Capítulo Único
Direita, uma mão embaixo do travesseiro, joelhos dobrados. Nada.
Esquerda, mãos ao lado do corpo, pernas esticadas. Nada.
Fosse de barriga para cima, de lado, ou de bruços, simplesmente não conseguia dormir. Sequer saberia dizer se sentia realmente sono ou só estava totalmente cansado daquilo tudo. Revezava entre tentar dormir e colocar várias cápsulas de cappuccino em sua máquina Nespresso comprada usada em um aplicativo de vendas. E, sim, ele sabia bem que isso não ajudaria nada em sua tentativa de fechar os olhos por algum tempo com alguma efetividade.
Sentou-se na poltrona reclinável da sala e esticou o corpo de forma desajeitada, abrindo o livro que estava jogado nas prateleiras da estante em uma página qualquer, decidido a se manter ocupado de qualquer forma. Avistou um título conhecido e leu o poema já tão batido que saberia declamar a qualquer instante:
“Todas as cartas de amor…
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)”
Parecia que algum ser superior do Universo estava apontando um dedo enorme em seu rosto, rindo com muito gosto de sua desgraça. Pensava em suas próprias “cartas de amor”, desde declarações enormes no Whatsapp em momentos de imaginação aflorada na madrugada, até bilhetes tortos em pequenos post-its laranja neon colados em capas de livros ou embalagens de DVDs pirateados. Se no momento parecera clichê, agora só parecia idiota e – como o próprio Fernando Pessoa, seu grande parceiro, dizia – ridículo.
Ainda não acreditava em nada daquilo e não tinha coragem de olhar para a foto ao lado da televisão, mesmo que também não tivesse força alguma para tirá-la de lá. Os cabelos curtos cor de grafite continuavam emoldurando aquele sorriso até um tanto assustador e desproporcional de tão grande. As unhas roídas que grudavam em seus braços eram estranhamente conhecidas, permitindo que ele sentisse aquele leve aperto que arranhava sua pele.
Era tudo recente demais, estranho demais e incompreensível demais. Foi tudo tão súbito que ele não percebeu quando se foi, mesmo que a essência tivesse se esvaído muito antes do aviso formal. Não tinha lá muita certeza se fora sua própria comodidade ou o medo do vazio que sentia que tinha sido o responsável por aquela cegueira súbita.
Sabe aquela sensação de que tudo está incrivelmente bem só porque parece estar encaminhada dentro dos eixos? Sabe quando de repente o trem sai dos trilhos e atropela as cinco pessoas do grande dilema filosófico sem nem lhe dar a chance de pensar sobre o assunto? Era isso que sentia: estava tudo certo, até que tudo estivesse completamente errado.
Foram semanas ansioso para vê-la em seu vestido de noiva, controlando-se para não interromper os momentos de prova e destruir aquela crença que o proibia de ver o traje antes do casamento. Agora, nunca mais veria o vestido, a renda em tons de branco e champanhe, o buquê ou a aliança dourada com um discreto diamante encrustado no topo do aro que gravava o nome “Michelle” no metal gelado.
Fazia exatamente uma semana que a publicitária de pixie cut havia abandonado seu noivo no altar, deixando apenas um bilhete escrito às pressas em um bloquinho de notas com o selo de uma marca gráfica qualquer. Pedira que a madrinha do noivo lhe entregasse o papel e simplesmente deu as costas à cerimônia antes mesmo de adentrá-la. No mesmo carro que tinha chegado até ali, entrou e sumiu no mundo para ser feliz em outro canto com alguém que ela devia amar de verdade.
sentiu o já tão comum aperto no peito ao se lembrar de como aquela carta de pseudoamor – um amor que se fora, ou que talvez nunca tivesse sequer existido além das palavras – era o maior exemplo universal de uma nota ridícula.
“ Meu querido ,
Preciso, antes de tudo e de qualquer coisa, pedir perdão. Se pudesse evitar esse sofrimento antecipadamente, saiba que teria feito o possível para impedir esse caos e a sua provável incompreensão ao receber essa folha branca rabiscada. Não queria que as coisas tivessem que ser assim, mas, no ponto a que chegamos, infelizmente essa é realmente a opção menos estrondosa.
Não entrarei nessa igreja hoje e também não o farei na próxima semana, mês, ano ou qualquer outro momento. Não com você. E não, não é por petulância ou por achar que você não me mereça. Nunca me achei boa demais para você ou insuficiente. Só acho que para se dar um passo tão grande quanto um casamento, você tem que estar entregue de coração, corpo e alma àquele que você pretende ter ao seu lado pela eternidade.
Acredito que nós temos um carinho gigantesco um pelo outro e um respeito absurdo pela pessoa que somos e que nos tornamos lado a lado durante esses anos. Mas não acredito que o que temos seja realmente amor. Eu tive um grande amor na minha vida e, por obstáculos no caminho, acabamos separados. No entanto, nos últimos dias, a vida deu aqueles giros mirabolantes que nós não entendemos e nos uniu da forma mais inesperada possível. E, dessa vez, eu não posso deixar que isso escape pelos meus dedos. Pode ser minha última chance, pode ser que eu esteja me jogando de cabeça em algo que vai dar incrivelmente errado, mas eu não seria a Michelle que nós dois conhecemos se não arriscasse.
Acredito também que você conhece esse tipo de amor gigantesco e incondicional, mas provavelmente tem medo demais de admitir isso para você mesmo. Foram anos ao seu lado, . Aprendi muito sobre mim mesma, mas percebi coisas em você que talvez você mesmo não tenha percebido ainda. Mas esse amor inexplicável? Você tem. Espero que perceba há tempo e seja absurdamente feliz com ele porque você merece tudo. É uma das pessoas mais maravilhosas que eu conheço e te deixo hoje com a certeza de que você ficará melhor assim.
Seja muito feliz. Não desejo absolutamente nada além do melhor para você. Perdão por ter que fazer isso dessa forma, mas é para o nosso bem.
Com todo o amor do mundo,
Michelle.”
Nem Fernando Pessoa imaginaria um fim daqueles para um relacionamento de quatro anos que já tinha trocado chaves e até pesquisado preços de ração para a adoção de um novo membro peludo para a família. Agora, tudo que lhe restava era nostalgia e indignação em todos os heterônimos.
Largou o livro de qualquer jeito sobre a estante e desperdiçou bons minutos lendo todas as sinopses da sessão “Séries em alta” de seu perfil no Netflix, mesmo que soubesse de trás para frente definir Supernatural, Breaking Bad, Grey’s Anatomy em tantas outras.
Quando achava que se jogaria da sacada para não morrer de tédio, ouviu a campainha do apartamento tocar e ficou se perguntando se teria que receber mais um presente de casamento que não teria coragem de desempacotar.
- O que é agora? – Perguntou já abrindo a porta, esperando dar de cara com o porteiro que o encararia com um olhar de pena mais uma vez. Mas não foi isso que ele encontrou.
- É assim que eu sou recebida pelo meu próprio melhor amigo? Eu realmente não sei o que fiz para merecer isso. Vai ver eu colei chiclete na cruz – a moça disse, entrando no apartamento com várias sacolas nos braços e mãos. – Espero que não esteja com sono porque eu consegui folga no serviço amanhã, o que significa basicamente que vou passar a noite aqui e não estou te dando chance alguma de negar essa possibilidade. A decisão foi tomada e eu trouxe até sorvete. Três sabores diferentes ainda.
- , o que você está fazendo? – perguntou indo atrás da amiga que já estava colocando as compras na geladeira.
- Guardando o sorvete, oras. Se eu quisesse tomar sopa, eu faria uma com vários legumes e macarrão em vez de aguardar o meu lindo napolitano triplo chocolate derreter. Pedi a pizza no caminho, então deve chegar a qualquer momento. Vou te forçar a assistir a pelo menos uns dois filmes que você vai detestar e depois podemos conversar até tarde ou até nossas costas nos lembrarem que somos velhos demais para uma festa do pijama no sofá.
- Não, . Eu não estou no clima. A mulher com quem eu passei os últimos anos simplesmente foi embora largando uma carta e pedindo para você ser pombo correio desse sofrimento gratuito. Eu só quero ficar sozinho.
- Não, . Você está sozinho há tempo demais. Você precisa começar a seguir sua vida. Não tem como colocar seu pé para fora desse apartamento e simplesmente esquecer tudo que vocês tiveram, mas está na hora de você parar de tentar encontrar um culpado pelo seu sofrimento e começar a agradecer pelos bons momentos e aceitar que não era para ser.
“É uma merda que a Michelle te largou no altar? Ah, é uma merda gigantesca e nós dois sabemos bem disso. Acontece que uma hora ou outra você vai perceber que era o certo a fazer. O timing é uma porcaria, mas era melhor isso que um divórcio depois. Pelo menos assim vocês dois podem ser felizes. Até porque nós dois sabemos que o senhor sequer estava tão animado assim a firmar um matrimônio.”
bufou, soltando um palavrão quase como um muxoxo. Não importava o quão velhos eles ficavam; os anos iam e vinham e ainda saberia decifrá-lo a qualquer instante mesmo a quilômetros de distância. Era um dom adquirido pela mini-eternidade que gostavam de chamar de “amizade de infância”.
- Anda, tonto. Coloca uma comédia romântica qualquer e vamos conversar enquanto a pizza não chega. Tem tanta cápsula vazia de cappuccino nessa cozinha que eu tenho certeza de que vai ser uma longa noite.
