vazio de uma forma que ela não esperava voltar a sentir.
Há três meses e duas semanas, estava estreando no clichê - e ainda assim tocante - O Lago dos Cisnes, como a primma ballerina que seu esforço de anos havia lhe feito ser. Alcançar aquele nível de prestígio e confiança dentre os tão importantes e renomados chefões e coreógrafos do American Ballet Theatre era literalmente tudo o que ela sempre quisera desde que decidira, ainda no início de sua adolescência, que o diploma escolar era apenas uma maçante necessidade a ser cumprida ao longo de sua vida e que a física, a química, a matemática e a política poderiam muito bem ir passear enquanto ela esfolava os próprios pés em sapatilhas de ponta.
Há exatos três meses, no entanto, a turnê de seu ballet de repertório tinha sido interrompida precocemente por uma lesão durante os ensaios no palco. Seria imediato e coerente pensar que o estrago teria sido causado durante aquele que era considerado pela abominável física como o passo mais difícil existente. A sequência quase interminável de piruetas que o Cisne Negro tinha de realizar no terceiro ato, subindo e descendo sequencialmente das pontas dos pés era de cair o queixo exatamente pela sua força e dificuldade, afinal. Toda a graça estava na dramaticidade do ato e no pensamento da plateia de como era humanamente impossível realizar aquela sequência, mesmo que um ser humano tivesse literalmente acabado de realizá-la.
Mas não. Não foram as piruetas as responsáveis pelo seu fim. Em um retorno ao chão cujo piso parecia levemente descolado, seu grand jeté tinha encontrado uma finalização nem um pouco grandiosa como previsto pelo nome. Nem todas as milhares de vezes em que havia treinado aquele passo ao longo da vida ou as infinitas vezes em que praticara grand battement em excesso apenas para fortalecer os músculos glúteos seriam capazes de evitar a queda e o entorse de seu tornozelo, com estiramento do ligamento talofibular anterior; o nome mais feio, complicado e horroroso que tinha sido obrigada a decorar como algum tipo de sentença de morte tatuada em seus ossos.
Fora afastada e substituída na turnê, encaminhada para fisioterapia intensa e para os melhores ortopedistas e médicos esportivos de que a companhia tinha conhecimento na cidade de Nova York. Não era falta de humildade ou modéstia, mas, sim, senso de realismo que a fazia ter plena consciência de que sua perda era sentida com impacto entre a equipe e todos estavam tão interessados quanto ela própria em qualquer mísera possibilidade de recuperação possível. E esse era o único motivo que a obrigava a se levantar todos os dias, pegar um táxi e se dirigir a mais uma exaustiva sessão de fisioterapia, apenas para deixar o consultório com a certeza de que não estava conquistando os avanços que tanto almejava. E de que seu pé jamais seria o mesmo.
De volta ao seu apartamento, permitiu que os ombros cedessem ao próprio peso enquanto preparava uma xícara de café em sua querida e inseparável cafeteira moka; o melhor e mais valioso presente de noivado que tinha ganhado de uma amiga, que agora morava do outro lado do oceano, deixando para trás apenas saudade e a felicidade de um café bem feito. Por que Linda tinha que estar na Suécia bem quando tudo o que ela mais precisava era de uma noite falando besteiras, ouvindo músicas de fossa e tomando vinho seco até seus olhos rodarem nas próprias órbitas?
— Oi, amor!
deu um pulinho em sua cadeira, assustando-se com a presença repentina. Estava tão absorta em seus pensamentos sobre a amiga que sequer tinha ouvido o som da porta se abrindo para que entrasse.
— Te assustei?
Ela deu um sorriso mínimo, meneando a cabeça em negação.
— Só não te ouvi chegando - explicou. — Como foi o seu dia?
respirou fundo, abandonando a pasta sobre a mesa da cozinha e soltando o próprio corpo contra uma das cadeiras.
— Exaustivo - respondeu simplesmente. — Sobrou café?
— Acho que tem um pouco na cafeteira. Se soubesse que viria mais cedo tinha preparado mais.
— Não faz mal. Só de estar em casa e poder esticar um pouco as pernas já fico feliz.
assentiu, saboreando mais um gole torrado e forte do líquido escuro.
— E como foi o seu dia?
O esforço que precisou depreender para evitar dar de ombros era notável. Não queria perpetuar aquele ciclo de indiferença e inanição que, provavelmente, já estavam se tornando um fardo para quem convivia com ela também. Mas era difícil não demonstrar o desânimo grudado como ervas daninhas em seus ossos quando as maiores novidades de seus dias eram sobre que música estaria tocando na sala de espera enquanto aguardava seu horário na fisioterapia.
— O mesmo de sempre - respondeu. — Passei no supermercado para comprar seu shampoo e umas pastas de dente e fui para a fisioterapia.
— Só isso?
A mulher quis socá-lo. Jamais fora adepta à violência ou qualquer forma de resolver as coisas que envolvesse alterar o tom de voz ou levantar a mão para alguém, mas conseguia tirá-la do sério com apenas duas palavras. ‘Só isso?’ era a pergunta que ele sempre fazia para a pessoa que tinha que lidar com a carreira de sua vida sendo interrompida e com os esforços biomédicos para reverter qualquer porcentagem daquela maldição lastimável. sinceramente não saberia dizer se ele a desdenhava por fazer tão pouco ou se queria confirmar cada um de seus passos enquanto ele não estava por perto. Não conseguiria dizer qual das duas hipóteses doía mais. Talvez fosse essa dor que clamava por uma reciprocidade impiedosa, envolvendo os nós dos dedos fazendo um nariz sangrar. Ele precisava mesmo corrigir o seu desvio de septo, afinal. No fim das contas, seu ímpeto poderia ser de grande serventia.
Mas ela não o fez, nem seria capaz de fazê-lo. Por mais que a raiva fizesse seu cérebro ferver e os olhos arderem, aquela não era ela.
— Na verdade, fiz algo diferente hoje - comentou, contornando as intenções pouco positivas do assunto. — Fui a uma exposição de arte.
— Para quê?
A forma calma e impassível que ele utilizava para fazer uma pergunta absurda e idiota daquelas fazia com que ela precisasse contar até dez antes de inventar um novo nível de ironia.
— Para passar o meu tempo já que eu não tenho nada para fazer. Vi os quadros, as esculturas, andei um pouco. Faz bem para a alma espairecer, ainda mais em meio à arte.
soltou uma risada nasalada.
— Se te fez feliz, fico contente. Sobre o que era?
— Era do Edgar Degas.
— O cara das bailarinas, ? Sério? Você precisa superar isso, já fazem três meses.
sentiu o ácido do suco gástrico subindo pela garganta.
— Ele é um ótimo artista e tem trabalhos incríveis. E o ballet vai ser sempre uma parte gigante da minha vida, quer você goste ou não disso.
— Não se trata de gostar ou não - ele continuou. — Você sabe o que eu penso sobre esse seu ócio. Você está ficando deprimida por passar tanto tempo parada desde a lesão. Deveria procurar outro foco para a sua vida. Tudo o que você fez sempre foi por essa obsessão bizarra pela dança. Agora é hora de seguir novos rumos.
— Essa obsessão bizarra é a minha arte, a minha paixão e também o meu emprego.
— Era o seu emprego - ele deu ênfase no tempo verbal escolhido. — Você precisa se ocupar, amor. É só uma ideia, ok? Pensa com carinho.
Ela deu um sorriso falso, concordando da forma mais deliberadamente mentirosa possível. O sorriso que ele lhe devolveu causou-lhe repugnância profunda.
— Bom, acho que vou tomar um banho. Quer me acompanhar? - sugeriu, erguendo a sobrancelha de forma sugestiva.
— Hoje não - ela respondeu, sustentando a fisionomia sorridente. — Acho que vou passar um creme no cabelo.
O homem pareceu decepcionado, mas assentiu, deixando a cozinha. finalmente respirou fundo, torcendo para que seu esquecimento não tivesse sido longo o suficiente para permitir que o pote de creme embaixo do gabinete do banheiro tivesse vencido. Se não começasse a desfilar pelo apartamento com uma touca vergonhosa na cabeça, retomaria o drama que ela não tinha paciência alguma para presenciar mais uma vez.
Até do cheiro do linóleo ela havia sentido falta. O toque dos pés descalços contra o piso era um tanto estranho após tantos anos precisamente equilibrada sobre as pontas das sapatilhas, mas também era aconchegante e acolhedor como retirar os sapatos apertados ao chegar em casa após um longo e cansativo dia de trabalho duro. Era essa a sensação de estar ali: a sensação de quem volta ao lar e percebe como sentiu falta de cada mísero centímetro quadrado. Pertencimento.
Desbloqueou o celular, encontrando rapidamente o aplicativo do Spotify e dando play na música que tinha ouvido durante a noite anterior, enquanto tinha a péssima ideia de tentar pegar no sono fazendo qualquer coisa que não fosse fechar os olhos.
