Capítulo Único
“Porque se a pessoa certa para mim é alguém como você, eu prefiro a solidão.”
fechou o livro, apertando-o contra o peito antes de permitir que seu corpo despencasse contra seu colchão. Soltou um suspiro frustrado, sentindo as lágrimas ridículas voltando a tomar os olhos.
Detestava aquela angústia patética e aquela sensação quente nas órbitas sempre que algo a obrigava a se lembrar dele. Arnold tinha ido embora há treze dias, quatro horas e cinquenta e sete minutos e o buraco em seu peito parecia se esforçar para doer a cada um daqueles segundos. Não podia ser seu coração, brutalmente arrancado da cavidade torácica. Aquelas pontadas agudas e dolorosas deveriam ser algum tipo de sintoma de síndrome do membro fantasma. Talvez houvesse algo sobre isso relatado na literatura médica.
Por mais tentador que fosse explorar artigos científicos com termos técnicos que ela jamais entenderia, contudo, decidiu se ater à literatura compreensível a ela. Mesmo que aquela específica frase em ‘Os Sete Maridos de Evelyn Hugo’ tivesse piorado tudo em vez de cumprir a função de distraí-la de seu próprio abismo de sofrimento.
— Taylor Jenkins Reid, eu te odeio - declarou, abandonando o livro sobre a mesinha de cabeceira.
Mas não odiava. Mesmo com o drama acumulado pelo término recente do relacionamento e pela leitura voraz de romances dramáticos demais em looping, ela sabia que só odiava uma pessoa. Uma pessoa alta, com perfume almiscarado aplicado delicadamente na nuca e atrás das orelhas, linda, musculosa, de cabelos castanhos claros levemente bagunçados quando jogados para o lado e que estavam alguns milímetros compridos demais, cobrindo um pedaço das lentes de seus óculos de grau e que parecia ter os braços feitos sob medida para segurá-la mais perto em uma noite fria. Arnold era um tremendo babaca e ela se sentia ainda mais idiota do que ele por continuar remoendo todas as coisas lindas e alegres que vivera com ele mesmo depois de descobrir a gigantesca falha de cárater em uma das qualidades que ela mais apreciava em alguém: a honestidade.
Arnold era o tipo de cara que fazia questão de ter um pequeno buquê de tulipas em mãos todo sábado de noite, juntamente com uma garrafa de vinho rosé, e que saía domingo logo depois do café da manhã porque tinha marcado de jogar futebol com os amigos e beber um pouco. Arnold era o tipo de cara que sempre mandava uma mensagem de bom dia - que de acordo com ele era pela necessidade que todo ser humano tem de receber positividade e expressar um sorriso logo pela manhã -, mas raramente desejava boa noite, mesmo que não estivesse ocupando o outro lado de sua cama.
E era o tipo de mulher que não se importava; que não cobrava os boa-noites e ficava feliz que ele tivesse um momento de lazer próprio com os amigos para se livrar um pouco do peso e do estresse que a vida adulta fazia questão de proporcionar a todos durante os dias úteis da semana. sempre escolhia um prato que caísse bem com o rosé, às vezes fazendo-o, às vezes encomendando-o, e contava animadamente sobre todas as coisas incríveis que havia aprendido durante a semana, feliz por ter alguém que soava tão animado quanto ela ao simplesmente ouvir. Arnold sempre tivera um jeito espetacular de fazê-la se sentir a mulher mais feliz do mundo por ter o prazer de ser aquela ao seu lado para a vida. Seus largos sorrisos sempre evidenciaram como ela pensava ser a pessoa mais sortuda do mundo por ter conseguido um amor daqueles.
Até descobrir, quinze dias, dez horas e seis minutos atrás que o amigo do futebol e da cerveja se chamava Meredith, era a mulher mais charmosa que ela já havia visto e, aparentemente, tinha um relacionamento com o mesmo homem com quem ela tinha um relacionamento.
Fora Millie, sua irmã mais velha, quem lhe enviara uma foto inquestionavelmente real - mas na qual ela se esforçou para procurar defeitos insistentemente, tentando se agarrar ao fio de esperança de que fosse um engano - de Arnold e Meredith em um brunch, comendo e conversando, mantendo as mãos dadas e os sorrisos nos lábios. O sorriso que ela jurava que ele guardava especialmente para os sábados à noite com ela.
descobriu rapidamente quem era Meredith, sua idade, onde trabalhava e vira todas as suas fotos no facebook, sem se orgulhar nem um pouco da fúria que a fazia stalkear alguém daquela forma. Ela era linda, bem sucedida e parecia exatamente o tipo de mulher que poderia estampar simultaneamente capas de revistas de negócios e de beleza e saúde femininas.
Orgulhava-se ainda menos de ter se dirigido até o escritório dela e pedido por um encaixe para vê-la. Mas era mais forte do que ela e ela precisava fazer aquilo.
Quando questionada sobre Arnold, Meredith respondeu com sorrisos, apesar de claramente estranhar o teor das perguntas de quem julgava ser apenas uma cliente em potencial. No fim das contas, ela não era a amante que não se importava com a vida do parceiro e sugeria que ele abandonasse a namorada oficial. Ela também confiava piamente que o que tinham era real, genuíno, especial e - principalmente - exclusivo.
Como poucas coisas no mundo são mais efetivas em unir duas pessoas do que o ódio compartilhado por uma terceira, as duas acabaram se tornando amigas, logo após terminarem seus respectivos relacionamentos. Encontravam-se duas vezes na semana para tomar um café no fim da tarde e compartilhar as angústias e mágoas do mundo, além de se lembrarem mutuamente de como eram fortes, incríveis e merecedoras de um amor digno e só delas. E ele, com certeza, iria chegar.
Naquela noite, no entanto, não se sentia nem um pouco positiva daquela forma.
Os dois toques ritmados em sua porta a fizeram se levantar correndo, já sabendo precisamente quem era. Tinha se esquecido de que Millie havia basicamente se convidado para o jantar que ela não pretendia preparar naquela noite.
— Trouxe comida tailandesa - a visitante disse, com um tom animado e um sorriso largo, enquanto erguia os pacotes que carregavam o aroma da mistura de temperos como cominho, canela, cardamomo e coentro.
— Que bom, porque eu me recuso a cozinhar hoje - disse simplesmente, abrindo passagem.
— Eu imaginei - a irmã tornou a responder, enquanto apoiava a comida comprada sobre a mesa da sala de jantar (que também era sala de estar e, às vezes, quarto). — E eu meio que me convidei, não foi? Não fiz mais do que a minha obrigação em trazer algo.
A caçula tentou não concordar, enquanto pegava duas garrafas de cerveja para elas.
— Como vão as coisas?
— Na mesma. - A mais nova deu de ombros.
— E o trabalho na livraria?
— Continua exatamente igual, sendo a única coisa que me distrai e me faz feliz nos últimos tempos.
havia se candidatado a uma vaga como vendedora em sua livraria preferida assim que viu o cartaz na janela sinalizando que estavam contratando. Adorava estar em meio aos livros e a pessoas que, assim como ela, buscavam as páginas transbordando palavras como um refúgio para o caos da vida cotidiana. Tinha um salário razoável, tempo de sobra para continuar trabalhando como tradutora - menos que em menor escala - e podia folhear o cheiro de um livro novo sempre que se sentisse para baixo, torcendo para que ninguém a estivesse observando.
— Acho que é um bom sinal, então - Millie concluiu, enquanto ligava a televisão.
A caçula aquiesceu, virando um longo gole da cerveja, enquanto se jogava no sofá e ligava a televisão. Franziu o cenho, estranhando que estivesse no canal de esportes.
— Rams e Patriots se enfrentavam e ela já não fazia mais a mínima ideia de em qual semana da atual temporada da NFL estavam.
— Tomara que os Patriots percam. Assim o Arnold vai ter um fim de semana horrível.
— Também é o time do papai - Millie a lembrou. — Vai arriscar matar o velho do coração pela sua amargura?
— Eu meio que tenho motivos justificáveis para ser amargurada, sabe? Sem contar que o papai já sobreviveu a um infarto, tenho certeza de que ele aguenta outro.
Ignoraram a transmissão do jogo quase por completo, parando vez ou outra apenas para prestar atenção nos momentos em que o narrador gritava tão alto que parecia ter descoberto um meio de aumentar o volume da televisão só para exercer o impacto desejado na situação.
Millie contou sobre seu paciente de trinta e dois anos que tinha feito mais escândalo do que a filha de cinco ao ouvir o som irritante da broca. Ela era obrigada a reconhecer que a rotina odontológica tinha alguns momentos de risadas impagáveis.
lhe disse sobre o cliente que tinha ido atrás de um livro que o sobrinho precisava urgentemente para as aulas de literatura do colégio e insistira que aquele era o livro errado, mesmo depois de ela ter insistido várias vezes que não era, até porque ela já o tinha lido. O homem só dera o braço a torcer, por fim, quando ligou diretamente à secretaria da escola e recebeu a confirmação deles. Seu pedido de desculpas consistiu muito mais em um sorriso constrangido e um silêncio repentino do que em palavras propriamente, mas ela manteve a fisionomia simpática, escondendo a vontade interna de exclamar aos quatro ventos como amava estar certa.
Finalmente abriram as caixinhas com cuidado, mastigando enquanto fofocavam sobre vizinhos inconvenientes e parentes sem senso de ridículo. tinha se esquecido totalmente da tristeza e raiva que lhe assolara nos últimos dias, simplesmente porque sua pessoa preferida em todo o universo era boa demais em lhe fazer gargalhar a cada vez que revirava os olhos, bufando.
— Ah, que inferno - Millie reclamou ao derrubar o molho agridoce do joelho de porco na blusa clara.
— O tempo passa e a sua incapacidade de comer sem se sujar feito uma criança não muda. É quase reconfortante saber que algumas coisas simplesmente sempre serão iguais.
Era pela repetição de cenas como aquela que já sabia que a irmã estaria sem blusa em instantes, jogando-a em sua máquina de lavar o mais rápido possível.
— Tem um moletom seu no armário, que você deixou da última vez - avisou. — Mas pode pegar uma blusa minha se quiser.
— Acho mais seguro pegar algo meu antes que eu termine destruindo alguma roupa sua também.
Enquanto Millie sumia pelo corredor, mastigou os legumes calmamente, balançando a cabeça descrente quando os Patriots comemoraram mais um touchdown.
Pegou o controle, digitando a primeira combinação de números que lhe veio à cabeça e se contentando com um filme desconhecido que parecia ter pelo menos o dobro de sua idade.
— Que caixa é essa? - Millie berrou do quarto.
— Sei lá - a caçula respondeu, simplesmente, tentando entender os efeitos sonoros desconectados da imagem. Meu Deus, como alguém conseguia ver aquilo sem se sentir, no mínimo, angustiado? — Eu nem sei do que você está falando.
De volta à sala, com uma caixa preta funda - que lembrava absurdamente aquelas que sua mãe usava para arquivar todas as contas e notas fiscais que nunca usaria para nada -, ela esperou que a irmã percebesse sua presença ali.
— Devolve isso onde você encontrou, agora.
O humor de tinha desaparecido por completo, como se alguém tivesse arrancado-o da forma que se puxa um tapete debaixo de seus pés.
— O que tem aqui?
— Devolve a caixa no armário - ela repetiu, usando de todo o fio de paciência e dicção que lhe restavam para enunciar cada uma daquelas palavras pausadamente.
Millie se dirigiu até a mesa de jantar, como se jamais tivesse ouvido aquelas palavras. Puxou a tampa ao mesmo tempo em que a irmã se levantou com brutalidade, caminhando até ela.
— O que é isso?
Puxou algo extremamente bem dobrado de dentro, abrindo-o para se deparar com um novo estranhamento. Que tipo de pessoa ainda tinha um mapa do próprio país de residência em casa em tempos em que aplicativos como o Waze existiam?
— Não posso nem ter privacidade mais.
— Bem, Deus meio que lhe roubou qualquer possibilidade disso quando decidiu que compartilharíamos o mesmo útero.
Millie deixou o mapa aberto sobre a mesa, retirando uma pequena revista já gasta e um tanto amassada, onde se lia “Guia Simplificado para Roadtrip”.
— Você vai viajar?
Em um movimento rápido, tomou o guia de sua mão, devolvendo-o ao fundo da caixa, o único local que lhe proporcionava a mínima sensação de estar perto o suficiente do esquecimento enquanto ainda não se considerava pronta para jogar tudo fora.
— Eu ia - respondeu, praticamente sussurrando cada dolorosa sílaba. — Com Arnold. Nós planejamos tirar umas semanas de férias, entrar no carro e simplesmente sair por aí conhecendo as coisas e os lugares, sabe? Ele sempre quis tanto viajar e eu pensei ‘Caramba, tem tanta coisa aqui por perto ainda para descobrirmos’ e ele adorou a ideia no mesmo segundo.
Ela engoliu a bola áspera formada em sua garganta. Era nesses momentos que se arrependia de não ter arranjado um gato ao qual pudesse responsabilizar em momentos como aquele. Tomou o mapa para si, apontando os pequenos ‘X’ vermelhos que Millie não tinha reparado à primeira vista.
— Nós deixamos marcas sobre os lugares que queríamos visitar. Combinamos de cada um escolher metade, mas, no fim das contas, era praticamente como se tivéssemos escolhido tudo juntos. Foi naquela noite que eu percebi que eu aceitaria visitar qualquer lugar com a bunda quadrada e um sorriso no rosto só porque era com ele e era isso o que importava.
Ela respirou fundo, antes de dobrar as anotações cartográficas novamente.
— Só é uma merda que aparentemente ele nunca tenha realmente pensado da mesma forma.
— Eu tive uma ideia - o tom de voz de Millie mudou de repente. — Você vai dizer que é idiota, mas acho que é exatamente do que você precisa.
— E o que seria isso?
— Acho que você deveria fazer a viagem.
— Você é completamente maluca.
— É claro que não, . Pensa um pouco. A ideia foi sua, você queria fazer essas coisas e vai simplesmente deixá-las de lado por um cara babaca? É sério que você vai deixar que um homem sequer medíocre altere os seus planos e as suas vontades?
parou para pensar por um segundo, lembrando-se exatamente de todas as linhas tortuosas e trajetos rabiscados que havia marcado no mapa. Havia decorado cada milímetro daquela escala e sonhado acordada com vários daqueles momentos. De alguma forma, contudo, simplesmente não parecia certo.
— Ele te decepcionou, eu entendo - a irmã prosseguiu, repousando a mão direita sobre seu ombro. — Mas você não pode permitir que ele destrua seu coração. E muito menos os seus sonhos.
— Tem razão - murmurou, em um gesto de concordância e aceitação simultâneas.
— É lógico que tenho. - Millie sorriu de forma comicamente petulante.
— Mas não tem graça fazer isso sozinha. Você bem que podia ir comigo, não é?
— Maninha, eu juro por tudo que há de mais sagrado no universo, que eu adoraria e eu nunca quis tanto umas férias em toda a minha vida. Mas tenho muitos pacientes marcados para os próximos dias e um congresso em Michigan. Infelizmente, vou ter que recusar o convite.
— Certo. Será que a Mer aceitaria ir comigo? Acho que seria legal, não? As duas mulheres chifradas pelo cara dando um pé na bunda dele e seguindo a vida, divertindo-se juntas. Acho que daria um bom livro. Vou sugerir a ideia ao meu chefe.
— Primeiro, você liga e a convida, depois você volta a pensar em trabalho, ok? Todos esses planos são exatamente para te desligar um pouco da realidade, não para fazer você pensar em como transportar isso para as suas responsabilidades de alguma forma.
assentiu, mesmo que um pouco relutante. Não precisava verbalizar que, mais uma vez, a irmã mais velha tinha razão. Não podia amaciar ainda mais o seu ego sem esperar que ela se tornasse completamente insuportável e a fizesse se arrepender de ter lhe oferecido uma de suas cervejas.
Abriu sua lista de contatos, encontrando o nome de Meredith e discando para a amiga.
— Oi, minha linda! Como você está?
não conseguiu evitar um sorriso do outro lado da linha. Meredith era sempre tão doce e aparentemente incapaz de interagir sem usar qualquer adjetivo positivo como vocativo a qualquer oportunidade. Chegava a ser engraçado pensar que havia tirado algo de tão positivo de algo tão ruim.
— Estou bem, Mer. E você?
— Cansada - admitiu. — Tive uma reunião desgastante com homens brancos de meia idade que infelizmente ainda não sabem lidar com uma mulher em posição de hierarquia. Mas foi ótimo, eles foram colocados no lugar deles.
tinha certeza de que a amiga sustentava exatamente a mesma expressão risonha e orgulhosa que ela. Poucas coisas no mundo eram mais gratificantes do que colocar homens conservadores em seu devido lugar e alertá-los de que, surpreendentemente, eles deviam respeitar e seguir as ordens de alguém que não tinha um pênis.
— Nessas horas eu só queria ser uma mosquinha para ver a reação deles.
— Ah, você teria adorado! Aliás, quando vamos nos ver? Precisamos sair para conversar e tomar algo. — Na verdade, de certa forma, é sobre isso que eu liguei para falar. - Respirou fundo, tentando encontrar palavras e conectivos suficientemente coerentes e coesos entre si para ser clara em seu convite. — Eu meio que tinha planejado uma viagem com aquele-que-não-deve-ser-nomeado. Minha irmã acha que seria uma boa ideia fazer a viagem de toda forma, para reforçar como não dependo dele para levar a minha vida e os meus planos.
— E eu concordo completamente com ela.
— Pois é, faz sentido mesmo - concordou. — Mas eu não acho que tenha muita graça em seguir sozinha, então pensei se você não gostaria de ir comigo.
— Ah, querida! Eu adoraria, de verdade, mas só vou conseguir tirar férias da empresa no segundo semestre do próximo ano. Mas faremos uma viagem merecida lá, pode ser?
tentou não expressar em sua voz o quanto havia murchado como uma flor antiga, perdendo sua essência e sua capacidade de permanecer vistosa e útil.
— Claro! Marcamos, então. Obrigada, Mer! Boa noite!
— Ela topou? - Millie perguntou animadamente, ao ver a irmã desligando o celular.
— Sim. Daqui um ano e meio praticamente. Bom, sem roadtrip para mim, então. Posso abrir outra cerveja agora e me recolher à minha insignificância embriagada.
— Eu não vou deixar você entrar nesse redemoinho de autopiedade. Você vai nessa viagem.
— Para de ser chata. Eu já tentei. Não tem quem me acompanhar, então planos adiados e bola para frente. Millie, contudo, teve um estalo, agitando as mãos enquanto tentava externalizar a ideia que havia acabado de ter.
— Eu já sei quem pode ir com você.
— Quem? E se essa for alguma tentativa sua de me juntar com alguém do seu trabalho de novo, poupe seu tempo e saliva, pois estou fora.
— Não é do meu trabalho. Eu acabei de me lembrar que um amigo da época do colégio comentou no grupo que queria fazer uma viagem dessas e estava marcando.
— Você tem um grupo com seus colegas de ensino médio?
Millie estreitou os olhos, sentindo instintiva e estranhamente que estava pisando em um campo minado ao se preparar para responder àquele questionamento.
— Eu não sei o que você espera que eu diga, mas sim.
— Pessoas normais teriam fugido e cortado relações em no máximo um ano depois da formatura. Aparentemente só vocês não tratam as memórias do ensino médio com o terror de um veterano de guerra se lembrando de tudo.
— Bom, voltando ao meu ponto. Vocês poderiam ir juntos. Com certeza seria bastante divertido.
— Millie, pelo amor de Deus, você está mesmo pensando que eu vou me trancar por horas em um carro com um estranho?
— Vocês se conhecem, boba. É o .
— Não faço ideia.
— Faz sim. Ele sempre estava lá em casa e você não o deixava em paz enquanto ele não contasse onde eu tinha ido na noite anterior só para você usar como chantagem quando quisesse conseguir algo de mim.
— Ah! O fofoqueiro - ela se lembrou, rindo. — Eu gostava dele.
— Viu só? Ele é super engraçado, com certeza seria um ótimo parceiro de viagem.
— Millie, eu não estou concordando com essa ideia só porque lembrei quem é. Eu ainda não vou sair em viagem com uma pessoa que mal conheço. Seria uma ideia totalmente irresponsável e idiota.