A mulher colocou seu cardigan de lã marrom sobre o braço do sofá da sala, pisando na parte de trás dos sapatos para abandoná-los em um canto qualquer do tapete. A intimidade entre os dois dispensava até a famosa organização.
encostou a cabeça no ombro da amiga e se permitiu respirar fundo enquanto algumas finas lágrimas ainda escorriam por sua face. Deixava que as lembranças o invadissem como um tsunami avassalador na costa de um arquipélago.
Duas semanas atrás, ele diria que sua maior – e pior - desilusão amorosa havia sido o gigantesco fora que levara ao convidar uma veterana para sair com ele no primeiro ano de faculdade. Isso porque ele nem queria aquilo de verdade. Era apenas uma aposta, como um trote idiota entre jovens adultos que veem alguma diversão em brincar com os sentimentos dos outros quando isso envolve o grande exagero construído em torno da humilhação pública. Agora, parecia idiota ter se sentido mal com aquilo. Nada nunca havia machucado tanto.
tinha razão – por sinal, ela sempre tinha. Nos últimos quatro meses, permeados pelo desespero sem fim da organização do casamento – por que raios precisavam de tanta coisa afinal?! -, ele sentiu medo. Não era medo de ter uma aliança no dedo. Não era medo de se comprometer. Não era medo de ter oficialmente uma vida com alguém que talvez esperasse mais do que ele pudesse dar. Não era nada disso. sempre soube que queria casar e teve de ouvir vários colegas debochando disso, dizendo que, se o mundo estava cheio de mulheres, era para que eles aproveitassem quantas pudessem e não se prendessem a uma só pelo resto da vida. Eram esses mesmos caras que reclamavam sobre generalizações, afirmando duramente que nem todo homem praticava essa tal “objetificação”.
Mas não, não era nada disso. tinha medo de estar se precipitando demais. Sua verdadeira aflição e temor era sobre ter tomado a decisão certa com a pessoa errada. Olhava para o casamento incrível que seus pais mantinham por quase cinquenta anos – droga, ainda teria que começar a pensar no que fazer para suas bodas de ouro – e para a felicidade de sua irmã mais velha ao trazer ao mundo um pequeno garoto que viveu os dois primeiros meses na UTI devido a complicações gestacionais. Foram os dias mais difíceis da sua vida, mas ela tinha seu “namorido” (como gostava de chamar) ao seu lado. Eles eram tão felizes que às vezes faziam o rapaz pensar como raios alguém podia ver tanta alegria nesse mundo todo errado em que vivemos. Em divagações completamente sem sentido, havia cogitado que seu cunhado fosse, na verdade, um grande traficante mafioso que mantinha a si e a sua irmã sob efeito constante de tranquilizantes e alucinógenos. Talvez por isso a criança tivesse nascido prematura.
Mas não, novamente, não era esse o ponto. Os casais mais unidos e contentes de sua vida eram também os mais estranhos, isso era fato. Mas todos tinham algo de incrivelmente especial acontecendo entre eles. Algo que alguém de fora jamais poderia sequer tentar explicar ou decifrar.
Ele e Michelle, por sua vez, eram um casal normal: iam ao cinema uma vez por mês, mandavam mensagens de boa noite antes de dormir e se lembravam do aniversário do outro. Saíam para jantares, transavam e eram felizes. Mas às vezes parecia uma felicidade comum demais para quem desejava uma vida inteira. Era ótimo, mas não parecia ótimo o suficiente.
se virou de frente para o amigo, limpando as lágrimas que resolveram empacar nas profundas bolsas que já se formavam embaixo dos seus olhos. Sorriu ternamente, mostrando a covinha que marcava sua bochecha esquerda.
- Sei que seu coração está partido e seu orgulho ridiculamente ferido, mas nada nesse universo doido acontece por acaso. Com certeza, por caminhos tortos, vocês acabaram tomando a decisão que é melhor para os dois.
acabou concordando, lembrando que ouvira essa mesma frase de absolutamente todas as pessoas que tentaram consolá-lo: “Nada acontece por acaso”. Deu as costas para a mulher que sentava ao seu lado, ouvindo sua risada irônica ao entender perfeitamente o que ele queria: uma longa massagem nos ombros.
Enquanto deslizava os dedos pelo pescoço do homem à sua frente - fazendo questão de usar um pouco mais de força que o necessário em alguns momentos só para irritá-lo -, ela tentou começar uma conversa que sabia ser um tanto delicada, mas não poderia esperar mais. Ela também tinha lido aquela carta centenas de vezes e não conseguia entender como raios Michelle sabia de um suposto “amor verdadeiro” de quando ela mesma estava mais perdida que um náufrago solitário em uma ilha deserta qualquer. O pensamento ainda fez com que ela ficasse com desejo de água de coco.
- – começou, sabendo que era uma forma horrível de abordá-lo, mas sem conseguir pensar em algo melhor que ser direta -, você chegou a trair a Michelle?
- Eu vou fingir que nem ouvi essa pergunta idiota vindo logo da pessoa que mais me conhece nesse mundo inteiro. Qual é? Você sabe muito bem que eu nunca seria capaz de fazer algo desse tipo. Sempre fui adepto do famoso ditado “Não está satisfeito? Termine. Mas jamais chifre o próximo.”.
- Isso com certeza não é um ditado – disse rindo, feliz por ver que o bom humor do amigo queria começar a despontar novamente.
- Mas com certeza é uma máxima que todos deveriam utilizar. Tem coisa mais ridícula do que trair e depois dizer que é porque não estava contente com seu relacionamento? Se não está feliz, termine e liberte a pessoa para ser feliz também, em vez de machucá-la ainda mais.
A mulher fez uma careta para o amigo que logo entendeu o motivo daquilo.
- É, eu sei. Eu acabei de admitir que acho que a pessoa deveria libertar a outra para ser feliz se ela mesma não está feliz. Bom, acho que foi o que ela fez comigo. Você está certa. Eu deveria ficar feliz por ela.
- Deveria. E sei que você não faria isso, só perguntei porque fiquei com uma pulguinha bem irritante atrás da orelha depois de ler a carta da Mi. E confesso que um tanto de ciúmes por ela saber de algo que eu não sei sobre você.
franziu as sobrancelhas, sem entender muito bem aonde a garota queria chegar com aquela conversa.
- Estou falando da insinuação dela de que você já teria um amor. E que não era ela. Como eu nunca percebi isso? Quem é? E por que você nunca me contou? Você é um péssimo melhor amigo, sabia disso?
- Ei, calma! Eu também não entendi aquela parte até hoje. Eu nunca escondi nada de você. Não é à toa que você é a única pessoa que invade meu apartamento tarde da noite com sorvete.
- Droga! O sorvete!
Ela saiu correndo em disparada, voltando da cozinha com um pote sabor Napolitano Triplo Chocolate e duas colheres.
- As taças ficam no armário em cima do fogão – avisou.
- Taças são para os fracos, meu caro. Os fortes comem direto do pote e comem cada mísera porção até que não sobre qualquer evidência de que o sorvete um dia esteve aqui.
O rapaz gargalhou da forma com que ela falava. Às vezes nem parecia que eles tinham crescido; que tinham empregos, contas a pagar, faturas assustadoras no cartão e uma terrível dor na lombar que ficava cada vez pior com as duras e desconfortáveis cadeiras do escritório. Agora que Michelle havia partido, teria que arranjar outra pessoa para acompanhá-lo nas aulas de pilates.
Comeram todo o sorvete enquanto riam de qualquer piada tosca que o Adam Sandler fazia. Todas sem muito sentido ou complexidade e ridiculamente previsíveis, mas naquele momento qualquer motivo para se dar um pouco de risada era mais do que bem-vindo.
Escolheram um filme especial qualquer de Natal do Netflix e deixaram as imagens passarem sem dar muita atenção a elas. O sono aos poucos começava a pesar nas pálpebras e nem o melhor papo do mundo conseguiria fazer algum milagre àquela altura do campeonato – e do cansaço.
Caíram no sono ainda no sofá, atirados de uma forma tão desajeitada que machucaria cada uma de suas vértebras. dormira com a cabeça no colo de e os pés descalços pendurados.
Quando o rapaz acordou devido a uma pontada na cervical, encontrou a melhor amiga ainda desacordada. Riu baixinho ao perceber que mesmo agora ela dormia com a mesma feição fofa de bebê, como se fosse um filhotinho triste. Tirou a cabeça dela de seu colo da maneira mais cuidadosa possível e caminhou até a cozinha, disposto, pela primeira vez em um bom tempo, a fazer um café da manhã minimamente decente. Quebrou alguns ovos em uma frigideira e preparou algumas torradas – torcendo para que a amiga também gostasse de sua geleia de morango favorita. Deu graças a Deus por ainda ter uma garrafa de suco integral de uva fechada na despensa, afinal provavelmente daria um soco nele se fizesse mais uma cápsula sequer de café em sua presença.
Encontrou uma bandeja que nem lembrava mais que existia perdida no fundo do armário. Arrumou alguns pratinhos e pegou os copos. Quando se virou para pegar os ovos na pia, esbarrou com força na pessoa que acabara de surgir.
- Droga, mulher, de onde você veio? – Perguntou, esfregando o quadril que tinha sido acotovelado bruscamente.
- No caso, foi por aquela porta logo ali – disse, apontando para a entrada da cozinha enquanto ria e refazia o coque amarrado com os próprios cabelos. – Quando percebi que você estava cozinhando, decidi tomar um banho para aliviar a cara amassada. Ou pelo menos tentar, não é? Pelo que vi no espelho do corredor, não funcionou lá muito bem.
não conseguiu evitar um sorriso ao ver a amiga atrapalhada como sempre. Aquela característica com certeza era uma constante na vida de ; mesmo com a vida adulta e a carreira muito bem sucedida, ela continuava meio perdida, tropeçando nos próprios pés e se esquecendo dos próprios horários. Mas o que tinha de afobada, tinha o dobro, triplo e talvez até dez vezes mais em inteligência.