Naquele momento, contudo, ao ouvir os primeiros acordes da versão acústica da canção de Francois Klark, ela permitiu que os cílios se encontrassem em um abraço calmo e cuidadoso, enquanto sua mente se conectava a cada nota da música conforme seu corpo a reconhecia, ansioso por encontrar um ritmo frente ao qual se mover.
Começou arriscando permitir que seu tronco e pescoço balançassem suavemente para os lados, encontrando o ritmo que já parecia retumbar por cada um de seus músculos, confundindo-se com as batidas de seu próprio coração. Afastou os pés e deu início ao movimento das pernas, esticando-as e dobrando-as; apoiando-se sobre a porção anterior do pé para girar delicadamente, sem se preocupar com a forma que seus cabelos decidiam cair sobre seu rosto, como uma cortina espaçada conforme sua própria vontade.
Quando a voz doce e melodiosa de Francois disse as palavras “‘Cause you are my always” , sentiu cada uma de suas sílabas no coração. Era uma música deveras romântica e o intérprete com certeza pensava em alguém a quem amava com toda sua devoção. Mas não era sobre que ela pensava enquanto sorria, sem cogitar por um segundo sequer quebrar aquele momento abrindo os olhos.
Não era um sentimento adúltero ou um desejo silencioso que lhe causasse o tipo errado de borboletas no estômago. Seu “sempre” já tinha dono antes mesmo de ele pensar em tropeçar por sua vida. Seu “sempre” estava logo ali, em cada uma das pontas de seus dedos, em cada movimento impensado, mas que, de repente, parecia fazer todo o sentido porque, afinal, era para isso que ela havia nascido. Seu “sempre” e sua paixão eram dançar e se sentir parte de algo muito maior do que ela própria. Era sobre girar; sobre esticar os braços com a postura e a extensão que os faziam parecer capazes de alcançar os céus. Quando Einstein dissera que os dançarinos eram os atletas de Deus, talvez fosse a esse tipo de sentimento que ele se referisse.
— Esse lugar faz muito mais sentido com você nele - uma voz lhe chamou atenção, obrigando-a finalmente a abrir os olhos. — Esses últimos meses pareceram meio… Incompletos.
sorriu, desligando o som antes de responder o rapaz. estava encostado à porta, usando os trajes de ensaio e o sorriso largo e claro que já havia se tornado sua marca registrada. Se não fosse um dançarino tão bom, com certeza poderia ganhar a vida facilmente sendo modelo de campanhas odontológicas e estéticas.
— É, eu meio que sou a alma desse estúdio - ela brincou, enquanto prendia os cabelos em um coque bagunçado.
— Katerina com certeza concorda - ele emendou, aproximando-se dela. — Não houve um dia sequer durante esses três meses que ela não tenha rasgado elogios sobre você e soado bastante deprimida e revoltada por não poder escalá-la para seja lá que repertório ela tenha em mente.
A mulher expirou pela boca, soltando o ar como se bufasse. Queria poder se livrar de toda aquela frustração horrenda que acompanhava a sensação sufocante de estagnação e de que nada mais fazia sentido. Os quatro minutos em que tinha ocupado aquela sala - e esticado seu corpo de forma muito mais eficiente do que lhe tinham feito os três meses de fisioterapia - haviam sido os melhores e mais gratificantes que tinha vivido em muito tempo. A palavra que tinha escolhido lhe definia dolorosamente: incompleta .
— Acho que não dançar deixou em mim um vazio muito maior do que aquele que minha ausência deixou à companhia - admitiu. — Na verdade, esse vazio está mais para um grande rombo. Um maldito buraco negro sugando qualquer possibilidade de alegria ou vontade de viver.
— Bom saber que você não perdeu esse charme dramático ultrarromântico.
— E isso vindo de um cara que cresceu assistindo a telenovelas mexicanas. Eu juro que me sinto honrada.
riu abertamente, obrigando-a a rir também. O colega era um dos membros oficiais do clube de seres humanos capazes de te fazer achar tudo incrível e engraçado só porque eles acham graça.
— Como foi a fisioterapia?
— Um tédio.
— Você sabe que precisa fazer isso, independentemente do quanto odeie.
— Ah, eu sei! Pode ter certeza disso. Essa é literalmente a única motivação para eu sair da cama e cruzar a cidade para repetir os mesmos exercícios sempre.
— Imagino que sejam minutos sem fim remoendo a vontade de ir para casa.
assentiu de forma hesitante. Seu sorriso, de repente, parecia quase incerto. fingiu não ter percebido, por mais que a conhecesse bem demais para ser capaz de deixar passar aquele desânimo apagando a luz dos seus olhos como se fossem pequenos interruptores.
— Você deveria vir mais vezes - comentou. — Não só para dançar, mas para ver todo mundo, conversar um pouco. Vai nos fazer bem ter a sua companhia.
Ela aquiesceu, enxergando uma fagulha de esperança. Sabia claramente que a única pessoa que realmente tinha muito a ganhar com aquela ideia era ela própria, mas aceitaria a oferta de bom grado.
— Pelo amor de Anna Pavlova, se eu tiver que corrigir mais uma vez a posição da sua cabeça, juro que a arremesso pela janela.
A bronca ríspida era de fazer qualquer um engolir em seco, implorando por misericórdia como se tivesse acabado de ser condenado à guilhotina em meio à Revolução Francesa. Com certeza a sentença conseguiria ser ainda mais humilhante, dolorosa e desagradável se Katerina sequer ouvisse qualquer menção que se achasse no detestável direito de lhe associar com a França, quando nenhuma relação tinha com aquele país. Já era demais ter de se acostumar com os Estados Unidos da América e sua crença de que eram algum tipo de umbigo no globo terrestre, ao redor do qual todo o universo orbitava em prol de atender aos seus desejos e demandas. Jamais seria capaz de evitar o revirar de olhos a cada vez que uma alma tediosa e egocêntrica decidia referir à sua pátria como América, ignorando o fato de que não eram o único território do continente. Se fosse sincera - e Katerina sempre fazia questão de ser excessivamente sincera -, teria de admitir que às vezes pensava que era mais uma questão de falta de aulas de geografia do que de simples descaso. A ignorância combinava com ambas.
— Está bom agora? - A jovem perguntou, esforçando-se para evitar que sua voz chacoalhasse pelo ambiente.
Tinha literalmente erguido o nariz em questão de, no máximo, meio centímetro. Katerina estreitou os olhos, analisando-a como se pudesse colar uma régua em seu rosto.
— Não está horrível - disse, e todos ali sabiam perfeitamente que aquele era um grande elogio vindo dela.
— Deixe a menina, Katerina. Ela está ótima - disse à porta, chamando a atenção da russa, que, logo abriu um sorriso mínimo, arqueando a sobrancelha de forma quase desafiadora.
A mecha de cabelo mais esbranquiçada que o resto dos fios caía sobre seus olhos, dando um ar quase de Cruella de Vil a ela. Algumas dezenas de dálmatas a mais e conhecimentos de dança a menos e ela já poderia ser uma representação fiel da vilã, mesmo que, no fundo, fosse bem claro que ela tinha um coração mole.
— Veio tentar deixar minhas bailarinas moles e mal acostumadas, ?
— Eu não ousaria me intrometer nos seus métodos. Vim só iluminar o seu dia com a minha beleza estonteante.
Katerina soprou o ar pelo nariz; o mais próximo de uma risada que ela era capaz de esboçar em público pelo simples prazer de se desenhar como superiormente inatingível.
— Bom, podem agradecer à senhorita , porque ela acabou de conseguir um intervalo de cinco minutos para vocês - disse aos bailarinos que ocupavam seus lugares na barra. — E reparem que eu claramente disse cinco minutos, não dez, não seis.
Não houve um milésimo de segundo de hesitação entre os dançarinos até que estivessem o mais longe possível da vista de Katerina. Suas ordens só faltavam ser acatadas com uma reverência para acompanhar a obediência com tendências à subserviência.
Finalmente a sós na sala, a mais velha permitiu-se abraçar a jovem, demonstrando seu raro, mas imenso afeto.
— Estamos começando a ensaiar para Coppélia e, ao mesmo tempo que todos estão tão animados por abraçar um repertório mais cômico e diferente do de costume, estamos também sentindo sua falta. Estou surpresa que nenhuma das meninas decidiu puxar as redes dos coques das outras para disputar a vaga principal literalmente com as próprias mãos.
riu, enquanto meneava a cabeça.
— Elas não farão isso porque foram muito bem ensinadas sobre méritos e sabem que o melhor jeito de conquistar algo na companhia é se sobressaindo. Elas provavelmente nem tem mais unhas de tanta ansiedade e noites mal dormidas ensaiando até tarde.
Katerina concordou, expirando o ar de seus pulmões com um pouco mais de força.
— Como está o pé?
A jovem estendeu o tornozelo, realizando os movimentos de eversão e inversão que já estava cansada de repetir insistentemente ao longo dos últimos meses.
— As dores são menos frequentes - respondeu. — Estou ganhando mais confiança para andar e pisar com mais firmeza, sabe? No começo, parecia que eu ia ser engolida pelo medo de pisar em falso em uma calçada e viver aquele pesadelo inteiro de novo.
