DEPOIS

— Dois dedos de bainha devem servir — murmurou a costureira para si mesma. Ajoelhada e debruçada sobre os pés da elegante mulher vestida de branco, segurava com a ponta dos dedos o tecido fino de cetim.
— Para aprontar quando? — a noiva perguntou, apreensiva.
— Hoje à noite, no máximo. Você consegue vir provar mais uma vez?
Com o coração contorcido, Antonella olhou para o teto antes de voltar sua atenção à costureira Sílvia. Queria dizer-lhe que seu casamento era em três dias e que essa bainha deveria ter sido feita antes. Também queria dizer-lhe que já tinha um compromisso agendado para aquele dia — sua despedida de solteira. Ainda assim, como se estivesse se policiando para não deixar que grosserias escapassem por conta de seu aparente nervosismo com o casamento, Ella calou-se e permaneceu com os olhos postos sobre Sílvia.
— Ela consegue — a voz da terceira mulher presente no cômodo tornou-se audível. — Que horas você precisa, Sílvia?
Saindo da cabine do lado, usava um vestido lilás de alças finas, rente ao corpo. Após percorrer a cintura da mulher, o vestido tornava-se mais folgado e descia até o chão. Pequenos bordados em tons de roxo escuro trilhavam um caminho lateral pelo tecido.
— Hum — Sílvia ponderou, pressionando com os lábios um pequeno alfinete. Para falar, a mulher segurou o objeto com os dedos —, às oito horas… Acredito. Sim, acho que pode ser às oito horas.
— Estaremos aqui —murmurou , sorrindo em direção a sua melhor amiga.
Antonella revirou os olhos, afrouxando os cantos da boca em um pequeno sorriso e mirou seu olhar para o espelho. Um curto suspiro escapou de seus lábios quando deu-se conta de que iria se casar. A mulher mordeu a parte interna das bochechas e voltou a olhar para , que sustentava o sorriso cúmplice.

