Última atualização: 12/01/2021

Capítulo um

Ela era linda, sempre foi. Desde que a conheci, anos atrás, quando os vestibulares ainda enchiam minha cabeça de pressão atmosférica insuportável, ela já era a pessoa mais linda diante de meus olhos. Agora, depois de tudo aquilo, me parecia impossível que ela ainda fosse tão bonita. Na verdade, esse adjetivo parece eufemismo enquanto a encaro do outro lado do bar.
Há quantos anos não a vejo? Pelo menos seis? E arrependo-me disso no momento em que a vejo sorrir para um cliente sentado a algumas mesas de distância da mim, senti-me compelido a gastar todo o meu dinheiro naquela noite apenas para que ela pudesse sorrir daquela maneira para mim também.
— Qual foi? Viu fantasma? — Josué tomou um gole de sua long neck e seguiu meu olhar, assobiando em seguida. — Não, você só viu uma gostosa.
— Pra caramba, né? — Pisquei mais algumas vezes, detendo-me em seu uniforme preto, subindo para sua boca pintada do vermelho mais escuro da paleta de cores da Faber Castell (eu acho).
— Conhece a figura? — meu amigo voltou a perguntar. Assenti levemente e virei-me para os outros colegas sentados nas mesas de bar.
Hora era o happy hour da empresa, estávamos comemorando nosso primeiro lucro, finalmente havíamos passado do tempo de prejuízo de uma empresa nova! E ainda estávamos muito longe do pico, mas o faturamento foi absurdo esse mês, então o financeiro (vulgo Josué) nos liberou para comemorar por conta da casa. Mas, como nem tudo são flores, apenas as duas primeiras rodadas de cerveja e as primeiras porções de batata eram por conta do caixa, o restante era por nossa conta. Não que eu me incomodasse, jamais, eu precisava comemorar.
Lutei por muito tempo para abrir meu próprio negócio, passei noites em claro pensando na falência, chorei ao precisar demitir funcionários, o caos completo. Mas eu estava ali, cercado por gente que também acreditava no potencial da nossa firma, e aquilo era o suficiente.
Ter visto aquela mulher ali parecia apenas um bom sinal da minha fortuna.
— Vai falar com ela, cara… — Josué sussurrou, o hálito de cerveja invadiu meus sentidos por completo. Meus olhos lacrimejaram com o contato direto.
— E eu vou dizer o quê?
— Sei lá, se apresenta e pede o número dela. — Josué deu de ombros, acenando para um dos funcionários que oferecia a ele uma porção de batata, a qual meu amigo aceitou de bom grado.
— Ela está em horário de trabalho, é sacanagem! — defendi-me, mas a verdade é que eu jamais sairia dali para falar com ela.
Da mesma forma que não me declarei anos atrás, não tinha coragem de fazer agora. Não importava meu status social, os dígitos da minha conta, o quanto eu havia conquistado, as mulheres ainda me assustavam às vezes. E falar com elas me parecia uma tarefa tão assustadora quanto me jogar do Cristo Redentor sem a asa-delta.
— Ok, cara, sua decisão — Josué cedeu com um suspiro —, só não vem chorar no meu ombro amanhã.
— Não vou chorar — assegurei-o, mas a verdade é que eu iria.
Mais uma chance perdida porque não tenho coragem de me levantar e começar uma conversa. As pessoas dizem que tímidos são pessoas misteriosas e que invejam isso, eu odeio essa frase. Minha timidez já me custou muita coisa, inclusive Ribeiro, a moça de pele negra escura como a noite que rodava o bar com uma bandeja na mão e distribuindo sorrisos para todos os lados, balançando os quadris em um jogo divertido no qual o objetivo era entregar os pedidos de acordo com a batida da música tocando com a banda ao vivo.
E eu estava inerte.
Ao meu lado, Josué bufou e acenou com a mão na direção dela. Senti meu coração gelar no peito e meu rosto ficar vermelho imediatamente.
— Eu te odeio muito, cacete — xinguei meu amigo enquanto ela andava em nossa direção.
— Olá, moça, boa noite! — Josué cumprimentou com um sorriso largo. retribuiu com um sorriso ainda maior, apoiando a bandeja vazia ao lado do corpo.
— Olá, posso ajudá-los? Estão se divertindo? — Ela passou o olhar por toda a mesa, parando subitamente em mim. Encarei o chão imediatamente, sentindo minhas bochechas tomarem o tom mais escarlate do mundo, talvez tão intenso quanto a cor dos lábios de . — Eu te conheço, não?
Levantei meu olhar e a encarei com um sorriso torto. Compreensão imediatamente tomou o olhar de , deu um tapa fraco em sua coxa e sorriu ainda mais.
! Eu sabia que te conhecia. — imediatamente ignorou tudo ao seu redor, focando sua atenção em mim. Pelo amor de Deus, como está quente!