- Aliás, porquinha, que shampoo te passaram no pet? Esse cheiro é esquisito, mas não me é estranho – comentou, tentando se lembrar.
- Então – ela sorriu amarelo -, eu esqueci meu desodorante. Acabei usando o seu que estava no armário do banheiro.
- Não sabia que a senhorita gostava de odores masculinos. Quer dizer, não na sua própria axila, no caso.
revirou os olhos, rindo ironicamente.
- Prefiro um zilhão de vezes o desodorante masculino, de fato. Os femininos costumam ser doces demais. Mas se eu sair por aí com um “Axe”, as pessoas vão me olhar estranho. E você sabe que eu odeio esses padrões idiotas, mas não estou a fim de me incomodar desnecessariamente, então antitranspirantes sem cheiro são os melhores.
- Qual é o nosso problema? Estamos mesmo discutindo cheiro de desodorante? Intimidade é uma droga.
Os dois riram e desistiram da bandeja, sentando-se à mesa e terminando com o estoque de geleia de morango de – que prontamente se lembrou de que devia uma visita ao mercadinho da esquina ou viveria à base de água filtrada unicamente pelos próximos dias.
- Aproveitando minha milagrosa e maravilhosa folga, já fiz planos para nós dois. – anunciou, no tom de voz que deixava bem claro que o amigo não tinha nenhuma possibilidade de argumentação ou escolha. – Iremos almoçar naquela lanchonete maravilhosa que tem aquele cheese-bacon mega gorduroso com a melhor maionese caseira desse universo. Depois, do outro lado da rua, tomamos um sorvete e seguimos para a pista temporária de patinação de gelo que abriu perto do shopping. E não quero ouvir um “a” sequer. Vai se trocar que eu não aceito um não como resposta depois de todo esse planejamento.
*****
Assim que terminaram os lanches – ela, um cheese-bacon duplo e ele, um cheese-salada com hambúrguer de frango -, tomaram sorvetes de morango na casquinha e seguiram caminho até o ringue de patinação que tinha sido instalado ali recentemente.
comprou dois ingressos adultos para meia hora de uso e pediu ao funcionário patins tamanho 37, enquanto foi checar se tinham algo no tamanho 44, torcendo bem lá no fundo para que dissessem que não fabricavam patins para o Pé Grande e ele pudesse impedir uma catástrofe gigantesca de vergonha e lesões. Se saísse dali para qualquer lugar que não fosse o hospital, já se consideraria vitorioso o suficiente. Se alguém tivesse que selecionar um talento do rapaz, dentre todas as coisas do mundo, provavelmente seria o fantástico e inacreditável dom de se machucar aleatoriamente.
Calçada, a moça entrou na pista, ouvindo o instrutor que pediu para que eles tomassem cuidado e se apoiassem nos corrimões até se sentirem pelo menos um pouco mais seguros para deslizarem sozinhos pelo gelo. fingiu que se importava com as dicas por algum tempo, mas logo saiu patinando impecavelmente. Não se arriscaria em tentar fazer piruetas e mortais, mas com certeza sabia bem o que estava fazendo ao pegar impulso e deixar que seu corpo fosse carregado sobre os finos metais sob os pés. estava boquiaberto.
- Como eu nunca soube que você era tão boa nisso? – Perguntou ainda em choque, enquanto pressionava os dedos ao redor dos corrimões com tanta força que os nós dos mesmos já começavam a ficar brancos demais.
- Há muitas coisas que você não sabe sobre mim, meu caro amigo – a garota respondeu, fazendo uma pose um tanto presunçosa.
- Sério?
- Na verdade, não – ela respondeu, dando risada. – Meu pai adorava esquiar e patinar. Acabou me ensinando um pouco quando eu era pequena entre uma viagem de férias e outra. Acho que insisti tanto que ele acabou cedendo, mesmo querendo me matar por isso. Minha mãe simplesmente odiava e ficava dizendo que ele ficaria cem por cento responsável por cuidar dos meus machucados e dos sete pontos que eu tomasse na testa.
- E tomou?
- Nunca. Só torci o tornozelo uma vez, mas foi bem de leve. Alguns dias colocando compressas geladas e eu já estava pronta para a próxima queda.
- Acho que vou precisar de bem mais que algumas compressas para me recuperar do estrago que isso aqui vai ser – o homem analisou, rindo de sua própria situação. Existiam crianças bastante pequenas ali com muito menos medo e cuidado que ele. Estava fazendo papel de idiota e já via alguns pais por ali, perto da pracinha que havia ao lado, dando algumas risadas dele.
riu, enquanto ajeitava os cabelos atrás das orelhas. Pegou as mãos do amigo e o puxou de leve, pedindo que ele relaxasse as pernas que estavam mais travadas que um tronco. Conseguiu arrastá-lo por uns quatro metros sem cair, até que ele tentou fazer uma curva e conseguiu criar um primeiro encontro pouco romântico entre o piso gelado e sua bunda. Podia pelo menos ter pagado um jantar antes ou comprado umas flores. Não conseguia nem analisar o quão imaturo ele era por estar pensando numa coisa dessas.
O instrutor ajudou o rapaz a se levantar enquanto a amiga dava suas últimas voltas pela pista, sentindo-se tão feliz e livre como não sentia há muito tempo. Perguntava a si mesma porque deixamos de fazer as coisas que tanto gostamos conforme crescemos. Vergonha? Medo? Será que realmente somos velhos demais para sermos felizes?
O funcionário avisou que o tempo limite tinha sido atingido e ofereceu mais meia hora por metade do preço. Os dois amigos negaram educadamente e devolveram os patins. Quando saíram, entrelaçou os dedos nos da amiga que riu ao sentir o quanto a mão dele ainda estava fria e úmida pelas quedas no gelo.
- Ei, casal – um homem de cabelos já brancos e bagunçados chamou a atenção dos dois. – Não levem isso de uma forma invasiva, por favor, mas observei vocês enquanto patinavam e decidi fazer um desenho do momento.
O desenhista mostrou a folha grande e quadrada, repleta de traços pretos finos que capturavam as risadas enquanto tentava a todo custo conseguir manter seu melhor amigo firme sobre os próprios pés. Era uma imagem linda, alegre e fez com que os dois sorrissem sem ao menos conseguirem se importar com toda a construção romântica do momento ou da ilustração.
- Ficou incrível – respondeu, retirando a carteira do bolso da calça. – Quanto fica?
- Para um casal bonito desse jeito faço até um desconto.
Conversaram sobre valores e o desenhista logo plastificou o retrato, entregando-o em uma sacola plástica de uma sapataria que ficava ali por perto. Os amigos agradeceram absurdamente pela linda imagem e seguiram seu rumo com os sorrisos ainda mais largos que antes.
Ainda caminhando – queria encontrar uma farmácia para comprar uma espuma de barbear nova -, acabaram encontrando uma garotinha que brincava na praça e decidiu abordá-los, perguntando se podia ver o desenho que eles tinham comprado do “moço pintor”.
- Vocês são tão lindos – a menininha, que parecia ter por volta de cinco anos disse, visivelmente deslumbrada. – Meu pai deixou a mamãe quando eu era um bebezinho. Eu só conheço ele por fotos velhas, mas sei que ela ficou muito triste porque amava ele de verdade. Todo dia eu peço para o papai do céu para dar um namorado bem bonzinho para ela. Quero que ela seja feliz e apaixonada que nem vocês dois são.
não conteve o impulso de pegar a garota pelos braços e a apertar contra seu corpo, em um abraço desajeitado.
- Ela vai ser muito feliz, viu? Eu tenho certeza. Aposto que ela já está muito contente de ter uma menina tão linda e esperta como filha.
A garotinha riu, concordando que era mesmo muito esperta – tirava nota máxima em todas as atividades de sua escolinha. Conversaram mais um pouco e, assim que a mãe dela chegou, cumprimentaram-na e decidiram seguir seus caminhos.
- Espero que esse dia tenha servido para diminuir um pouco essa sua cara de defunto – disse, juntando seus pertences jogados pela sala do apartamento do amigo. – Se precisar de algo, mande mensagem no whatsapp. Nada de ligações, sabe que eu odeio ligações a menos que a pessoa esteja realmente à beira de um ataque grave ou prestes a cometer homicídio. Ou os dois.
Foi embora balançando o quadril e batendo os pés, tentando reencaixá-los nas sapatilhas que usava. Entrou no elevador praguejando algum palavrão que não soube identificar, mas riu de qualquer forma enquanto trancava a porta do apartamento e tirava os próprios sapatos.
Tomou um longo banho quente, tentando se livrar de toda aquela sensação de frio que o perseguia e, pela primeira vez nos últimos dias, cantarolou algo enquanto enchia os cabelos de shampoo. Escolheu uma canção dos Beatles e até arriscou uma mais nova, moda na rádio, mas percebeu que ainda estava bem longe de saber todas as letras dessas músicas modernas.
Deitou em sua cama e respirou fundo, fechando os olhos e permitindo que imagens do primeiro dia bom dos últimos tempos invadissem sua mente, revivendo ao máximo aquelas sensações que não queria esquecer. Ao final de tudo, sua cabeça martelava os pequenos detalhes: o sorriso incrível de ao patinar, a sensação de segurar suas mãos (que de repente parecia tão estranha) e a palavra escolhida a dedo pela criança: “apaixonada”. Foram chamados de casal por ela, pelo desenhista, pelo instrutor de patinação e até pelo rapaz em treinamento no caixa da farmácia – que fez uma piada bem infame sobre compra de preservativos e acabou recebendo um duro olhar de repreensão de outra funcionária do estabelecimento. É, talvez ele não conseguisse o emprego. Mas nem era isso que realmente importava, apesar de ser um tanto engraçado.