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— E eu só tenho ideias totalmente irresponsáveis e idiotas - disse, bufando enquanto tentava fazer a rodinha quebrada da mala parar de ceder ao peso da bagagem contra o asfalto em frente ao seu prédio.
Que falta maldita fazia ter ao menos um banco ali enquanto esperava sua carona.
Havia passado os últimos quinze dias conversando com por whatsapp e decorando cada um de seus traços pelas poucas fotos disponíveis em seu perfil no instagram. Tinham planejado todos os detalhes com uma animação latente, mas era obrigada a admitir que sempre que se deixava sentir a excitação sobre aquilo, era obrigada também a enfrentar os alertas vermelhos rodando como as sirenes de uma ambulância em seu cérebro, lembrando-a de que ainda existia a possibilidade de ele ser um serial killer. Não que ela ligasse para isso. Estava mesmo era com receio de se desentenderem e a viagem ser um completo fracasso. Homicídio era a menor de suas preocupações.
Seu coração pareceu entrar em um processo de arritmia levemente preocupante quando viu o carro prata se aproximando e estacionando à sua frente. Tentou ajeitar a sua postura, criticando-se por não conseguir soltar a mala quebrada para arrumar os cabelos que, com certeza, já teriam cedido ao vento e se tornado um protótipo de ninho no topo de sua cabeça.
O rapaz desceu rapidamente, esboçando um largo sorriso assim que a viu.
— Meu Deus, quanto tempo! - Exclamou alegremente, enquanto a abraçava com força.
sentiu todo o seu corpo respondendo ao toque dele; uma sensação de reconhecimento e de contentamento quase infantil pela nostalgia. Seus poros e sua pele pareciam reconhecer ao tato cada ponto em que seus braços se encaixavam desajeitadamente e como o rosto dele se afundava em seu pescoço sem nenhum estranhamento.
— Faz mesmo. Seu cabelo está bem melhor agora.
Ele assentiu imediatamente.
— Eu escondi todas as fotos daquela época porque eu não tenho nem coragem de olhar aquele troço.
soltou uma gargalhada gostosa enquanto se esforçava para encaixar suas bolsas no porta-malas já abarrotado.
— Deixei travesseiros e roupa de cama nos bancos de trás, junto com algumas coisas que peguei no mercado - foi dizendo, enquanto dava a volta para abrir a porta para ela.
A mulher agradeceu e entrou, colocando o cinto de segurança no meio segundo. Logo ele estava no banco do motorista, pronto para se livrar do freio de estacionamento.
— Última chance - disse. — Repassa tudo na cabeça e tenta lembrar se alguma coisa ficou para trás.
Se alguma coisa tivesse realmente faltado depois de ter enchido tantas bolsas, ela seria obrigada a se odiar para o resto de sua vida. Mesmo assim, seguiu sua orientação: produtos de higiene, remédios convenientes, roupas, chinelos, tênis, mochilas, elásticos de cabelo suficientes para que ela ainda estivesse equipada até o fim da viagem, mesmo que perdesse metade, frascos de protetor solar e de repelente e outras coisas que ela sabia que seriam importantes em algum momento. Ou ao menos esperava. Talvez fosse um pouco presunçoso demais supor que ela realmente “sabia” o que estava fazendo acerca de qualquer detalhe daquela viagem.
— Acho que peguei tudo - confirmou.
, então, soltou o freio de estacionamento, acelerando com o carro na direção que o aplicativo de seu celular, preso ao painel do veículo, indicava.
— Bom, como eu sou muito gente boa, vou deixar você escolher a rádio - ele falou. — Mas se seu gosto musical for uma merda, eu volto atrás no mesmo segundo.
— Meu gosto musical é perfeito, se você tiver alguma coisa contra ele, então o problema é você.
Ele deu de ombros, disfarçando uma risada que, de certa forma, concordava que ela tinha um ponto, mas não estava disposta a dar o braço a torcer de maneira alguma.
alternou entre as estações até encontrar uma que tocava Freedom.
— Ok, você pode cuidar da rádio.
A mulher deu um sorriso vitorioso, recostando-se da forma mais confortável que havia encontrado contra o banco. Virou a cabeça para a janela, tomando seu tempo, descarregado de qualquer pressa, apenas para observar o caminho conforme se afastavam de seu ponto de partida. As árvores, as pessoas, os cachorros correndo assim que conseguiam driblar seus donos e escapar das coleiras e o sol que parecia abraçar a todos em um dia tão lindo quanto ela não via há muito tempo. Sinceramente, esperava que fosse algum tipo de sinal do universo. Algum tipo de aviso de que as coisas sempre poderiam ser melhores e que a dor, independentemente de qual fosse sua causa, nunca duraria para sempre. Se, como diria Millie, todas as experiências da vida humana eram passíveis de serem ressignificadas, então era isso que ela faria.
— Por que Yosemite? - Ele perguntou de repente.
Ela precisou de alguns segundos para buscar a memória em seu acervo. Às vezes tinha certeza de que seus “divertidamente” jogavam suas lembranças no lixo apenas para vê-la se desdobrar quando precisava delas. Pensava tanto nessa hipótese que tinha acabado decidido que aquela teria, obrigatoriamente, de ser considerada sua animação favorita de toda a vida. Mas, então, com um sorriso singelo, ela se lembrou.
— Eu estava vendo fotos aleatoriamente pela internet e me lembro de ter visto aquelas sequoias enormes e ter pensado em como deveria ser incrível abrir um livro bem ali embaixo, com fios de luz dançando entre a sombra das folhas e o cheiro de terra e grama que infelizmente acho que não sentimos o suficiente desde que decidimos nos enclausurar nas grandes cidades.
— É uma perspectiva bem “fugere urbem” , então - ele concluiu, fazendo-a contorcer as sobrancelhas, sendo pega de surpresa pelo termo neoclassicista em latim usado de forma tão repentina.
— Desde quando você é ligado em literatura árcade? Quer dizer, desde quando você é ligado em literatura no geral?
— Nem tudo é necessariamente sobre os clássicos literários de uma forma direta, sabe? A música, por exemplo, está a todo momento se aproximando da poesia tanto pela estrutura quanto pelas abordagens. Esse conceito de fugir da cidade e do caos para buscar um lugar calmo onde só as pequenas coisas importem não é uma exclusividade dos livros - ele explicou, sorrindo para frente, sem retirar os olhos da estrada por um segundo sequer. Mesmo assim, sabia perfeitamente que tinha os olhos dela cravados em si. — E eu ainda lembro uma coisa ou outra do colégio.
— Bom, pelo menos fugiu do clichê do “carpe diem”.
— Ah, não. Pode ter certeza de que tem bastante “carpe diem” em praticamente todas as músicas.
— Lembro que passei meses insistindo para a minha irmã me levar a um dos shows da sua banda, mas ela só negava.
— Você era menor de idade.
— E vocês não eram?
— Estávamos perto o suficiente de deixar de ser para que fizessem vista grossa com as identidades falsas. Duvido que teríamos a mesma sorte com você.
— Bom, nunca saberemos já que vocês nunca tentaram.
riu. Nem tudo mudava com o tempo no fim das contas.
— Eu trouxe o violão. Prometo tocar algo para você e compensar todos os anos de “nãos” recebidos.
— , sinceramente, vocês me fizeram de trouxa por tanto tempo que você só vai conseguir compensar o tempo perdido se escrever uma música para mim.
— Se é isso que você quer, então é isso que você vai ter - ele afirmou categoricamente.
Ela fez uma careta, enquanto beliscava a barra da blusa de algodão.
— , era brincadeira. Lição número um para conviver os próximos dias comigo: não me leve a sério.
— Bom, lição número um para conviver comigo: eu levo a sério sim. Até o fim dessa viagem cumprirei minha missão de te escrever uma música.
— Meu Deus, você é louco.
— Por quê? Você está duvidando do meu talento como compositor e músico?
Ela ergueu as mãos ao alto, em um sinal de rendição que sempre a fazia se perguntar de onde exatamente tinha vindo aquilo. Ou se tinha alguma relação com assaltos e abordagens policiais. Era por isso que agradecia a todo momento pelas pessoas serem incapazes de ler seus pensamentos. Seria o mais perturbador tipo de superpoder para se ter perto dela.
— Não está mais aqui quem falou.
De uma maneira bastante torta e confusa e nem um pouco coesa, usou e abusou de toda a flexibilidade dos anos de ginástica artística para apertar as pernas sobre o banco, da forma mais próxima que havia conseguido de tentar cruzá-las. Puxou o Kindle da bolsa de mão, abrindo-o sobre o colo.
arriscou uma olhada rápida para o lado, observando cada um de seus atípicos movimentos.
— Que iPadzinho pequeno é esse?
— Isso não é um iPadzinho. É um Kindle.
— Eu deveria saber o que isso significa?
— É um leitor digital - ela explicou. — Eu compro uns livros, baixo outros clandestinamente… Enfim, o importante é que eu leio nessa telinha. Ela tem uma iluminação diferente para não incomodar os olhos que nem o celular, sabe? Parece bastante com a folha de um livro mesmo.
— Para você que sempre leu tanto deve ser bem útil.
— Com certeza - concordou. — Principalmente pelo fato de que agora eu tenho dezenas de livros para ler durante a viagem pelo peso de meio.
— Claramente sua inteligência está muito à frente dos meros mortais.
Ela riu, enquanto revirava os olhos e voltou a sua atenção para o livro.
— E você consegue ler dentro do carro sem passar mal?
— Não sei. Acho que logo vamos descobrir.
— Se precisar vomitar, abre a janela e vomita para fora.
— Sabe que o vento, ainda mais nessa velocidade que estamos, pode trazer tudo de volta, não sabe?
— Não. Você é a inteligente, não eu. Só tenta não vomitar em mim, ok?
Ela aquiesceu, segurando uma risada. Quase nunca vomitava; era uma dificuldade real mesmo quando ela precisava fazê-lo para se livrar de uma intoxicação - fosse alimentar ou por beber um pouco demais. Mas ele não precisava saber. Algumas coisas poderiam ser mais divertidas sobre a corda bamba incerta do medo.
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YOSEMITE
quase riu da própria autodepreciação quando pensou que finalmente havia atingido o topo de algo no mundo. Guardou o humor destrutivo para si mesma, no entanto, quando sentiu o êxtase e o choque de olhar para frente e ver tudo aquilo roubando-lhe o ar e a voz. Os penhascos da Sierra Nevada eram simplesmente uma das coisas mais lindas que ela tinha visto. Não eram belos como o pôr do Sol na praia - o qual ela também deveria admitir que adorava. Eram belos como uma tempestade, na qual a paleta de cores se mistura de forma dura e perigosa, acompanhada dos fios de eletricidade que correm como cicatrizes de um céu pesado demais para suportar a mudança. Era esse o tipo de beleza que ela absorvia enquanto seu queixo caía levemente, tentando entender porque o perigo potencial sempre parecia acrescentar ao encanto das coisas.
Estava tão absorta em seus pensamentos, que levou alguns longos instantes para perceber ao seu lado, parecendo ainda mais estático do que ela.
— É lindo demais, não é?
O rapaz engoliu em seco, balançando a cabeça levemente em concordância. De repente, seu tom de pele parecia quase esverdeado.
— E alto também - completou, com uma risadinha nervosa.
estreitou os olhos, incrédula.
— , você tem medo de altura?
— Se eu tivesse medo de altura eu não teria subido aqui, teria?
— Acho que se ficarmos mais cinco minutos aqui o seu rosto vai ficar mais verde que as folhas das sequoias. Por que você não me disse que tinha medo?
— Porque eu não tenho - ele insistiu. — Só tenho um grande desconforto estomacal e uma sensação um pouco desagradável de vertigem.
Ela revirou os olhos à resposta, estendendo as mãos para indicar o caminho para que descessem.
— Você não precisa me seguir se isso vai te deixar mal, sabe? Podia ter me esperado lá embaixo.
— E perder a chance de ver aquilo? Eu não estou viajando para simplesmente sair perdendo vistas incríveis por um quase medo bobo e infantil.
— Medos não são infantis, . Eles são naturais e está tudo bem.
— São irracionais.
— Nem tudo na vida precisa ser racional.
Continuaram a trilha, recebendo alertas dos guias para que tomassem cuidado onde pisavam, já que a folhagem caída às vezes poderia se depositar sobre o solo de forma a disfarçar, perigosamente, buracos aos quais os pés pareciam se atrair de forma quase magnética, ávidos por uma lesão incômoda e a sensação de burrice que acabava acompanhando o pensamento de “me machuquei andando”.
Quase um quilômetro depois, teve seu segundo momento de deslumbramento. , ao seu lado, finalmente pode acompanhá-la sem se sentir nauseado.
— Essa é a Bridalveil - o guia anunciou, enquanto alguns visitantes cochichavam e apontavam coisas aleatórias na pedra e na água e outros aproveitavam para tirar fotos, vivendo o momento mais em suas câmeras do que no caminho que seus pés pisavam e seus olhos enxergavam. — Acho que o motivo do nome é bem autoexplicativo, não? Quem a batizou percebeu que as águas despencavam com a leveza e a graciosidade de um véu de noiva. É uma das poucas cachoeiras daqui que não seca nas estações em que não temos chuvas o suficiente.
— Já imaginou que legal deve ser saltar lá de cima? - perguntou, sussurrando ao pé do ouvido de .
Instantaneamente, ela franziu o cenho, contorcendo as sobrancelhas em descrença.
— Sério? Isso vindo de alguém que, literalmente minutos atrás, estava prestes a ser passível de contratação para o papel do Hulk sem precisar de horas de maquiagem?
Ele deu de ombros, com um sorriso travesso.
— Eu disse que deve ser legal, não disse que seria legal para mim. Provavelmente eu precisaria de uma reanimação antes de sequer chegar lá em cima e poder olhar para baixo.
O papo, contudo, encontrou o seu fim no início do arco-íris que se formava quando as gotículas da queda d’água encontravam os raios de sol. Existia todo um conceito físico por trás daquilo, que ela, sinceramente, não se lembrava. Tinha de ser honesta consigo mesma e admitir que não era a melhor aluna do mundo quando se tratava das exatas. Geralmente, estava com algum romance aberto dentro da apostila, lendo e se iludindo de que ninguém saberia quando, na verdade, os professores tinham simplesmente desistido de tentar obter sua atenção durante as aulas. Ela tinha nota suficiente nas provas para atingir a média do colégio e era só isso que importava no fim do dia - e no fim do ano.
De certa forma, até preferia pensar no arco-íris como algo fantástico e quase mágico em vez de condizente com as leis de fosse lá quem tivesse descoberto as características e propriedades da luz.
Foram liberados para explorar o ambiente assim que se aproximaram dos bosques. permitiu que as pálpebras pesassem e se encontrassem enquanto puxava profundamente o ar pelas narinas. Era aquilo que ela queria. O cheiro de terra, de grama, de vida. O orgânico que a lembrava de que o mundo estava em constante renovação e que o fim de um ciclo era sempre sinal do início de outro.
Escolheu uma das árvores, estendendo a mão para tocar seu largo caule em um sinal de troca e quase como um pedido de licença para se sentar ali. Acomodou-se e abriu o Kindle sobre o colo, retornando à sua história conturbada e dramática de uma protagonista que viajava para vários lugares do mundo em uma tentativa de se reconectar com o marido após sofrerem perdas grandes demais para que palavras pudessem contemplá-las. Havia criado uma sensação de empatia e solidariedade enormes pelos protagonistas e sorria feliz a cada passo que pareciam dar juntos em direção à compreensão mútua. Além disso, cada destino que eles visitavam fazia com que ela adicionasse mais um lugar à sua lista mental de viagens internacionais para planejar por anos e guardar muito dinheiro para elas depois de basicamente ter investido as suas economias naquela roadtrip. Era com esse pensamento que tinha decidido aproveitar ainda mais aquele momento, naquele lugar.
se sentou ali por perto, cruzando as pernas e apoiando os antebraços sobre as coxas. Fechou os olhos, respirando profundamente e tentando se conectar com o ambiente e com sua própria respiração. sorriu ao descobrir algo que não esperava mesmo dele. Meditação não estava em suas suspeitas sobre quem o amigo de sua irmã teria se tornado com o passar do tempo.
Ali permaneceram, demorando a perceber, pelas árvores, que os tons do céu estavam mudando, conforme a iluminação diminuía e a noite se aproximava. Retornaram ao grupo, acompanhando-os para uma última atividade.
Reuniram-se ao redor de uma grande e aconchegante fogueira, cuja lenha crepitava, dando-lhes as boas-vindas.
Os guias contaram histórias antigas, crenças politeístas nativas sobre a origem daquele reservatório natural e sobre a força das árvores que, mesmo com as raízes tão presas e sustentadas ao chão, ainda se arriscavam a se estender mais e mais, em busca do céu.
Sobre os tecidos fornecidos - que mais pareciam toalhas de piquenique -, se deitou, cuidando para que os cabelos se limitassem ao espaço que não lhe faria terminar aquela noite caçando pedaços de mato seco entre seus fios, quando tinha certeza de que tudo que iria querer fazer seria dormir feito uma pedra até as pessoas se preocuparem com a possibilidade de ela ter passado dessa para melhor. Por Deus, como odiava esse eufemismo.
Não sabia o suficiente de astronomia para tentar identificar constelações, mas ainda se maravilhava observando cada um daqueles pontinhos reluzentes no céu, que talvez nem estivessem mais ali. Gostava de se referir às estrelas como as memórias do universo, cuja luz permanecia visível, mesmo depois de desaparecerem de sua origem. Talvez fosse esse o motivo de ser tão fácil e difundida a ideia de que aqueles que se foram se tornavam estrelas.
— Foi um longo dia - comentou, deitando-se ao seu lado. Estavam tão próximos que , mesmo sem olhar, tinha a consciência corporal de que sua mão resvalaria na dele mesmo que ela se movesse apenas minimamente, justificando um espasmo.
— Mas foi um longo lindo dia - ela completou, sorrindo. — Quando a Millie sugeriu que eu mantivesse a viagem mesmo sem o meu ex, eu achei que ela fosse maluca e precisasse arranjar bom senso. Mas ela tinha razão. Acho que eu não sorria assim há semanas. Minhas bochechas estão até doendo.
— Eu pensei que sua irmã fosse louca quando ela me ligou dizendo que tinha me arranjado uma companhia de viagem. Pensei que fosse a secretária dela de novo. Ela não para de tentar me juntar com as pessoas do trabalho.
levantou repentinamente, para encará-lo.
— Com você também? A maldita me mandou em encontros com o assistente dela, com o sócio do consultório e até com um cara aleatório que ela conheceu em um congresso só porque aparentemente ele tinha uma boa genética, que ela avaliou com base na estrutura óssea da face dele.
— Ok, você ganhou. - Ele riu. — Que coisa bizarra. E ela não desiste! Além de tudo faz questão que eu narre cada detalhe de porque eu achei que não combinava com a escolha dela da vez, para saber escolher melhor na próxima. Acontece que eu não quero uma próxima.
Ele se exasperou, gesticulando em meio às risadas dos dois. Sentiam um pouco de dó pelo outro ter que passar por aqueles mesmos absurdos, mas, de certa maneira, era quase reconfortante ter alguém para dividir e compreender as loucuras de Millie e sua necessidade quase patológica de bancar o cupido para cima das pessoas que amava.
— E o pior é que quando eu falo que ela não tem o direito de ficar se intrometendo o tempo todo na minha vida amorosa, ela ainda fica choramingando pelos cantos, pedindo desculpas por se importar tanto comigo e só querer o melhor para mim. Chantagista emocional desgraçada.
riu alto, aquiescendo.
— Meu Deus, ela é uma manipuladora incansável. Sorte dela que ainda assim a adoramos.
se deitou de novo, retomando o seu lugar, bem mais relaxada do que estava minutos atrás.
— Ela te contou sobre os meus planos originais?
— Ela disse que você tinha passado por maus bocados - ele respondeu. — E que era melhor eu não perguntar sobre isso, porque talvez você não estivesse pronta para falar.
Ela assentiu, sorrindo. Millie podia ser chantagista e intrometida em excesso, mas também era o ser humano com o maior coração não chagásico do mundo, sempre preocupada em não tocar as feridas antes que tivesse certeza de que a pessoa estava pronta para começar a falar sobre seu processo de cicatrização.