***

— Não posso nem acreditar — Ella esbravejou e, em seguida, deu uma lambida agressiva na bola de sorvete que enfeitava sua casquinha de baunilha. A dupla estava sentada em uma das mesas do Centro de Alimentação da Praça Central, saboreando o sabor de seu sorvete preferido em todo o mundo: mamão com abacate. A mãe de as tinha levado à sorveteria do Quiosque quando ambas tinham nove anos — nove anos e onze meses, Ella sempre acrescentava ao contar a história. E desde então aquele se tornara seu ponto de paz em meio ao centro caótico da cidade. Mesmo com quinze anos tendo se passado, ali estavam.
— Fica tranquila, Ella. Vamos ter tempo de tudo — a morena murmurou, tranquila. — Até mesmo de te embebedar esta noite.
— , eu já disse que… AH! — o suspiro reprimido escapou dos lábios da noiva e um pouco de sorvete desceu gelado por sua garganta, fazendo com que uma tosse doída começasse. Seus olhos encontraram um ponto fixo, na linha do horizonte, e nem mesmo piscavam.
, preocupada com o que poderia ter assustado a amiga, procurou ao redor pelo menos um rosto familiar ou um acontecimento extraordinário. Todavia, a vida parecia a mesma, sem grandes acontecimentos. Por isso, posicionou novamente seu tronco de frente para Ella.
— Ella?
— Você não sabe — a loira respondeu e comprimiu os lábios em uma linha fina. Uma profunda inspiração passou por suas narinas. — Você vai me matar.
— O que aconteceu? — tornou a questionar. Ella, naquele momento, já encarava seus olhos, ainda que as pálpebras continuassem ligeiramente levantadas em sinal de susto. — O que você fez, Antonella?
— Por favor, entenda: não foi intencional. Eu nem mesmo sei… Nem mesmo sei como contar isso. Bem, pois é. Na verdade, eu não sei como deixei chegar tão perto da data e agora, bem, agora já é amanhã.
— Antonella — o tom sério de fez com que a noiva ajeitasse sua postura no banco de madeira antes de engolir em seco. Houve um momento de preparação para, então, dizer:
— Ele vai estar lá.
— Quem, Ella? Quem vai est…
Qualquer pessoa que estivesse prestando atenção no diálogo teria tido a oportunidade de ver a cor do rosto de - sempre bronzeado - sumir conforme as letras embolaram-se na ponta de sua língua, sem jamais escaparem para fora de seus lábios.
— Não — murmurou.
— Sim — Ella respondeu, engolindo em seco a risada nervosa que queria soltar. Era sempre assim quando enfrentavam um momento tenso: comprimia suas sobrancelhas e seus olhos ficavam tão espremidos a ponto de formarem apenas uma fresta na qual poderia se enxergar suas brilhosas íris cor de caramelo. Ella, por sua vez, arregalava os olhos azuis de maneira a formar uma imensidão de branco e claro; seus lábios tornavam-se frouxos e risos desesperados ecoavam por ali.
— , me desculpa! Eu queria contar antes, é só que… Eu achei que você não fosse querer ser minha madrinha e aí…
— O que uma coisa tem a ver com a outra? — interrompeu a fala da amiga para perguntar. Em sua voz, o tom de acusação marcava cada palavra.
— Eu e o Digo… Bem, nós achamos que… Você sabe, né? Eles são inseparáveis e… Bem, nós também… — a voz de Antonella foi se tornando mais baixa a cada palavra proferida, até que nenhum som mais saísse de sua boca.
— Não existe, Ella, a menor chance de eu fazer par com ele, entendeu?
A noiva balançou a cabeça.
— Eu preciso que você diga que entendeu.
— Eu entendi, é só que…
— Ella! — a repreendeu. — Por favor.
— Tudo bem, tudo bem — a loira rendeu-se, mordendo a parte interna de suas bochechas. — Eu entendi.
A morena, entretanto, não sentiu o nó que formara-se em seu peito diminuir, como pensou que aconteceria. Sentia-se nervosa, de qualquer forma. Há quanto não pensava nele?, a pergunta a incomodava. Em algum lugar do cérebro de , um pequeno estalo lhe entregava a resposta exata: quarenta e três dias, trinta e sete horas e vinte e dois minutos desde o último pensamento — provavelmente, fora quando encontrara a mãe do rapaz no supermercado.
Como você está, ? O , ele…
Lídia, me desculpe, eu realmente preciso ir.
Ainda que racionalmente tivesse feito questão de esquecer os encontros e os números, seu coração parecia ainda lembrar bem como descompassar na simples menção do homem.
— O que acha, ?
— Oi? — a morena balançou a cabeça, percebendo que havia deixado passar a última fala de Ella.
— Eu perguntei o que você acha de, talvez, ser o par do Ícaro durante a cerimônia.
— Eu acho que sim. Quero dizer, oito meses é tempo suficiente para entregar-me algum tipo de dignidade.
Antonella sorriu, verdadeiramente sentindo-se um pouquinho aliviada.
— Me desculpe — murmurou mesmo assim.
— Esqueça, Ella. Vocês são amigos e isso é… Vocês são amigos, né? É totalmente compreensível.
— Sim — a noiva respondeu. — Pois é.
Houve um silêncio precedido de um suspiro por parte de . Ela voltou seu olhar ao sorvete de abacate, que mais parecia um suco de abacate boiando dentro do potinho cor-de-rosa.
— ? — a amiga levantou os olhos em resposta — Você nunca perguntou, nem mesmo me deixou falar, mas, se quiser saber, perguntou de você todas as vezes em que estivemos juntos. Sem excessão. Inclusive ontem.
Uma súbita vontade de chorar atingiu , fazendo-a ter vontade de rir. Era quase ridículo ainda querer liberar uma única lágrima por uma situação tão boba. Sentiu-se cansada, então, de ser resistente. Assim como se não conseguisse controlar as próprias cordas vocais, deixou com que as palavras voassem para fora de seu peito:
— Eu quero saber, Ella… O que ele disse?