— Então está recuperando sua confiança - a outra apontou. — Fico feliz. Insegurança não combina com você.
— Nem essa monotonia sem fim, mas cá estamos - brincou, não vendo graça nenhuma.
— Acho que basta de fornecer grãos para seu moinho de autopiedade. Por Deus, mulher! É um ligamento estourado não um diagnóstico terminal. E fazem meses.
— Não é tão simples assim quando a sua vida simplesmente para por causa disso.
— É sobre isso que eu queria falar com você. - Katerina respirou fundo, puxando a mecha branca de seus cabelos da frente de seus olhos. — O que acha de voltar?
apertou as sobrancelhas, como se aquele movimento fosse capaz de fazer seus neurônios se aproximarem mais rápido e entender o que lhe estava sendo sugerido naquele momento.
— Não estou entendendo.
— É claro que está, não estou falando russo. Estou sugerindo que você volte a frequentar os ensaios.
— Para dançar?
A gargalhada irônica de Katerina pareceu esmurrar a redoma de vidro de sua descrença completa.
— Não, bobinha. Para reformar os espelhos - disse, rindo. — É lógico que é para dançar, .
— Eu posso te jurar de pés juntos em nome de qualquer que seja o deus em que você acredita que não existe absolutamente nada nesse mundo que eu gostaria mais do que isso. Mas eu não sei se consigo.
— Bom, não vai saber se não tentar, não é mesmo? Você precisa começar em algum ponto.
— E eu estou bem enferrujada.
— Não é o que eu ouvi por aí. E, de toda forma, também estamos preocupados em preservar a sua saúde, então a ideia é um pouco diferente.
— Como assim?
— Pensamos em te direcionar mais para atos em dupla do que rotinas solo. Assim, você tem sempre alguém para te apoiar e te erguer nos passos mais difíceis e que possam, porventura, comprometer seu processo de recuperação.
— Vai colocar um desses meninos novos para dançar comigo e ficar berrando com eles até aterrorizá-los?
— Não. No caso, seu parceiro seria o . Tenho certeza de que está familiarizada com ele.
— Ele é bom demais para se contentar com atos menores em dupla. Jamais aceitaria isso.
— É aí que você se engana - Katerina disse. — Até porque foi ele quem sugeriu isso.
piscou algumas vezes, absorvendo o choque. era um ótimo rapaz e uma pessoa muito abnegada, mas aquilo parecia um tanto surreal até para ele.
— Nem mais um grão em seu moinho de autopiedade - Katerina ecoou, lembrando-a.
Fora o gatilho suficiente para que finalmente cedesse ao questionamento:
— Quando começamos?
— Cinco, seis, sete, oito - Katerina gritou, estalando os dedos para marcar o compasso da coreografia.
posicionou as mãos na cintura de , enquanto ela realizava um développé com a perna invejavelmente estendida.
Katerina observava, berrando as coordenadas dos passo do canto da sala e reclamando sobre cada passo milimetricamente fora de sincronia ou de tempo, que nenhum ser humano além dela própria seria capaz de perceber em um grande palco.
sentia uma gota irritantemente resignada escorrendo pelo vale mínimo sobre sua coluna. Era obrigada a admitir que sentia falta até daquele desconforto. Cada passo e cada movimento parecia reeguer um pedacinho de algo dentro de si, como em uma torre de ‘Jenga’. Estava reconstruindo a fundação levemente instável daquilo que era. Silenciosamente, agradecia aos braços firmes de por ajudarem a impedir que seu alicerce desmoronasse sobre a própria cabeça. Ou sobre o próprio tornozelo.
O começo tinha sido difícil, obviamente. Sua insegurança ainda se externalizava por mais que tentasse com todo o seu afinco e disposição fingir que ela não estava ali. Queria acreditar que seria capaz de fazê-la sumir se simplesmente a ignorasse por tempo suficiente. Além disso, tinha sido solista nas coreografias principais há tempo demais. Deixar-se guiar e ser erguida por outro era estranho como se alguma coisa não estivesse certa.
Mas aí ela tinha . que se esforçava incansavelmente para desmontar a ideia de que a última peça para completar aquele quebra-cabeça tinha lascado e não encaixava mais, deixando-o inevitavelmente incompleto para sempre. que tinha um sorriso irritantemente tranquilizador sempre que ela demonstrava qualquer vestígio de preocupação ou hesitação. que repetia com seriedade que não a deixaria cair. Às vezes ela preferia que não fosse tão fácil assim acreditar piamente em cada palavra que saía da boca dele.
— Acho que terminamos por hoje - Katerina anunciou. — Descansem porque amanhã ensaiaremos o dobro, agora que já pegaram a coreografia. Nada de aventuras corporais durante à noite.
revirou os olhos, rindo. Se todos os bailarinos realmente levassem em conta todas as recomendações da mulher, estariam em algum tipo de celibato. Mas ela entendia e respeitava aqueles direcionamentos. Às vezes.
Passou todo o caminho balançando a cabeça ao som da melodia impregnada na cabeça, enquanto os dedos seguiam uma dança minimalista que não poderia ser acompanhada em maiores proporções dentro de um táxi. O motorista deveria achar que ela era maluca, mas ela não se importava. Estava tão feliz e contente que até o ar de Nova York de repente parecia incrível, com uma nota de lavanda desacompanhada da poluição sonora. Nada poderia acabar com o seu dia.
— Onde você estava?
A voz de , sentado na poltrona da sala, ecoou pelo apartamento assim que ela abriu a porta.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.” - ela repetia mentalmente, tentando respirar tranquilamente; uma habilidade vital para momentos como aquele que ela já sabia que terminariam em conflito.
— No estúdio - respondeu simplesmente, enquanto deixava seu molho de chaves sobre o aparador da entrada.
apertou os olhos, travando a mandíbula por uma fração de segundos.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Posso saber o porquê?
deu de ombros.
— Porque eu estava ensaiando.
— Você sabe que não pode dançar.
O esforço que o homem estava depreendendo para não alterar o seu tom de voz era palpável na atmosfera que os circundava. Ela conseguia senti-lo pesando sobre seus ombros.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Posso saber o porquê? - Repetiu a pergunta dele, cruzando os braços à frente do corpo como se aquilo fosse capaz de defendê-la de alguma forma metafórica e ilusória.
se atrapalhou com as palavras, quase gaguejando enquanto tentava dosar sua fúria com a inquietude em ter de dizer o que lhe parecia óbvio e não o que queimava suas entranhas de dentro para fora.
— Porque você acabou de estourar o seu ligamento!
Ela respirou fundo, tentando ignorar o pulsar latejante de uma dorzinha incômoda no fundo de sua cabeça.
— Acho que temos concepções relativas muito diferentes de tempo. Não acho que uma lesão de meses possa ser exatamente considerada como recente.
— Eu só me preocupo com a sua saúde.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Nós também - ela garantiu, reagindo mais rápida e rispidamente do que tinha previsto. — Estamos fazendo tudo da melhor forma possível para que o retorno não me cause problemas. Pode ficar tranquilo.
— Nós? - fez questão de questionar o uso da primeira pessoa do plural. apertou os braços com mais força ao redor do corpo, sentindo a tensão de seus músculos vibrar.
— Sim. Eu, Katerina e .
O homem poderia explodir a qualquer momento. A pressão que fazia sobre seu próprio crânio ao apertar todos os seus ossos reforçava a vermelhidão de sua face e avisava que seu pavio curto estava prestes a fazê-lo entrar em combustão. desejou poder correr a tempo de se esconder dos estilhaços.
“Nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia, nada vai acabar com o meu dia.”
— Você sabe que eu não gosto nada desse .
— Bom, ele é meu colega de trabalho assim como as pessoas que trabalham no seu escritório.
— Você sabe que não é a mesma coisa.
— Não, eu não sei.
suspirou com força, passando os dedos pelos cabelos com certa violência.
— Meu trabalho não é físico, - ele murmurou; as fagulhas de raiva tomando o espaço do esforço em prol do autocontrole. — Você não pode esperar que eu fique confortável com algo assim.
— Não, eu não espero. Você sempre fez bastante questão de criticar o meu trabalho e deixar bem claro como detestava o que eu fazia. Ficou óbvio quando você não apareceu em nenhuma das minhas estreias.
— Não é um ambiente saudável.
— Na verdade, é um ambiente incrivelmente saudável. Literalmente eu trabalho fazendo atividade corporal e física e não poderia ser mais saudável por isso. Todos nós respeitamos e admiramos muito um ao outro e o público está ali por entretenimento artístico, que não deixa de ser uma forma saudável e cultural de lazer.
— , por Deus! A exposição, os movimentos… É promíscuo!
Ela queria gritar. Gritar usando todos os palavrões que tinha aprendido durante a adolescência. Respirar naqueles momentos era muito mais difícil do que controlar a sua respiração durante a dança. Sua frequência cardíaca queria revidar aquele absurdo.