— Se você tivesse me perguntado algo ontem ou até hoje de manhã, acho que eu realmente não me sentiria pronta. Mas foi um dia incrível, sabe? E agora eu sei que os próximos têm tudo para também o serem. Mesmo sem ele. Especialmente, sem ele - acrescentou.
Respirou fundo, sentindo os olhos colhendo algumas lágrimas que atribuiria à brisa leve que os rodeava.
— O nome dele era Arnold e nós namoramos por um tempo. Eu tinha certeza de que ele era o cara perfeito, saído diretamente de um livro de comédia romântica tão fofo que me daria até um pouquinho de nojo. Ele sempre vinha com flores, vinhos e planos e eu abraçava tudo que ele dizia, simplesmente porque parecia o certo a se fazer.
“Nós planejamos uma viagem bem parecida com essa juntos. Tudo ia bem, muito obrigada, até minha irmã descobrir que ele tinha o mesmo estilo de vida de comercial de margarina com outra mulher ao mesmo tempo.”
— Que cretino. Ela sabe disso?
— Ah, sabe. Eu contei.
— E como ela reagiu?
— Deu um pé na bunda dele também. Perdi o namorado lixo e ganhei uma amiga incrível, por sinal. Ela é maravilhosa, de verdade. Não merecia aquele homem merda.
— Bom, você também não - ele acrescentou. — Mas fico feliz que ambas tenham se livrado dele.
Ela assentiu.
— É, eu fico feliz também. Bem, a viagem tinha sido ideia minha e era algo que realmente vinha me deixando bem animada e até eufórica planejando tudo e imaginando como seria conhecer cada um desses lugares. Quando ele foi embora, eu simplesmente enterrei todos os folhetos, anotações, mapas e guias em uma caixa e soquei ela na parte mais funda do guarda-roupa, atrás das minhas roupas penduradas para que não fosse obrigada a vê-los.
“A enxerida da minha irmã acabou encontrando a bendita caixa, me fez contar sobre a viagem e disse que tinha certeza de que eu precisava mantê-la para conseguir meu desfecho, me desvincular dele de vez e entender que ele não tinha o direito e nem o espaço na minha vida para interromper meus sonhos ou desejos.”
— Acho que faz sentido. Se já não é coerente limitar sua vida por causa de outra pessoa, imagina ainda sendo uma que te traiu e nem faz mais parte do seu cotidiano.
— Pois é, faz sentido mesmo, por mais que eu não admitisse. Mas daí a Millie não podia tirar férias e a Meredith também não.
— Então você acabou presa comigo - ele disse, em tom brincalhão.
— Exatamente - ela respondeu da mesma forma. — Fiquei com um pouco de receio. Nós não nos víamos há tanto tempo. Mas acho que, de certa forma, isso acabou virando parte da aventura.
deu um sorriso de canto.
— Eu sempre perguntei de você para a sua irmã, sabia? Com o passar dos anos, foi meio difícil me desvencilhar da imagem que eu tinha de você, adolescente, tentando descobrir tudo o que a sua irmã fazia só para usar como moeda de troca para o que queria.
“Levei um tempo até me acostumar com a ideia de que você tinha mudado, crescido, amadurecido, vivido todo o período da faculdade, encontrado um emprego. Mas, no fim das contas, acho que essa recusa a aceitar o envelhecimento alheio é mais uma recusa em aceitar o nosso.”
— Não gostei da palavra envelhecimento - ela interveio. — Fez eu me lembrar de que a minha lombar dói de ficar sentada tanto tempo traduzindo os livros e textos para ter como pagar as contas do fim do mês.
“Mas fora isso, eu concordo com você. É um processo afastar a imagem que você tinha de alguém.”
Ele concordou.
— Mas tem uma coisa que, com certeza, não mudou sobre mim - ela acrescentou, fazendo-o se virar para prestar mais atenção.
— E o que seria?
— Eu ainda vou usar essa viagem para descobrir podres da minha irmã.
riu alto, voltando a repousar o pescoço contra o terreno irregular. Encontrou uma estrela grande e brilhante, exatamente na direção de seus olhos e apontou para ela:
— Sabe aquela ali? - Ela concordou, seguindo seu dedo. — Chama .
— Não chama nada.
— Eu estou te dizendo que sim.
— Você está mentindo. Ela chama qualquer coisa, mas com certeza não é .
Ele deu de ombros.
— Bom, quem se importa? Eu quero que seja , então vai ser.
E ela decidiu acreditar também.
🚗🚗🚗
MAMMOTH LAKE
— Não precisa ir se não quiser. É sério.
respirou profundamente, antes de negar com a cabeça.
— Não. Eu consigo fazer isso - decidiu. — Vamos antes que eu tenha tempo de mudar de ideia.
apertou sua mão, tentando lhe passar alguma confiança enquanto empurravam as bicicletas para o teleférico. a apertou de volta, sem oferecer indício algum de que estava disposto a soltá-la.
Quando o teleférico começou a se mover pelos fios suspensos, o rapaz se assustou com o tranco.
— Fica tranquilo - ela sussurrou. — É que nem andar de avião. Decolar é meio chatinho, mas depois fica tudo bem.
— A não ser quando você tem turbulência e a certeza de que o avião vai despencar de alguns milhares de metros de altura e todos vão morrer.
— Meu Deus. E eu pensei que eu era dramática.
observou as fontes, lagos, variações de relevo e as colunas de basalto se afastando e parecendo ganhar forma e vida conforme subiam. Pensou em comentar sobre as rochas logo abaixo, mas tinha a impressão de que iria preferir apenas imaginar a paisagem sem ser obrigado a assimilar o fato de que estavam cada vez mais longe do solo do qual partiram.
Ao chegarem ao topo, sentiu o vento se tornando leve e coerentemente mais agressivo. Fechou os olhos, sentindo a sensação gostosa bagunçando seus cabelos e causando uma coceira engraçada nas entradas de suas narinas.
— O que acha de apostarmos corrida até lá embaixo? - sugeriu.
— Acho uma competição bem suicida, na verdade. Apostar corrida exatamente onde você deveria estar preocupado em frear é no mínimo uma ideia absurda.
— Eu só quero descer - ele admitiu, fazendo-a rir.
— Ok, vamos descer.
Subiram nas bicicletas, grudando os pés aos pedais e as mãos aos freios, enquanto permitiam que a inclinação e a gravidade cumprissem suas funções primordiais conforme observavam a transição gradual da paisagem ao seu redor.
Se estivesse olhando fixamente para a frente, percebeu, podia ver as cores se misturando como em um filme adiantado por sua visão periférica. Por vezes, ficava até um pouco difícil discernir onde começava a folhagem das árvores e onde os caules deixavam marcada a sua presença, enquanto os tons de marrom e verde, unidos pelas insistentes briófitas, acabam por se misturar.
A sensação de liberdade envolvida naquele momento também era inquestionável, aliada a um ar de certa nostalgia. Com um sorriso terno e a mente distante, ela se lembrava perfeitamente das semanas em que o pai havia decidido que ensinaria ela e Millie a andarem de bicicleta ou poderia se declarar aposentado da carreira paterna.
Ele soubera ser insistente e persistente, mesmo que às vezes elas já estivessem cansadas ou só quisessem correr para dentro de casa para socorrer o joelho ralado e ardido que mais parecia um prenúncio do fim do mundo. Quase conseguia ouvir o timbre de sua voz dizendo que, como tudo na vida, o esforço seria recompensado depois; e que andar de bicicleta era um conhecimento e uma habilidade que levariam para toda a vida. Ninguém nunca se esquece de como se anda de bicicleta.
Retornou de seus devaneios ao ouvir o canto suave e agudo dos pássaros se fundir à voz do pai. Seu velho estava certo no fim das contas. Ele geralmente estava. Se tivesse desistido no primeiro rasgo na perna, não estaria ali, naquele exato momento, tomando cuidado para não engolir um mosquito enquanto apreciava bobamente o mundo ao seu redor.
— E aí?
ergueu o olhar, tirando o capacete dos cabelos agora extremamente amassados.
— Quer saber se eu ainda consigo respirar normalmente?
— Algo assim.
— Bom, acho que a combinação da vista com o fato de que eu estava louco para chegar aqui embaixo logo acabou sendo bastante útil. O caminho é muito bonito.
Ela aquiesceu.
Devolveram as bicicletas e seguiram caminho para a próxima coisa que havia jurado a si mesma que faria. Afinal, não existia a mínima possibilidade de ela negar conhecer algo com um nome tão teórico e pomposo como ‘fontes geotérmicas’. Long Valley Caldera parecia o lugar perfeito para isso.
Tão logo viu o corpo d’água, tirou a blusa e a bermuda, expondo um biquíni de estampa vermelha xadrez que quase lembrava uma daquelas toalhas de piquenique, que pareciam sempre dar um jeito de aparecer em filmes e seriados. nem percebeu a semelhança considerável, no entanto, ocupado demais se perdendo em seus próprios pensamentos e esforços para desviar o olhar de seu corpo. Se o prendessem a um detector de mentiras, jamais seria capaz de negar a sua atração por ela e como desejava saber como era se perder em cada uma de suas curvas. Não queria parecer desrespeitoso, por outro lado. Então, com certo custo, virou o rosto para o lado até ouvir, em tom alto e claro, o barulho que indicava que ela já havia entrado.
riu, tirando os cabelos molhados da frente do rosto, para liberar os seus olhos. não conseguiu desviar seu fluxo de pensamentos rápido o suficiente para que não se desse conta de que aquela deveria ser uma das cenas mais lindas que ele havia tido o prazer de ver ao longo de sua vida. Era a expressão de felicidade que lhe iluminava as bochechas e lhe trazia brilho aos olhos, ainda se acostumando com a água ao seu redor.
— É quentinha - ela comentou, ignorando o quão óbvio e tosco poderia ter soado. Estava tão relaxada que não teve tempo de se importar. Não era à toa que a água quente era reconhecida como um dos melhores meios de se conseguir relaxar pelo simples fato de permitir a melhor circulação sanguínea ao promover a vasodilatação. — Você não vem?
Ele engoliu em seco, demorando alguns extensos segundos para se decidir por tirar a camisa e pular rapidamente ao lado dela.
se moveu calmamente, em um nado que mais se aproximava do cachorrinho que de algum estilo olimpicamente reconhecido. O semblante do rapaz havia adquirido um ar de seriedade que ela não reconhecia nele, de tão desconexo de seu humor cotidiano que lhe parecia.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não, não - ele respondeu rapidamente. — Está tudo ótimo.
— Você não parece exatamente confortável - ponderou, buscando o apoio no fundo da fonte para conseguir fixar o corpo em um ponto e olhá-lo.
Ele fechou os olhos, respirando fundo, conforme deixava que os ombros pesassem um pouco. Nunca tinha verbalizado as memórias que lhe traziam tanta insegurança, mas sentiu que, se estava mesmo disposto a colocar para fora aquilo que havia se assentado em seu peito há tanto tempo, ficava grato que pudesse ser com alguém com quem se sentia confortável para isso. Alguém que lhe fazia acreditar que aquele seria um ambiente sem julgamentos.
— Meu último relacionamento sério foi há um ano - começou. — Na época, eu estava me apresentando em alguns bares e restaurantes de noite para ganhar um dinheiro extra, já que ainda não tinha me acertado muito bem em um emprego fixo. E Ele Eleeu sei que era um ponto delicado, mas eu realmente estava me acertando, sabe? De eventos casuais, comecei a ser contratado em dias específicos da semana e, logo, tinha quase todas as minhas noites tomadas. Eu realmente pensei que estava finalmente me estabelecendo em algo que eu amava.
— E não estava?
— Estava, sim. E eu estava feliz da vida, porque tudo parecia finalmente estar dando certo. Foi, então, que ela decidiu me dar um pé na bunda na noite do meu aniversário.
— Que escrota.
Ele gargalhou alto, concordando com a cabeça.
— Como se não bastasse o fardo de estar envelhecendo, ainda ganhei de brinde o do abandono repentino. E como se não bastasse o pé na bunda, ela decidiu que precisava se justificar, em vez de só ir embora.
estremeceu, sabendo que o pior estava por vir. Por mais que fosse a maior defensora da honestidade e de se sustentar o caráter de dizer as verdades em vez de se esconder atrás de mentiras, sabia que algumas “verdades” não eram sinceridade e, sim, apenas maldade. Existia uma grande diferença entre ser honesto e ser um filho da puta.
— Ela me disse que não conseguia se ver em um relacionamento com alguém que não tinha perspectivas para a própria vida - ele prosseguiu. — Disse que essa história de música nunca daria certo e que era para o meu próprio bem que ela estava sugerindo que eu procurasse um emprego de verdade antes que acabasse passando necessidades financeiras.
“Quando eu me doí com aqueles comentários e tentei rebater falando sobre todos os eventos e jantares a que tinha sido contratado, ela disse que isso jamais seria o suficiente e que eu acabaria preso e estagnado nessa vida medíocre para sempre porque não tinha o que era necessário para fazer sucesso na indústria musical. Que eu não era bonito o suficiente e tinha um corpo vergonhoso e deveria, no mínimo, ter sido realista o suficiente para escolher uma carreira que pudesse ser sustentada mesmo com a minha aparência desfavorável”.
Ela engoliu em seco, sentindo cada uma daquelas palavras lhe apunhalando como adagas, mesmo que não tivessem sido dirigidas a ela.
— Essas são as coisas mais horríveis que eu já ouvi - disse, com a voz entrecortada. — E você não merecia ter passado por absolutamente nada disso. Até porque, além de serem críticas cuja única finalidade é serem maldosas, elas são mentirosas também.
permaneceu parado exatamente onde estava. Só não havia parado de respirar ou piscar porque estas ainda eram funções suficientemente involuntárias.
— Foi complicado - admitiu, com a voz baixa. — Eu ainda penso nisso sempre que momentos como esse acontecem, sabe? Quando preciso tirar a camisa ou ficar perto de outras pessoas que possam reparar. A voz dela continua presa como um eco no fundo da minha cabeça.
— Eu imagino. E sei que falar é muito mais fácil do que fazer, mas você precisa esquecê-la e tacar um gigantesco foda-se para ela. Que mulher mais desgraçada! Ela só falou essas bostas todas para te humilhar.
— O pior é que eu sei.
— Que bom. Acho que já é um grande passo. Daí para conseguir anular isso realmente vai ser um processo, mas fico feliz que saiba que isso não é sobre você. E fico feliz que tenha se sentido confortável para compartilhar isso comigo.
— E eu me sinto - admitiu. — De verdade.
— E sei que a única opinião que importa verdadeiramente sobre seu corpo e sua aparência é a sua própria. Mas eu te acho incrível assim. Sua ex precisa de um oftalmologista.
Com um sorriso, ele respondeu aquilo que sentia: gratidão. Porque, por mais que ela não acreditasse, sua opinião significava bastante coisa, mesmo que para a consolidação da sua própria.
— Eu fazia esse jogo com a Millie - ela voltou a falar, mudando o assunto. — Afundávamos e apostávamos quem conseguia ficar mais tempo submerso sem precisar voltar para a superfície para respirar.
Ele a observava, enquanto tirava a água dos próprios olhos.
— Antes de você cogitar aceitar participar, acho que deveria saber que eu sempre ganhava.
— Bom, então acho que você deve saber que eu sou muito competitivo.
Com um sorriso brincalhão, os dois afundaram as cabeças.
🚗🚗🚗
DEATH VALLEY
Quando disseram que lá era o lugar mais baixo, mais quente e mais seco de todo os Estados Unidos, não era brincadeira. E essa era a confirmação de quem havia seguido as sugestões de turistas por sites aleatórios e decidido chegar na noite anterior para poder ver o nascer do Sol e apreciar os picos de Zabriskie Point ganhando tons avermelhados que se misturavam ao azul claro do céu.
aconchegou a cabeça ao ombro de , permitindo que um bocejo barulhento e completamente desprovido de discrição saísse de sua boca. Não se arrependia nem um pouco de ter ido dormir tão tarde, já que seus motivos tinham nome e sobrenome: .
Tinham passado várias horas da noite, estendendo para algumas da madrugada, simplesmente conversando sobre a vida, os relacionamentos fracassados, as coisas mais bizarras que tinham feito por influência de amigos, os filmes favoritos e visto vários vídeos de animais fofos que pareciam ainda mais felpudos e apertáveis conforme o sono os abraçava.
O rapaz inclinou a própria cabeça, encostando-a à lateral da dela de uma forma carinhosamente sonolenta e estranhamente confortável. Por alguns instantes, só a aquarela celeste importava, performando seu espetáculo único e precioso, anunciando o início do novo dia. Tinham até se esquecido da enorme possibilidade de que suas narinas decidissem sangrar em reação à aridez do ambiente ao longo do dia.
— Bom, valeu a pena ter acordado tão cedo para ver isso - ela murmurou.
não ousou se mover ao responder:
— Valeu a pena não dormir, você quis dizer. Porque três horas de sono mal são um cochilo.
riu, olhando para um ponto relativamente abaixo do mirante que ocupavam, em um platô no qual as pessoas tentavam se posicionar da melhor forma, buscando uma iluminação que favorecesse as capturas de imagem de suas câmeras. Sentiu , ao seu lado, sorrir também.
— Adoro seu sorriso - disse, apertando os olhos frente ao estímulo luminoso que aumentava gradualmente. — Me lembra o sorriso da sua mãe, mas você aperta os olhos de um jeitinho só seu.
— Você nem está me vendo.
— Não preciso - respondeu de pronto. — Tenho a imagem bem clara na minha cabeça.
O sorriso dele se tornou ainda mais largo, repuxando os cantos dos lábios. Acabou percebendo que ela tinha razão quanto aos olhos apertados.
— Você se lembra da minha mãe?
Ela saiu da posição em que estava, olhando-o com atenção.
— Sempre que olho para você. Sempre te achei muito parecido com ela.
— Ela também achava - ele concordou. — E fazia questão de falar disso para absolutamente todo mundo.
— Basicamente, ela estava cumprindo com as obrigações do cargo dela de mãe.
— É, acho que sim. Sinto muito a falta dela.
se viu entrelaçando seus dedos aos dele antes mesmo que pudesse se dar conta racionalmente do que estava fazendo ali. Nem imaginava a dor do luto de perder alguém tão próximo e tão amado e não sabia exatamente o que dizer ou fazer. Às vezes, pensava que a melhor forma de estar ali para alguém, era literal e simplesmente apenas estar ali para alguém.
— Ela sempre teve muito orgulho de você. Com certeza ainda sente sempre que está olhando por você.
Ele piscou, permitindo que uma lágrima corresse pela lateral do nariz.
— Se ela estiver olhando para nós, vai ficar bem contente. Ela te adorava.
riu de leve, concordando.
— Eu meio que percebi pelas vezes que ela se ofereceu para me levar para tomar sorvete enquanto vocês iam ao cinema e me ignoravam por ser pirralha demais.
revirou os olhos abertamente.
— Você tem que entender que, naquela época, o fato de sermos um pouco mais velhos era basicamente a única coisa que fazia com que nos sentíssemos superiores. Até a turma abaixo era nova e imatura demais para o nosso conceito prejudicado.
— Infelizmente, o ego de vocês custou anos da minha incrível companhia. E todos os sorvetes maravilhosos que ganhei com isso.
— Vou me arrepender amargamente disso por todos os dias da minha existência, prometo - garantiu, levantando-se. Bateu as mãos na parte de trás das calças, tentando se livrar de possíveis grãos de areia e terra que tivessem decidido que aquele era um bom lugar para se estar. Estendeu a mão para que também se colocasse de pé. — Vamos. Temos uma trilha para fazer de carro.
— Twenty Mules Team Canyon - ela comentou. — Ou o desvio dos desvios.
— Não gosto desse nome.
— Eu também não. Soa esquisito demais.
— Quer dirigir? - Ele ofereceu repentinamente, fazendo-a travar exatamente onde estava.
— Como é que é?
— Quer dirigir? - repetiu. — Deve ser divertido.
— Se é tão divertido, eu acho que você deveria fazê-lo. Eu jamais me perdoaria se lhe roubasse instantes preciosos de diversão.
— Você está com medo de pegar o carro?
bufou, soltando o ar de uma vez só, como se quisesse demonstrar como mesmo a mísera sugestão daquilo era completamente absurda.
— É claro que não. Até parece que você não me conhece.
— Por mais que eu acredite te conhecer relativamente bem depois desses dias, nunca a vi dirigindo. Então posso estar certo.