ANTES

arrumava suas máquinas por ordem de uso: primeiro as de bobina e depois as rotativas. Ao lado, a morena colocou sua copiadora térmica e três opções de tinta - preto, azul escuro e branco. Ela limpava a cadeira com um pano molhado de álcool quando ouviu as vozes masculinas adentrando a sala.
— Ei! — um dos meninos apontou — Você não é o Digo.
sorriu em resposta, sentindo o coração acelerado.
— Culpada. Me chamo , na verdade. Estou trabalhando com o Rodrigo desde que retornei do Canadá — tendo dito isso, a menina estendeu a mão na direção do garoto que a havia estranhado. Seus cabelos eram ruivos e formavam pequenos cachos no topo da cabeça. Para dar-lhe um ar ainda mais sapeca, uma quantidade observável de sardas pintava-lhe as bochechas e o nariz.
Os outros dois meninos cumprimentaram com um aceno de cabeça. Um deles usava uma camiseta preta do Led Zepplin de mangas curtas e tinha cabelos bem pretos e a pele bem branca. Quando direcionou seus olhos para o terceiro, quase arrependeu-se. O coração já nervoso pelo habitual trabalho descompassou pela segunda vez; o garoto de pele escura e olhos amendoados a encarava intensamente. A tatuadora limitou-se a sorrir e pigarreou, antes de questionar qual deles era o .
— O nosso nenê aqui — o segundo menino se pronunciou, apoiando as mãos sobre os ombros do dono dos olhos intensos — quer fazer uma tatuagem.
— E precisa ser fenomenal — o ruivo prosseguiu. — Eu ainda voto por algo relacionado à banda.
— Eu já disse que…
— Que não quer nada relacionado à banda, sim, já sei. Só estou dando minha opinião.
— E eu a estou recusando — após ter dito isso, o garoto sacudiu a cabeça e olhou para com um sorriso tímido. — Me chamo . Desculpe, nem nos apresentamos. Este é o Ícaro — o moreno, ao seu lado — e esse o Ron — apontou para o ruivo.
sorriu, torcendo para que suas bochechas não corassem sob o olhar penetrante de . Mesmo sem perceber, os dois encaram-se por algum tempo, os olhos fixos sobre as feições um do outro, gravando todos os pequenos detalhes passíveis de observação.
Com um leve balanço de cabeça, expirou o ar contido em seus pulmões e mexeu-se. Buscou suas pastas e direcionou-as aos três meninos, a fim de compartilhar alguns trabalhos já realizados. Enquanto conversava com empolgação com Ron - que estava admirado com a espessura fina do traço da garota -, a observava longe da bagunça dos amigos. Os traços delicados do rosto da tatuadora faziam com que um simples descompasso surgisse no coração do músico. Quando for a pessoa certa, você vai saber!, lembrou das palavras do pai. E mantenha em mente, garoto: se não estiver disposto a ser um tolo, não merece se apaixonar. sentia-se como um tolo, de fato, ao encarar , que esperava dele uma resposta a respeito do desenho. Poderia apenas dizer-lhe que era a menina mais bonita que já vira na vida?