— Promíscuo? Sério? , eu sou uma bailarina, não uma atriz pornô.
— Não faz tanta diferença assim quando você também tem as mãos dos outros sobre o seu corpo.
A mulher apertou os olhos enquanto respirava profundamente. Não queria acreditar que tinha mesmo ouvido aquelas palavras. Sempre que pensava que havia atingido o auge da falta de bom senso, ele parecia dar um jeito de acabar se superando.
— Sinceramente, eu não acredito que eu estou ouvindo esse tipo de merda - despejou. — Até porque você reclamava quando eu era solista também. Eu realmente não sei qual é a porra do seu problema.
apoiou os cotovelos contra os joelhos, enterrando a cabeça nas mãos. O peso do próprio corpo tinha sido solto de uma forma um tanto desajeitada sobre aquele apoio medíocre.
— Eu amo você, . É difícil para mim - murmurou.
desviou o olhar, encarando o corredor, tão tentador, à sua frente. Sabia exatamente qual seria a fisionomia de piedade que ele traria e ela não estava disposta a encará-la.
— Eu vou tomar um banho - colocou um fim à discussão e seguiu ao banheiro da suíte, certificando-se de que a porta estava trancada.
Inclinou a cabeça em direção aos ombros alternadamente, sentindo o pescoço dando leves estalos enquanto a água morna escorria pela pele nua. Os olhos fechados a acolhiam na agradável escuridão daquele vazio em que os problemas poderiam fingir estar ao lado de fora, mesmo que por míseros e ínfimos instantes.
Esfregou os braços, as axilas, os seios, as pernas e os pés, enquanto queria mesmo poder esfregar a sua memória e deletar as cenas tão claras, atormentadoras e recentes. A fricção exagerada da esponja contra a sua pele começava a sinalizar os primeiros sinais de dor e vermelhidão. não se importou. Estava inerte.
A única motivação para interromper o fluxo de água pelo chuveiro era a consciência ambiental corroendo-a por dentro. E talvez a conta ao fim do mês. E a infeliz consciência de que fechar o ralo e deixar o banheiro se encher causaria mais danos, prejuízos e dores de cabeça com reformas futuras do que algum tipo de satisfação e esquecimento efêmero de que a água não poderia levar os problemas embora pelo esgoto.
Vestiu um pijama confortável sem se preocupar com o fato de que o sol ainda não havia decidido se pôr. Encolheria-se entre os cobertores como uma lagarta em um casulo, mesmo que o dia estivesse um tanto distante de encontrar o seu fim. Duvidava fortemente de que pudesse metamorfosear-se em uma borboleta ao fim daquilo. Provavelmente apodreceria silenciosamente e só em seu próprio invólucro de falsa segurança.
— , podemos conversar?
A voz de , parado à porta sem coragem de erguer o olhar, era tão baixa que ela quase cedeu à vontade de ignorá-la como se não passasse de um zumbido inconveniente de um inseto insignificante.
— ? - Ele tentou de novo.
Ela sabia bem que a persistência era uma de suas virtudes mais insuportáveis.
Foi ela quem teve a coragem - se é que poderia chamá-la assim - de encará-lo; a fisionomia tão impassível que poderia muito bem estar exposta entre as estátuas de um dos acervos do museu.
— Me desculpa, ok? Eu extrapolei.
Ela não se moveu. Se pudesse, teria dado um jeito de nem sequer piscar.
— Eu sei que perdi a cabeça e disse coisas que não deveria ter dito. Você é maravilhosa e muito boa no que faz.
— Como você poderia saber se sempre se esforçou ao máximo para ignorar a origem do dinheiro que pagava as viagens que fizemos?
respirou fundo, apertando os lábios em uma linha tão fina que quase desapareceu como queria fazer naquele instante.
— O que eu quero dizer é que exagerei e estou pedindo desculpas. Espero que entenda.
Ela não entendia. Nem um pouco.
— Mas, poxa, você já parou para pensar como é difícil para mim? - Ele prosseguiu e ela soube que não havia reconhecimento algum de culpa assim que o primeiro “mas” surgiu em seu discurso. — Imaginar aquele cara te tocando do jeito que só eu deveria te tocar. Eu não tenho estômago para isso, . Eu sinto muito.
— Acho que o problema é que você ainda não entendeu o conceito de dança ou de arte performática. Você acha que as atrizes dos filmes que você gosta estão traindo os companheiros quando beijam ou até praticamente transam com outros em cena? Chama atuação e não é tão diferente do que eu faço. Com certeza eu não beijei ninguém e nem fiquei pelada para o mundo inteiro ver. A diferença é só essa.
— Eu sei, eu sei - garantiu; a respiração descompassada traindo a sua tentativa de manter uma postura calma e apaziguadora. — Só é… Difícil.
Ela evitou ceder à tentação de revirar os olhos. Aparentemente, ele gostava demais daquela palavra.
— Eu só tenho medo, , e você deve imaginar como é horrível para um homem ter que baixar a guarda e admitir algo assim. Todo santo dia eu morro de medo de te perder. Eu te amo. Quero me casar com você, quero ter os três filhos que sempre conversamos, quero que possamos nos mudar para uma casa com quintal para que eles vivam de uma forma mais saudável e possam ter cachorros se quiserem. Eu tenho literalmente uma vida inteira que rezo todas as noites para poder ter ao seu lado. Não me odeie por ter medo de perder isso. Não me culpe por te amar demais.
Ela mordiscou a parte interna da bochecha, dando tempo a si mesma para assimilar e absorver aquelas palavras. Uma enxurrada de belas memórias, planos e risadas tomando sua mente. Lembrava-se perfeitamente do dia em que dissera a Linda que tinha certeza de que era o grande amor de sua vida. Infelizmente, também se lembrava com precisão do momento exato em que sentira fiapos de dúvidas se entremeando à costura de tudo aquilo que teceram juntos.
Mas ele a amava. Ele tinha colocado uma aliança linda de ouro rosé em seu dedo anelar. Ele tinha ficado ao seu lado por todo aquele tempo e tinha conseguido três dias de folga no serviço para acompanhá-la nos primeiros exames quando se lesionou. Ele conhecia seus pais e jurara a eles que a faria a mulher mais feliz de todo o mundo. Ele queria três filhos, um quintal amplo e uma alegria que a invejava intensamente mesmo que só pertencesse a algum tipo de mundo das ideias de teor quase platônico.
Ela não poderia simplesmente desistir. Sua mãe fizera questão de assegurar que ela soubesse disso desde a primeira grande discussão que tiveram como casal.
“Os não desistem” ela dissera. “Homens são cabeça dura, estressados e não sabem o que dizem, mas isso não faz com que eles te amem menos”
Respirando fundo e empurrando o seu desconforto goela abaixo, permitiu que ele ocupasse o seu lugar ao lado da cama.
— Espero que essa seja a última vez - disse secamente.
— Será - ele assegurou.
A mulher pegou o controle remoto da televisão, ligando-a na tentativa de fazer com que o volume do aparelho conseguisse superar o som agudo e doloroso das sirenes dentro de si avisando-a de que ele estava mentindo, mesmo que não soubesse disso.
— Perfeito, perfeito, perfeito! - Katerina bradou. — Não mudem absolutamente nada ou eu serei obrigada a iniciar uma revolução russa no país de vocês.
— Eu sou cubano - disse, recebendo uma careta de desprezo de quem não se importava e risadas de .
— Enfim, ficou incrível. Só precisam treinar o… Bom, vocês sabem.
perdeu o humor de segundos atrás instantaneamente, sentindo sua garganta secar. A coreografia estava perfeita: todos os passos tinham sido cuidadosamente repassados mil vezes, ela e tinham conseguido uma sincronia e química perfeitas e até mesmo Katerina, em toda a sua gigantesca exigência, parecia estar mais satisfeita do que nunca.
Havia apenas um pedaço da coreografia, um passo que levaria segundos, que eles ainda não haviam começado a ensaiar. Só de pensar nele ela já sentia todos os pelos de seu corpo se eriçando, reagindo ao instinto autonômico simpático de luta ou fuga. Nesse caso, especialmente de fuga.
— , você consegue - Katerina disse, calmamente, olhando no fundo de seus olhos como se pudesse derreter seus medos e receios encarando-a daquela maneira.
, entretanto, não tinha tanta certeza assim. Havia ganhado confiança e recuperado a prática de várias maneiras, ao ponto de, às vezes, conseguir passar vários minutos sem se lembrar da fatalidade que lhe ocorrera. Mas a sua segurança continuava encontrando como obstáculo o fantasma de seu passado, mesmo tão longe do Natal. A lembrança de seu corpo encontrando o chão sem graça e delicadeza alguma e dos exames de imagem lhe dando as más notícias lhe corroía.
— Eu não posso - disse em um fiapo de voz.
— É claro que pode - a coreógrafa se manifestou novamente. — Acidentes acontecem. Algumas semanas atrás você achava que nem ia voltar a dançar tão cedo e agora executou uma coreografia complicada completa sem nenhuma possibilidade de se encontrar defeitos. Você consegue fazer o grand jeté.
meneou a cabeça lentamente, sem conseguir lutar contra seu próprio subconsciente sabotando-a. Aquela era uma ideia terrível. A pior de todas.