E por que ela tem olhos tão inquisitivos, como se realmente estivesse feliz? Uma pessoa não pode ser tão feliz somente por ver uma pessoa conhecida.
— Há quanto tempo! Como você está? — ela perguntou com interesse genuíno. Josué me deu um cutucão por baixo da mesa. arqueou levemente a sobrancelha.
— Eu estou bem — sorri em sua direção da forma mais normal que conseguia —, trabalhando muito, na verdade!
— Uh, happy hour, então?
— Pois é! — Josué se intrometeu, dando um apertão em meu ombro com a sua mão que cruzava os braços da minha cadeira. — O é dono de uma firma de marketing digital focado em pequenas empresas. Estamos comemorando hoje, não é, ? — assenti e a encarei novamente, ainda imerso na escuridão de seus olhos. fez uma cara de surpresa, logo transformando-a em uma expressão divertida.
— Eu sabia que você, de todos da nossa sala, seria o mais bem sucedido. Eu estava certa, não estava?
Não consegui evitar a gargalhada, jogando a cabeça para trás e arrumando meus cabelos suados na volta, tirando-os da testa.
— Soube que o Ferdinando está na Austrália construindo robôs, eu acho que ele ganhou.
— Mas Ferdinando não era legal, isso o tira da lista automaticamente. — piscou em minha direção.
Senti que iria vomitar.
— Preciso voltar ao trabalho — ela apontou para o bar gigante e lotado atrás de nós —, mas foi um prazer te ver, ! Espero que possa te ter como cliente assíduo aqui no Bar do Gato — outra piscadela, e ela sumiu.
Respirei fundo, como se essa interação social fosse uma maratona. Josué gargalhou alto ao meu lado, chamando a atenção dos outros doze funcionários sentados à mesa. Cerrei os olhos em sua direção.
— Você é um panaca.
— E você sabe me xingar melhor do que isso. Que tipo de merda é panaca?
Apenas o ignorei, tomando um gole gigante da minha água com gás, como se ela fosse lavar a minha vergonha em engatar em uma conversa digna com .
E por isso, mais tarde naquela noite, quando ameaçamos fechar o bar, estranhei que ela estivesse parada com as costas apoiadas na parede, encarando minha mesa com curiosidade. Talvez estivéssemos impedindo que ela fosse para casa mais cedo.
— Cara, acho que precisamos vazar… — constatei para Josué.
— Ué, por quê? — Ele se virou em minha direção com uma careta.
— Porque a está olhando para cá.
— Já cogitou que ela pode estar fazendo isso porque te acha bonito?
— Mama a minha rola, Josué. — Meu amigo jogou a cabeça para trás, rindo alto. foi atraída para sua risada, voltando em seguida a conversar com uma funcionária.
— Você deixa? — Fez biquinho, ao passo que apenas acenei para , sinalizando a conta.
Agora estávamos apenas sete pessoas, os outros haviam ido para casa uma hora atrás, quando pegar o transporte público não beirava ao assustador.
O bar estava consideravelmente cheio, mas todos pareciam prestes a ir embora. Menos Josué, que estava pronto para virar a noite, se pudesse. Óbvio que isso era apenas porque ele não estava pagando a conta.
— Fechando a noite? — comentou ao se aproximar com o mesmo sorriso. Meu Deus, ela não cansa de sorrir?!
— Ah, só porque o aqui insiste! — Josué apontou para mim, balançando a cabeça bêbada em negativa.
— O está querendo ir embora? Da última vez que nos vimos, ele virou a noite inteira comigo no bar da faculdade, e ainda queria continuar! — gargalhou, balançando os ombros juntos. Josué arregalou os olhos, apoiando a garrafa de cerveja na mesa com dramaticidade.
— O ?! Não mesmo.
— Juro! — deu de ombros.
Paguei a conta enquanto os dois conversavam com risadas, e também durante o tempo em que os nossos funcionários batiam suas contas. Quando nos levantamos para sair, Josué já contava a ela sobre a vez em que tropecei no pé de um cliente e acabei puxando as calças dele para baixo.
Não preciso dizer que não fechamos contrato.
— Eu nunca senti tanta dó — lamentou, mas limpava uma lágrima de risada do canto do olho. Não controlei um risinho, dando de ombros.
— Isso molda caráter — retruquei risonho.
Começamos a ir para a porta, mas eu queria ficar, conversar melhor com ela, colocar o papo em dia. Por isso, quando todos saíram e Josué foi junto para esperar que pegassem o Uber, fui tomado por uma coragem incomum, virando-me para trás de súbito. Assustei-me quando praticamente bati de frente com , o que a fez me encarar e sorrir.
— Continua desastrado, não é?
— Só perto de mulheres bonitas. — A cantada barata saiu antes que eu pudesse controlar. Eu estava pronto para receber uma recusa, talvez um tapa na cara, mas apenas riu.
— E você continua charmoso também. Fico feliz com isso. Escuta só, o que você acha de vir aqui um dia em que eu não esteja trabalhando? Podemos conversar melhor.