***

— Ficou incrível! — exclamou, olhando para o desenho que agora estava marcado em sua pele. No canto inferior esquerdo do abdômen, uma águia em traços finos e precisos fora desenhada.
Desde o dia em que estivera no estúdio para escolher o desenho com Ron e Ícaro, já havia retornado duas vezes por conta de sua indecisão. Finalmente, na terceira vez, optara pelo desenho de uma águia forte e imponente. Na mitologia, é o símbolo de Zeus, o mais poderoso dos deuses, explicara aos amigos, que insistiam por alguns rabiscos aleatórios.
— Sabe — murmurou, tentando ao máximo fitar apenas o desenho e não o restante do corpo de —, a águia representa coragem e força. Foi uma ótima escolha.
— Deixe-me te recompensar — o menino respondeu. , que aplicava o plástico filme sobre o pedaço de pele sensível, parou o que fazia e fitou-o sem esboçar reação. Dizer que seu coração batia rápido era eufemismo, o músculo estava para hipertrofiar de tanto que trabalhara nos momentos que dividira com .
— Você já pagou — ela fez graça.
— Pelo trabalho, sim. Mas me refiro a companhia. Você gostaria de jantar comigo?
— Ah — o murmúrio escapou pelos lábios de .
Ambos permaneceram imóveis, um olhando na direção dos olhos do outro. Poderiam, com certeza, se beijar naquele momento. Ainda assim, apenas assentiu, aceitando o convite, e os dois despediram-se com um abraço.
, que já estava quase no terceiro degrau da escada que levava para a rua, deu meia volta e contornou seu caminho até . Ao chegar perto da menina, deixou um beijo suave - marcado pelo cheiro de menta do chiclete que mascava -, sobre o canto esquerdo dos lábios da tatuadora. Sem conseguir controlar o sorriso estampado em sua face, o músico enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans e caminhou, dessa vez com convicção, para fora do estúdio.

***

— Basicamente, é isso — finalizou, depois de passar os quinze minutos anteriores explicando o caminho nada básico de formação de sua banda com os garotos. soltou uma risada divertida, antes de beber um gole de seu suco de laranja.
— E vocês cantam que tipo de música?
Os dois estavam sentados um de frente para o outro em uma das mesas disponíveis do Convés. insistira em levar àquele restaurante ao descobrir que a garota amava hambúrguer, mas jamais experimentara o de lá. É o melhor, você vai ver, foi o que dissera.
— Por enquanto, de tudo. Não temos lá muita escolha. Mas o nosso estilo preferido é uma espécie de rock suave.
Conversaram, então, sobre Rodrigo e Antonella — Digo era amigo de e Ella, de . A única questão que rondava a mente dos dois era: como não haviam se conhecido antes?
— Ela que me apresentou ao Digo quando retornei — contou. — Fizemos alguns trabalhos juntos e ele me convidou para o estúdio.
— Que bom que ele fez isso — murmurou, não querendo nem mesmo imaginar o que seria não tê-la conhecido.
— É… — a voz de tornou-se cada vez mais baixa. E mais um daqueles silêncios constrangedores “pré-beijo” aconteceu. Aconteciam o tempo todo, ambos sabiam, desde o momento em que o casal se olhou pela primeira vez.
pigarreou e desviou o olhar, encontrando o garçom, que trazia consigo os lanches pedidos.
— Meu Deus! — a garota exclamou — Esse hambúrguer valeu minha vida inteira.
soltou uma risada breve em resposta.
—Você tem o quê? Vinte e três anos? Como pode saber sobre a vida inteira?
— Eu simplesmente sei, — de risadas para uma feição séria, adquiriu um falso tom de seriedade em sua voz. — Essa é uma expressão muito importante, entende? Você só pode usar quando tem certeza absoluta.
— Certeza absoluta de quê?
— De que valeu a vida inteira.
— Mas como eu vou saber? Como eu vou saber sobre as partes da vida que ainda não vivi?
— Você vai saber — a garota sorriu, como se estivesse compartilhando um segredo sobre as verdades do universo. — Acredite.
sentiu vontade de dizer que sabia. Que soubera desde o momento em que a vira pela primeira vez, sorrindo tímida e conversando com Ron. Ainda assim, apenas sorriu em resposta, lembrando novamente das palavras de seu pai.
— Eu acredito, .