— A gente não pode simplesmente encontrar um outro passo para encaixar nessa transição?
Katerina permaneceu impassível. É claro que sua resposta seria uma indiscutível negativa.
— Espero não estar com a cabeça inteira branca quando você finalmente decidir sair do lugar.
inspirou profundamente, soltando o ar com força na sequência. Sua cabeça estava a mil, como se estivesse participando simultaneamente de uma festa de carnaval brasileira, uma corrida de fórmula 1 e um teste de motores de aeronaves. Definitivamente, havia muita coisa acontecendo ali dentro e ela não saberia distinguir várias delas além do óbvio e inevitável medo.
— Ei - chamou, oferecendo um sorriso tranquilizador e aconchegante. — Você consegue.
Ela assentiu nervosamente.
— Consigo, né? É claro que consigo - falava mais com si mesma do que com as pessoas ao seu redor. — Não, não consigo.
— Você estava indo bem - Katerina disse, esperando que ela recobrasse seus instantes de coragem.
— Eu te seguro - o rapaz se adiantou na oferta. — Quer dizer, se você preferir. Se for te deixar menos nervosa.
engoliu em seco, escutando seu conflito interno produzir ecos ensurdecedores. Precisava superar seu medo. Precisava desatar o nó daquela âncora prendendo seus pés a um receio traumático. Já tinha feito aquilo centenas de vezes perfeitamente e continuava se martirizando por um episódio único.
— Ok. Mas se você não me segurar, eu juro que vou embora e não volto.
concordou, posicionando-se a uma distância segura e, ao mesmo tempo, suficiente para apoiar sua cintura, impedindo que o retorno ao chão fosse mais brusco do que o necessário, oferecendo um reprise do acidente de meses atrás que não valia nada a pena ver de novo.
Ela inspirou e expirou repetidamente, tentando convencer a si mesma de que estava calma e, principalmente, pronta. Após alguns instantes, permitiu que seu corpo se movesse; as mãos posicionadas de forma precisa e delicada, o pescoço alongado e as pernas esticadas ao máximo, antes de ser devolvida ao chão.
Sentiu seu coração batendo excessiva e assustadoramente rápido, mas só conseguiu rir. Uma risada tão nervosa quanto ela. Havia conseguido. Katerina aplaudia alegremente, enquanto sorria, parabenizando-a.
— Eu não quero ser a pessoa a dizer que avisou. Mas eu bem que avisei - disse a coreógrafa. — De novo.
— Não sei se consigo fazer de novo - ponderou, tentando recuperar seu ritmo respiratório em meio à excitação que corria de repente pelas suas veias.
— Minha paciência para esperar sua boa vontade acabou - Katerina rebateu. — A partir do momento em que você consegue fazer uma vez, consegue repetir outras. Então, de novo.
caminhou sobre o linóleo mais uma vez, conseguindo o espaço na sala para realizar mais um grand jeté. Dessa vez, contudo, as mãos de , já tão familiares, não encontraram seu torso em momento algum do trajeto. Ao retornar ao chão, sentiu seu rosto ficando vermelho, borbulhando em desespero e vontade de socá-lo por não tê-la segurado.
— Seu idiota! Era para ter me segurado - reclamou, com a voz alterada, mais alta e estridente do que o necessário. — Era esse o nosso combinado. Eu avisei que iria embora.
— - ele tentou intervir, mas ela não pareceu disposta a lhe dar um segundo sequer de sua atenção.
— Nem começa. Eu nunca deveria ter aceitado essa ideia maluca de vocês. Eu sabia que não estava pronta. E vocês ainda ficam brincando comigo desse jeito.
— - ele falou mais alto dessa vez, obrigando-a a parar. — Será que você pode parar de surtar por dois segundos e perceber que você conseguiu? E conseguiu sozinha. Eu só queria te provar que você ainda era plenamente capaz.
Nunca em toda a sua vida ela tinha se sentido mais idiota e estúpida do que naquele momento. Chegava a ser vergonhoso perceber o quão bizarramente tosca ela precisava ter sido para não perceber o óbvio. Mas não foi difícil engolir o embaraço quando um sorriso largo e animado brotou em seus lábios.
— Eu consegui - disse baixinho, antes de quase berrar: — Eu consegui!
Lágrimas de alívio, orgulho e satisfação brotaram de seus olhos. Seu tornozelo estava ótimo. Parecia nem ter assimilado o que ocorrera ali ao longo dos últimos minutos. A adrenalina corria em conjunto com os neurotransmissores de seu sistema de recompensa, inundando-a com uma sensação infinita de gratificação pelo seu momento.
— Sem mais grãos para seu moinho de autopiedade - Katerina disse, recebendo um sorriso enorme e emocionado em resposta.
— Nem unzinho sequer - ela garantiu, limpando os cantos dos olhos de sua umidade contínua.
— Quer repetir? - A mais velha perguntou, tendo como resposta uma movimentação de cabeça que negava.
— Já está tarde - explicou-se. — vai me buscar para jantarmos em um lugar especial como comemoração ao nosso aniversário de noivado.
A outra mulher fez uma careta, não fazendo questão alguma de tentar esconder o revirar de olhos praticamente teatral desempenhado.
— Vocês comemoram cada coisa. Casem logo para comemorar o aniversário de casamento. Onde já se viu - reclamou, ranzinza.
deu de ombros, ainda sem conseguir desmanchar a fisionomia iluminada e contente que trazia.
— Quem sou eu para negar um jantar? Bom, vou aproveitar para tomar um banho antes que ele chegue.
Com acenos rápidos, afastou-se dos dois, correndo para o vestiário.
Tratou de logo ocupar um dos chuveiros individualmente fechados e deixou que a água escorresse livremente pelo rosto, incapaz de carregar a vontade engasgada de gritar e gargalhar pelo seu avanço. Havia sentido falta de momentos de felicidade plena como aquela, em que a mais pura alegria simplesmente se aloja no peito e não se apressa a ir embora. Queria aproveitar o seu tempo. Um belo jantar era exatamente o que ela precisava para fechar aquele lindo dia com chave de ouro.
Mais cedo, havia lhe acordado com um beijo carinhoso e sugerido um jantar romântico no mesmo restaurante em que lhe pedira em namoro anos atrás. Queria que curtissem aquela data especial, lembrando-se dos primórdios de como tudo começou; dos seus primeiros passos ao longo daquela caminhada.
não discutira. Sinceramente, estava contente que ele já tivesse lhe abordado com a decisão tomada. Preferia não ser obrigada a opinar em relação ao que comer, pois sempre demorava e nunca conseguia se decidir. Além disso, lembrava-se de forma afetuosa e esfomeada do prato divino de massa fresca com camarões vistosos que comera lá na primeira vez. Só a imagem em suas lembranças já parecia evocar os aromas, os gostos e a sua boca enchia d’água, preparando-se em expectativa.
Queria uma bela taça de chardonnay, uma música ambiente tranquila e a luz baixa, realçada pelas velas. Queria estampar seu sorriso juntamente à calça preta justa e à blusa vermelha decotada, mostrando mais pele do que costumava fazer em seu dia a dia. Era incrível como a felicidade lhe caía bem. Estava se sentindo ao menos cem vezes mais bonita.
Sentou-se em um dos bancos à frente da academia exatamente no mesmo instante em que pôde ouvir a primeira manifestação de um trovão não suficientemente distante dali. O céu parecia estar adquirindo mais tons de cinza do que os livros de E.L. James.
Seus calcanhares começaram a bater contra o chão, acompanhando algum compasso intermediário que demonstrava a ascensão gradual de sua ansiedade repentina. Não ia explodir. Não precisava se preocupar. Estava tudo bem e chegaria logo.
Puxou o celular da bolsa e abriu o contato do noivo, digitando uma mensagem apressada:
“Onde você está? Vai demorar muito?”
Logo viu seu status sendo alterado para online e, na sequência, pôde ler o “digitando…” dando graças a Deus por sua disponibilidade. Esperava que ele não estivesse mandando mensagens de texto enquanto dirigia, mas, ao mesmo tempo, meio que esperava que ele não estivesse tão longe dali. Soava bobo demais pedir para que a tempestade em formação esperar, mas ela estava disposta a ser tão boba quanto fosse necessário.
“Estou te esperando em frente ao consultório do seu fisioterapeuta. Achei que nos encontraríamos aqui.”
“Onde você está?”
O fato de ele ter repetido a sua pergunta fez seu estômago revirar em uma cambalhota única e desajeitada, sem cuidado algum. Ele sabia perfeitamente que ela tinha voltado a ensaiar. Não era como se aquele fosse algum tipo de segredo, especialmente quando tinha causado brigas e discussões tão intensas até tarde da noite.
Aquela só poderia ser uma piada. E uma piada de muito mau gosto.
“Na academia. Vai começar a chover logo.”