Ele conhecia aquela mulher há mais de uma década e poderia citar suas comidas preferidas, a cor que ela mais gostava, o doce predileto, os maiores micos e os melhores aniversários sem nem pensar muito sobre isso. Era tão natural quanto adorar aquela pessoa incrível que o havia apoiado ao longo dos anos e enchido seus dias de risadas e conselhos – mesmo aqueles que ele com certeza não havia pedido. Era tão verdadeiro quanto o carinho que sentia por ela e todas as noites que passavam na casa um do outro, maratonando Harry Potter e zerando todos os estoques de pipoca e chocolates das despensas dos pais. Era tão puro quanto as brincadeiras e os cuidados com os joelhos ralados e o primeiro coração partido. Era tão real quanto aquela confusão que agora nublava sua mente.
De tanto revirar os cobertores, acabou vencido pelo cansaço e apagou, sonhando com um mundo em que as coisas tivessem se saído um tanto diferentes daquilo que ele esperava. E, com certeza, muito diferentes daquilo que ele sentia.
*****
voltou ao serviço no começo da semana seguinte, tentando driblar todos os incessantes questionamentos sobre como ele estava se sentindo, se havia superado e as ainda mais indiscretas perguntas de: “Mas o que aconteceu?”, “Ela te traiu?”, “Você nunca percebeu que ela não gostava de você dessa forma? Achei que fosse meio óbvio”. É, esse ultimo com certeza tinha doído e estraçalhado todo e qualquer pingo de orgulho que pudesse ter lhe restado.
No almoço, desceu para a pequena padaria próxima aos escritórios e pediu um misto quente com suco de laranja. Não tinha apetite para um almoço mais completo que isso. Estava comendo pela simples obrigação natural de comer. Ainda se perguntava se não acabaria vomitando o sanduíche assim que mais alguém perguntasse se ele sabia quem era o cara que fez com que Michelle colocasse um par de chifres em sua cabeça.
Quando olhou para o lado, teve a mais incrível surpresa que poderia sequer cogitar ter naquele momento: ela estava bem ali, com um vestido florido e óculos de sol na cabeça, encomendando um cento de brigadeiro para uma festa surpresa a que iria no dia seguinte. , por um momento, poderia dizer que tinha esquecido como se respirava. Pensou em fugir, em gritar, em sair correndo e socando tudo que visse pela frente, pensou inclusive em fingir-se de desentendido e agir como se nada tivesse acontecido e estava começando a se contentar com essa última ideia. Mas ela o viu antes e andou até o banco em que ele estava sentado.
- Não esperava te ver por aqui – Michelle disse, com um sorriso de lado, esboçando uma vergonha que não era nada típica dela. – Como você está?
- Péssimo – respondeu simplesmente, limpando a boca com um guardanapo.
- Sinto muito por isso. Não queria ter causado nenhum mal à sua vida. Realmente espero que um dia você seja capaz de me perdoar pelo que eu tive que fazer. Juro que, se pudesse, evitaria tanto sofrimento.
- Eu sei, Michelle. Eu não guardo mágoas. Já te perdoei. A dor não é mais pelo abandono, é pela insistência das fofocas. Eu estou de coração totalmente aberto e disposto para esquecer tudo que aconteceu, mas fica difícil quando eu virei o centro das atenções de uma hora para a outra sem ter pedido por isso.
Michelle respirou fundo, percebendo-se incapaz de dizer qualquer outra coisa. Não havia mais nada a ser feito.
- Bom, sinto muito por isso também. Infelizmente, não podemos fazer as pessoas amadurecerem, não é mesmo? Mas você é uma pessoa incrível e merece o mundo. Espero mesmo que você seja tão feliz quanto uma pessoa pode ser nessa vida. E, se for possível, que seja ainda mais feliz que isso.
- Também torço para que você seja feliz – disse simplesmente e foi alarmado por uma ideia passageira. – Michelle, posso fazer uma pergunta?
- Claro, até duas – brincou, arrumando a tira da bolsa nos ombros.
- O que você quis dizer exatamente com aquela carta? Quer dizer, eu entendi claramente que estava me deixando pelo seu verdadeiro amor. Não tinha como não compreender aquilo. Mas a minha pergunta é sobre o que você quis dizer quando me acusou de não admitir um amor incondicional que eu sentia. Eu fiquei me perguntando isso por semanas. Nem a entendeu quando leu. Estamos os dois curiosos agora, sem a mínima noção do que estava havendo.
- Ah, isso. – Riu. – Achei que vocês dois fossem entender logo.
- Entender o quê, exatamente?
- Que é ela, . Às vezes me pergunto como você pôde não perceber isso durante todos esses anos. Todo aquele carinho imensurável não era só por vocês serem melhores amigos. Nunca foi.
O homem teve que respirar fundo algumas vezes para tentar assimilar o que acabara de ouvir. Já não bastasse tudo que acontecera no dia que passaram juntos, ainda tinha que lidar com mais esse soco no meio de sua cara.
- Preciso ir agora – ela declarou. – Tenho uma reunião com um cliente sobre a sessão de fotos para os convites do aniversário de quinze anos de sua filha. Bom, espero que vocês sejam felizes. Deu para ver pela sua expressão que você não estava esperando por isso e, mesmo assim, sabe que não estou errada.
Michelle estendeu a mão para o ex-noivo, que acabou puxando-a para um abraço desajeitado.
- Obrigado – ele disse. – Por tudo.
- Eu que tenho que agradecer. Não perde sua garota. Vocês já levaram tempo demais – anunciou antes de ir embora, deixando o rapaz com o olhar perdido e uma mão na testa, pensando em que droga ele faria agora.
*****
já tinha colocado o pijama há umas boas horas e tinha trocado de posição no sofá pelo menos umas treze vezes. Agora, estava tentando explodir o próprio cérebro ao deslocar toda a circulação sanguínea de seu corpo para a cabeça. Ficar de ponta cabeça era uma péssima ideia, mas, no momento, parecia uma ótima opção de movimento enquanto F.R.I.E.N.D.S. reprisava pela milésima vez a terceira temporada inteira.
Deixou o episódio rolando e foi para a cozinha, determinada a preparar um brigadeiro. Havia sido atingida bruscamente por um daqueles desejos gestacionais que dão em não-grávidas de vez em quando. Quase chorou – maldita TPM – quando descobriu que não tinha comprado leite condensado. Compensou suas lombrigas chocólatras com um pote de nutella e uma colher de sobremesa. Já tinha desistido há muito tempo de ser uma maníaca com seu próprio peso. Controlava-se, mas, vez ou outra, aceitava satisfazer suas vontades alimentares.
Estava se deliciando com o creme de avelã, enquanto ria pela centésima vez de alguma dose de sarcasmo de Chandler Bing quando a campainha tocou. Olhou para os próprios pés descalços e, depois, para o pijama de malha antiga que mostrava alguns cachorrinhos sobre uma estampa de patinhas ao fundo. O cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto bagunçado e a boca provavelmente estava suja de chocolate. Mas quem mandou aparecerem à sua porta àquela hora? Quem sabe não assustava alguma criança e fazia a noite ser minimamente mais divertida?
- Não tenho dinheiro, nem tempo e nem paciência. E o doce que tem é meu, não vou dividir – disse em disparada, assim que abriu a porta, como se tivesse ensaiado aquilo por horas. Sequer tinha levantado o olhar de seu pote dos sonhos. Mas quando o fez, arregalou os olhos ao ver um enorme buquê de tulipas coloridas – suas flores favoritas.
- Foi mal – falou. – Não sabia que a senhorita já estava acompanhada pelo seu egoísmo nessa bela noite.
riu e puxou o amigo pela camisa, trancando a porta atrás de si ao ver que ele já havia entrado. Agradeceu pelas flores e se ofereceu para pegar uma colher para ele.
- Não, não – ele meneou a cabeça, claramente nervoso. – Eu vim aqui para falar com você. Por favor, não me interrompe. Eu precisei de coragem demais para vir até aqui, não piora a situação.
A garota engoliu em seco, erguendo as mãos em sinal de rendição e voltou a se sentar no sofá, aguardando por o que lá que fosse tão importante que o amigo quisesse dizer.
- Eu encontrei a Michelle. Ela estava bem e feliz e me fez perceber que eu também tenho a vontade e o direito de ficar bem e feliz. Acabei sendo vencido pela minha curiosidade e arrisquei perguntar sobre aquele trecho da carta que nos causou tanta dúvida. E, droga, não sei como eu não notei isso tudo antes.
Ele estava vermelho, falando alto e gesticulando de uma forma um tanto incomum à sua pessoa. mantinha uma sobrancelha franzida.
- É você. Todos os abraços e os ciúmes, os fins de semana e os segredos na madrugada. Sempre foi você. , eu te amo. Sempre amei, mas acho que fui idiota o suficiente para não enxergar. E agora estou aqui com as suas flores favoritas e o coração na mão porque não quero perder mais um segundo sequer dessa vida sem você ao meu lado. Talvez você nem me queira e eu sei que posso destruir nossa amizade por algo que você pode considerar um simples capricho meu. Mas acontece que eu não posso mais esperar, não posso mais evitar. Eu amo você e preciso saber se eu sou um retardado passando vergonha ou se você sente o mesmo.
começou a rir descontroladamente, contorcendo a barriga que já começava a doer. sentiu seu corpo inteiro duplicar a tensão sobre os músculos e o coração apertou.