DEPOIS

— Não diga nada — reclamou.
— Eu não iria dizer… — Ícaro defendeu-se, soltando uma risada em seguida. Os dois encontravam-se juntos, de braços dados, esperando o momento certo para entrar pelas grandes portas da igreja.
— Sim, você iria. E mais: eu não quero saber.
— Eu só iria comentar que vocês estão usando a mesma pulseira.
sentiu o ar sumir de seus pulmões. Como havia esquecido de tirar a maldita pulseira?, martirizava-se. Pensara nisso tantas vezes que, na hora de realmente fazer, esquecera-se.
— Você acha que ele percebeu? — questionou, afoita.
— Se eu acho?! — Ícaro riu — Meu bem, eu tenho é certeza absoluta. Do jeito que ele é louco por você… Não existe nada que ele não repararia.
— Quer parar com isso, Ícaro? — reclamou — Você age como se nós ainda fôssemos aquela coisa.
— Vocês podem não ser mais namorados — o garoto pronunciou a palavra devagar, fazendo com que a amiga revirasse os olhos —, mas ainda se gostam!
— Pelo amor de Deus, você pode falar baixo? A gente via entrar em um casamento e… Meu Deus! A gente vai entrar em um casamento. Ella vai casar!
— Isso é estranho, não é? E pensar que ela só namorou o dia a vida inteira… Coitada!
— Ícaro! — o repreendeu, mas deixou escapar uma pequena risada.
A filha de casais começou a andar e a garota sentia seu corpo retesar em nervosismo. Desejou que não tropeçasse durante o caminho, que desse tudo absolutamente certo, e agarrou de forma certeira o braço de Ícaro.
Depois de percorrerem todos os bancos lotados de pessoas conhecidas, as madrinhas separaram-se de seus pares, ficando frente a frente com os garotos, ainda que distantes. Por algum erro matemático ou alguma armação do destino - talvez, apenas por causa de mais uma da brilhantes ideias de Ícaro -, ao invés de ficar frente a frente com o seu par, tornou a encarar , que permanecia alguns passos a sua frente.
Ainda que quisesse prestar atenção integral na cerimônia, ou que quisesse admirar a beleza exuberante da amiga vestida inteiramente de branco, seus olhos insistiam em escapar para o “lado de lá”.
Era como se possuísse um grande ímã que a atraía sem piedade. Ele está bonito, constatou a garota. Bonito, elegante, charmoso… Uma série de elogios cruzava os pensamentos de .
Do outro lado do altar, as mãos de suavam como nunca. seguia sendo a mulher mais bonita com quem já cruzara em toda a sua vida - eram raros os dias em que não se pegava penalizando-se: como deixara-a escapar? Contudo, torcia para que a sorte virasse o jogo a seu favor: daquele noite em dia, não passaria mais os dias rendido ao remorso; aquele seria o último.
Sentindo o olhar quente da tatuadora sobre si, esboçou um pequeno sorriso - quase convencido - em sua direção. Um sorriso mínimo, uma movimentação inexistente aos olhos do público, e ainda assim enorme sob os olhos de . Em resposta, a garota fez aquele gesto que havia se tornado tradição no que dizia respeito a : revirou os olhos. Em segredo, sentia seu coração descompassado, como de costume quando na presença dele.
Foque na cerimônia, , orientou a si mesma.

ANTES

— Tente mais uma vez — murmurou, incentivando o pequeno menino em seu colo a assobiar. Estava na casa de , com seu sobrinho sentado sobre suas pernas, e os dois brincavam com os sons que saíam de seus lábios.
— Pode fazê de novo, tia?
respirou e, ao expirar, emitiu uma melodia simpática de assobios. O garoto, Kieran, tentou imitar. Durante a tentativa do pequeno, chegou com passos mansos, acariciando os ombros da namorada.
— O que estão treinando? — perguntou.
— Eu e a tia fizemos uma modia! — sorriu em direção ao namorado com as palavras de Kieran. Foi uma questão de segundos; logo estava sentado ao lado dos dois, com os dedos entrelaçados aos de , aprendendo a melodia criada pela dupla.
— Ei, Kieran, vamos para casa? — a irmã de surgiu na sala, já indo em direção ao filho, que ameaçou começar a chorar. Mesmo com muita insistência contrária por parte de Kieran, a cunhada de conseguiu levar o filho para casa, deixando o casal para aproveitar a própria companhia.
Uma vez que estavam sozinhos, sentados sobre o confortável sofá azul-púrpura da casa do músico, respirou fundo. Sentia-se levemente cansada por ter passado tanto tempo entretida com o pequeno garoto, ainda que aquela fosse uma de suas atividades favoritas. Olhou na direção do namorado e encontrou-o a fitando. Os lábios de delineavam um tímido sorriso - natural, como ele mesmo costumava chamar -, que contagiava sua feição por completo: da suave curva de sua boca, estendia-se uma admiração que lhe deixava com as bochechas quentes e um brilho intenso nos olhos. Sustentou o olhar da namorada, sem dar a menor atenção a expressão divertida de dúvida que carregava. O garoto mostrou-lhe a língua, como fazia de costume, e murmurou um “eu te amo”. As sobrancelhas de relaxaram e seus olhos fecharam-se rapidamente, apenas por um instante, antes de abrirem-se novamente, repletos de amor. Direcionou-se de maneira ainda mais intensa e respondeu: eu também te amo.
— Eu estava pensando — começou . — Acho que poderíamos pedir alguma coisa para comer.
— É uma ótima ideia, neni. Estou com preguiça de cozinhar, sinceramente.
— E eu também — o músico soltou uma leve risada. — Que tal nosso prato do Kin Khao?
— Perfeito!