— É que você parece tão tranquilo atrás do volante, sabe? E o carro é seu no fim das contas. Eu não quero me intrometer na relação de vocês.
— Eu estou literalmente te oferecendo. Prometo que nem eu e nem o carro vamos ficar chateados.
Ela variou a distribuição do próprio peso sobre os pés, achando estranhamente interessante e repentinamente relevante a forma que eles afundavam de leve no solo.
— , você sabe dirigir?
— É claro que sei - respondeu no mesmo segundo, revirando os olhos. — Tirei minha habilitação e tudo. Eu só evito.
— Bom, se quiser tentar, esse é o melhor lugar para isso. O caminho é inteiro de mão única e não tem praticamente ninguém. Se você simplesmente quiser parar o carro no meio do caminho, tudo bem. Sem contar que eu vou estar ao seu lado o tempo todo. Nada vai acontecer.
Ela tomou alguns instantes para ponderar a oferta e, no fim das contas, sabia que fazia certo sentido. E até que sentia falta de dirigir.
Soltou algumas exclamações contentes conforme foi pegando o jeito das curvas sobre a terra, ao redor dos canyons de areia. Sentia a oscilação da textura sob os pneus e estava grata pela consciência do mundo ao seu redor.
Percorridos os quilômetros da trilha, ainda visitaram o Bad Water Basin - ponto mais alto dos Estados Unidos, com algumas pobres poças de água sobre a imensidão dos campos brancos e salgados - e o Devil’s Golf Course - cuja irregularidade extrema formada pelos cristais de sal no solo do deserto tinha conseguido virar uma piada de que só o capeta conseguiria jogar golfe em um lugar daqueles.
Ao fim da tarde, seguiram a rota das montanhas coloridas abarcadas pela Artist Drive & Artist Pallete. Além da excitação peculiar e particular de subir a montanha, puderam fechar o seu ciclo ali, assistindo ao pôr do Sol, findando o dia para que as estrelas pudessem começar a pipocar pelo céu escuro. ainda se pegava chocada e impressionada com a beleza do céu estrelado quando afastado das grandes cidades e da poluição. Era uma experiência magnífica e a fazia entender porque algumas pessoas se interessavam tanto por planetas e estrelas.
Naquela noite, permitiram-se escolher um restaurante um pouco mais chique no caminho. Vestiram as melhores roupas que haviam levado - que não eram nem de longe as melhores de seus guarda-roupas em casa - e agradeceu mentalmente por ter levado ao menos um batom e um corretivo para esconder as marcas claras da noite mal dormida.
Um garçom simpático lhes ofereceu o menu de pratos e uma cartilha de vinhos. Afastando-se em seguida para conferir-lhes espaço para que decidissem até que retornasse para anotar os pedidos.
leu todos aqueles nomes difíceis na cartilha, tendo a mais pura certeza de que seu francês praticamente nulo não tinha prática linguística suficiente para pronunciar nem metade daquelas palavras.
— Quanto você sabe de harmonização de vinhos?
ergueu o olhar, repuxando uma sobrancelha ao ouvir aquela pergunta.
— Em uma escala de um a dez? Zero. Tudo o que eu sei é que gosto de vinho. Qual deles tomei? Não sei.
Ela disfarçou uma risada.
— Tenho a leve impressão de que seremos brutalmente julgados se errarmos o vinho.
Ele puxou o celular, diminuindo a luminosidade da tela para garantir que sua busca não seria visível a olhares furtivos que pudessem se aproximar. Estendeu o menu de pratos para ela.
— Escolhe a comida - orientou. — E eu pesquiso que vinho combina. Assim parecemos menos alheios a esse mundo.
assentiu, concordando com a ideia. Escolheu um peixe delicado e decidiu pedir o mesmo. Por orientação do sábio google, pediu um Sauvignon Blanc ao garçom, forçando um sorriso presunçoso que passava toda a confiança que ele não tinha de que havia feito a escolha moralmente adequada para os sommeliers de plantão.
Quando os pedidos chegaram, lhe arrancou risadas ao balançar levemente a taça em círculos e inalar o aroma do vinho, meneando a cabeça de forma positiva para ela.
deu um gole no seu, sentindo o sabor leve preenchendo suas papilas gustativas de uma forma agradável. Era suave e gostoso e combinava perfeitamente com o peixe.
— Bom, para quem não entende nada, acho que foi uma boa escolha - disse.
— Agradeça à tecnologia.
Terminaram de comer entre brincadeiras e risadas discretas. A mulher ainda sentia um calor aquecendo seu peito sempre que ele sorria fechando os olhos e tinha certeza de que não era pela alta temperatura do lado de fora. Ele só conseguia pensar em como os lustres altos e circulares acima de suas cabeças tinham acrescido um brilho especial aos olhos dela sempre que olhavam para ele.
— Tudo estava do agrado dos senhores? - O garçom perguntou, retirando os pratos e taças.
— Ah, com certeza - ela respondeu. — Tudo estava ótimo.
O rapaz sorriu satisfeito, enquanto sinalizava para que outro homem de uniforme se aproximasse.
— Queremos oferecer essa sobremesa para o casal, como cortesia da casa para adoçar a sua noite.
fez menção de corrigi-lo, mas foi interrompido por um chute dolorido em sua canela, implorando para que ele não destruísse o momento fatídico em que um brownie com sorvete lhes tinha sido oferecido de graça.
— Eu vou ficar com um roxo na perna - ele reclamou entre dentes, enquanto ela enchia uma colherada de brownie.
— Você precisa aprender a ficar de boca fechada. Ainda mais quando tem comida grátis envolvida.
— Eu só ia dizer que não éramos um casal.
— E o que é um casal afinal de contas? São duas pessoas em um relacionamento amoroso ou são simplesmente duas pessoas que se gostam?
— Se gostar é meio relativo.
— Você entendeu - ela reclamou. — E esse brownie está muito gostoso. Eu nunca te perdoaria se me fizesse perdê-lo.
Dividiram a conta e se dirigiram para a saída. pegou a mão de , fazendo-a se sobressaltar de repente pelo estranhamento.
— Não somos um casal? Temos que fazer uma saída adequada - ele se explicou, fazendo-a concordar. Era uma justificativa idiota e sabidamente furada, mas ela não tinha pressa alguma de se livrar daquele toque.
Caminharam tranquilamente pelo caminho de cascalhos iluminado por lamparinas amarelas, com os passos bem mais lentos que o usual, buscando silenciosamente cumprir o acordo de fazer aquele momento se estender o máximo possível.
interrompeu os passos, fazendo-a parar e se virar para ele.
— Eu não sei se é o vinho, mas a lua está parecendo especialmente gigante hoje - disse. — E agora que eu falei isso percebo como soa absurdamente idiota.
riu alto, dando mais um passo em sua direção.
— Não acho idiota. Nem um pouco.
A única coisa que parecia idiota era aquele ímpeto esquisito dentro dela ao qual ela decidiu ceder. Seria mentira dizer que já não tinha imaginado como seria aquele momento. E seria uma mentira ainda maior falar que a realidade não havia superado completamente quaisquer de suas expectativas.
Com os lábios dele grudados aos seus, ela se lembrou de como era a sensação das borboletas no estômago e da taquicardia desconfortável que faziam com que duas pessoas se aproximassem ainda mais, talvez por receio de desfalecer nos braços da outra.
Afastou-se minimamente, sentindo o sorriso dele se formando praticamente contra a sua boca.
— O que quer fazer agora?
— Quero fazer isso de novo - ele respondeu e levou a mão à sua nuca, trazendo-a para si novamente.
Como tinham decidido jurar honestidade e sinceridade sempre, tinham de ser verdadeiros e admitir que aquela era a coisa que mais parecia certa em muito tempo. E, por mais que alguns corações tivessem sido machucados ao longo do caminho, isso não significava que estavam tão partidos que não pudessem ser remendados, mesmo que por aquele que menos se esperava.
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LAS VEGAS
se lembrava perfeitamente do dia em que tinha ido ver ‘Os Incríveis 2’ no cinema, mais cheia de expectativas que pelo menos dois terços das crianças ali presentes. Também tinha a lembrança clara de que, logo antes do começo do filme, havia um aviso enorme sobre riscos de náusea, vertigem e convulsões devido aos clarões intensos e repetitivos presentes nas cenas do vilão.
Tinha certeza de que um aviso daqueles cairia bem ali, em meio a tantas máquinas, caça-níqueis e decorações em neon.
gastou suas moedas primeiro, obtendo dois cocos, uma cereja e um cacho de bananas.
— Acho que cerejas não são exatamente grandes exemplos de frutas tropicais - ponderou.
— Que bom que você percebeu - comentou. — Vamos procurar o criador da máquina. Ele com certeza vai se esforçar imediatamente para corrigir seu erro.
— Como você é engraçada. Sorte sua que fica tão bonitinha quando está sendo sarcástica.
A mulher inclinou levemente a cabeça, em um protótipo de reverência que agradecia pelo elogio. Em seguida, empurrou-o do assento, estabelecendo a sua vez de tentar a própria sorte.
Teve de esperar alguns segundos após puxar a alavanca, enquanto a máquina fazia barulhos aleatórios e rodava luminosamente feito doida à sua frente.
— Meu Deus do céu, eu vou ficar com dor de cabeça antes mesmo de começar a beber - murmurou, piscando com força.
Foi então que se formou sua linha: quatro mangas - ou seja lá que frutas o ilustrador pensava estar desenhando - perfeitamente idênticas.
— Eu ganhei! - Ela berrou, aplaudindo. — Meu Deus, eu nunca ganho nada. Esse lugar deve me adorar.
— Não é só ele - o rapaz comentou, deixando um beijo leve na curva de seu pescoço.
precisou se dividir entre o rubor das faces e o arrepio que ele lhe causava sempre que a tocava ali. Tinha aprendido rápido demais os pontos que faziam seu corpo reagir, curvando-se ou se acendendo como uma árvore de natal.
— O que é que eu faço com essas fichas que eu ganhei? - Questionou, livrando-se do seu toque delicadamente e completamente contra a sua vontade.
— Sabe jogar poker?
— Tão perfeitamente bem quanto sei surfar.
ergueu as sobrancelhas, os olhos arregalados, fitando-a pela nova informação.
— Você sabe surfar?
— É claro que não.
Seguiram para as mesas de carteado, onde logo conseguiu um lugar no poker e tentava prestar atenção no jogo para entendê-lo.
Aos poucos estava compreendendo os passos pré-flop e pós-flop e se enchendo de expectativas de que conseguisse reunir uma mão alta o suficiente para bater os outros jogadores.
— Straight Flush - ele disse, dispondo uma sequência perfeita de copas.
Os demais parabenizaram-no, aceitando a derrota. Ninguém tinha conseguido um Royal Flush para superá-lo.
— Você ganhou!
Ele sorriu, concordando, ao lhe roubar um selinho.
— Mas vamos embora daqui antes que eu perca. Minha sorte não costuma durar mais do que uma partida.
assentiu. Podia entender porque as pessoas falavam tanto sobre jogos de cartas e apostas e todos os problemas que advinham disso. A adrenalina que fluía por suas veias com a expectativa e com a vitória era uma sensação inebriante e incomparável. Por mais triste e destrutivo que viesse a ser, ela conseguia entender porque era tão fácil fazer daquilo um vício e uma busca incessante por aquele mesmo tipo de excitação e antecipação. Mas nisso tinha razão; era melhor se retirar antes que a sorte mudasse e começassem a perder.
— Bom, jogamos no caça-níqueis, você ganhou no poker… O que mais precisamos fazer para ter a experiência completa de Vegas?
Como se o destino houvesse lhe ouvido e decidido lhe oferecer uma resposta, viram uma mulher passando correndo com um vestido branco despojado e um buquê de flores lilases. Arrastou seus risinhos pelo salão, até encontrar um rosto redondo, com as bochechas saltadas pelo sorriso aberto lhe aguardando. riu da vestimenta improvisada, vendo o rapaz usando um paletó preto com gravata borboleta e bermuda.
— Bom, poderíamos nos casar - comentou. — Mas talvez seja um pouco precipitado.
A mulher riu, enquanto lhe dava um empurrão de brincadeira no peito. Olhou em volta, encontrando a loja de lembrancinhas e vendo exatamente aquilo de que precisavam, mesmo sem saber.
— Vem, eu tive uma ideia.
Arrastou-o a tropeços e questionamentos até a loja, onde foram abordados por uma vendedora sorridente que parecia cheirar a perfume de baunilha e tabaco.
— O que os pombinhos desejam? Vieram pegar os documentos para se casarem?
— Nós já nos casamos - respondeu com um largo sorriso, mostrando todos os dentes possíveis, enquanto apertava a mão de , alertando-o para apenas seguir o momento. — Vimos umas blusas tão bonitinhas na vitrine. Gostaríamos de experimentar.
— Sei exatamente do que está falando - a mais velha respondeu, pedindo um instante enquanto ia até o estoque.
— Que bom que ela sabe do que você está falando - ele murmurou. — Porque eu continuo sem entender nada.
— Você já vai ver, amorzinho. Precisa ser menos apressado.
Ele revirou os olhos, mas logo reassumiu o semblante vidrado e forçosamente simpático ao ver a vendedora retornando.
— Acredito que esses sejam os tamanhos adequados para vocês.
— Ótimo! Vamos provar!
arrastou para os provadores, entregando a camisa dele por cima do biombo que os dividia.
— Puta merda - ele exclamou baixinho, ao finalmente ler os dizeres em preto: “Senhor recém-casado”.
Ao seu lado, ela riu, vestindo a sua própria versão de “Senhora recém-casada”.
Saíram dos provadores, mascarando a vontade de gargalhar que coçava a garganta, querendo buscar o caminho para fora de seus corpos. tomou a mão dela, enquanto retornavam até a vendedora.
— Ficou perfeito! Vocês são lindos, isso com certeza ajuda muito.
agradeceu educadamente, mesmo tendo a mais plena certeza de que ela deveria dizer aquilo para absolutamente todo mundo. Era meio que a sua função como comerciante, afinal.
— Vamos levar - anunciou, entregando o seu cartão de crédito.
— Depois eu te pago a minha - ela sussurrou ao pé de seu ouvido.
— Não precisa - ele respondeu no mesmo tom. — Considere isso como meu presente de casamento para você.
— Mas eu não te dei um presente de casamento - ela reclamou.
— Acredite em mim, você me deu muito mais do que isso.
Fora da loja, receberam as parabenizações de várias pessoas e abraços de desconhecidos completos que pareciam ter uma forte tendência a se tornarem estranhamente emotivos depois de tanto beberem. Mesmo que, aparentemente, não estivessem sóbrios o suficiente nem para compreender o nome dos supostos recém-casados.
— Não que eu não esteja me divertindo com essa história, porque eu estou - começou. — Mas de onde veio essa ideia?
— Ah, eu lembrei que, uma vez, fomos à Disney no aniversário da Millie e todos os funcionários e personagens paravam para paparicá-la e tudo mais. Pensei que em um meio adulto fôssemos ganhar algo com isso também, sabe? Atenção, parabéns… Quem sabe umas bebidas.
Ele riu, balançando a cabeça.
— Não acho que essa seja uma política para a clientela daqui. Provavelmente acabariam indo à falência se oferecessem álcool para todas as pessoas que se casam por aqui.
— Duvido. Olha o tanto de dinheiro que cada um investe nessas mesas e máquinas. Para esse lugar falir, vai ser necessário muito mais do que umas doses de bebida em felicitações.
— Tequila para os noivos? - Um rapaz com sotaque forte ofereceu, estendendo-lhes copinhos decorados com a bandeira mexicana, além de fatias de limão e sal.
— Quanto é? - quis saber.
— Cortesia - ele voltou a falar. — Um presente nosso pelo matrimônio!
sequer tentou esconder o semblante vitorioso. Queria muito gritar ali mesmo sobre como adorava estar certa.
não deu tempo para que o rapaz mudasse de ideia, pegando sua dose e passando a outra para sua “noiva”.
— Bom, a nós - propôs o brinde.
— A nós - ela concordou, antes de virar o conteúdo garganta abaixo.
Talvez a sorte não fosse sobre ganhar na primeira vez em um caça-níqueis fajuto, nem sobre conseguir um Straight Flush. Talvez também não tivesse nada a ver com trevos de quatro folhas, pés de coelho, ferraduras e quaisquer outras superstições reiteradas pelas pessoas.
Sorte era sobre estar com alguém que lhe arrancava risadas nos momentos mais inoportunos, concordava com as suas ideias mais loucas e te lembrava diariamente daquilo que você já deveria saber: de como era válido, importante e especial. E, naquele momento, teve certeza de que tinha tirado a sorte grande.
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HOME
— Acho que nos despedimos aqui - disse, com um doce sorriso, após retirar do carro a última mala.
baixou o olhar, empurrando uma mecha bagunçada do cabelo para trás da orelha. Sentia-se um tanto idiota ao assimilar que, de repente, sentia uma pontada de vergonha de alguém com quem havia passado tanto tempo.
— Acho que sim - respondeu enfim. — Eu não sei nem como te agradecer por ter aceitado essa loucura de ser meu companheiro de viagem.
— Acho que foi mais uma aventura do que uma loucura, no fim das contas.
Ela não conseguiu evitar um sorriso de canto ao sentir o toque já tão familiar e aconchegante provocado pelas pontas dos dedos dele, correndo carinhosamente pelas linhas marcadas da palma de sua mão.
— Então, obrigada pela aventura.
— Pode ter certeza de que o prazer foi todo meu - assegurou-lhe. — Mas antes que vá, eu tenho uma coisa você.
Estendeu um papel dobrado, pouco atraente, mas que despertou sua atenção imediatamente.
— O que tem aqui?
Ele interrompeu imediatamente sua tentativa de desfazer os vincos e acessar o conteúdo com seus olhos curiosos.
— Só mais tarde. Quando você estiver lá em cima.
Ela revirou os olhos, com uma risadinha. Mesmo a contragosto, era capaz de ceder a suas vontades. Afinal, só precisava de poucos minutos para trancar a porta do apartamento atrás de si e ler o que quer que estivesse escrito ali.
— Bom, então vou subir - disse. — Nos vemos por aí, .
— Nos vemos por aí, .
Ela esperou o carro sumir de sua vista para se virar, reunindo suas coisas para pegar o elevador até o seu andar.
Praticamente chutou a bagagem para dentro, ignorando a rodinha problemática e qualquer outra coisa. Agilmente, abriu a carta, lendo os versos, tão bem organizados em estrofes que não foram necessários mais do que alguns instantes para que ela se desse conta do que aquilo significava.
“Life gets hard and it gets messed up
When you give so much, but it's not enough
When the high's too high, and the low's too low
When you love someone and they let you go
Don't you let it kill you
Even when it hurts like hell
Oh, whatever tears you apart
Don't let it break your heart
Time takes time to heal it
You can't do it by yourself
Oh, whatever tears you apart
Don't let it break your heart”
“Cumpri a minha promessa de te escrever uma música. Se você quiser ouvi-la, no entanto, terá que vir até mim para que eu possa te mostrar o ritmo.”
— Maldito.
Aparentemente, tinha aprendido exatamente como mexer com a sua curiosidade.
Puxou o celular do bolso, clicando no contato cujos dígitos adquirira em algum momento da viagem.
— Pensei que fosse demorar mais que isso. — Duvido.
Ele gargalhou do outro lado da linha.
— É, acho que não. Ela respirou fundo, antes de perguntar:
— Então, quando posso te ver?
“As coisas boas não esperam até a gente estar pronto. Às vezes chegam antes, quando estamos quase lá. E eu concluí que, quando isso acontece, temos duas opções: deixar passar, como se fosse o ônibus errado. Ou então ficar pronto.”
Taylor Jenkins Reid, Amor(es) Verdadeiro(s)
fechou o livro, apertando-o contra o peito antes de permitir que seu corpo despencasse contra seu colchão. Soltou um suspiro frustrado, sentindo as lágrimas ridículas voltando a tomar os olhos.
Detestava aquela angústia patética e aquela sensação quente nas órbitas sempre que algo a obrigava a se lembrar dele. Arnold tinha ido embora há treze dias, quatro horas e cinquenta e sete minutos e o buraco em seu peito parecia se esforçar para doer a cada um daqueles segundos. Não podia ser seu coração, brutalmente arrancado da cavidade torácica. Aquelas pontadas agudas e dolorosas deveriam ser algum tipo de sintoma de síndrome do membro fantasma. Talvez houvesse algo sobre isso relatado na literatura médica.