- Eu realmente não acredito que você demorou tanto tempo para perceber isso. Porra, , todo mundo sempre soube que eu sou louca por você. Só você, cego, não viu.
O rapaz começou a se sentir um babaca novamente, mas a amiga não permitiu que aquilo durasse muito tempo. Levantou-se rapidamente e passou os braços pelo pescoço dele, beijando-o da forma que queria há tanto tempo.
Em uma mistura inexplicável de sentimentos e sensações, no meio do que com certeza era o melhor beijo de toda a sua vida, agradeceu a ex-noiva mentalmente. Por mais abrupto que tivesse sido o fim deles, foi isso que permitiu que o mais novo e belo começo que ele poderia desejar pudesse existir. E ele tinha certeza de que esse era o último de todos os inícios. Uma história que teria um longo meio e, Deus quisesse, jamais um fim.
Agora entendia quando lhe disseram que um coração não poderia ser despedaçado e remendado pela mesma pessoa. Seu peito machucado precisava de carinho, de amor e de alguns pontos, mas esses pontos tinham que ser dados por outra pessoa. Pela sua pessoa. E dali para frente, seriam os dois contra o mundo, fechando as cicatrizes um do outro.
Esquerda, mãos ao lado do corpo, pernas esticadas. Nada.
Fosse de barriga para cima, de lado, ou de bruços, simplesmente não conseguia dormir. Sequer saberia dizer se sentia realmente sono ou só estava totalmente cansado daquilo tudo. Revezava entre tentar dormir e colocar várias cápsulas de cappuccino em sua máquina Nespresso comprada usada em um aplicativo de vendas. E, sim, ele sabia bem que isso não ajudaria nada em sua tentativa de fechar os olhos por algum tempo com alguma efetividade.
Sentou-se na poltrona reclinável da sala e esticou o corpo de forma desajeitada, abrindo o livro que estava jogado nas prateleiras da estante em uma página qualquer, decidido a se manter ocupado de qualquer forma. Avistou um título conhecido e leu o poema já tão batido que saberia declamar a qualquer instante:
“Todas as cartas de amor…
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)”
Parecia que algum ser superior do Universo estava apontando um dedo enorme em seu rosto, rindo com muito gosto de sua desgraça. Pensava em suas próprias “cartas de amor”, desde declarações enormes no Whatsapp em momentos de imaginação aflorada na madrugada, até bilhetes tortos em pequenos post-its laranja neon colados em capas de livros ou embalagens de DVDs pirateados. Se no momento parecera clichê, agora só parecia idiota e – como o próprio Fernando Pessoa, seu grande parceiro, dizia – ridículo.
Ainda não acreditava em nada daquilo e não tinha coragem de olhar para a foto ao lado da televisão, mesmo que também não tivesse força alguma para tirá-la de lá. Os cabelos curtos cor de grafite continuavam emoldurando aquele sorriso até um tanto assustador e desproporcional de tão grande. As unhas roídas que grudavam em seus braços eram estranhamente conhecidas, permitindo que ele sentisse aquele leve aperto que arranhava sua pele.
Era tudo recente demais, estranho demais e incompreensível demais. Foi tudo tão súbito que ele não percebeu quando se foi, mesmo que a essência tivesse se esvaído muito antes do aviso formal. Não tinha lá muita certeza se fora sua própria comodidade ou o medo do vazio que sentia que tinha sido o responsável por aquela cegueira súbita.
Sabe aquela sensação de que tudo está incrivelmente bem só porque parece estar encaminhada dentro dos eixos? Sabe quando de repente o trem sai dos trilhos e atropela as cinco pessoas do grande dilema filosófico sem nem lhe dar a chance de pensar sobre o assunto? Era isso que sentia: estava tudo certo, até que tudo estivesse completamente errado.
Foram semanas ansioso para vê-la em seu vestido de noiva, controlando-se para não interromper os momentos de prova e destruir aquela crença que o proibia de ver o traje antes do casamento. Agora, nunca mais veria o vestido, a renda em tons de branco e champanhe, o buquê ou a aliança dourada com um discreto diamante encrustado no topo do aro que gravava o nome “Michelle” no metal gelado.
Fazia exatamente uma semana que a publicitária de pixie cut havia abandonado seu noivo no altar, deixando apenas um bilhete escrito às pressas em um bloquinho de notas com o selo de uma marca gráfica qualquer. Pedira que a madrinha do noivo lhe entregasse o papel e simplesmente deu as costas à cerimônia antes mesmo de adentrá-la. No mesmo carro que tinha chegado até ali, entrou e sumiu no mundo para ser feliz em outro canto com alguém que ela devia amar de verdade.
sentiu o já tão comum aperto no peito ao se lembrar de como aquela carta de pseudoamor – um amor que se fora, ou que talvez nunca tivesse sequer existido além das palavras – era o maior exemplo universal de uma nota ridícula.
“ Meu querido ,
Preciso, antes de tudo e de qualquer coisa, pedir perdão. Se pudesse evitar esse sofrimento antecipadamente, saiba que teria feito o possível para impedir esse caos e a sua provável incompreensão ao receber essa folha branca rabiscada. Não queria que as coisas tivessem que ser assim, mas, no ponto a que chegamos, infelizmente essa é realmente a opção menos estrondosa.
Não entrarei nessa igreja hoje e também não o farei na próxima semana, mês, ano ou qualquer outro momento. Não com você. E não, não é por petulância ou por achar que você não me mereça. Nunca me achei boa demais para você ou insuficiente. Só acho que para se dar um passo tão grande quanto um casamento, você tem que estar entregue de coração, corpo e alma àquele que você pretende ter ao seu lado pela eternidade.
Acredito que nós temos um carinho gigantesco um pelo outro e um respeito absurdo pela pessoa que somos e que nos tornamos lado a lado durante esses anos. Mas não acredito que o que temos seja realmente amor. Eu tive um grande amor na minha vida e, por obstáculos no caminho, acabamos separados. No entanto, nos últimos dias, a vida deu aqueles giros mirabolantes que nós não entendemos e nos uniu da forma mais inesperada possível. E, dessa vez, eu não posso deixar que isso escape pelos meus dedos. Pode ser minha última chance, pode ser que eu esteja me jogando de cabeça em algo que vai dar incrivelmente errado, mas eu não seria a Michelle que nós dois conhecemos se não arriscasse.
Acredito também que você conhece esse tipo de amor gigantesco e incondicional, mas provavelmente tem medo demais de admitir isso para você mesmo. Foram anos ao seu lado, . Aprendi muito sobre mim mesma, mas percebi coisas em você que talvez você mesmo não tenha percebido ainda. Mas esse amor inexplicável? Você tem. Espero que perceba há tempo e seja absurdamente feliz com ele porque você merece tudo. É uma das pessoas mais maravilhosas que eu conheço e te deixo hoje com a certeza de que você ficará melhor assim.
Seja muito feliz. Não desejo absolutamente nada além do melhor para você. Perdão por ter que fazer isso dessa forma, mas é para o nosso bem.
Com todo o amor do mundo,
Michelle.”
Nem Fernando Pessoa imaginaria um fim daqueles para um relacionamento de quatro anos que já tinha trocado chaves e até pesquisado preços de ração para a adoção de um novo membro peludo para a família. Agora, tudo que lhe restava era nostalgia e indignação em todos os heterônimos.
Largou o livro de qualquer jeito sobre a estante e desperdiçou bons minutos lendo todas as sinopses da sessão “Séries em alta” de seu perfil no Netflix, mesmo que soubesse de trás para frente definir Supernatural, Breaking Bad, Grey’s Anatomy em tantas outras.
Quando achava que se jogaria da sacada para não morrer de tédio, ouviu a campainha do apartamento tocar e ficou se perguntando se teria que receber mais um presente de casamento que não teria coragem de desempacotar.
- O que é agora? – Perguntou já abrindo a porta, esperando dar de cara com o porteiro que o encararia com um olhar de pena mais uma vez. Mas não foi isso que ele encontrou.
- É assim que eu sou recebida pelo meu próprio melhor amigo? Eu realmente não sei o que fiz para merecer isso. Vai ver eu colei chiclete na cruz – a moça disse, entrando no apartamento com várias sacolas nos braços e mãos. – Espero que não esteja com sono porque eu consegui folga no serviço amanhã, o que significa basicamente que vou passar a noite aqui e não estou te dando chance alguma de negar essa possibilidade. A decisão foi tomada e eu trouxe até sorvete. Três sabores diferentes ainda.
- , o que você está fazendo? – perguntou indo atrás da amiga que já estava colocando as compras na geladeira.
- Guardando o sorvete, oras. Se eu quisesse tomar sopa, eu faria uma com vários legumes e macarrão em vez de aguardar o meu lindo napolitano triplo chocolate derreter. Pedi a pizza no caminho, então deve chegar a qualquer momento. Vou te forçar a assistir a pelo menos uns dois filmes que você vai detestar e depois podemos conversar até tarde ou até nossas costas nos lembrarem que somos velhos demais para uma festa do pijama no sofá.
- Não, . Eu não estou no clima. A mulher com quem eu passei os últimos anos simplesmente foi embora largando uma carta e pedindo para você ser pombo correio desse sofrimento gratuito. Eu só quero ficar sozinho.
- Não, . Você está sozinho há tempo demais. Você precisa começar a seguir sua vida. Não tem como colocar seu pé para fora desse apartamento e simplesmente esquecer tudo que vocês tiveram, mas está na hora de você parar de tentar encontrar um culpado pelo seu sofrimento e começar a agradecer pelos bons momentos e aceitar que não era para ser.