***

— Por favor — pediu , com a boca levemente cheia de comida —, dê um pause. Não consigo comer e assistir ao filme ao mesmo tempo. A não ser que voc…
— Não — interrompeu o namorado, já imaginando onde a conversa os levaria. — Não vamos assistir dublado.
— Neni, mas eu não consigo acompanhar as frases e fincar a comida com o garfo. Ou olho para a tela ou para o prato; os dois não dá.
— A melhor parte do filme são as entonações do Leonardo DiCaprio. Não podemos perder isso, amor.
suspirou, tomando um gole de chá gelado.
— A gente pode terminar de jantar primeiro — sugeriu, rendendo-se. Enquanto observava a namorada, sentiu vontade de sorrir mais uma vez. Depois de ter a conhecido, sua vida se tornara assim: sorrisos perdidos, sorrateiros, que chegavam e instalavam-se em sua face, como se tivessem sido ali costurados; como traços herdados de nascença.
Ao sentir o olhar de queimando sobre si, o fitou e um pequeno riso escapou de sua garganta.
— Vem cá — ela pediu. — Você está sujo aqui.
deixou seu prato já vazio de lado e aproximou-se, com o coração acordado. Ao sentir o toque suave de no canto de sua boca, fechou os olhos e esperou. Já sabia o que viria - eram raras as vezes em que a tinha assim, tão próxima de si, e não era surpreendido por um beijo.
Assim como fora previsto, aproximou os lábios dos do namorado e dedilhou um carinho gostoso em sua nuca. Praticamente sem olhar - a sensação era de que desviar os olhos de seria perder um daqueles momentos preciosos -, a garota deixou o prato, os talheres e o copo no chão. Estendeu as mãos em direção ao pescoço do garoto e enlaçou-o carinhosamente. O músico aceitou o aconchego e direcionou suas mãos para a cintura da namorada, onde deixou um aperto suave. Estavam em plena melodia, dividiam as mesmas sensações. As peças de roupa começaram a compor um quadro abstrato sobre o chão da sala: encontravam-se de maneira aleatória, entre as taças e o amor palpável que começava a se formar no cômodo.
— Não sei como você consegue — murmurou e resmungou ao colocar a cabeça embaixo da água. O shampoo escorria por suas costas enquanto o menino sentia a pele pinicar pela temperatura da água.
Um riso curto escapou dos lábios de ao passo que ela se juntou ao namorado embaixo da água.
— Não sei como você consegue tomar banho com a água congelad… Ah!
— O que houve, neni?
— A comida… Ficou no chão. A gente esqueceu.
demorou dois segundos para relembrar-se dos pratos sobre o sofá e o tapete da sala.
— A gente se distraiu — ele soprou, fazendo uma careta logo em seguida.