Por mais tentador que fosse explorar artigos científicos com termos técnicos que ela jamais entenderia, contudo, decidiu se ater à literatura compreensível a ela. Mesmo que aquela específica frase em ‘Os Sete Maridos de Evelyn Hugo’ tivesse piorado tudo em vez de cumprir a função de distraí-la de seu próprio abismo de sofrimento.
— Taylor Jenkins Reid, eu te odeio - declarou, abandonando o livro sobre a mesinha de cabeceira.
Mas não odiava. Mesmo com o drama acumulado pelo término recente do relacionamento e pela leitura voraz de romances dramáticos demais em looping, ela sabia que só odiava uma pessoa. Uma pessoa alta, com perfume almiscarado aplicado delicadamente na nuca e atrás das orelhas, linda, musculosa, de cabelos castanhos claros levemente bagunçados quando jogados para o lado e que estavam alguns milímetros compridos demais, cobrindo um pedaço das lentes de seus óculos de grau e que parecia ter os braços feitos sob medida para segurá-la mais perto em uma noite fria. Arnold era um tremendo babaca e ela se sentia ainda mais idiota do que ele por continuar remoendo todas as coisas lindas e alegres que vivera com ele mesmo depois de descobrir a gigantesca falha de cárater em uma das qualidades que ela mais apreciava em alguém: a honestidade.
Arnold era o tipo de cara que fazia questão de ter um pequeno buquê de tulipas em mãos todo sábado de noite, juntamente com uma garrafa de vinho rosé, e que saía domingo logo depois do café da manhã porque tinha marcado de jogar futebol com os amigos e beber um pouco. Arnold era o tipo de cara que sempre mandava uma mensagem de bom dia - que de acordo com ele era pela necessidade que todo ser humano tem de receber positividade e expressar um sorriso logo pela manhã -, mas raramente desejava boa noite, mesmo que não estivesse ocupando o outro lado de sua cama.
E era o tipo de mulher que não se importava; que não cobrava os boa-noites e ficava feliz que ele tivesse um momento de lazer próprio com os amigos para se livrar um pouco do peso e do estresse que a vida adulta fazia questão de proporcionar a todos durante os dias úteis da semana. sempre escolhia um prato que caísse bem com o rosé, às vezes fazendo-o, às vezes encomendando-o, e contava animadamente sobre todas as coisas incríveis que havia aprendido durante a semana, feliz por ter alguém que soava tão animado quanto ela ao simplesmente ouvir. Arnold sempre tivera um jeito espetacular de fazê-la se sentir a mulher mais feliz do mundo por ter o prazer de ser aquela ao seu lado para a vida. Seus largos sorrisos sempre evidenciaram como ela pensava ser a pessoa mais sortuda do mundo por ter conseguido um amor daqueles.
Até descobrir, quinze dias, dez horas e seis minutos atrás que o amigo do futebol e da cerveja se chamava Meredith, era a mulher mais charmosa que ela já havia visto e, aparentemente, tinha um relacionamento com o mesmo homem com quem ela tinha um relacionamento.
Fora Millie, sua irmã mais velha, quem lhe enviara uma foto inquestionavelmente real - mas na qual ela se esforçou para procurar defeitos insistentemente, tentando se agarrar ao fio de esperança de que fosse um engano - de Arnold e Meredith em um brunch, comendo e conversando, mantendo as mãos dadas e os sorrisos nos lábios. O sorriso que ela jurava que ele guardava especialmente para os sábados à noite com ela.
descobriu rapidamente quem era Meredith, sua idade, onde trabalhava e vira todas as suas fotos no facebook, sem se orgulhar nem um pouco da fúria que a fazia stalkear alguém daquela forma. Ela era linda, bem sucedida e parecia exatamente o tipo de mulher que poderia estampar simultaneamente capas de revistas de negócios e de beleza e saúde femininas.
Orgulhava-se ainda menos de ter se dirigido até o escritório dela e pedido por um encaixe para vê-la. Mas era mais forte do que ela e ela precisava fazer aquilo.
Quando questionada sobre Arnold, Meredith respondeu com sorrisos, apesar de claramente estranhar o teor das perguntas de quem julgava ser apenas uma cliente em potencial. No fim das contas, ela não era a amante que não se importava com a vida do parceiro e sugeria que ele abandonasse a namorada oficial. Ela também confiava piamente que o que tinham era real, genuíno, especial e - principalmente - exclusivo.
Como poucas coisas no mundo são mais efetivas em unir duas pessoas do que o ódio compartilhado por uma terceira, as duas acabaram se tornando amigas, logo após terminarem seus respectivos relacionamentos. Encontravam-se duas vezes na semana para tomar um café no fim da tarde e compartilhar as angústias e mágoas do mundo, além de se lembrarem mutuamente de como eram fortes, incríveis e merecedoras de um amor digno e só delas. E ele, com certeza, iria chegar.
Naquela noite, no entanto, não se sentia nem um pouco positiva daquela forma.
Os dois toques ritmados em sua porta a fizeram se levantar correndo, já sabendo precisamente quem era. Tinha se esquecido de que Millie havia basicamente se convidado para o jantar que ela não pretendia preparar naquela noite.
— Trouxe comida tailandesa - a visitante disse, com um tom animado e um sorriso largo, enquanto erguia os pacotes que carregavam o aroma da mistura de temperos como cominho, canela, cardamomo e coentro.
— Que bom, porque eu me recuso a cozinhar hoje - disse simplesmente, abrindo passagem.
— Eu imaginei - a irmã tornou a responder, enquanto apoiava a comida comprada sobre a mesa da sala de jantar (que também era sala de estar e, às vezes, quarto). — E eu meio que me convidei, não foi? Não fiz mais do que a minha obrigação em trazer algo.
A caçula tentou não concordar, enquanto pegava duas garrafas de cerveja para elas.
— Como vão as coisas?
— Na mesma. - A mais nova deu de ombros.
— E o trabalho na livraria?
— Continua exatamente igual, sendo a única coisa que me distrai e me faz feliz nos últimos tempos.
havia se candidatado a uma vaga como vendedora em sua livraria preferida assim que viu o cartaz na janela sinalizando que estavam contratando. Adorava estar em meio aos livros e a pessoas que, assim como ela, buscavam as páginas transbordando palavras como um refúgio para o caos da vida cotidiana. Tinha um salário razoável, tempo de sobra para continuar trabalhando como tradutora - menos que em menor escala - e podia folhear o cheiro de um livro novo sempre que se sentisse para baixo, torcendo para que ninguém a estivesse observando.
— Acho que é um bom sinal, então - Millie concluiu, enquanto ligava a televisão.
A caçula aquiesceu, virando um longo gole da cerveja, enquanto se jogava no sofá e ligava a televisão. Franziu o cenho, estranhando que estivesse no canal de esportes.
— Rams e Patriots se enfrentavam e ela já não fazia mais a mínima ideia de em qual semana da atual temporada da NFL estavam.
— Tomara que os Patriots percam. Assim o Arnold vai ter um fim de semana horrível.
— Também é o time do papai - Millie a lembrou. — Vai arriscar matar o velho do coração pela sua amargura?
— Eu meio que tenho motivos justificáveis para ser amargurada, sabe? Sem contar que o papai já sobreviveu a um infarto, tenho certeza de que ele aguenta outro.
Ignoraram a transmissão do jogo quase por completo, parando vez ou outra apenas para prestar atenção nos momentos em que o narrador gritava tão alto que parecia ter descoberto um meio de aumentar o volume da televisão só para exercer o impacto desejado na situação.
Millie contou sobre seu paciente de trinta e dois anos que tinha feito mais escândalo do que a filha de cinco ao ouvir o som irritante da broca. Ela era obrigada a reconhecer que a rotina odontológica tinha alguns momentos de risadas impagáveis.
lhe disse sobre o cliente que tinha ido atrás de um livro que o sobrinho precisava urgentemente para as aulas de literatura do colégio e insistira que aquele era o livro errado, mesmo depois de ela ter insistido várias vezes que não era, até porque ela já o tinha lido. O homem só dera o braço a torcer, por fim, quando ligou diretamente à secretaria da escola e recebeu a confirmação deles. Seu pedido de desculpas consistiu muito mais em um sorriso constrangido e um silêncio repentino do que em palavras propriamente, mas ela manteve a fisionomia simpática, escondendo a vontade interna de exclamar aos quatro ventos como amava estar certa.
Finalmente abriram as caixinhas com cuidado, mastigando enquanto fofocavam sobre vizinhos inconvenientes e parentes sem senso de ridículo. tinha se esquecido totalmente da tristeza e raiva que lhe assolara nos últimos dias, simplesmente porque sua pessoa preferida em todo o universo era boa demais em lhe fazer gargalhar a cada vez que revirava os olhos, bufando.
— Ah, que inferno - Millie reclamou ao derrubar o molho agridoce do joelho de porco na blusa clara.
— O tempo passa e a sua incapacidade de comer sem se sujar feito uma criança não muda. É quase reconfortante saber que algumas coisas simplesmente sempre serão iguais.
Era pela repetição de cenas como aquela que já sabia que a irmã estaria sem blusa em instantes, jogando-a em sua máquina de lavar o mais rápido possível.
— Tem um moletom seu no armário, que você deixou da última vez - avisou. — Mas pode pegar uma blusa minha se quiser.
— Acho mais seguro pegar algo meu antes que eu termine destruindo alguma roupa sua também.
Enquanto Millie sumia pelo corredor, mastigou os legumes calmamente, balançando a cabeça descrente quando os Patriots comemoraram mais um touchdown.
Pegou o controle, digitando a primeira combinação de números que lhe veio à cabeça e se contentando com um filme desconhecido que parecia ter pelo menos o dobro de sua idade.
— Que caixa é essa? - Millie berrou do quarto.
— Sei lá - a caçula respondeu, simplesmente, tentando entender os efeitos sonoros desconectados da imagem. Meu Deus, como alguém conseguia ver aquilo sem se sentir, no mínimo, angustiado? — Eu nem sei do que você está falando.
De volta à sala, com uma caixa preta funda - que lembrava absurdamente aquelas que sua mãe usava para arquivar todas as contas e notas fiscais que nunca usaria para nada -, ela esperou que a irmã percebesse sua presença ali.
— Devolve isso onde você encontrou, agora.
O humor de tinha desaparecido por completo, como se alguém tivesse arrancado-o da forma que se puxa um tapete debaixo de seus pés.
— O que tem aqui?
— Devolve a caixa no armário - ela repetiu, usando de todo o fio de paciência e dicção que lhe restavam para enunciar cada uma daquelas palavras pausadamente.
Millie se dirigiu até a mesa de jantar, como se jamais tivesse ouvido aquelas palavras. Puxou a tampa ao mesmo tempo em que a irmã se levantou com brutalidade, caminhando até ela.
— O que é isso?
Puxou algo extremamente bem dobrado de dentro, abrindo-o para se deparar com um novo estranhamento. Que tipo de pessoa ainda tinha um mapa do próprio país de residência em casa em tempos em que aplicativos como o Waze existiam?
— Não posso nem ter privacidade mais.
— Bem, Deus meio que lhe roubou qualquer possibilidade disso quando decidiu que compartilharíamos o mesmo útero.
Millie deixou o mapa aberto sobre a mesa, retirando uma pequena revista já gasta e um tanto amassada, onde se lia “Guia Simplificado para Roadtrip”.
— Você vai viajar?
Em um movimento rápido, tomou o guia de sua mão, devolvendo-o ao fundo da caixa, o único local que lhe proporcionava a mínima sensação de estar perto o suficiente do esquecimento enquanto ainda não se considerava pronta para jogar tudo fora.
— Eu ia - respondeu, praticamente sussurrando cada dolorosa sílaba. — Com Arnold. Nós planejamos tirar umas semanas de férias, entrar no carro e simplesmente sair por aí conhecendo as coisas e os lugares, sabe? Ele sempre quis tanto viajar e eu pensei ‘Caramba, tem tanta coisa aqui por perto ainda para descobrirmos’ e ele adorou a ideia no mesmo segundo.
Ela engoliu a bola áspera formada em sua garganta. Era nesses momentos que se arrependia de não ter arranjado um gato ao qual pudesse responsabilizar em momentos como aquele. Tomou o mapa para si, apontando os pequenos ‘X’ vermelhos que Millie não tinha reparado à primeira vista.
— Nós deixamos marcas sobre os lugares que queríamos visitar. Combinamos de cada um escolher metade, mas, no fim das contas, era praticamente como se tivéssemos escolhido tudo juntos. Foi naquela noite que eu percebi que eu aceitaria visitar qualquer lugar com a bunda quadrada e um sorriso no rosto só porque era com ele e era isso o que importava.
Ela respirou fundo, antes de dobrar as anotações cartográficas novamente.
— Só é uma merda que aparentemente ele nunca tenha realmente pensado da mesma forma.
— Eu tive uma ideia - o tom de voz de Millie mudou de repente. — Você vai dizer que é idiota, mas acho que é exatamente do que você precisa.
— E o que seria isso?
— Acho que você deveria fazer a viagem.
— Você é completamente maluca.
— É claro que não, . Pensa um pouco. A ideia foi sua, você queria fazer essas coisas e vai simplesmente deixá-las de lado por um cara babaca? É sério que você vai deixar que um homem sequer medíocre altere os seus planos e as suas vontades?
parou para pensar por um segundo, lembrando-se exatamente de todas as linhas tortuosas e trajetos rabiscados que havia marcado no mapa. Havia decorado cada milímetro daquela escala e sonhado acordada com vários daqueles momentos. De alguma forma, contudo, simplesmente não parecia certo.
— Ele te decepcionou, eu entendo - a irmã prosseguiu, repousando a mão direita sobre seu ombro. — Mas você não pode permitir que ele destrua seu coração. E muito menos os seus sonhos.
— Tem razão - murmurou, em um gesto de concordância e aceitação simultâneas.
— É lógico que tenho. - Millie sorriu de forma comicamente petulante.
— Mas não tem graça fazer isso sozinha. Você bem que podia ir comigo, não é?
— Maninha, eu juro por tudo que há de mais sagrado no universo, que eu adoraria e eu nunca quis tanto umas férias em toda a minha vida. Mas tenho muitos pacientes marcados para os próximos dias e um congresso em Michigan. Infelizmente, vou ter que recusar o convite.
— Certo. Será que a Mer aceitaria ir comigo? Acho que seria legal, não? As duas mulheres chifradas pelo cara dando um pé na bunda dele e seguindo a vida, divertindo-se juntas. Acho que daria um bom livro. Vou sugerir a ideia ao meu chefe.
— Primeiro, você liga e a convida, depois você volta a pensar em trabalho, ok? Todos esses planos são exatamente para te desligar um pouco da realidade, não para fazer você pensar em como transportar isso para as suas responsabilidades de alguma forma.
assentiu, mesmo que um pouco relutante. Não precisava verbalizar que, mais uma vez, a irmã mais velha tinha razão. Não podia amaciar ainda mais o seu ego sem esperar que ela se tornasse completamente insuportável e a fizesse se arrepender de ter lhe oferecido uma de suas cervejas.
Abriu sua lista de contatos, encontrando o nome de Meredith e discando para a amiga.
— Oi, minha linda! Como você está?
não conseguiu evitar um sorriso do outro lado da linha. Meredith era sempre tão doce e aparentemente incapaz de interagir sem usar qualquer adjetivo positivo como vocativo a qualquer oportunidade. Chegava a ser engraçado pensar que havia tirado algo de tão positivo de algo tão ruim.
— Estou bem, Mer. E você?
— Cansada - admitiu. — Tive uma reunião desgastante com homens brancos de meia idade que infelizmente ainda não sabem lidar com uma mulher em posição de hierarquia. Mas foi ótimo, eles foram colocados no lugar deles.
tinha certeza de que a amiga sustentava exatamente a mesma expressão risonha e orgulhosa que ela. Poucas coisas no mundo eram mais gratificantes do que colocar homens conservadores em seu devido lugar e alertá-los de que, surpreendentemente, eles deviam respeitar e seguir as ordens de alguém que não tinha um pênis.
— Nessas horas eu só queria ser uma mosquinha para ver a reação deles.
— Ah, você teria adorado! Aliás, quando vamos nos ver? Precisamos sair para conversar e tomar algo. — Na verdade, de certa forma, é sobre isso que eu liguei para falar. - Respirou fundo, tentando encontrar palavras e conectivos suficientemente coerentes e coesos entre si para ser clara em seu convite. — Eu meio que tinha planejado uma viagem com aquele-que-não-deve-ser-nomeado. Minha irmã acha que seria uma boa ideia fazer a viagem de toda forma, para reforçar como não dependo dele para levar a minha vida e os meus planos.
— E eu concordo completamente com ela.
— Pois é, faz sentido mesmo - concordou. — Mas eu não acho que tenha muita graça em seguir sozinha, então pensei se você não gostaria de ir comigo.
— Ah, querida! Eu adoraria, de verdade, mas só vou conseguir tirar férias da empresa no segundo semestre do próximo ano. Mas faremos uma viagem merecida lá, pode ser?
tentou não expressar em sua voz o quanto havia murchado como uma flor antiga, perdendo sua essência e sua capacidade de permanecer vistosa e útil.
— Claro! Marcamos, então. Obrigada, Mer! Boa noite!
— Ela topou? - Millie perguntou animadamente, ao ver a irmã desligando o celular.
— Sim. Daqui um ano e meio praticamente. Bom, sem roadtrip para mim, então. Posso abrir outra cerveja agora e me recolher à minha insignificância embriagada.
— Eu não vou deixar você entrar nesse redemoinho de autopiedade. Você vai nessa viagem.
— Para de ser chata. Eu já tentei. Não tem quem me acompanhar, então planos adiados e bola para frente. Millie, contudo, teve um estalo, agitando as mãos enquanto tentava externalizar a ideia que havia acabado de ter.
— Eu já sei quem pode ir com você.
— Quem? E se essa for alguma tentativa sua de me juntar com alguém do seu trabalho de novo, poupe seu tempo e saliva, pois estou fora.
— Não é do meu trabalho. Eu acabei de me lembrar que um amigo da época do colégio comentou no grupo que queria fazer uma viagem dessas e estava marcando.
— Você tem um grupo com seus colegas de ensino médio?
Millie estreitou os olhos, sentindo instintiva e estranhamente que estava pisando em um campo minado ao se preparar para responder àquele questionamento.
— Eu não sei o que você espera que eu diga, mas sim.
— Pessoas normais teriam fugido e cortado relações em no máximo um ano depois da formatura. Aparentemente só vocês não tratam as memórias do ensino médio com o terror de um veterano de guerra se lembrando de tudo.
— Bom, voltando ao meu ponto. Vocês poderiam ir juntos. Com certeza seria bastante divertido.
— Millie, pelo amor de Deus, você está mesmo pensando que eu vou me trancar por horas em um carro com um estranho?
— Vocês se conhecem, boba. É o .
— Não faço ideia.
— Faz sim. Ele sempre estava lá em casa e você não o deixava em paz enquanto ele não contasse onde eu tinha ido na noite anterior só para você usar como chantagem quando quisesse conseguir algo de mim.
— Ah! O fofoqueiro - ela se lembrou, rindo. — Eu gostava dele.
— Viu só? Ele é super engraçado, com certeza seria um ótimo parceiro de viagem.
— Millie, eu não estou concordando com essa ideia só porque lembrei quem é. Eu ainda não vou sair em viagem com uma pessoa que mal conheço. Seria uma ideia totalmente irresponsável e idiota.
— E eu só tenho ideias totalmente irresponsáveis e idiotas - disse, bufando enquanto tentava fazer a rodinha quebrada da mala parar de ceder ao peso da bagagem contra o asfalto em frente ao seu prédio.
Que falta maldita fazia ter ao menos um banco ali enquanto esperava sua carona.
Havia passado os últimos quinze dias conversando com por whatsapp e decorando cada um de seus traços pelas poucas fotos disponíveis em seu perfil no instagram. Tinham planejado todos os detalhes com uma animação latente, mas era obrigada a admitir que sempre que se deixava sentir a excitação sobre aquilo, era obrigada também a enfrentar os alertas vermelhos rodando como as sirenes de uma ambulância em seu cérebro, lembrando-a de que ainda existia a possibilidade de ele ser um serial killer. Não que ela ligasse para isso. Estava mesmo era com receio de se desentenderem e a viagem ser um completo fracasso. Homicídio era a menor de suas preocupações.