O alerta avisando-a de que ele estava digitando oscilou duas vezes antes de sumir por completo, devolvendo o lugar ao “visto por último” no aplicativo. respirou fundo, tentando afastar de sua mente a insistente imagem e apreensão de que isso seria motivo de conflitos por mais uma noite.
Não, não era possível. Ele sabia. Ele estava completamente ciente. Ele havia compreendido os próprios exageros e limites e pedido desculpas. Ele tinha dito que aquilo não se repetiria. Por menos intacta que estivesse sua confiança em suas palavras, contudo, sabia que precisava se agarrar a ela e simplesmente esperar. Com certeza ele só havia desistido de digitar porque seria mais prático e inteligente ir logo buscá-la, antes que a chuva torrencial começasse a produzir novos alertas de conscientização pela cidade sobre porque não jogar lixo nas ruas.
Então, ela esperou.
Fez as contas de quanto tempo levava de um lugar ao outro, já esperando a maior demora possível pelo tráfego do horário e considerando o azar de que acabasse enfrentando todos os semáforos fechados em cada um dos cruzamentos ao longo de seu caminho.
Ele já tinha demorado o dobro. Um trovão levando menos da metade do tempo recém-calculado até a chegada do próximo.
— Ele não fez isso comigo - murmurou sozinha, sentindo os olhos se enchendo da mais pura raiva.
A gota que escorreu pelo seu rosto, no entanto, não era de suas lágrimas. A chuva havia começado, engrossando rapidamente e se tornando tão pesada quanto seu peito naquele momento.
queria poder dizer que sentia tristeza. Seria um sentimento mais fácil de admitir e conviver. Mas a amargura de cada palpitação deixava claro o suficiente que o que ela sentia era ódio. Deus, como ela odiava aquela queimação no peito e o movimento involuntário de contração de seus dedos, fechando a mão em punho com força demais. Queria gritar com todo o vigor que restava em seus pulmões depois do choro e do esforço físico. Mas ele não valia aquilo. Ele não valia nada daquilo. Não valia por um segundo sequer de seu esforço.
O que mais lhe doía, entretanto, era perceber que não estava decepcionada com ele. A única pessoa com a qual estava decepcionada era ela própria. Ela quem cedera, ela quem decidira lhe dar mais uma chance mesmo sabendo, bem lá no fundo, que ele nunca mudaria. Que ele nunca seria capaz de suportar vê-la feliz. Não era capaz de vê-la tão feliz e não por causa dele. Ele que não sabia lidar com o fato de não ser o centro do universo. E ela que deveria saber melhor. Era uma idiota por estar bem ali, esperando na chuva forte por alguém que provara há tempo suficiente que não a merecia nem em seus piores dias. Ele não viria. Com a raiva que ela estava sentindo, era melhor mesmo que não se aventurasse a dar as caras.
Um carro cinza se aproximou de onde ela estava, abrindo a porta rapidamente. Embaixo de um guarda-chuva preto, caminhou a passadas largas até ela, tentando pular as poças correntes que se formavam no meio-fio.
— , pelo amor de Deus, o que você está fazendo aí parada no meio da chuva?
Ela cogitou ser sarcástica. Cogitou armar o escândalo que sua angústia queria fazer. Mas não era culpa dele. não merecia ser afetado pela bomba relógio que tinha feito dela.
— Ele não veio - respondeu, com um sorriso debochado. A piada? Ela própria.
— Puta merda - ele murmurou, descrente. Não poderia dizer que gostava do cara só pelas coisas que ouvira, mas aquilo era demais. — Entra, eu te dou uma carona.
— Não precisa se preocupar com isso. Eu peço um uber ou um táxi ou qualquer coisa.
— Até chegarem você já vai ter contraído uma pneumonia sentada aí. Não é hora de ser teimosa. Por favor.
finalmente cedeu, entrando no carro enquanto dava a volta e jogava o guarda-chuva ensopado no chão dos assentos traseiros. Ela olhou para a própria roupa encharcada, dando-se conta do óbvio:
— Puta merda, , eu vou molhar o seu carro inteiro.
— Água seca - ele afirmou, dando de ombros sem se importar. — Acho que não é uma boa ideia eu te deixar na sua casa.
Ela nem tinha chegado a pensar naquilo. Não estava pronta para bater de frente com . Precisava de tempo para digerir a situação internamente antes de decidir que passo daria a seguir.
— É. Acho que não.
coçou a cabeça, enquanto as engrenagens de seu cérebro giravam, tentando pensar em alguma coisa.
— Eu posso te levar ao meu apartamento. Você toma um banho, eu te empresto umas roupas. Podemos pedir alguma coisa para comer. Daí você tem um tempo para esfriar um pouco a cabeça.
— Acho que já fiz isso com essa chuva gelada do inferno.
— Engraçadinha. Estou falando sério. Por favor, me ajuda a te ajudar.
A mulher ponderou por alguns segundos. Não era como se tivesse uma opção melhor.
— Pode ser. Obrigada. De verdade.
— É para isso que os amigos servem - ele respondeu com um sorriso, antes de dar partida no carro.
passou todo o caminho em silêncio absoluto, olhando fixamente para a janela, apostando que gota venceria a corrida cruzando o vidro primeiro. Era a forma mais interessante de ocupar sua mente no momento.
No apartamento de , deixou os sapatos na entrada, recebendo logo duas toalhas grandes e felpudas, uma calça de moletom larga e uma blusa branca simples de algodão.
Após um banho quente, ela colocou as roupas dele, estranhando o perfume masculino novo em suas narinas. Era estranho, mas de um jeito agradável. Sentia-se indiretamente abraçada e, por mais que não fosse admitir de forma alguma, meio que precisava disso.
Tão logo saiu do banheiro, sentiu um novo aroma roubando sua atenção. apareceu rapidamente no corredor, também de banho tomado, com os cabelos molhados penteados para trás.
— Fiz um chá de camomila para ajudar a aquecer. Não sei se você gosta.
Ela aquiesceu, forçando um sorriso em agradecimento ao permitir que seus dedos encontrassem o calor da porcelana quente que lhe era gentilmente oferecida.
— Acho que você não deve querer falar sobre isso agora - ele começou. — Mas eu sinto muito que seu dia não tenha acabado da forma que você esperava.
Ela deu de ombros, enquanto deixava que um longo gole corresse quente por sua garganta.
— Não posso dizer que é uma atitude inesperada. Esse que é o problema, sabe? No fundo, eu sabia que seria exatamente assim. Então, a culpa é meio que minha.
franziu o cenho, fazendo um barulho estranho enquanto balançava a cabeça em negação, com a boca cheia.
— Não se culpe - disse, assim que engoliu. — Não faz sentido algum. Ele te deu o bolo. Em que universo isso poderia ser sua culpa?
esboçou um sorriso triste. Sentia-se culpada não por ter sido abandonada e, sim, por ter insistido e acreditado em uma noite agradável e um momento especial quando sabia que ele era o tipo de cara que a abandonaria. Especialmente no meio daquela chuva brutal que caía com toda a força lá fora, como se o mundo tivesse sido pausado apenas para que ela pudesse cumprir seu fim.
— Ele odiou quando eu contei que tinha voltado a ensaiar. Fez o maior escarcéu. Mme disse coisas horríveis que eu não merecia ouvir.
O homem à sua frente se ajeitou contra o sofá, demonstrando seu desconforto em cada detalhe de sua linguagem corporal. Dançarinos conseguiam ser expressivos até nisso.
— Ele nunca foi o maior fã de ballet, não é?
— Ele nunca foi o maior fã do fato de eu estar no ballet - corrigiu. — Acha que é uma exposição corporal gratuita e queria me convencer de que estava certo em ter ciúmes.
franziu o cenho, abandonando sua xícara de chá por alguns instantes.
— Ciúmes? De quê?
Quando a mulher não lhe deu uma resposta rápida, direta e objetiva, ele compreendeu quem era a raiz do suposto problema sob o ponto de vista de seu noivo.
— Droga, . Me desculpa. Eu não queria ter atrapalhado nada entre vocês. Juro do fundo do coração. Eu me sinto péssimo por isso.
repousou a mão em seu ombro, encarando-o com os olhos sérios e gentis, buscando transmitir a ele a única certeza que ela carregava consigo naquele momento:
— Não é culpa sua. Se fosse outra pessoa, ele também reagiria mal. Capaz de colocar na cabeça que eu nutria uma paixão ardente e proibida por Katerina.
riu de leve, concordando.
— Então… O que você vai fazer?
Ela respirou fundo, percebendo que verbalizar as coisas era sempre mais complicado do que parecia. Dizer aquilo com todas as letras e permitir que suas palavras ganhassem sonoridade a quem quisesse ouvir era torná-las irremediavelmente reais. Mas ela já tinha passado tempo demais escondendo-as em uma gaveta no fundo de si. Era hora de deixar que elas viessem conhecer o mundo do lado de fora.
— O que eu já deveria ter feito há muito tempo - disse, surpresa com a mansidão com a qual sua oração veio à tona.