***

— Apenas me dê mais um beijinho — a súplica viera em cochicho.
— Ah, amor! — reclamou em brincadeira. Virou-se de lado, a fim de encarar o rosto cansado do namorado.
— Eu gosto do gosto da sua boca… Assim, antes de dormir.
— Tem gosto de pasta de dente?
— Não! — se defendeu, abrindo os olhos para olhar para a namorada — Não, não é esse gosto. É um gosto seu, mas é diferente do resto do dia. Apenas me dê mais um beijinho…
—Hum. Vou pensar no seu caso.
— Pense com carinho, sim?
O dengo fez efeito em , que sorriu em resposta às graças de . Ela estendeu seu corpo, apoiou-se sobre o peito do namorado e deslocou seus lábios até que pousassem sobre a boca do namorado.
Que não seja um sonho, pedia internamente ao olhar para os olhos castanhos do garoto. E se for, que eu não acorde nunca mais,. DEPOIS A cerimônia passara devagar. dividia-se entre estar presente e encontrar-se divagando, tentando evitar pensamentos que misturassem a imagem de e o próprio altar.
De vez em quando, naqueles segundos em que esquecia-se de controlar a si mesma, pensava: poderíamos estar ali e sentia seu próprio coração contorcer-se em tristeza. Nesses momentos, tratava de pensar em qualquer outra coisa; o vestido de Ella tinha trinta e seis flores pequenas bordadas, havia contado. O padre mexia as sobrancelhas toda vez que pronunciava a letra “E”. Digo balançava os ombros a cada dois minutos em puro sinal de nervosismo — pelo menos foi o que supôs.
Observando quase tudo que acontecia, apenas fazia questão de ignorar certo par de olhos castanhos, que fazia questão de permanecer pousado sobre a garota. sentia sua pele queimar, poderia desaparecer pela intensidade que emanava do olhar de .
Enganchou-se, então, em Ícaro para descer do altar. Depois, escorou-se em Rita para ir até o carro. No salão de festas, dançou com Ella e conversou com Ron. Riu com Digo e debateu sobre filhos com Eliane, a mãe da noiva.
era boa em ignorar . Apenas não era tão boa assim em distrair seu coração, que insistia em se apertar ao observar o músico conversando com Madalena.
A garota sentou-se, então, em uma das cadeiras. Sua testa estava suada e seus pés já não lembravam o que era estar de sapato, visto que os deixara sob a mesa assim que a pista de dança fora aberta. Respirou fundo e tomou um gole de água.
— Eu quase não te achei aqui.
O corpo da tatuadora reverberou por inteiro. Que passassem os anos, que trocassem as estações; aquela voz sempre a faria sentir em plena primavera. Permaneceu de costas para o dono do timbre grosso e apenas balançou os ombros. Disfarçava bem. jamais imaginaria que tamanho descaso escondia um coração acelerado e ansioso.
— … Neni…
fechou os olhos ao ouvir a voz mansa, chamando-a por aquele apelido tão íntimo que tinham tempos antes. Respirou fundo e levantou-se. Ao contrário do que temeu que aconteceria, não foi embora. Permaneceu de costas por mais um ou dois segundos — que pareceram a própria eternidade para o músico — e então virou-se.
Respirou fundo ao vê-lo. Desejou tocá-lo, mas não o fez.
— Se eu te pedir uma coisa — murmurou —, você faz?
Ele estava lhe pedindo um favor?!, quase riu em deboche. Era uma piada, certo? Um favor?! Os olhos da tatuadora se reviraram quase que automaticamente.
— Não — garantiu.
— E se for algo legal? — insistiu — Algo que você precisa, mesmo que ainda não saiba.
— Do que você precisa? — resmungou, cruzando os braços. Irritava-a a maneira com a qual falava. Como se ainda fossem alguma coisa; como se ele ainda soubesse do que ela precisa.
— Apenas de que venha comigo — o músico lhe respondeu, sem conseguir conter a felicidade estampada em seu rosto. Caminhou em sua direção, diminuindo os passos que os separavam, e entrelaçou seus dedos. A forma natural com a qual havia feito aquele gesto a apavorou — de uma maneira excitante. Ao sentir os dedos calosos misturados aos seus, percebeu como sentia saudade. Mais do que sequer imaginara.