“É uma merda que a Michelle te largou no altar? Ah, é uma merda gigantesca e nós dois sabemos bem disso. Acontece que uma hora ou outra você vai perceber que era o certo a fazer. O timing é uma porcaria, mas era melhor isso que um divórcio depois. Pelo menos assim vocês dois podem ser felizes. Até porque nós dois sabemos que o senhor sequer estava tão animado assim a firmar um matrimônio.”
bufou, soltando um palavrão quase como um muxoxo. Não importava o quão velhos eles ficavam; os anos iam e vinham e ainda saberia decifrá-lo a qualquer instante mesmo a quilômetros de distância. Era um dom adquirido pela mini-eternidade que gostavam de chamar de “amizade de infância”.
- Anda, tonto. Coloca uma comédia romântica qualquer e vamos conversar enquanto a pizza não chega. Tem tanta cápsula vazia de cappuccino nessa cozinha que eu tenho certeza de que vai ser uma longa noite.
A mulher colocou seu cardigan de lã marrom sobre o braço do sofá da sala, pisando na parte de trás dos sapatos para abandoná-los em um canto qualquer do tapete. A intimidade entre os dois dispensava até a famosa organização.
encostou a cabeça no ombro da amiga e se permitiu respirar fundo enquanto algumas finas lágrimas ainda escorriam por sua face. Deixava que as lembranças o invadissem como um tsunami avassalador na costa de um arquipélago.
Duas semanas atrás, ele diria que sua maior – e pior - desilusão amorosa havia sido o gigantesco fora que levara ao convidar uma veterana para sair com ele no primeiro ano de faculdade. Isso porque ele nem queria aquilo de verdade. Era apenas uma aposta, como um trote idiota entre jovens adultos que veem alguma diversão em brincar com os sentimentos dos outros quando isso envolve o grande exagero construído em torno da humilhação pública. Agora, parecia idiota ter se sentido mal com aquilo. Nada nunca havia machucado tanto.
tinha razão – por sinal, ela sempre tinha. Nos últimos quatro meses, permeados pelo desespero sem fim da organização do casamento – por que raios precisavam de tanta coisa afinal?! -, ele sentiu medo. Não era medo de ter uma aliança no dedo. Não era medo de se comprometer. Não era medo de ter oficialmente uma vida com alguém que talvez esperasse mais do que ele pudesse dar. Não era nada disso. sempre soube que queria casar e teve de ouvir vários colegas debochando disso, dizendo que, se o mundo estava cheio de mulheres, era para que eles aproveitassem quantas pudessem e não se prendessem a uma só pelo resto da vida. Eram esses mesmos caras que reclamavam sobre generalizações, afirmando duramente que nem todo homem praticava essa tal “objetificação”.
Mas não, não era nada disso. tinha medo de estar se precipitando demais. Sua verdadeira aflição e temor era sobre ter tomado a decisão certa com a pessoa errada. Olhava para o casamento incrível que seus pais mantinham por quase cinquenta anos – droga, ainda teria que começar a pensar no que fazer para suas bodas de ouro – e para a felicidade de sua irmã mais velha ao trazer ao mundo um pequeno garoto que viveu os dois primeiros meses na UTI devido a complicações gestacionais. Foram os dias mais difíceis da sua vida, mas ela tinha seu “namorido” (como gostava de chamar) ao seu lado. Eles eram tão felizes que às vezes faziam o rapaz pensar como raios alguém podia ver tanta alegria nesse mundo todo errado em que vivemos. Em divagações completamente sem sentido, havia cogitado que seu cunhado fosse, na verdade, um grande traficante mafioso que mantinha a si e a sua irmã sob efeito constante de tranquilizantes e alucinógenos. Talvez por isso a criança tivesse nascido prematura.
Mas não, novamente, não era esse o ponto. Os casais mais unidos e contentes de sua vida eram também os mais estranhos, isso era fato. Mas todos tinham algo de incrivelmente especial acontecendo entre eles. Algo que alguém de fora jamais poderia sequer tentar explicar ou decifrar.
Ele e Michelle, por sua vez, eram um casal normal: iam ao cinema uma vez por mês, mandavam mensagens de boa noite antes de dormir e se lembravam do aniversário do outro. Saíam para jantares, transavam e eram felizes. Mas às vezes parecia uma felicidade comum demais para quem desejava uma vida inteira. Era ótimo, mas não parecia ótimo o suficiente.
se virou de frente para o amigo, limpando as lágrimas que resolveram empacar nas profundas bolsas que já se formavam embaixo dos seus olhos. Sorriu ternamente, mostrando a covinha que marcava sua bochecha esquerda.
- Sei que seu coração está partido e seu orgulho ridiculamente ferido, mas nada nesse universo doido acontece por acaso. Com certeza, por caminhos tortos, vocês acabaram tomando a decisão que é melhor para os dois.
acabou concordando, lembrando que ouvira essa mesma frase de absolutamente todas as pessoas que tentaram consolá-lo: “Nada acontece por acaso”. Deu as costas para a mulher que sentava ao seu lado, ouvindo sua risada irônica ao entender perfeitamente o que ele queria: uma longa massagem nos ombros.
Enquanto deslizava os dedos pelo pescoço do homem à sua frente - fazendo questão de usar um pouco mais de força que o necessário em alguns momentos só para irritá-lo -, ela tentou começar uma conversa que sabia ser um tanto delicada, mas não poderia esperar mais. Ela também tinha lido aquela carta centenas de vezes e não conseguia entender como raios Michelle sabia de um suposto “amor verdadeiro” de quando ela mesma estava mais perdida que um náufrago solitário em uma ilha deserta qualquer. O pensamento ainda fez com que ela ficasse com desejo de água de coco.
- – começou, sabendo que era uma forma horrível de abordá-lo, mas sem conseguir pensar em algo melhor que ser direta -, você chegou a trair a Michelle?
- Eu vou fingir que nem ouvi essa pergunta idiota vindo logo da pessoa que mais me conhece nesse mundo inteiro. Qual é? Você sabe muito bem que eu nunca seria capaz de fazer algo desse tipo. Sempre fui adepto do famoso ditado “Não está satisfeito? Termine. Mas jamais chifre o próximo.”.
- Isso com certeza não é um ditado – disse rindo, feliz por ver que o bom humor do amigo queria começar a despontar novamente.
- Mas com certeza é uma máxima que todos deveriam utilizar. Tem coisa mais ridícula do que trair e depois dizer que é porque não estava contente com seu relacionamento? Se não está feliz, termine e liberte a pessoa para ser feliz também, em vez de machucá-la ainda mais.
A mulher fez uma careta para o amigo que logo entendeu o motivo daquilo.
- É, eu sei. Eu acabei de admitir que acho que a pessoa deveria libertar a outra para ser feliz se ela mesma não está feliz. Bom, acho que foi o que ela fez comigo. Você está certa. Eu deveria ficar feliz por ela.
- Deveria. E sei que você não faria isso, só perguntei porque fiquei com uma pulguinha bem irritante atrás da orelha depois de ler a carta da Mi. E confesso que um tanto de ciúmes por ela saber de algo que eu não sei sobre você.
franziu as sobrancelhas, sem entender muito bem aonde a garota queria chegar com aquela conversa.
- Estou falando da insinuação dela de que você já teria um amor. E que não era ela. Como eu nunca percebi isso? Quem é? E por que você nunca me contou? Você é um péssimo melhor amigo, sabia disso?
- Ei, calma! Eu também não entendi aquela parte até hoje. Eu nunca escondi nada de você. Não é à toa que você é a única pessoa que invade meu apartamento tarde da noite com sorvete.
- Droga! O sorvete!
Ela saiu correndo em disparada, voltando da cozinha com um pote sabor Napolitano Triplo Chocolate e duas colheres.
- As taças ficam no armário em cima do fogão – avisou.
- Taças são para os fracos, meu caro. Os fortes comem direto do pote e comem cada mísera porção até que não sobre qualquer evidência de que o sorvete um dia esteve aqui.
O rapaz gargalhou da forma com que ela falava. Às vezes nem parecia que eles tinham crescido; que tinham empregos, contas a pagar, faturas assustadoras no cartão e uma terrível dor na lombar que ficava cada vez pior com as duras e desconfortáveis cadeiras do escritório. Agora que Michelle havia partido, teria que arranjar outra pessoa para acompanhá-lo nas aulas de pilates.
Comeram todo o sorvete enquanto riam de qualquer piada tosca que o Adam Sandler fazia. Todas sem muito sentido ou complexidade e ridiculamente previsíveis, mas naquele momento qualquer motivo para se dar um pouco de risada era mais do que bem-vindo.
Escolheram um filme especial qualquer de Natal do Netflix e deixaram as imagens passarem sem dar muita atenção a elas. O sono aos poucos começava a pesar nas pálpebras e nem o melhor papo do mundo conseguiria fazer algum milagre àquela altura do campeonato – e do cansaço.
Caíram no sono ainda no sofá, atirados de uma forma tão desajeitada que machucaria cada uma de suas vértebras. dormira com a cabeça no colo de e os pés descalços pendurados.
Quando o rapaz acordou devido a uma pontada na cervical, encontrou a melhor amiga ainda desacordada. Riu baixinho ao perceber que mesmo agora ela dormia com a mesma feição fofa de bebê, como se fosse um filhotinho triste. Tirou a cabeça dela de seu colo da maneira mais cuidadosa possível e caminhou até a cozinha, disposto, pela primeira vez em um bom tempo, a fazer um café da manhã minimamente decente. Quebrou alguns ovos em uma frigideira e preparou algumas torradas – torcendo para que a amiga também gostasse de sua geleia de morango favorita. Deu graças a Deus por ainda ter uma garrafa de suco integral de uva fechada na despensa, afinal provavelmente daria um soco nele se fizesse mais uma cápsula sequer de café em sua presença.