Ele assentiu.
— Pode dormir aqui hoje, se quiser.
concordou prontamente.
— Obrigada, . De verdade.
— Disponha. Alguma oposição a pedirmos uma pizza?
— No dia em que eu me opuser, por favor, me mate.
Entre risadas, ele correu até o telefone, procurando o ímã da pizzaria em algum lugar sobre o armário. observou cada um de seus movimentos com o olhar vazio. Estava ocupada demais finalmente enxergando o que havia dentro de si.
lhe ofereceu uma carona até seu apartamento pela manhã, depois de tomarem café pelo caminho. Só se convenceu a dar partida no automóvel e ir embora quando ela afirmou - pela quinta vez seguida - que conseguia dar conta da situação dali para frente e, por mais que agradecesse imensamente sua gentileza e preocupação, precisava enfrentar seus próprios demônios sozinha e de uma vez por todas.
subiu pelas escadas, em uma tentativa de aliviar seu estresse e ansiedade no esforço físico. Cada degrau acompanhava um pensamento, um receio, uma ideia de frase impactante para usar durante a inevitável discussão. Sabia que não adiantava planejar aquilo como em um roteiro de filme. No fim das contas, diria as primeiras coisas que viessem à cabeça, sem tempo de pensar direito enquanto as respostas problemáticas dele lhe acertassem. E, dessa vez, ela realmente não estava com um pingo sequer de paciência para elas.
Virou a chave na porta, sentindo o coração batendo acelerado. Assim que trancou a porta novamente atrás de si, ouviu a voz masculina pela qual estava esperando.
— Não faz nem questão de passar a noite em casa mais - seu tom era quase questionador, mas muito mais afirmativo. — Cansou de fingir que não me coloca um belo par de chifres sempre que sai por essa porta?
“Não” - ela repetia a si mesma. - “Você não vai virar a situação e fazer isso ser sobre mim.”
— Se eu bem me lembro, foi você quem me deixou plantada esperando no meio de uma puta chuva em vez de aparecer para me buscar como combinamos.
— Você sabe muito bem que eu nunca concordei com essa história de voltar à academia.
— E você sabe muito bem que eu não pedi a sua opinião e muito menos a sua autorização para voltar a trabalhar.
gargalhou com todo o peso da ironia que carregava como armas carregadas, tentando feri-la; tentando fazê-la recuar como se estivessem em um duelo de forças e ela precisasse saber que perderia.
— Eu sou o seu noivo, .
— Não o meu dono - ela emendou. — Não me lembro de ter assinado algum tipo de contrato dizendo que preciso que você decida a minha vida por mim.
— Isso aqui não deixa de ser meio que um contrato - ele disse, apontando para a aliança em seu dedo.
Ela sentiu o sangue fervendo. Retirou a aliança do dedo, jogando-a na mesa de jantar, praticamente a única coisa que se colocava entre eles, impedindo que as coisas fossem ainda piores.
— O que você pensa que está fazendo? - questionou, exasperado.
— Cancelando seu “contrato” ridículo e inexistente. Se um aro de metal no meu dedo significa que sou sua posse, pode ficar.
— Como se eu fosse permitir mesmo que a minha noiva, além de tudo, agora decida sair desfilando por aí sem aliança, apenas esperando algum marmanjo na espreita para se aproveitar da situação.
não conseguiu evitar a gargalhada de incredulidade.
— Meu Deus, a sua cabeça funciona de formas absurdamente bizarras. Você deveria se voluntariar para pesquisas psicanalíticas.
— Você está mesmo fazendo piada da situação?
— Não, querido. Você já se faz de piada bem o suficiente sozinho. E, caso não tenha entendido, eu posso te dizer com todas as letras e palavras. Não somos mais noivos. Não somos mais absolutamente nada.
“Eu cansei das suas merdas. Cansei dos seus surtos de ciúmes, do seu desrespeito ao meu trabalho e dessas brigas contínuas porque você não consegue aceitar quem eu sou. Eu não vou me moldar na boneca de escritório e saia nos joelhos que você quer só para melhorar o seu ego e a sua insegurança. Seu problema é com você mesmo, não comigo. E eu não vou perder mais um segundo sequer esperando que você magicamente entenda isso.”
— Ah, agora eu sou o problema? Foi você quem passou a noite fora!
— Eu passei a noite fora porque o imbecil do meu ex-noivo decidiu não cumprir com o combinado e me largar parada na chuva feito uma idiota só porque estava tendo mais um chilique baseado nas informações que você inventou na sua cabeça.
— Para com esse papo de ex, . Isso é ridículo.
— Não, . Ridículo seria eu te perdoar mais uma vez. Eu fui clara quando disse que esse tipo de coisa não se repetiria.
O homem engoliu em seco, parecendo transtornado, olhando para os lados como se buscasse o que poderia dizer, o que poderia fazer.
— Acho que você facilita a vida de todo mundo tendo a decência de não me esgotar mais com essa conversa que não vai nos levar a lugar algum.
— Você não entende - sua voz saiu mais baixa, mais mansa. — Eu surtei, ok? Eu sei disso. Mas o que você esperava? Eu ia te levar para jantar e comemorar nosso aniversário depois de você ter passado o dia nos braços de outro?
— Eu literalmente acabei de falar sobre esgotamento, . Esse papo furado já se esgotou. Não despeje suas inseguranças e expectativas sobre mim. Você soube quem eu era e o que eu fazia desde o primeiro dia.
— Eu pensei que você fosse parar quando nos casássemos.
Ela fez uma careta de choque. Não era possível que ele realmente tivesse se iludido a esse ponto.
— Você esperava que eu fosse largar o meu emprego, a minha carreira e a coisa que eu mais amo na vida só porque você criou paranoias na sua cabeça?
— Eu esperava que eu fosse a coisa que você mais amava - ele rebateu, ofendido. — Esperava que isso fosse o suficiente.
meneou a cabeça.
— Não é assim que o amor funciona, . Amor não destrói o outro só para reconstrui-lo do seu jeito. Se você quisesse mesmo me amar, teria de ser como sou. Não esperando a minha versão melhorada especificamente para você.
— Você não tem o direito de questionar os meus sentimentos por você.
— Acho que eu tenho, sim. Nunca vou ser quem você quer. Não vou deixar de dançar. Não vou deixar de ter colegas, sejam eles homens ou mulheres. Não vou viver trancada nesse apartamento só porque isso vai te fazer menos inseguro.
— , me escuta - suplicou. — A gente pode consertar as coisas. Sei que podemos.
— Não. Eu me machuquei por tempo demais me obrigando a acreditar nisso.
— Não podemos desistir fácil assim - ele tentou novamente, fazendo-a se lembrar do discurso de sua mãe. Deus, seus pais ficariam totalmente decepcionados quando soubessem que tinha colocado um ponto final naquele noivado.
Bom, eles também teriam que aprender a lidar com a própria frustração.
— , a gente acaba aqui. Por favor, arruma as suas coisas e vai embora.
Os movimentos dele se tornaram mais enérgicos, tendendo a uma agressividade da qual ela já estava preparada para se esconder. Não fora à toa que escolhera esperar tão perto da porta da cozinha, preparada para se trancar se fosse necessário.
— Eu não vou a lugar algum - ele rebateu, a voz vários tons acima do seu natural. — Essa é a nossa casa.
— Não. Esse é o meu apartamento. Eu o comprei com o dinheiro das turnês fazendo aquilo que você tanto ama - acrescentou, com um sorriso irônico. — Você teve uma estadia por aqui e ela chegou ao fim.
— Você é louca. Eu não vou fazer isso. Sei que você vai se arrepender e voltar para mim.
— Melhor esperar sentado. De preferência em uma cama confortável em um hotel, porque na minha que não vai ser.
— Vou fingir que não tivemos essa conversa, ok? Eu te perdoo pelo que fez. Vamos só seguir as nossas vidas.
Ela queria gritar de volta. Ele a perdoava? Que porra ele tinha para perdoar? Na primeira vez em que Linda tentara trazer à tona o tópico de abusos psicológicos dentro de um relacionamento - de forma nada sutil -, pensara ser exagero. Agora, ela enxergava a verdade despida bem à sua frente.
— Vou dar uma volta no parque. Você tem vinte minutos para tirar as suas coisas do meu apartamento antes que eu volte ou vou chamar a polícia.
Sem dar tempo para que ele respondesse, ela deixou o apartamento, pegando o elevador dessa vez. No caminho curto até o térreo, respirou fundo repetidamente, colocando para fora todo o peso que lhe assolava os ombros. Era assim que acabava. E, ao contrário do que ela esperava, não parecia prestes a desmoronar.
— Não vale olhar - reclamou, vendo que ela tentava espiar pelo espaço entre os dedos cobrindo o rosto.
— Ai, que demora. Acho bom valer a pena.
— Certo, certo. Pode abrir.
finalmente olhou para a caixa que tinha sido colocada à sua frente, soltando um suspiro contente.