— Fique por aqui, tudo bem? Depois conversamos.
a posicionou em algum lugar no meio do salão, de frente para o pequeno palco. Ao ver-se sozinha, a tatuadora sentiu vontade de gritar. Aquele era o casamento de sua melhor amiga e sentia-se no direito de atrapalhar?! Estava mesmo passando por isso?
cruzou os braços na altura do peito e suspirou. Deu meia volta para marchar em direção à cadeira novamente e chocou-se com o corpo de Ícaro.
— Fique aqui, ratinha. Nem um passo, entendeu?
Ao perceber que existia algo para acontecer, seu coração se atrapalhou. Foi como se tivesse engolido uma das pulsações e não sabia mais onde encontrá-la: seu corpo inteiro vibrava melodicamente em ansiedade.
assistiu do lugar Ícaro subir ao palco e posicionar-se atrás dos tambores da bateria. Viu de longe a movimentação de Ron, que encaixou-se ao baixo. E enxergou, por fim, aparecer, carregando a guitarra pendurada em seu corpo, e posicionar-se atrás do microfone.
De longe, sentia suas mãos tão molhadas de suor que, por um momento, duvidou que seria capaz de segurar as notas. Seus pulmões pareciam comprimidos por falta de ar e nervosismo. Olhou por uma última vez para os olhos perdidos de , quase escondidos pelos outros convidados do casal. O músico dedilhou, então, os primeiros acordes da música; e sorriu ao começar a assobiar a melodia que construíra com Kieran tanto tempo antes.
A menina, por sua vez, descruzara os braços. Tinha lágrimas escondidas sob os cílios postiços e olhava fixamente em direção ao palco, apenas para ver cantar.
— Hoje lembrei do seu amor… Hoje lembrei de coisas que eu nunca esqueci. E como poderia? Se você me marcou pela vida inteira — o músico soltou uma das mãos da guitarra para levá-la à barra da camisa social que vestia, levantando-a e revelando a tatuagem feita por .
Os amigos que conheciam o antigo casal riram empolgados; Ella soltara um pequeno grito e estava empoleirada nos ombros do recente marido.
— Hoje lembrei do teu sabor… Do gosto da tua boca antes de dormir. Tanto te conhecia e você despertou tudo que eu sentia! Não há chance de apagar, deixa demorar, lembrar você é bom demais, vivemos tanta coisa! — todos cantavam o refrão juntos, com emoção, deixando para a frase seguinte. — Tanto pra acertar… O tempo pra curar a mágoa que ficou pra trás… Valeu minha vida inteira!
Da plateia, já havia esquecido de que um dia estivera brava com — nem mesmo lembrava o porquê de tê-lo ignorado. Sentia seu peito expandir rapidamente, juntamente com algumas lágrimas que insistiram em cair, percorrendo o caminho de seus olhos até o queixo.
— Hoje lembrei do teu calor… Do nosso banho quente, de coisas que escrevi. Juras e poesia… No espelho embaçado você fervia. Na parede o suor, no teu corpo o meu. Pelo chão o jantar que a gente esqueceu… Entre roupas e taças, a nossa loucura!
Pelo salão, todos divertiam-se. Ella já havia abandonado o marido e agora abraçava a amiga, certeira de que havia escolhido corretamente ao aceitar a ideia de .
A banda entoou o refrão mais uma vez e, então, apenas poderia ser ouvido. O rapaz dedilhava suaves acordes e sentia vontade de explodir em satisfação — principalmente ao enxergar o sorriso teimoso que escapava pelos lábios de .
Emocionado, murmurou:
— Valeu minha vida inteira…

Nota da autora: Espero que vocês se divirtam tanto lendo quanto eu me diverti ao escrever.


Nota da Scripter: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

Essa fanfic é de total responsabilidade da autora, apenas faço o script. Qualquer erro, somente no e-mail.