Seu coração pareceu entrar em um processo de arritmia levemente preocupante quando viu o carro prata se aproximando e estacionando à sua frente. Tentou ajeitar a sua postura, criticando-se por não conseguir soltar a mala quebrada para arrumar os cabelos que, com certeza, já teriam cedido ao vento e se tornado um protótipo de ninho no topo de sua cabeça.
O rapaz desceu rapidamente, esboçando um largo sorriso assim que a viu.
— Meu Deus, quanto tempo! - Exclamou alegremente, enquanto a abraçava com força.
sentiu todo o seu corpo respondendo ao toque dele; uma sensação de reconhecimento e de contentamento quase infantil pela nostalgia. Seus poros e sua pele pareciam reconhecer ao tato cada ponto em que seus braços se encaixavam desajeitadamente e como o rosto dele se afundava em seu pescoço sem nenhum estranhamento.
— Faz mesmo. Seu cabelo está bem melhor agora.
Ele assentiu imediatamente.
— Eu escondi todas as fotos daquela época porque eu não tenho nem coragem de olhar aquele troço.
soltou uma gargalhada gostosa enquanto se esforçava para encaixar suas bolsas no porta-malas já abarrotado.
— Deixei travesseiros e roupa de cama nos bancos de trás, junto com algumas coisas que peguei no mercado - foi dizendo, enquanto dava a volta para abrir a porta para ela.
A mulher agradeceu e entrou, colocando o cinto de segurança no meio segundo. Logo ele estava no banco do motorista, pronto para se livrar do freio de estacionamento.
— Última chance - disse. — Repassa tudo na cabeça e tenta lembrar se alguma coisa ficou para trás.
Se alguma coisa tivesse realmente faltado depois de ter enchido tantas bolsas, ela seria obrigada a se odiar para o resto de sua vida. Mesmo assim, seguiu sua orientação: produtos de higiene, remédios convenientes, roupas, chinelos, tênis, mochilas, elásticos de cabelo suficientes para que ela ainda estivesse equipada até o fim da viagem, mesmo que perdesse metade, frascos de protetor solar e de repelente e outras coisas que ela sabia que seriam importantes em algum momento. Ou ao menos esperava. Talvez fosse um pouco presunçoso demais supor que ela realmente “sabia” o que estava fazendo acerca de qualquer detalhe daquela viagem.
— Acho que peguei tudo - confirmou.
, então, soltou o freio de estacionamento, acelerando com o carro na direção que o aplicativo de seu celular, preso ao painel do veículo, indicava.
— Bom, como eu sou muito gente boa, vou deixar você escolher a rádio - ele falou. — Mas se seu gosto musical for uma merda, eu volto atrás no mesmo segundo.
— Meu gosto musical é perfeito, se você tiver alguma coisa contra ele, então o problema é você.
Ele deu de ombros, disfarçando uma risada que, de certa forma, concordava que ela tinha um ponto, mas não estava disposta a dar o braço a torcer de maneira alguma.
alternou entre as estações até encontrar uma que tocava Freedom.
— Ok, você pode cuidar da rádio.
A mulher deu um sorriso vitorioso, recostando-se da forma mais confortável que havia encontrado contra o banco. Virou a cabeça para a janela, tomando seu tempo, descarregado de qualquer pressa, apenas para observar o caminho conforme se afastavam de seu ponto de partida. As árvores, as pessoas, os cachorros correndo assim que conseguiam driblar seus donos e escapar das coleiras e o sol que parecia abraçar a todos em um dia tão lindo quanto ela não via há muito tempo. Sinceramente, esperava que fosse algum tipo de sinal do universo. Algum tipo de aviso de que as coisas sempre poderiam ser melhores e que a dor, independentemente de qual fosse sua causa, nunca duraria para sempre. Se, como diria Millie, todas as experiências da vida humana eram passíveis de serem ressignificadas, então era isso que ela faria.
— Por que Yosemite? - Ele perguntou de repente.
Ela precisou de alguns segundos para buscar a memória em seu acervo. Às vezes tinha certeza de que seus “divertidamente” jogavam suas lembranças no lixo apenas para vê-la se desdobrar quando precisava delas. Pensava tanto nessa hipótese que tinha acabado decidido que aquela teria, obrigatoriamente, de ser considerada sua animação favorita de toda a vida. Mas, então, com um sorriso singelo, ela se lembrou.
— Eu estava vendo fotos aleatoriamente pela internet e me lembro de ter visto aquelas sequoias enormes e ter pensado em como deveria ser incrível abrir um livro bem ali embaixo, com fios de luz dançando entre a sombra das folhas e o cheiro de terra e grama que infelizmente acho que não sentimos o suficiente desde que decidimos nos enclausurar nas grandes cidades.
— É uma perspectiva bem “fugere urbem” , então - ele concluiu, fazendo-a contorcer as sobrancelhas, sendo pega de surpresa pelo termo neoclassicista em latim usado de forma tão repentina.
— Desde quando você é ligado em literatura árcade? Quer dizer, desde quando você é ligado em literatura no geral?
— Nem tudo é necessariamente sobre os clássicos literários de uma forma direta, sabe? A música, por exemplo, está a todo momento se aproximando da poesia tanto pela estrutura quanto pelas abordagens. Esse conceito de fugir da cidade e do caos para buscar um lugar calmo onde só as pequenas coisas importem não é uma exclusividade dos livros - ele explicou, sorrindo para frente, sem retirar os olhos da estrada por um segundo sequer. Mesmo assim, sabia perfeitamente que tinha os olhos dela cravados em si. — E eu ainda lembro uma coisa ou outra do colégio.
— Bom, pelo menos fugiu do clichê do “carpe diem”.
— Ah, não. Pode ter certeza de que tem bastante “carpe diem” em praticamente todas as músicas.
— Lembro que passei meses insistindo para a minha irmã me levar a um dos shows da sua banda, mas ela só negava.
— Você era menor de idade.
— E vocês não eram?
— Estávamos perto o suficiente de deixar de ser para que fizessem vista grossa com as identidades falsas. Duvido que teríamos a mesma sorte com você.
— Bom, nunca saberemos já que vocês nunca tentaram.
riu. Nem tudo mudava com o tempo no fim das contas.
— Eu trouxe o violão. Prometo tocar algo para você e compensar todos os anos de “nãos” recebidos.
— , sinceramente, vocês me fizeram de trouxa por tanto tempo que você só vai conseguir compensar o tempo perdido se escrever uma música para mim.
— Se é isso que você quer, então é isso que você vai ter - ele afirmou categoricamente.
Ela fez uma careta, enquanto beliscava a barra da blusa de algodão.
— , era brincadeira. Lição número um para conviver os próximos dias comigo: não me leve a sério.
— Bom, lição número um para conviver comigo: eu levo a sério sim. Até o fim dessa viagem cumprirei minha missão de te escrever uma música.
— Meu Deus, você é louco.
— Por quê? Você está duvidando do meu talento como compositor e músico?
Ela ergueu as mãos ao alto, em um sinal de rendição que sempre a fazia se perguntar de onde exatamente tinha vindo aquilo. Ou se tinha alguma relação com assaltos e abordagens policiais. Era por isso que agradecia a todo momento pelas pessoas serem incapazes de ler seus pensamentos. Seria o mais perturbador tipo de superpoder para se ter perto dela.
— Não está mais aqui quem falou.
De uma maneira bastante torta e confusa e nem um pouco coesa, usou e abusou de toda a flexibilidade dos anos de ginástica artística para apertar as pernas sobre o banco, da forma mais próxima que havia conseguido de tentar cruzá-las. Puxou o Kindle da bolsa de mão, abrindo-o sobre o colo.
arriscou uma olhada rápida para o lado, observando cada um de seus atípicos movimentos.
— Que iPadzinho pequeno é esse?
— Isso não é um iPadzinho. É um Kindle.
— Eu deveria saber o que isso significa?
— É um leitor digital - ela explicou. — Eu compro uns livros, baixo outros clandestinamente… Enfim, o importante é que eu leio nessa telinha. Ela tem uma iluminação diferente para não incomodar os olhos que nem o celular, sabe? Parece bastante com a folha de um livro mesmo.
— Para você que sempre leu tanto deve ser bem útil.
— Com certeza - concordou. — Principalmente pelo fato de que agora eu tenho dezenas de livros para ler durante a viagem pelo peso de meio.
— Claramente sua inteligência está muito à frente dos meros mortais.
Ela riu, enquanto revirava os olhos e voltou a sua atenção para o livro.
— E você consegue ler dentro do carro sem passar mal?
— Não sei. Acho que logo vamos descobrir.
— Se precisar vomitar, abre a janela e vomita para fora.
— Sabe que o vento, ainda mais nessa velocidade que estamos, pode trazer tudo de volta, não sabe?
— Não. Você é a inteligente, não eu. Só tenta não vomitar em mim, ok?
Ela aquiesceu, segurando uma risada. Quase nunca vomitava; era uma dificuldade real mesmo quando ela precisava fazê-lo para se livrar de uma intoxicação - fosse alimentar ou por beber um pouco demais. Mas ele não precisava saber. Algumas coisas poderiam ser mais divertidas sobre a corda bamba incerta do medo.
quase riu da própria autodepreciação quando pensou que finalmente havia atingido o topo de algo no mundo. Guardou o humor destrutivo para si mesma, no entanto, quando sentiu o êxtase e o choque de olhar para frente e ver tudo aquilo roubando-lhe o ar e a voz. Os penhascos da Sierra Nevada eram simplesmente uma das coisas mais lindas que ela tinha visto. Não eram belos como o pôr do Sol na praia - o qual ela também deveria admitir que adorava. Eram belos como uma tempestade, na qual a paleta de cores se mistura de forma dura e perigosa, acompanhada dos fios de eletricidade que correm como cicatrizes de um céu pesado demais para suportar a mudança. Era esse o tipo de beleza que ela absorvia enquanto seu queixo caía levemente, tentando entender porque o perigo potencial sempre parecia acrescentar ao encanto das coisas.
Estava tão absorta em seus pensamentos, que levou alguns longos instantes para perceber ao seu lado, parecendo ainda mais estático do que ela.
— É lindo demais, não é?
O rapaz engoliu em seco, balançando a cabeça levemente em concordância. De repente, seu tom de pele parecia quase esverdeado.
— E alto também - completou, com uma risadinha nervosa.
estreitou os olhos, incrédula.
— , você tem medo de altura?
— Se eu tivesse medo de altura eu não teria subido aqui, teria?
— Acho que se ficarmos mais cinco minutos aqui o seu rosto vai ficar mais verde que as folhas das sequoias. Por que você não me disse que tinha medo?
— Porque eu não tenho - ele insistiu. — Só tenho um grande desconforto estomacal e uma sensação um pouco desagradável de vertigem.
Ela revirou os olhos à resposta, estendendo as mãos para indicar o caminho para que descessem.
— Você não precisa me seguir se isso vai te deixar mal, sabe? Podia ter me esperado lá embaixo.
— E perder a chance de ver aquilo? Eu não estou viajando para simplesmente sair perdendo vistas incríveis por um quase medo bobo e infantil.
— Medos não são infantis, . Eles são naturais e está tudo bem.
— São irracionais.
— Nem tudo na vida precisa ser racional.
Continuaram a trilha, recebendo alertas dos guias para que tomassem cuidado onde pisavam, já que a folhagem caída às vezes poderia se depositar sobre o solo de forma a disfarçar, perigosamente, buracos aos quais os pés pareciam se atrair de forma quase magnética, ávidos por uma lesão incômoda e a sensação de burrice que acabava acompanhando o pensamento de “me machuquei andando”.
Quase um quilômetro depois, teve seu segundo momento de deslumbramento. , ao seu lado, finalmente pode acompanhá-la sem se sentir nauseado.
— Essa é a Bridalveil - o guia anunciou, enquanto alguns visitantes cochichavam e apontavam coisas aleatórias na pedra e na água e outros aproveitavam para tirar fotos, vivendo o momento mais em suas câmeras do que no caminho que seus pés pisavam e seus olhos enxergavam. — Acho que o motivo do nome é bem autoexplicativo, não? Quem a batizou percebeu que as águas despencavam com a leveza e a graciosidade de um véu de noiva. É uma das poucas cachoeiras daqui que não seca nas estações em que não temos chuvas o suficiente.
— Já imaginou que legal deve ser saltar lá de cima? - perguntou, sussurrando ao pé do ouvido de .
Instantaneamente, ela franziu o cenho, contorcendo as sobrancelhas em descrença.
— Sério? Isso vindo de alguém que, literalmente minutos atrás, estava prestes a ser passível de contratação para o papel do Hulk sem precisar de horas de maquiagem?
Ele deu de ombros, com um sorriso travesso.
— Eu disse que deve ser legal, não disse que seria legal para mim. Provavelmente eu precisaria de uma reanimação antes de sequer chegar lá em cima e poder olhar para baixo.
O papo, contudo, encontrou o seu fim no início do arco-íris que se formava quando as gotículas da queda d’água encontravam os raios de sol. Existia todo um conceito físico por trás daquilo, que ela, sinceramente, não se lembrava. Tinha de ser honesta consigo mesma e admitir que não era a melhor aluna do mundo quando se tratava das exatas. Geralmente, estava com algum romance aberto dentro da apostila, lendo e se iludindo de que ninguém saberia quando, na verdade, os professores tinham simplesmente desistido de tentar obter sua atenção durante as aulas. Ela tinha nota suficiente nas provas para atingir a média do colégio e era só isso que importava no fim do dia - e no fim do ano.
De certa forma, até preferia pensar no arco-íris como algo fantástico e quase mágico em vez de condizente com as leis de fosse lá quem tivesse descoberto as características e propriedades da luz.
Foram liberados para explorar o ambiente assim que se aproximaram dos bosques. permitiu que as pálpebras pesassem e se encontrassem enquanto puxava profundamente o ar pelas narinas. Era aquilo que ela queria. O cheiro de terra, de grama, de vida. O orgânico que a lembrava de que o mundo estava em constante renovação e que o fim de um ciclo era sempre sinal do início de outro.
Escolheu uma das árvores, estendendo a mão para tocar seu largo caule em um sinal de troca e quase como um pedido de licença para se sentar ali. Acomodou-se e abriu o Kindle sobre o colo, retornando à sua história conturbada e dramática de uma protagonista que viajava para vários lugares do mundo em uma tentativa de se reconectar com o marido após sofrerem perdas grandes demais para que palavras pudessem contemplá-las. Havia criado uma sensação de empatia e solidariedade enormes pelos protagonistas e sorria feliz a cada passo que pareciam dar juntos em direção à compreensão mútua. Além disso, cada destino que eles visitavam fazia com que ela adicionasse mais um lugar à sua lista mental de viagens internacionais para planejar por anos e guardar muito dinheiro para elas depois de basicamente ter investido as suas economias naquela roadtrip. Era com esse pensamento que tinha decidido aproveitar ainda mais aquele momento, naquele lugar.
se sentou ali por perto, cruzando as pernas e apoiando os antebraços sobre as coxas. Fechou os olhos, respirando profundamente e tentando se conectar com o ambiente e com sua própria respiração. sorriu ao descobrir algo que não esperava mesmo dele. Meditação não estava em suas suspeitas sobre quem o amigo de sua irmã teria se tornado com o passar do tempo.
Ali permaneceram, demorando a perceber, pelas árvores, que os tons do céu estavam mudando, conforme a iluminação diminuía e a noite se aproximava. Retornaram ao grupo, acompanhando-os para uma última atividade.
Reuniram-se ao redor de uma grande e aconchegante fogueira, cuja lenha crepitava, dando-lhes as boas-vindas.
Os guias contaram histórias antigas, crenças politeístas nativas sobre a origem daquele reservatório natural e sobre a força das árvores que, mesmo com as raízes tão presas e sustentadas ao chão, ainda se arriscavam a se estender mais e mais, em busca do céu.
Sobre os tecidos fornecidos - que mais pareciam toalhas de piquenique -, se deitou, cuidando para que os cabelos se limitassem ao espaço que não lhe faria terminar aquela noite caçando pedaços de mato seco entre seus fios, quando tinha certeza de que tudo que iria querer fazer seria dormir feito uma pedra até as pessoas se preocuparem com a possibilidade de ela ter passado dessa para melhor. Por Deus, como odiava esse eufemismo.
Não sabia o suficiente de astronomia para tentar identificar constelações, mas ainda se maravilhava observando cada um daqueles pontinhos reluzentes no céu, que talvez nem estivessem mais ali. Gostava de se referir às estrelas como as memórias do universo, cuja luz permanecia visível, mesmo depois de desaparecerem de sua origem. Talvez fosse esse o motivo de ser tão fácil e difundida a ideia de que aqueles que se foram se tornavam estrelas.
— Foi um longo dia - comentou, deitando-se ao seu lado. Estavam tão próximos que , mesmo sem olhar, tinha a consciência corporal de que sua mão resvalaria na dele mesmo que ela se movesse apenas minimamente, justificando um espasmo.
— Mas foi um longo lindo dia - ela completou, sorrindo. — Quando a Millie sugeriu que eu mantivesse a viagem mesmo sem o meu ex, eu achei que ela fosse maluca e precisasse arranjar bom senso. Mas ela tinha razão. Acho que eu não sorria assim há semanas. Minhas bochechas estão até doendo.
— Eu pensei que sua irmã fosse louca quando ela me ligou dizendo que tinha me arranjado uma companhia de viagem. Pensei que fosse a secretária dela de novo. Ela não para de tentar me juntar com as pessoas do trabalho.
levantou repentinamente, para encará-lo.
— Com você também? A maldita me mandou em encontros com o assistente dela, com o sócio do consultório e até com um cara aleatório que ela conheceu em um congresso só porque aparentemente ele tinha uma boa genética, que ela avaliou com base na estrutura óssea da face dele.
— Ok, você ganhou. - Ele riu. — Que coisa bizarra. E ela não desiste! Além de tudo faz questão que eu narre cada detalhe de porque eu achei que não combinava com a escolha dela da vez, para saber escolher melhor na próxima. Acontece que eu não quero uma próxima.
Ele se exasperou, gesticulando em meio às risadas dos dois. Sentiam um pouco de dó pelo outro ter que passar por aqueles mesmos absurdos, mas, de certa maneira, era quase reconfortante ter alguém para dividir e compreender as loucuras de Millie e sua necessidade quase patológica de bancar o cupido para cima das pessoas que amava.
— E o pior é que quando eu falo que ela não tem o direito de ficar se intrometendo o tempo todo na minha vida amorosa, ela ainda fica choramingando pelos cantos, pedindo desculpas por se importar tanto comigo e só querer o melhor para mim. Chantagista emocional desgraçada.
riu alto, aquiescendo.
— Meu Deus, ela é uma manipuladora incansável. Sorte dela que ainda assim a adoramos.
se deitou de novo, retomando o seu lugar, bem mais relaxada do que estava minutos atrás.
— Ela te contou sobre os meus planos originais?
— Ela disse que você tinha passado por maus bocados - ele respondeu. — E que era melhor eu não perguntar sobre isso, porque talvez você não estivesse pronta para falar.
Ela assentiu, sorrindo. Millie podia ser chantagista e intrometida em excesso, mas também era o ser humano com o maior coração não chagásico do mundo, sempre preocupada em não tocar as feridas antes que tivesse certeza de que a pessoa estava pronta para começar a falar sobre seu processo de cicatrização.
— Se você tivesse me perguntado algo ontem ou até hoje de manhã, acho que eu realmente não me sentiria pronta. Mas foi um dia incrível, sabe? E agora eu sei que os próximos têm tudo para também o serem. Mesmo sem ele. Especialmente, sem ele - acrescentou.
Respirou fundo, sentindo os olhos colhendo algumas lágrimas que atribuiria à brisa leve que os rodeava.
— O nome dele era Arnold e nós namoramos por um tempo. Eu tinha certeza de que ele era o cara perfeito, saído diretamente de um livro de comédia romântica tão fofo que me daria até um pouquinho de nojo. Ele sempre vinha com flores, vinhos e planos e eu abraçava tudo que ele dizia, simplesmente porque parecia o certo a se fazer.
“Nós planejamos uma viagem bem parecida com essa juntos. Tudo ia bem, muito obrigada, até minha irmã descobrir que ele tinha o mesmo estilo de vida de comercial de margarina com outra mulher ao mesmo tempo.”