— Meu Deus, - comentou, ainda com sua atenção completamente focada no conteúdo. — Eu nunca te adorei tanto.
Pegou um dos morangos cobertos com chocolate e enfiou na boca, deixando um gemido de satisfação escapar pelos lábios.
— Fazia tanto tempo que eu não comia um desses.
— Sei que é seu doce favorito - ele disse, sorrindo. — Daí pensei que, bom, se vamos mesmo ficar ensaiando até tarde, merecemos um prêmio.
riu, escondendo a boca enquanto terminava de mastigar.
— Me sinto um cãozinho em adestramento.
— Existe algum concurso de dança para cachorros? Talvez devêssemos nos inscrever em um desses.
— Cuidado com o que fala - ela alertou. — Essas paredes têm ouvidos e todos eles cochicham diretamente para Katerina.
riu, pegando um morango.
— Sei disso por experiência própria.
Estavam sentados em uma das salas, comendo em um intervalo que eles mesmos decidiram se dar após horas de ensaio e antes de várias outras. Se já estavam sendo comprometidos ao extremo antes, agora que a estreia se aproximava, precisavam triplicar o empenho e o esforço. Por mais que parecesse que tudo estava perfeitamente sincronizado e decorado, sempre havia alguma forma de melhorar ainda mais a performance. E tinham prometido um ao outro que fariam o seu melhor para que aquele fosse um ato a ser lembrado.
— Eu tive uma ideia para a gente relaxar - comentou, tirando a caixa de perto dela e recebendo um grunhido em reclamação. — Vem, levanta.
— Eu só quero meus morangos, . Para de ser assim.
— , eu vou jogar esses morangos fora se você não levantar.
A mulher revirou os olhos, obedecendo-o a contragosto. Ficou observando emburrada enquanto o homem colocava uma música conhecida no celular.
— Sério? - Ela perguntou, rindo.
— Muito sério. Tenho certeza de que você sabe a coreografia.
E como sabia. Dirty Dancing tinha cumprido um importante papel no processo de enfiar em sua cabeça que dançar era tudo o que ela queria fazer da vida.
sabia precisamente cada um dos passos dentro do tempo exato entre as palavras entoadas por Bill Medley e Jennifer Warnes. não ficava para trás. Mesmo que nenhum dos dois tivesse maturidade para não rir na primeira vez em que ele a jogou para trás.
Era tão diferente do ballet, mas estavam mesmo se divertindo, estando - talvez literalmente - mais próximos do que nunca.
— Because I’ve had the time of my life - cantou desafinadamente, fazendo rir, enquanto tentava não perder o ritmo.
— Entendi porque seu negócio é dançar e não cantar.
Ela mostrou o dedo do meio para ele, enquanto continuava girando com a destreza de quem já tinha feito aquilo muitas vezes.
O grande e impactante momento da canção - graças à cultura de massa produzida pelo filme - se aproximava e tomou distância, encarando-a de forma desafiadora.
— Pronta?
— Cala a boca, tem coisa pior até na nossa coreografia - ela pontuou, antes de correr até ele e se jogar, abrindo os braços e usando a força abdominal para centralizar seu ponto de gravidade onde os braços dele a seguravam.
Terminaram a coreografia se jogando no chão e rindo, enquanto recobravam o fôlego.
— Você até que daria uma boa Frances - ele comentou.
— Acho que prefiro o Johnny Castle original.
— É isso, agora chega - ele definiu, levantando-se. — Você não merece mesmo os meus morangos com chocolate.
gargalhou, enquanto soltava os cabelos apenas para prendê-los de novo com mais firmeza.
— E você ainda tenta me convencer de que eu sou a dramática da dupla.
— Talvez seja meio contagioso. É o preço que eu pago por passar tanto tempo perto de você.
E enquanto riam e conversavam sobre todas as besteiras aleatórias do universo, riu como não fazia há tempos. Riu até sua barriga doer, como se ela não tivesse acabado de demonstrar preparo abdominal o suficiente durante a dança. Era tão fácil estar por perto de . Ele conhecia seus doces favoritos, suas fraquezas, seus receios e limitações. Infelizmente, também sabia exatamente o ponto na costela que lhe causava uma série de cócegas absurdas.
Tinha relutado e estranhado um pouco a ideia de dançar em dupla no início, mas agora percebia que poucas coisas eram mais bonitas na dança do que encontrar a verdadeira sintonia com o outro. Dançaria mais mil shows ao lado dele. Nunca tinha se sentido tão leve.
sorriu, olhando-a no fundo dos olhos, enquanto estavam deitados contra o piso, as cabeças viradas diretamente para o outro. Ele aproximou a mão de seu rosto, puxando uma pequena mecha que ela havia esquecido e a colocando atrás de sua orelha.
sentiu as correntes elétricas descendo pelo pescoço e obrigando o seu coração a acelerar como um idiota.
Algumas pessoas simplesmente não eram certas umas para as outras e a insistência apenas causava dor e estrago. Algumas pessoas mudavam no meio do caminho e se desencontravam, sem que isso anulasse por um segundo sequer tudo de genuíno e intenso que viveram até aquele ponto. Várias poderiam até ser as pessoas certas, mas apareciam no momento errado e perdiam a oportunidade.
pensava muito sobre as chances perdidas e as inúmeras formas de se destruir o amor. Mas não tinha percebido, até aquele instante, que as chances não eram únicas. Encontrar o amor uma vez - ou pensar tê-lo encontrado - não anulava as chances de que aqueles momentos se repetissem. De outra forma. Sob outra perspectiva. Com uma nova pessoa.
Talvez , anos atrás, tivesse sido sua pessoa certa na hora errada. Talvez, se ele estivesse disposto a ficar por mais um tempo, ele pudesse ser a pessoa certa na hora perfeita.
— Podemos ir com calma? - Ela perguntou, num fio de voz, permitindo que suas palavras fossem sopradas quase em um sussurro.
O sorriso dele se tornou mais largo. Mais compreensivo. Mais carinhoso. Mais feliz de saber que, fosse lá o que sentia, não o sentia sozinho.
— Como você quiser - respondeu baixinho, incapaz de tirar os olhos dela.
Ficaram ali mais um tempo, aproveitando o momento.
Foi quem decidiu ser a voz da razão e intervir, mesmo que se odiasse por fazê-lo:
— Acho que precisamos voltar a ensaiar.
moveu a cabeça levemente, concordando enquanto se levantava.
— Eu só vou pegar mais um morango e podemos voltar.
Inspirar profundamente, expirar com calma.
já havia repetido aquele processo algumas - muitas - vezes, enquanto fitava o próprio reflexo no espelho, checando o cabelo bem penteado e fixado com laquê e a maquiagem à prova d’água bem marcante nos olhos. Sua roupa tinha uma aplicação de brilho que a fazia se lembrar mais de patinação artística do que de ballet precisamente, mas tinha a achado deslumbrante.
Ouviu a movimentação ao lado de fora do camarim, dando-se conta de que também era sua hora de ir. Sorriu ao dar a última checada no espelho, agradecendo a si mesma por não ter se permitido esperar sentada que alguém lhe trouxesse felicidade servida em uma bandeja de prata. As coisas ficavam difíceis às vezes, isso era bem verdade; mas ela não precisava daquele drama e percebia o quão forte era por ter se livrado dele. Bem mais forte do que ela havia pensado que poderia ser algum dia.
— Pronta? - perguntou, abrindo a porta delicadamente e colocando a cabeça para dentro.
Ele abriu o sorriso largo digno de campanhas odontológicas que ela havia aprendido a adorar cada vez mais, especialmente quando percebia ser o motivo dele.
— Sempre - respondeu, tomando a mão dele na sua e entrelaçando os seus dedos.
Dirigiram-se às coxias e, quando as luzes baixaram e a música começou a ecoar, tomaram o palco com a leveza e a graça que carregavam em cada um de seus dias, mesmo fora da Academia.
Era a sua milésima noite de estreia, mas reconhecia perfeitamente o que havia de especial nessa. Era diferente, pois ela sabia que estaria ali, apoiando-a, pronto para segurá-la; mas, acima de tudo, era diferente porque ela reconhecia que tinha dentro de si mesma a força para se reerguer.
Enquanto se moviam pelo palco em perfeita harmonia, ela já sabia que seriam aplaudidos com fervor ao fim do número e novamente quando chegasse o término do espetáculo.
Tinha as felicitações, o amor, a alegria, a força e a origem de tudo isso: a dança.
E como era bom dançar de novo.
FIM
Nota da autora: Eu amo tanto essa música que não pude resistir a ela quando o ficstape abriu lá no grupo. E EU TENTEI. Só não sou a pessoa mais esforçada do mundo.
Enfim, espero que vocês tenham gostado dessa história e que ela tenha passado pelo menos um tiquinho de alegria e esperança nesses tempos complicados.
Por favor, deixem comentários aí, no grupo do face, no do whatsapp, no meu privado, MAS VAMOS CONVERSAR, EU SOU CARENTE.
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
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04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
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08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Robot
11. Nós
11. Under Pressure
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14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallflower
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