Encontrou uma bandeja que nem lembrava mais que existia perdida no fundo do armário. Arrumou alguns pratinhos e pegou os copos. Quando se virou para pegar os ovos na pia, esbarrou com força na pessoa que acabara de surgir.
- Droga, mulher, de onde você veio? – Perguntou, esfregando o quadril que tinha sido acotovelado bruscamente.
- No caso, foi por aquela porta logo ali – disse, apontando para a entrada da cozinha enquanto ria e refazia o coque amarrado com os próprios cabelos. – Quando percebi que você estava cozinhando, decidi tomar um banho para aliviar a cara amassada. Ou pelo menos tentar, não é? Pelo que vi no espelho do corredor, não funcionou lá muito bem.
não conseguiu evitar um sorriso ao ver a amiga atrapalhada como sempre. Aquela característica com certeza era uma constante na vida de ; mesmo com a vida adulta e a carreira muito bem sucedida, ela continuava meio perdida, tropeçando nos próprios pés e se esquecendo dos próprios horários. Mas o que tinha de afobada, tinha o dobro, triplo e talvez até dez vezes mais em inteligência.
- Aliás, porquinha, que shampoo te passaram no pet? Esse cheiro é esquisito, mas não me é estranho – comentou, tentando se lembrar.
- Então – ela sorriu amarelo -, eu esqueci meu desodorante. Acabei usando o seu que estava no armário do banheiro.
- Não sabia que a senhorita gostava de odores masculinos. Quer dizer, não na sua própria axila, no caso.
revirou os olhos, rindo ironicamente.
- Prefiro um zilhão de vezes o desodorante masculino, de fato. Os femininos costumam ser doces demais. Mas se eu sair por aí com um “Axe”, as pessoas vão me olhar estranho. E você sabe que eu odeio esses padrões idiotas, mas não estou a fim de me incomodar desnecessariamente, então antitranspirantes sem cheiro são os melhores.
- Qual é o nosso problema? Estamos mesmo discutindo cheiro de desodorante? Intimidade é uma droga.
Os dois riram e desistiram da bandeja, sentando-se à mesa e terminando com o estoque de geleia de morango de – que prontamente se lembrou de que devia uma visita ao mercadinho da esquina ou viveria à base de água filtrada unicamente pelos próximos dias.
- Aproveitando minha milagrosa e maravilhosa folga, já fiz planos para nós dois. – anunciou, no tom de voz que deixava bem claro que o amigo não tinha nenhuma possibilidade de argumentação ou escolha. – Iremos almoçar naquela lanchonete maravilhosa que tem aquele cheese-bacon mega gorduroso com a melhor maionese caseira desse universo. Depois, do outro lado da rua, tomamos um sorvete e seguimos para a pista temporária de patinação de gelo que abriu perto do shopping. E não quero ouvir um “a” sequer. Vai se trocar que eu não aceito um não como resposta depois de todo esse planejamento.
*****
Assim que terminaram os lanches – ela, um cheese-bacon duplo e ele, um cheese-salada com hambúrguer de frango -, tomaram sorvetes de morango na casquinha e seguiram caminho até o ringue de patinação que tinha sido instalado ali recentemente.
comprou dois ingressos adultos para meia hora de uso e pediu ao funcionário patins tamanho 37, enquanto foi checar se tinham algo no tamanho 44, torcendo bem lá no fundo para que dissessem que não fabricavam patins para o Pé Grande e ele pudesse impedir uma catástrofe gigantesca de vergonha e lesões. Se saísse dali para qualquer lugar que não fosse o hospital, já se consideraria vitorioso o suficiente. Se alguém tivesse que selecionar um talento do rapaz, dentre todas as coisas do mundo, provavelmente seria o fantástico e inacreditável dom de se machucar aleatoriamente.
Calçada, a moça entrou na pista, ouvindo o instrutor que pediu para que eles tomassem cuidado e se apoiassem nos corrimões até se sentirem pelo menos um pouco mais seguros para deslizarem sozinhos pelo gelo. fingiu que se importava com as dicas por algum tempo, mas logo saiu patinando impecavelmente. Não se arriscaria em tentar fazer piruetas e mortais, mas com certeza sabia bem o que estava fazendo ao pegar impulso e deixar que seu corpo fosse carregado sobre os finos metais sob os pés. estava boquiaberto.
- Como eu nunca soube que você era tão boa nisso? – Perguntou ainda em choque, enquanto pressionava os dedos ao redor dos corrimões com tanta força que os nós dos mesmos já começavam a ficar brancos demais.
- Há muitas coisas que você não sabe sobre mim, meu caro amigo – a garota respondeu, fazendo uma pose um tanto presunçosa.
- Sério?
- Na verdade, não – ela respondeu, dando risada. – Meu pai adorava esquiar e patinar. Acabou me ensinando um pouco quando eu era pequena entre uma viagem de férias e outra. Acho que insisti tanto que ele acabou cedendo, mesmo querendo me matar por isso. Minha mãe simplesmente odiava e ficava dizendo que ele ficaria cem por cento responsável por cuidar dos meus machucados e dos sete pontos que eu tomasse na testa.
- E tomou?
- Nunca. Só torci o tornozelo uma vez, mas foi bem de leve. Alguns dias colocando compressas geladas e eu já estava pronta para a próxima queda.
- Acho que vou precisar de bem mais que algumas compressas para me recuperar do estrago que isso aqui vai ser – o homem analisou, rindo de sua própria situação. Existiam crianças bastante pequenas ali com muito menos medo e cuidado que ele. Estava fazendo papel de idiota e já via alguns pais por ali, perto da pracinha que havia ao lado, dando algumas risadas dele.
riu, enquanto ajeitava os cabelos atrás das orelhas. Pegou as mãos do amigo e o puxou de leve, pedindo que ele relaxasse as pernas que estavam mais travadas que um tronco. Conseguiu arrastá-lo por uns quatro metros sem cair, até que ele tentou fazer uma curva e conseguiu criar um primeiro encontro pouco romântico entre o piso gelado e sua bunda. Podia pelo menos ter pagado um jantar antes ou comprado umas flores. Não conseguia nem analisar o quão imaturo ele era por estar pensando numa coisa dessas.
O instrutor ajudou o rapaz a se levantar enquanto a amiga dava suas últimas voltas pela pista, sentindo-se tão feliz e livre como não sentia há muito tempo. Perguntava a si mesma porque deixamos de fazer as coisas que tanto gostamos conforme crescemos. Vergonha? Medo? Será que realmente somos velhos demais para sermos felizes?
O funcionário avisou que o tempo limite tinha sido atingido e ofereceu mais meia hora por metade do preço. Os dois amigos negaram educadamente e devolveram os patins. Quando saíram, entrelaçou os dedos nos da amiga que riu ao sentir o quanto a mão dele ainda estava fria e úmida pelas quedas no gelo.
- Ei, casal – um homem de cabelos já brancos e bagunçados chamou a atenção dos dois. – Não levem isso de uma forma invasiva, por favor, mas observei vocês enquanto patinavam e decidi fazer um desenho do momento.
O desenhista mostrou a folha grande e quadrada, repleta de traços pretos finos que capturavam as risadas enquanto tentava a todo custo conseguir manter seu melhor amigo firme sobre os próprios pés. Era uma imagem linda, alegre e fez com que os dois sorrissem sem ao menos conseguirem se importar com toda a construção romântica do momento ou da ilustração.
- Ficou incrível – respondeu, retirando a carteira do bolso da calça. – Quanto fica?
- Para um casal bonito desse jeito faço até um desconto.
Conversaram sobre valores e o desenhista logo plastificou o retrato, entregando-o em uma sacola plástica de uma sapataria que ficava ali por perto. Os amigos agradeceram absurdamente pela linda imagem e seguiram seu rumo com os sorrisos ainda mais largos que antes.
Ainda caminhando – queria encontrar uma farmácia para comprar uma espuma de barbear nova -, acabaram encontrando uma garotinha que brincava na praça e decidiu abordá-los, perguntando se podia ver o desenho que eles tinham comprado do “moço pintor”.
- Vocês são tão lindos – a menininha, que parecia ter por volta de cinco anos disse, visivelmente deslumbrada. – Meu pai deixou a mamãe quando eu era um bebezinho. Eu só conheço ele por fotos velhas, mas sei que ela ficou muito triste porque amava ele de verdade. Todo dia eu peço para o papai do céu para dar um namorado bem bonzinho para ela. Quero que ela seja feliz e apaixonada que nem vocês dois são.
não conteve o impulso de pegar a garota pelos braços e a apertar contra seu corpo, em um abraço desajeitado.
- Ela vai ser muito feliz, viu? Eu tenho certeza. Aposto que ela já está muito contente de ter uma menina tão linda e esperta como filha.
A garotinha riu, concordando que era mesmo muito esperta – tirava nota máxima em todas as atividades de sua escolinha. Conversaram mais um pouco e, assim que a mãe dela chegou, cumprimentaram-na e decidiram seguir seus caminhos.
- Espero que esse dia tenha servido para diminuir um pouco essa sua cara de defunto – disse, juntando seus pertences jogados pela sala do apartamento do amigo. – Se precisar de algo, mande mensagem no whatsapp. Nada de ligações, sabe que eu odeio ligações a menos que a pessoa esteja realmente à beira de um ataque grave ou prestes a cometer homicídio. Ou os dois.
Foi embora balançando o quadril e batendo os pés, tentando reencaixá-los nas sapatilhas que usava. Entrou no elevador praguejando algum palavrão que não soube identificar, mas riu de qualquer forma enquanto trancava a porta do apartamento e tirava os próprios sapatos.