— Que cretino. Ela sabe disso?
— Ah, sabe. Eu contei.
— E como ela reagiu?
— Deu um pé na bunda dele também. Perdi o namorado lixo e ganhei uma amiga incrível, por sinal. Ela é maravilhosa, de verdade. Não merecia aquele homem merda.
— Bom, você também não - ele acrescentou. — Mas fico feliz que ambas tenham se livrado dele.
Ela assentiu.
— É, eu fico feliz também. Bem, a viagem tinha sido ideia minha e era algo que realmente vinha me deixando bem animada e até eufórica planejando tudo e imaginando como seria conhecer cada um desses lugares. Quando ele foi embora, eu simplesmente enterrei todos os folhetos, anotações, mapas e guias em uma caixa e soquei ela na parte mais funda do guarda-roupa, atrás das minhas roupas penduradas para que não fosse obrigada a vê-los.
“A enxerida da minha irmã acabou encontrando a bendita caixa, me fez contar sobre a viagem e disse que tinha certeza de que eu precisava mantê-la para conseguir meu desfecho, me desvincular dele de vez e entender que ele não tinha o direito e nem o espaço na minha vida para interromper meus sonhos ou desejos.”
— Acho que faz sentido. Se já não é coerente limitar sua vida por causa de outra pessoa, imagina ainda sendo uma que te traiu e nem faz mais parte do seu cotidiano.
— Pois é, faz sentido mesmo, por mais que eu não admitisse. Mas daí a Millie não podia tirar férias e a Meredith também não.
— Então você acabou presa comigo - ele disse, em tom brincalhão.
— Exatamente - ela respondeu da mesma forma. — Fiquei com um pouco de receio. Nós não nos víamos há tanto tempo. Mas acho que, de certa forma, isso acabou virando parte da aventura.
deu um sorriso de canto.
— Eu sempre perguntei de você para a sua irmã, sabia? Com o passar dos anos, foi meio difícil me desvencilhar da imagem que eu tinha de você, adolescente, tentando descobrir tudo o que a sua irmã fazia só para usar como moeda de troca para o que queria.
“Levei um tempo até me acostumar com a ideia de que você tinha mudado, crescido, amadurecido, vivido todo o período da faculdade, encontrado um emprego. Mas, no fim das contas, acho que essa recusa a aceitar o envelhecimento alheio é mais uma recusa em aceitar o nosso.”
— Não gostei da palavra envelhecimento - ela interveio. — Fez eu me lembrar de que a minha lombar dói de ficar sentada tanto tempo traduzindo os livros e textos para ter como pagar as contas do fim do mês.
“Mas fora isso, eu concordo com você. É um processo afastar a imagem que você tinha de alguém.”
Ele concordou.
— Mas tem uma coisa que, com certeza, não mudou sobre mim - ela acrescentou, fazendo-o se virar para prestar mais atenção.
— E o que seria?
— Eu ainda vou usar essa viagem para descobrir podres da minha irmã.
riu alto, voltando a repousar o pescoço contra o terreno irregular. Encontrou uma estrela grande e brilhante, exatamente na direção de seus olhos e apontou para ela:
— Sabe aquela ali? - Ela concordou, seguindo seu dedo. — Chama .
— Não chama nada.
— Eu estou te dizendo que sim.
— Você está mentindo. Ela chama qualquer coisa, mas com certeza não é .
Ele deu de ombros.
— Bom, quem se importa? Eu quero que seja , então vai ser.
E ela decidiu acreditar também.
— Não precisa ir se não quiser. É sério.
respirou profundamente, antes de negar com a cabeça.
— Não. Eu consigo fazer isso - decidiu. — Vamos antes que eu tenha tempo de mudar de ideia.
apertou sua mão, tentando lhe passar alguma confiança enquanto empurravam as bicicletas para o teleférico. a apertou de volta, sem oferecer indício algum de que estava disposto a soltá-la.
Quando o teleférico começou a se mover pelos fios suspensos, o rapaz se assustou com o tranco.
— Fica tranquilo - ela sussurrou. — É que nem andar de avião. Decolar é meio chatinho, mas depois fica tudo bem.
— A não ser quando você tem turbulência e a certeza de que o avião vai despencar de alguns milhares de metros de altura e todos vão morrer.
— Meu Deus. E eu pensei que eu era dramática.
observou as fontes, lagos, variações de relevo e as colunas de basalto se afastando e parecendo ganhar forma e vida conforme subiam. Pensou em comentar sobre as rochas logo abaixo, mas tinha a impressão de que iria preferir apenas imaginar a paisagem sem ser obrigado a assimilar o fato de que estavam cada vez mais longe do solo do qual partiram.
Ao chegarem ao topo, sentiu o vento se tornando leve e coerentemente mais agressivo. Fechou os olhos, sentindo a sensação gostosa bagunçando seus cabelos e causando uma coceira engraçada nas entradas de suas narinas.
— O que acha de apostarmos corrida até lá embaixo? - sugeriu.
— Acho uma competição bem suicida, na verdade. Apostar corrida exatamente onde você deveria estar preocupado em frear é no mínimo uma ideia absurda.
— Eu só quero descer - ele admitiu, fazendo-a rir.
— Ok, vamos descer.
Subiram nas bicicletas, grudando os pés aos pedais e as mãos aos freios, enquanto permitiam que a inclinação e a gravidade cumprissem suas funções primordiais conforme observavam a transição gradual da paisagem ao seu redor.
Se estivesse olhando fixamente para a frente, percebeu, podia ver as cores se misturando como em um filme adiantado por sua visão periférica. Por vezes, ficava até um pouco difícil discernir onde começava a folhagem das árvores e onde os caules deixavam marcada a sua presença, enquanto os tons de marrom e verde, unidos pelas insistentes briófitas, acabam por se misturar.
A sensação de liberdade envolvida naquele momento também era inquestionável, aliada a um ar de certa nostalgia. Com um sorriso terno e a mente distante, ela se lembrava perfeitamente das semanas em que o pai havia decidido que ensinaria ela e Millie a andarem de bicicleta ou poderia se declarar aposentado da carreira paterna.
Ele soubera ser insistente e persistente, mesmo que às vezes elas já estivessem cansadas ou só quisessem correr para dentro de casa para socorrer o joelho ralado e ardido que mais parecia um prenúncio do fim do mundo. Quase conseguia ouvir o timbre de sua voz dizendo que, como tudo na vida, o esforço seria recompensado depois; e que andar de bicicleta era um conhecimento e uma habilidade que levariam para toda a vida. Ninguém nunca se esquece de como se anda de bicicleta.
Retornou de seus devaneios ao ouvir o canto suave e agudo dos pássaros se fundir à voz do pai. Seu velho estava certo no fim das contas. Ele geralmente estava. Se tivesse desistido no primeiro rasgo na perna, não estaria ali, naquele exato momento, tomando cuidado para não engolir um mosquito enquanto apreciava bobamente o mundo ao seu redor.
— E aí?
ergueu o olhar, tirando o capacete dos cabelos agora extremamente amassados.
— Quer saber se eu ainda consigo respirar normalmente?
— Algo assim.
— Bom, acho que a combinação da vista com o fato de que eu estava louco para chegar aqui embaixo logo acabou sendo bastante útil. O caminho é muito bonito.
Ela aquiesceu.
Devolveram as bicicletas e seguiram caminho para a próxima coisa que havia jurado a si mesma que faria. Afinal, não existia a mínima possibilidade de ela negar conhecer algo com um nome tão teórico e pomposo como ‘fontes geotérmicas’. Long Valley Caldera parecia o lugar perfeito para isso.
Tão logo viu o corpo d’água, tirou a blusa e a bermuda, expondo um biquíni de estampa vermelha xadrez que quase lembrava uma daquelas toalhas de piquenique, que pareciam sempre dar um jeito de aparecer em filmes e seriados. nem percebeu a semelhança considerável, no entanto, ocupado demais se perdendo em seus próprios pensamentos e esforços para desviar o olhar de seu corpo. Se o prendessem a um detector de mentiras, jamais seria capaz de negar a sua atração por ela e como desejava saber como era se perder em cada uma de suas curvas. Não queria parecer desrespeitoso, por outro lado. Então, com certo custo, virou o rosto para o lado até ouvir, em tom alto e claro, o barulho que indicava que ela já havia entrado.
riu, tirando os cabelos molhados da frente do rosto, para liberar os seus olhos. não conseguiu desviar seu fluxo de pensamentos rápido o suficiente para que não se desse conta de que aquela deveria ser uma das cenas mais lindas que ele havia tido o prazer de ver ao longo de sua vida. Era a expressão de felicidade que lhe iluminava as bochechas e lhe trazia brilho aos olhos, ainda se acostumando com a água ao seu redor.
— É quentinha - ela comentou, ignorando o quão óbvio e tosco poderia ter soado. Estava tão relaxada que não teve tempo de se importar. Não era à toa que a água quente era reconhecida como um dos melhores meios de se conseguir relaxar pelo simples fato de permitir a melhor circulação sanguínea ao promover a vasodilatação. — Você não vem?
Ele engoliu em seco, demorando alguns extensos segundos para se decidir por tirar a camisa e pular rapidamente ao lado dela.
se moveu calmamente, em um nado que mais se aproximava do cachorrinho que de algum estilo olimpicamente reconhecido. O semblante do rapaz havia adquirido um ar de seriedade que ela não reconhecia nele, de tão desconexo de seu humor cotidiano que lhe parecia.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não, não - ele respondeu rapidamente. — Está tudo ótimo.
— Você não parece exatamente confortável - ponderou, buscando o apoio no fundo da fonte para conseguir fixar o corpo em um ponto e olhá-lo.
Ele fechou os olhos, respirando fundo, conforme deixava que os ombros pesassem um pouco. Nunca tinha verbalizado as memórias que lhe traziam tanta insegurança, mas sentiu que, se estava mesmo disposto a colocar para fora aquilo que havia se assentado em seu peito há tanto tempo, ficava grato que pudesse ser com alguém com quem se sentia confortável para isso. Alguém que lhe fazia acreditar que aquele seria um ambiente sem julgamentos.
— Meu último relacionamento sério foi há um ano - começou. — Na época, eu estava me apresentando em alguns bares e restaurantes de noite para ganhar um dinheiro extra, já que ainda não tinha me acertado muito bem em um emprego fixo. E Ele Eleeu sei que era um ponto delicado, mas eu realmente estava me acertando, sabe? De eventos casuais, comecei a ser contratado em dias específicos da semana e, logo, tinha quase todas as minhas noites tomadas. Eu realmente pensei que estava finalmente me estabelecendo em algo que eu amava.
— E não estava?
— Estava, sim. E eu estava feliz da vida, porque tudo parecia finalmente estar dando certo. Foi, então, que ela decidiu me dar um pé na bunda na noite do meu aniversário.
— Que escrota.
Ele gargalhou alto, concordando com a cabeça.
— Como se não bastasse o fardo de estar envelhecendo, ainda ganhei de brinde o do abandono repentino. E como se não bastasse o pé na bunda, ela decidiu que precisava se justificar, em vez de só ir embora.
estremeceu, sabendo que o pior estava por vir. Por mais que fosse a maior defensora da honestidade e de se sustentar o caráter de dizer as verdades em vez de se esconder atrás de mentiras, sabia que algumas “verdades” não eram sinceridade e, sim, apenas maldade. Existia uma grande diferença entre ser honesto e ser um filho da puta.
— Ela me disse que não conseguia se ver em um relacionamento com alguém que não tinha perspectivas para a própria vida - ele prosseguiu. — Disse que essa história de música nunca daria certo e que era para o meu próprio bem que ela estava sugerindo que eu procurasse um emprego de verdade antes que acabasse passando necessidades financeiras.
“Quando eu me doí com aqueles comentários e tentei rebater falando sobre todos os eventos e jantares a que tinha sido contratado, ela disse que isso jamais seria o suficiente e que eu acabaria preso e estagnado nessa vida medíocre para sempre porque não tinha o que era necessário para fazer sucesso na indústria musical. Que eu não era bonito o suficiente e tinha um corpo vergonhoso e deveria, no mínimo, ter sido realista o suficiente para escolher uma carreira que pudesse ser sustentada mesmo com a minha aparência desfavorável”.
Ela engoliu em seco, sentindo cada uma daquelas palavras lhe apunhalando como adagas, mesmo que não tivessem sido dirigidas a ela.
— Essas são as coisas mais horríveis que eu já ouvi - disse, com a voz entrecortada. — E você não merecia ter passado por absolutamente nada disso. Até porque, além de serem críticas cuja única finalidade é serem maldosas, elas são mentirosas também.
permaneceu parado exatamente onde estava. Só não havia parado de respirar ou piscar porque estas ainda eram funções suficientemente involuntárias.
— Foi complicado - admitiu, com a voz baixa. — Eu ainda penso nisso sempre que momentos como esse acontecem, sabe? Quando preciso tirar a camisa ou ficar perto de outras pessoas que possam reparar. A voz dela continua presa como um eco no fundo da minha cabeça.
— Eu imagino. E sei que falar é muito mais fácil do que fazer, mas você precisa esquecê-la e tacar um gigantesco foda-se para ela. Que mulher mais desgraçada! Ela só falou essas bostas todas para te humilhar.
— O pior é que eu sei.
— Que bom. Acho que já é um grande passo. Daí para conseguir anular isso realmente vai ser um processo, mas fico feliz que saiba que isso não é sobre você. E fico feliz que tenha se sentido confortável para compartilhar isso comigo.
— E eu me sinto - admitiu. — De verdade.
— E sei que a única opinião que importa verdadeiramente sobre seu corpo e sua aparência é a sua própria. Mas eu te acho incrível assim. Sua ex precisa de um oftalmologista.
Com um sorriso, ele respondeu aquilo que sentia: gratidão. Porque, por mais que ela não acreditasse, sua opinião significava bastante coisa, mesmo que para a consolidação da sua própria.
— Eu fazia esse jogo com a Millie - ela voltou a falar, mudando o assunto. — Afundávamos e apostávamos quem conseguia ficar mais tempo submerso sem precisar voltar para a superfície para respirar.
Ele a observava, enquanto tirava a água dos próprios olhos.
— Antes de você cogitar aceitar participar, acho que deveria saber que eu sempre ganhava.
— Bom, então acho que você deve saber que eu sou muito competitivo.
Com um sorriso brincalhão, os dois afundaram as cabeças.
Quando disseram que lá era o lugar mais baixo, mais quente e mais seco de todo os Estados Unidos, não era brincadeira. E essa era a confirmação de quem havia seguido as sugestões de turistas por sites aleatórios e decidido chegar na noite anterior para poder ver o nascer do Sol e apreciar os picos de Zabriskie Point ganhando tons avermelhados que se misturavam ao azul claro do céu.
aconchegou a cabeça ao ombro de , permitindo que um bocejo barulhento e completamente desprovido de discrição saísse de sua boca. Não se arrependia nem um pouco de ter ido dormir tão tarde, já que seus motivos tinham nome e sobrenome: .
Tinham passado várias horas da noite, estendendo para algumas da madrugada, simplesmente conversando sobre a vida, os relacionamentos fracassados, as coisas mais bizarras que tinham feito por influência de amigos, os filmes favoritos e visto vários vídeos de animais fofos que pareciam ainda mais felpudos e apertáveis conforme o sono os abraçava.
O rapaz inclinou a própria cabeça, encostando-a à lateral da dela de uma forma carinhosamente sonolenta e estranhamente confortável. Por alguns instantes, só a aquarela celeste importava, performando seu espetáculo único e precioso, anunciando o início do novo dia. Tinham até se esquecido da enorme possibilidade de que suas narinas decidissem sangrar em reação à aridez do ambiente ao longo do dia.
— Bom, valeu a pena ter acordado tão cedo para ver isso - ela murmurou.
não ousou se mover ao responder:
— Valeu a pena não dormir, você quis dizer. Porque três horas de sono mal são um cochilo.
riu, olhando para um ponto relativamente abaixo do mirante que ocupavam, em um platô no qual as pessoas tentavam se posicionar da melhor forma, buscando uma iluminação que favorecesse as capturas de imagem de suas câmeras. Sentiu , ao seu lado, sorrir também.
— Adoro seu sorriso - disse, apertando os olhos frente ao estímulo luminoso que aumentava gradualmente. — Me lembra o sorriso da sua mãe, mas você aperta os olhos de um jeitinho só seu.
— Você nem está me vendo.
— Não preciso - respondeu de pronto. — Tenho a imagem bem clara na minha cabeça.
O sorriso dele se tornou ainda mais largo, repuxando os cantos dos lábios. Acabou percebendo que ela tinha razão quanto aos olhos apertados.
— Você se lembra da minha mãe?
Ela saiu da posição em que estava, olhando-o com atenção.
— Sempre que olho para você. Sempre te achei muito parecido com ela.
— Ela também achava - ele concordou. — E fazia questão de falar disso para absolutamente todo mundo.
— Basicamente, ela estava cumprindo com as obrigações do cargo dela de mãe.
— É, acho que sim. Sinto muito a falta dela.
se viu entrelaçando seus dedos aos dele antes mesmo que pudesse se dar conta racionalmente do que estava fazendo ali. Nem imaginava a dor do luto de perder alguém tão próximo e tão amado e não sabia exatamente o que dizer ou fazer. Às vezes, pensava que a melhor forma de estar ali para alguém, era literal e simplesmente apenas estar ali para alguém.
— Ela sempre teve muito orgulho de você. Com certeza ainda sente sempre que está olhando por você.
Ele piscou, permitindo que uma lágrima corresse pela lateral do nariz.
— Se ela estiver olhando para nós, vai ficar bem contente. Ela te adorava.
riu de leve, concordando.
— Eu meio que percebi pelas vezes que ela se ofereceu para me levar para tomar sorvete enquanto vocês iam ao cinema e me ignoravam por ser pirralha demais.
revirou os olhos abertamente.
— Você tem que entender que, naquela época, o fato de sermos um pouco mais velhos era basicamente a única coisa que fazia com que nos sentíssemos superiores. Até a turma abaixo era nova e imatura demais para o nosso conceito prejudicado.
— Infelizmente, o ego de vocês custou anos da minha incrível companhia. E todos os sorvetes maravilhosos que ganhei com isso.
— Vou me arrepender amargamente disso por todos os dias da minha existência, prometo - garantiu, levantando-se. Bateu as mãos na parte de trás das calças, tentando se livrar de possíveis grãos de areia e terra que tivessem decidido que aquele era um bom lugar para se estar. Estendeu a mão para que também se colocasse de pé. — Vamos. Temos uma trilha para fazer de carro.
— Twenty Mules Team Canyon - ela comentou. — Ou o desvio dos desvios.
— Não gosto desse nome.
— Eu também não. Soa esquisito demais.
— Quer dirigir? - Ele ofereceu repentinamente, fazendo-a travar exatamente onde estava.
— Como é que é?
— Quer dirigir? - repetiu. — Deve ser divertido.
— Se é tão divertido, eu acho que você deveria fazê-lo. Eu jamais me perdoaria se lhe roubasse instantes preciosos de diversão.
— Você está com medo de pegar o carro?
bufou, soltando o ar de uma vez só, como se quisesse demonstrar como mesmo a mísera sugestão daquilo era completamente absurda.
— É claro que não. Até parece que você não me conhece.
— Por mais que eu acredite te conhecer relativamente bem depois desses dias, nunca a vi dirigindo. Então posso estar certo.
— É que você parece tão tranquilo atrás do volante, sabe? E o carro é seu no fim das contas. Eu não quero me intrometer na relação de vocês.
— Eu estou literalmente te oferecendo. Prometo que nem eu e nem o carro vamos ficar chateados.
Ela variou a distribuição do próprio peso sobre os pés, achando estranhamente interessante e repentinamente relevante a forma que eles afundavam de leve no solo.
— , você sabe dirigir?
— É claro que sei - respondeu no mesmo segundo, revirando os olhos. — Tirei minha habilitação e tudo. Eu só evito.
— Bom, se quiser tentar, esse é o melhor lugar para isso. O caminho é inteiro de mão única e não tem praticamente ninguém. Se você simplesmente quiser parar o carro no meio do caminho, tudo bem. Sem contar que eu vou estar ao seu lado o tempo todo. Nada vai acontecer.
Ela tomou alguns instantes para ponderar a oferta e, no fim das contas, sabia que fazia certo sentido. E até que sentia falta de dirigir.