Não precisei pensar muito antes de balbuciar igual bobo.
— Claro, quando?
— Quarta?
Dia de semana? Eu realmente queria tanto vê-la?
— Claro, quarta.
Despedi-me dela com um aceno sorridente, e fui cantarolando para casa. Voltei cantarolando também para o bar na quarta, dia que havia marcado com . Eu me esqueci de pegar seu número de telefone, então só esperava que ela lembrasse do nosso acordo.
Josué percebeu que eu estava mais arrumado e disposto, mas não comentou nada. Agradeci meu amigo mentalmente por isso.
E eu fiquei feliz por ter bebido um pouco, porque eu não aguentaria o nervosismo sóbrio. estava linda, usava o mesmo batom vermelho, brincos amarelos pendiam em suas orelhas e um sorriso fácil perdurou durante a noite toda em seus lábios.
Mas nada me preparou para o que ela me contava.
— Você foi contratada por um senador para escrever cartas eróticas para a amante dele? — arregalei os olhos sem acreditar. deu de ombros e tomou um gole generoso de seu suco de laranja.
— Exatamente, cara. Eu sou o cupido dos velhos traidores. Mas tem um problema — adicionou com um leve pesar —, eu não sou inspirada o suficiente, eu acho.
— Em escrever cartas eróticas? — questionei com o cenho franzido. pôs a mão sobre a boca, cobrindo o riso.
— Sim, exatamente. Enfim, cheguei à conclusão de que preciso exercer um pouco melhor minha imaginação, talvez ver alguns filmes com o Adam Driver e tudo mais.
— Adam Driver? — Segurei um riso engasgado.
— Ele é um feio bonito, ok? Vocês, pessoas bonitas, não tem permissão para falar dos feios!
Ela estava dizendo que eu era bonito? Um sorriso gigante rasgou meu rosto. Eu estava confortável perto dela, não imaginei que fosse ser assim após tanto tempo sem vê-la.
Éramos amigos no ensino médio. Eu era apaixonado por ela. nunca soube — ou pelo menos sempre fingiu não saber.
— Enfim, é isso. Eu sou uma tradutora juramentada, dona de um bar e escritora de cartas eróticas, mas sem qualquer noção de aventuras eróticas para escrever sobre.
Um silêncio pesou sobre nós enquanto ela olhava para um ponto para além da rua, refletindo.
— Eu te ajudo — respondi. — Claro, se você quiser. Na verdade, essa é uma ideia bem estúpida, desculpa. Você nem me conhece direito e—
Fui interrompido quando segurou minha mão sobre a mesa, trazendo meu olhar para si.
— Obrigada por se oferecer para me ajudar, mas não quero te colocar nessa situação.
— Em qual situação? Ajudar uma mulher linda a ter algumas fantasias eróticas legais? — mordeu a ponta da unha, ponderando minha oferta. Meu coração batia acelerado enquanto cada segundo parecia se converter em horas, até que ela sorriu.
— Vamos começar pequeno, que tal? — ela ofereceu, e pude jurar que engrenagens passavam em sua mente com força total. — Eu preciso escrever uma cena muito específica. Aparentemente, eles transaram no Ibirapuera uma vez.
— Você quer transar no Ibirapuera? — exclamei. riu, mas negou.
— Não. Eu só quero ir ao lugar e imaginar como foi. — Fiz uma careta massiva, imaginando como é analisar a cena do crime, no caso, a cena da transa, e se imaginar ali.
, como sempre, continuava piradinha da cabeça. Ela falava sobre os mais diversos assuntos normalmente constrangedores com facilidade absurda, algo que sempre me fascinou, apesar de me chocar às vezes.
— E como eu posso te ajudar? — perguntei desconfiado.
— Se você quiser, pode ir comigo e me ajudar com a perspectiva masculina.
— Como eu faço isso? Eu escrevo?
— Você gosta de escrever? — perguntou com curiosidade. Neguei com a cabeça.
— Só poesias bregas no ensino médio, mas não escrevo mais.
— É, eu lembro das suas poesias — ela comentou sorrindo. Não pude controlar o choque.
— Lembra?
— Sim. Não lembro especificamente, mas lembro. Bem, de qualquer forma — desconversou—, o que acha? Entendo que seja loucura e tudo mais, mas…
— Topo! — aceitei rapidamente.
As coisas que eu faria por uma moça bonita… Nunca me assumi como gado, mas aquilo estava prestes a mudar. A diferença é que eu não me sentia mal com aquilo, não mesmo. Por isso, quando sorriu e me encontrou no parque Ibirapuera na semana seguinte, tive certeza de que havia tomado uma decisão muito divertida.
Que as cartas eróticas começassem!


Fim.



Nota da autora: Ora, ora, mais uma fanfic! Essa é só um gostinho da longfic que continua depois daqui: P.A.! Para acessar a fic, é só entrar no link ali embaixo em "outras fanfics".
Vejo vocês lá, beijão ;)





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