Soltou algumas exclamações contentes conforme foi pegando o jeito das curvas sobre a terra, ao redor dos canyons de areia. Sentia a oscilação da textura sob os pneus e estava grata pela consciência do mundo ao seu redor.
Percorridos os quilômetros da trilha, ainda visitaram o Bad Water Basin - ponto mais alto dos Estados Unidos, com algumas pobres poças de água sobre a imensidão dos campos brancos e salgados - e o Devil’s Golf Course - cuja irregularidade extrema formada pelos cristais de sal no solo do deserto tinha conseguido virar uma piada de que só o capeta conseguiria jogar golfe em um lugar daqueles.
Ao fim da tarde, seguiram a rota das montanhas coloridas abarcadas pela Artist Drive & Artist Pallete. Além da excitação peculiar e particular de subir a montanha, puderam fechar o seu ciclo ali, assistindo ao pôr do Sol, findando o dia para que as estrelas pudessem começar a pipocar pelo céu escuro. ainda se pegava chocada e impressionada com a beleza do céu estrelado quando afastado das grandes cidades e da poluição. Era uma experiência magnífica e a fazia entender porque algumas pessoas se interessavam tanto por planetas e estrelas.
Naquela noite, permitiram-se escolher um restaurante um pouco mais chique no caminho. Vestiram as melhores roupas que haviam levado - que não eram nem de longe as melhores de seus guarda-roupas em casa - e agradeceu mentalmente por ter levado ao menos um batom e um corretivo para esconder as marcas claras da noite mal dormida.
Um garçom simpático lhes ofereceu o menu de pratos e uma cartilha de vinhos. Afastando-se em seguida para conferir-lhes espaço para que decidissem até que retornasse para anotar os pedidos.
leu todos aqueles nomes difíceis na cartilha, tendo a mais pura certeza de que seu francês praticamente nulo não tinha prática linguística suficiente para pronunciar nem metade daquelas palavras.
— Quanto você sabe de harmonização de vinhos?
ergueu o olhar, repuxando uma sobrancelha ao ouvir aquela pergunta.
— Em uma escala de um a dez? Zero. Tudo o que eu sei é que gosto de vinho. Qual deles tomei? Não sei.
Ela disfarçou uma risada.
— Tenho a leve impressão de que seremos brutalmente julgados se errarmos o vinho.
Ele puxou o celular, diminuindo a luminosidade da tela para garantir que sua busca não seria visível a olhares furtivos que pudessem se aproximar. Estendeu o menu de pratos para ela.
— Escolhe a comida - orientou. — E eu pesquiso que vinho combina. Assim parecemos menos alheios a esse mundo.
assentiu, concordando com a ideia. Escolheu um peixe delicado e decidiu pedir o mesmo. Por orientação do sábio google, pediu um Sauvignon Blanc ao garçom, forçando um sorriso presunçoso que passava toda a confiança que ele não tinha de que havia feito a escolha moralmente adequada para os sommeliers de plantão.
Quando os pedidos chegaram, lhe arrancou risadas ao balançar levemente a taça em círculos e inalar o aroma do vinho, meneando a cabeça de forma positiva para ela.
deu um gole no seu, sentindo o sabor leve preenchendo suas papilas gustativas de uma forma agradável. Era suave e gostoso e combinava perfeitamente com o peixe.
— Bom, para quem não entende nada, acho que foi uma boa escolha - disse.
— Agradeça à tecnologia.
Terminaram de comer entre brincadeiras e risadas discretas. A mulher ainda sentia um calor aquecendo seu peito sempre que ele sorria fechando os olhos e tinha certeza de que não era pela alta temperatura do lado de fora. Ele só conseguia pensar em como os lustres altos e circulares acima de suas cabeças tinham acrescido um brilho especial aos olhos dela sempre que olhavam para ele.
— Tudo estava do agrado dos senhores? - O garçom perguntou, retirando os pratos e taças.
— Ah, com certeza - ela respondeu. — Tudo estava ótimo.
O rapaz sorriu satisfeito, enquanto sinalizava para que outro homem de uniforme se aproximasse.
— Queremos oferecer essa sobremesa para o casal, como cortesia da casa para adoçar a sua noite.
fez menção de corrigi-lo, mas foi interrompido por um chute dolorido em sua canela, implorando para que ele não destruísse o momento fatídico em que um brownie com sorvete lhes tinha sido oferecido de graça.
— Eu vou ficar com um roxo na perna - ele reclamou entre dentes, enquanto ela enchia uma colherada de brownie.
— Você precisa aprender a ficar de boca fechada. Ainda mais quando tem comida grátis envolvida.
— Eu só ia dizer que não éramos um casal.
— E o que é um casal afinal de contas? São duas pessoas em um relacionamento amoroso ou são simplesmente duas pessoas que se gostam?
— Se gostar é meio relativo.
— Você entendeu - ela reclamou. — E esse brownie está muito gostoso. Eu nunca te perdoaria se me fizesse perdê-lo.
Dividiram a conta e se dirigiram para a saída. pegou a mão de , fazendo-a se sobressaltar de repente pelo estranhamento.
— Não somos um casal? Temos que fazer uma saída adequada - ele se explicou, fazendo-a concordar. Era uma justificativa idiota e sabidamente furada, mas ela não tinha pressa alguma de se livrar daquele toque.
Caminharam tranquilamente pelo caminho de cascalhos iluminado por lamparinas amarelas, com os passos bem mais lentos que o usual, buscando silenciosamente cumprir o acordo de fazer aquele momento se estender o máximo possível.
interrompeu os passos, fazendo-a parar e se virar para ele.
— Eu não sei se é o vinho, mas a lua está parecendo especialmente gigante hoje - disse. — E agora que eu falei isso percebo como soa absurdamente idiota.
riu alto, dando mais um passo em sua direção.
— Não acho idiota. Nem um pouco.
A única coisa que parecia idiota era aquele ímpeto esquisito dentro dela ao qual ela decidiu ceder. Seria mentira dizer que já não tinha imaginado como seria aquele momento. E seria uma mentira ainda maior falar que a realidade não havia superado completamente quaisquer de suas expectativas.
Com os lábios dele grudados aos seus, ela se lembrou de como era a sensação das borboletas no estômago e da taquicardia desconfortável que faziam com que duas pessoas se aproximassem ainda mais, talvez por receio de desfalecer nos braços da outra.
Afastou-se minimamente, sentindo o sorriso dele se formando praticamente contra a sua boca.
— O que quer fazer agora?
— Quero fazer isso de novo - ele respondeu e levou a mão à sua nuca, trazendo-a para si novamente.
Como tinham decidido jurar honestidade e sinceridade sempre, tinham de ser verdadeiros e admitir que aquela era a coisa que mais parecia certa em muito tempo. E, por mais que alguns corações tivessem sido machucados ao longo do caminho, isso não significava que estavam tão partidos que não pudessem ser remendados, mesmo que por aquele que menos se esperava.
se lembrava perfeitamente do dia em que tinha ido ver ‘Os Incríveis 2’ no cinema, mais cheia de expectativas que pelo menos dois terços das crianças ali presentes. Também tinha a lembrança clara de que, logo antes do começo do filme, havia um aviso enorme sobre riscos de náusea, vertigem e convulsões devido aos clarões intensos e repetitivos presentes nas cenas do vilão.
Tinha certeza de que um aviso daqueles cairia bem ali, em meio a tantas máquinas, caça-níqueis e decorações em neon.
gastou suas moedas primeiro, obtendo dois cocos, uma cereja e um cacho de bananas.
— Acho que cerejas não são exatamente grandes exemplos de frutas tropicais - ponderou.
— Que bom que você percebeu - comentou. — Vamos procurar o criador da máquina. Ele com certeza vai se esforçar imediatamente para corrigir seu erro.
— Como você é engraçada. Sorte sua que fica tão bonitinha quando está sendo sarcástica.
A mulher inclinou levemente a cabeça, em um protótipo de reverência que agradecia pelo elogio. Em seguida, empurrou-o do assento, estabelecendo a sua vez de tentar a própria sorte.
Teve de esperar alguns segundos após puxar a alavanca, enquanto a máquina fazia barulhos aleatórios e rodava luminosamente feito doida à sua frente.
— Meu Deus do céu, eu vou ficar com dor de cabeça antes mesmo de começar a beber - murmurou, piscando com força.
Foi então que se formou sua linha: quatro mangas - ou seja lá que frutas o ilustrador pensava estar desenhando - perfeitamente idênticas.
— Eu ganhei! - Ela berrou, aplaudindo. — Meu Deus, eu nunca ganho nada. Esse lugar deve me adorar.
— Não é só ele - o rapaz comentou, deixando um beijo leve na curva de seu pescoço.
precisou se dividir entre o rubor das faces e o arrepio que ele lhe causava sempre que a tocava ali. Tinha aprendido rápido demais os pontos que faziam seu corpo reagir, curvando-se ou se acendendo como uma árvore de natal.
— O que é que eu faço com essas fichas que eu ganhei? - Questionou, livrando-se do seu toque delicadamente e completamente contra a sua vontade.
— Sabe jogar poker?
— Tão perfeitamente bem quanto sei surfar.
ergueu as sobrancelhas, os olhos arregalados, fitando-a pela nova informação.
— Você sabe surfar?
— É claro que não.
Seguiram para as mesas de carteado, onde logo conseguiu um lugar no poker e tentava prestar atenção no jogo para entendê-lo.
Aos poucos estava compreendendo os passos pré-flop e pós-flop e se enchendo de expectativas de que conseguisse reunir uma mão alta o suficiente para bater os outros jogadores.
— Straight Flush - ele disse, dispondo uma sequência perfeita de copas.
Os demais parabenizaram-no, aceitando a derrota. Ninguém tinha conseguido um Royal Flush para superá-lo.
— Você ganhou!
Ele sorriu, concordando, ao lhe roubar um selinho.
— Mas vamos embora daqui antes que eu perca. Minha sorte não costuma durar mais do que uma partida.
assentiu. Podia entender porque as pessoas falavam tanto sobre jogos de cartas e apostas e todos os problemas que advinham disso. A adrenalina que fluía por suas veias com a expectativa e com a vitória era uma sensação inebriante e incomparável. Por mais triste e destrutivo que viesse a ser, ela conseguia entender porque era tão fácil fazer daquilo um vício e uma busca incessante por aquele mesmo tipo de excitação e antecipação. Mas nisso tinha razão; era melhor se retirar antes que a sorte mudasse e começassem a perder.
— Bom, jogamos no caça-níqueis, você ganhou no poker… O que mais precisamos fazer para ter a experiência completa de Vegas?
Como se o destino houvesse lhe ouvido e decidido lhe oferecer uma resposta, viram uma mulher passando correndo com um vestido branco despojado e um buquê de flores lilases. Arrastou seus risinhos pelo salão, até encontrar um rosto redondo, com as bochechas saltadas pelo sorriso aberto lhe aguardando. riu da vestimenta improvisada, vendo o rapaz usando um paletó preto com gravata borboleta e bermuda.
— Bom, poderíamos nos casar - comentou. — Mas talvez seja um pouco precipitado.
A mulher riu, enquanto lhe dava um empurrão de brincadeira no peito. Olhou em volta, encontrando a loja de lembrancinhas e vendo exatamente aquilo de que precisavam, mesmo sem saber.
— Vem, eu tive uma ideia.
Arrastou-o a tropeços e questionamentos até a loja, onde foram abordados por uma vendedora sorridente que parecia cheirar a perfume de baunilha e tabaco.
— O que os pombinhos desejam? Vieram pegar os documentos para se casarem?
— Nós já nos casamos - respondeu com um largo sorriso, mostrando todos os dentes possíveis, enquanto apertava a mão de , alertando-o para apenas seguir o momento. — Vimos umas blusas tão bonitinhas na vitrine. Gostaríamos de experimentar.
— Sei exatamente do que está falando - a mais velha respondeu, pedindo um instante enquanto ia até o estoque.
— Que bom que ela sabe do que você está falando - ele murmurou. — Porque eu continuo sem entender nada.
— Você já vai ver, amorzinho. Precisa ser menos apressado.
Ele revirou os olhos, mas logo reassumiu o semblante vidrado e forçosamente simpático ao ver a vendedora retornando.
— Acredito que esses sejam os tamanhos adequados para vocês.
— Ótimo! Vamos provar!
arrastou para os provadores, entregando a camisa dele por cima do biombo que os dividia.
— Puta merda - ele exclamou baixinho, ao finalmente ler os dizeres em preto: “Senhor recém-casado”.
Ao seu lado, ela riu, vestindo a sua própria versão de “Senhora recém-casada”.
Saíram dos provadores, mascarando a vontade de gargalhar que coçava a garganta, querendo buscar o caminho para fora de seus corpos. tomou a mão dela, enquanto retornavam até a vendedora.
— Ficou perfeito! Vocês são lindos, isso com certeza ajuda muito.
agradeceu educadamente, mesmo tendo a mais plena certeza de que ela deveria dizer aquilo para absolutamente todo mundo. Era meio que a sua função como comerciante, afinal.
— Vamos levar - anunciou, entregando o seu cartão de crédito.
— Depois eu te pago a minha - ela sussurrou ao pé de seu ouvido.
— Não precisa - ele respondeu no mesmo tom. — Considere isso como meu presente de casamento para você.
— Mas eu não te dei um presente de casamento - ela reclamou.
— Acredite em mim, você me deu muito mais do que isso.
Fora da loja, receberam as parabenizações de várias pessoas e abraços de desconhecidos completos que pareciam ter uma forte tendência a se tornarem estranhamente emotivos depois de tanto beberem. Mesmo que, aparentemente, não estivessem sóbrios o suficiente nem para compreender o nome dos supostos recém-casados.
— Não que eu não esteja me divertindo com essa história, porque eu estou - começou. — Mas de onde veio essa ideia?
— Ah, eu lembrei que, uma vez, fomos à Disney no aniversário da Millie e todos os funcionários e personagens paravam para paparicá-la e tudo mais. Pensei que em um meio adulto fôssemos ganhar algo com isso também, sabe? Atenção, parabéns… Quem sabe umas bebidas.
Ele riu, balançando a cabeça.
— Não acho que essa seja uma política para a clientela daqui. Provavelmente acabariam indo à falência se oferecessem álcool para todas as pessoas que se casam por aqui.
— Duvido. Olha o tanto de dinheiro que cada um investe nessas mesas e máquinas. Para esse lugar falir, vai ser necessário muito mais do que umas doses de bebida em felicitações.
— Tequila para os noivos? - Um rapaz com sotaque forte ofereceu, estendendo-lhes copinhos decorados com a bandeira mexicana, além de fatias de limão e sal.
— Quanto é? - quis saber.
— Cortesia - ele voltou a falar. — Um presente nosso pelo matrimônio!
sequer tentou esconder o semblante vitorioso. Queria muito gritar ali mesmo sobre como adorava estar certa.
não deu tempo para que o rapaz mudasse de ideia, pegando sua dose e passando a outra para sua “noiva”.
— Bom, a nós - propôs o brinde.
— A nós - ela concordou, antes de virar o conteúdo garganta abaixo.
Talvez a sorte não fosse sobre ganhar na primeira vez em um caça-níqueis fajuto, nem sobre conseguir um Straight Flush. Talvez também não tivesse nada a ver com trevos de quatro folhas, pés de coelho, ferraduras e quaisquer outras superstições reiteradas pelas pessoas.
Sorte era sobre estar com alguém que lhe arrancava risadas nos momentos mais inoportunos, concordava com as suas ideias mais loucas e te lembrava diariamente daquilo que você já deveria saber: de como era válido, importante e especial. E, naquele momento, teve certeza de que tinha tirado a sorte grande.
— Acho que nos despedimos aqui - disse, com um doce sorriso, após retirar do carro a última mala.
baixou o olhar, empurrando uma mecha bagunçada do cabelo para trás da orelha. Sentia-se um tanto idiota ao assimilar que, de repente, sentia uma pontada de vergonha de alguém com quem havia passado tanto tempo.
— Acho que sim - respondeu enfim. — Eu não sei nem como te agradecer por ter aceitado essa loucura de ser meu companheiro de viagem.
— Acho que foi mais uma aventura do que uma loucura, no fim das contas.
Ela não conseguiu evitar um sorriso de canto ao sentir o toque já tão familiar e aconchegante provocado pelas pontas dos dedos dele, correndo carinhosamente pelas linhas marcadas da palma de sua mão.
— Então, obrigada pela aventura.
— Pode ter certeza de que o prazer foi todo meu - assegurou-lhe. — Mas antes que vá, eu tenho uma coisa você.
Estendeu um papel dobrado, pouco atraente, mas que despertou sua atenção imediatamente.
— O que tem aqui?
Ele interrompeu imediatamente sua tentativa de desfazer os vincos e acessar o conteúdo com seus olhos curiosos.
— Só mais tarde. Quando você estiver lá em cima.
Ela revirou os olhos, com uma risadinha. Mesmo a contragosto, era capaz de ceder a suas vontades. Afinal, só precisava de poucos minutos para trancar a porta do apartamento atrás de si e ler o que quer que estivesse escrito ali.
— Bom, então vou subir - disse. — Nos vemos por aí, .
— Nos vemos por aí, .
Ela esperou o carro sumir de sua vista para se virar, reunindo suas coisas para pegar o elevador até o seu andar.
Praticamente chutou a bagagem para dentro, ignorando a rodinha problemática e qualquer outra coisa. Agilmente, abriu a carta, lendo os versos, tão bem organizados em estrofes que não foram necessários mais do que alguns instantes para que ela se desse conta do que aquilo significava.
“Life gets hard and it gets messed up
When you give so much, but it's not enough
When the high's too high, and the low's too low
When you love someone and they let you go
Don't you let it kill you
Even when it hurts like hell
Oh, whatever tears you apart
Don't let it break your heart
Time takes time to heal it
You can't do it by yourself
Oh, whatever tears you apart
Don't let it break your heart”
“Cumpri a minha promessa de te escrever uma música. Se você quiser ouvi-la, no entanto, terá que vir até mim para que eu possa te mostrar o ritmo.”
— Maldito.
Aparentemente, tinha aprendido exatamente como mexer com a sua curiosidade.
Puxou o celular do bolso, clicando no contato cujos dígitos adquirira em algum momento da viagem.
— Pensei que fosse demorar mais que isso. — Duvido.
Ele gargalhou do outro lado da linha.
— É, acho que não. Ela respirou fundo, antes de perguntar:
— Então, quando posso te ver?
“As coisas boas não esperam até a gente estar pronto. Às vezes chegam antes, quando estamos quase lá. E eu concluí que, quando isso acontece, temos duas opções: deixar passar, como se fosse o ônibus errado. Ou então ficar pronto.”
Taylor Jenkins Reid, Amor(es) Verdadeiro(s)
FIM
Nota da autora: FELIZ NATAAAAAAAAAAAL! Espero que as festas tenham sido cheias de amor, alegria, saúde e comida gostosa! E que o ano novo seja tudo isso e mais um pouco!
Essa historinha foi feita com muito carinho e volta a uma das coisas que eu mais gosto de fazer, que é viajar com as fanfics e trazer um pouquinho de outros lugares. Contudo, infelizmente não conheço eles, rs. A maioria das informações vem de pesquisa, sim, mas algumas coisas foram escritas da forma que veio à cachola. Consideremos como liberdade poética; ou fanfiqueira.
Por favor, deixem comentários aí, no grupo do face, no do whatsapp, no meu privado, MAS VAMOS CONVERSAR, EU SOU CARENTE.
Sem mais delongas, espero que tenham gostado e, se você chegou até aqui, eu agradeço profundamente por me dar uma chance. Espero te receber aqui mais vezes.
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Blow Me (One Last Kiss)
02. Dance Again
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03. I Did Something Bad
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03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Robot
11. Nós
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallflower
Essa historinha foi feita com muito carinho e volta a uma das coisas que eu mais gosto de fazer, que é viajar com as fanfics e trazer um pouquinho de outros lugares. Contudo, infelizmente não conheço eles, rs. A maioria das informações vem de pesquisa, sim, mas algumas coisas foram escritas da forma que veio à cachola. Consideremos como liberdade poética; ou fanfiqueira.
Por favor, deixem comentários aí, no grupo do face, no do whatsapp, no meu privado, MAS VAMOS CONVERSAR, EU SOU CARENTE.
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