Tomou um longo banho quente, tentando se livrar de toda aquela sensação de frio que o perseguia e, pela primeira vez nos últimos dias, cantarolou algo enquanto enchia os cabelos de shampoo. Escolheu uma canção dos Beatles e até arriscou uma mais nova, moda na rádio, mas percebeu que ainda estava bem longe de saber todas as letras dessas músicas modernas.
Deitou em sua cama e respirou fundo, fechando os olhos e permitindo que imagens do primeiro dia bom dos últimos tempos invadissem sua mente, revivendo ao máximo aquelas sensações que não queria esquecer. Ao final de tudo, sua cabeça martelava os pequenos detalhes: o sorriso incrível de ao patinar, a sensação de segurar suas mãos (que de repente parecia tão estranha) e a palavra escolhida a dedo pela criança: “apaixonada”. Foram chamados de casal por ela, pelo desenhista, pelo instrutor de patinação e até pelo rapaz em treinamento no caixa da farmácia – que fez uma piada bem infame sobre compra de preservativos e acabou recebendo um duro olhar de repreensão de outra funcionária do estabelecimento. É, talvez ele não conseguisse o emprego. Mas nem era isso que realmente importava, apesar de ser um tanto engraçado.
Ele conhecia aquela mulher há mais de uma década e poderia citar suas comidas preferidas, a cor que ela mais gostava, o doce predileto, os maiores micos e os melhores aniversários sem nem pensar muito sobre isso. Era tão natural quanto adorar aquela pessoa incrível que o havia apoiado ao longo dos anos e enchido seus dias de risadas e conselhos – mesmo aqueles que ele com certeza não havia pedido. Era tão verdadeiro quanto o carinho que sentia por ela e todas as noites que passavam na casa um do outro, maratonando Harry Potter e zerando todos os estoques de pipoca e chocolates das despensas dos pais. Era tão puro quanto as brincadeiras e os cuidados com os joelhos ralados e o primeiro coração partido. Era tão real quanto aquela confusão que agora nublava sua mente.
De tanto revirar os cobertores, acabou vencido pelo cansaço e apagou, sonhando com um mundo em que as coisas tivessem se saído um tanto diferentes daquilo que ele esperava. E, com certeza, muito diferentes daquilo que ele sentia.
*****
voltou ao serviço no começo da semana seguinte, tentando driblar todos os incessantes questionamentos sobre como ele estava se sentindo, se havia superado e as ainda mais indiscretas perguntas de: “Mas o que aconteceu?”, “Ela te traiu?”, “Você nunca percebeu que ela não gostava de você dessa forma? Achei que fosse meio óbvio”. É, esse ultimo com certeza tinha doído e estraçalhado todo e qualquer pingo de orgulho que pudesse ter lhe restado.
No almoço, desceu para a pequena padaria próxima aos escritórios e pediu um misto quente com suco de laranja. Não tinha apetite para um almoço mais completo que isso. Estava comendo pela simples obrigação natural de comer. Ainda se perguntava se não acabaria vomitando o sanduíche assim que mais alguém perguntasse se ele sabia quem era o cara que fez com que Michelle colocasse um par de chifres em sua cabeça.
Quando olhou para o lado, teve a mais incrível surpresa que poderia sequer cogitar ter naquele momento: ela estava bem ali, com um vestido florido e óculos de sol na cabeça, encomendando um cento de brigadeiro para uma festa surpresa a que iria no dia seguinte. , por um momento, poderia dizer que tinha esquecido como se respirava. Pensou em fugir, em gritar, em sair correndo e socando tudo que visse pela frente, pensou inclusive em fingir-se de desentendido e agir como se nada tivesse acontecido e estava começando a se contentar com essa última ideia. Mas ela o viu antes e andou até o banco em que ele estava sentado.
- Não esperava te ver por aqui – Michelle disse, com um sorriso de lado, esboçando uma vergonha que não era nada típica dela. – Como você está?
- Péssimo – respondeu simplesmente, limpando a boca com um guardanapo.
- Sinto muito por isso. Não queria ter causado nenhum mal à sua vida. Realmente espero que um dia você seja capaz de me perdoar pelo que eu tive que fazer. Juro que, se pudesse, evitaria tanto sofrimento.
- Eu sei, Michelle. Eu não guardo mágoas. Já te perdoei. A dor não é mais pelo abandono, é pela insistência das fofocas. Eu estou de coração totalmente aberto e disposto para esquecer tudo que aconteceu, mas fica difícil quando eu virei o centro das atenções de uma hora para a outra sem ter pedido por isso.
Michelle respirou fundo, percebendo-se incapaz de dizer qualquer outra coisa. Não havia mais nada a ser feito.
- Bom, sinto muito por isso também. Infelizmente, não podemos fazer as pessoas amadurecerem, não é mesmo? Mas você é uma pessoa incrível e merece o mundo. Espero mesmo que você seja tão feliz quanto uma pessoa pode ser nessa vida. E, se for possível, que seja ainda mais feliz que isso.
- Também torço para que você seja feliz – disse simplesmente e foi alarmado por uma ideia passageira. – Michelle, posso fazer uma pergunta?
- Claro, até duas – brincou, arrumando a tira da bolsa nos ombros.
- O que você quis dizer exatamente com aquela carta? Quer dizer, eu entendi claramente que estava me deixando pelo seu verdadeiro amor. Não tinha como não compreender aquilo. Mas a minha pergunta é sobre o que você quis dizer quando me acusou de não admitir um amor incondicional que eu sentia. Eu fiquei me perguntando isso por semanas. Nem a entendeu quando leu. Estamos os dois curiosos agora, sem a mínima noção do que estava havendo.
- Ah, isso. – Riu. – Achei que vocês dois fossem entender logo.
- Entender o quê, exatamente?
- Que é ela, . Às vezes me pergunto como você pôde não perceber isso durante todos esses anos. Todo aquele carinho imensurável não era só por vocês serem melhores amigos. Nunca foi.
O homem teve que respirar fundo algumas vezes para tentar assimilar o que acabara de ouvir. Já não bastasse tudo que acontecera no dia que passaram juntos, ainda tinha que lidar com mais esse soco no meio de sua cara.
- Preciso ir agora – ela declarou. – Tenho uma reunião com um cliente sobre a sessão de fotos para os convites do aniversário de quinze anos de sua filha. Bom, espero que vocês sejam felizes. Deu para ver pela sua expressão que você não estava esperando por isso e, mesmo assim, sabe que não estou errada.
Michelle estendeu a mão para o ex-noivo, que acabou puxando-a para um abraço desajeitado.
- Obrigado – ele disse. – Por tudo.
- Eu que tenho que agradecer. Não perde sua garota. Vocês já levaram tempo demais – anunciou antes de ir embora, deixando o rapaz com o olhar perdido e uma mão na testa, pensando em que droga ele faria agora.
*****
já tinha colocado o pijama há umas boas horas e tinha trocado de posição no sofá pelo menos umas treze vezes. Agora, estava tentando explodir o próprio cérebro ao deslocar toda a circulação sanguínea de seu corpo para a cabeça. Ficar de ponta cabeça era uma péssima ideia, mas, no momento, parecia uma ótima opção de movimento enquanto F.R.I.E.N.D.S. reprisava pela milésima vez a terceira temporada inteira.
Deixou o episódio rolando e foi para a cozinha, determinada a preparar um brigadeiro. Havia sido atingida bruscamente por um daqueles desejos gestacionais que dão em não-grávidas de vez em quando. Quase chorou – maldita TPM – quando descobriu que não tinha comprado leite condensado. Compensou suas lombrigas chocólatras com um pote de nutella e uma colher de sobremesa. Já tinha desistido há muito tempo de ser uma maníaca com seu próprio peso. Controlava-se, mas, vez ou outra, aceitava satisfazer suas vontades alimentares.
Estava se deliciando com o creme de avelã, enquanto ria pela centésima vez de alguma dose de sarcasmo de Chandler Bing quando a campainha tocou. Olhou para os próprios pés descalços e, depois, para o pijama de malha antiga que mostrava alguns cachorrinhos sobre uma estampa de patinhas ao fundo. O cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto bagunçado e a boca provavelmente estava suja de chocolate. Mas quem mandou aparecerem à sua porta àquela hora? Quem sabe não assustava alguma criança e fazia a noite ser minimamente mais divertida?
- Não tenho dinheiro, nem tempo e nem paciência. E o doce que tem é meu, não vou dividir – disse em disparada, assim que abriu a porta, como se tivesse ensaiado aquilo por horas. Sequer tinha levantado o olhar de seu pote dos sonhos. Mas quando o fez, arregalou os olhos ao ver um enorme buquê de tulipas coloridas – suas flores favoritas.
- Foi mal – falou. – Não sabia que a senhorita já estava acompanhada pelo seu egoísmo nessa bela noite.
riu e puxou o amigo pela camisa, trancando a porta atrás de si ao ver que ele já havia entrado. Agradeceu pelas flores e se ofereceu para pegar uma colher para ele.
- Não, não – ele meneou a cabeça, claramente nervoso. – Eu vim aqui para falar com você. Por favor, não me interrompe. Eu precisei de coragem demais para vir até aqui, não piora a situação.
A garota engoliu em seco, erguendo as mãos em sinal de rendição e voltou a se sentar no sofá, aguardando por o que lá que fosse tão importante que o amigo quisesse dizer.
- Eu encontrei a Michelle. Ela estava bem e feliz e me fez perceber que eu também tenho a vontade e o direito de ficar bem e feliz. Acabei sendo vencido pela minha curiosidade e arrisquei perguntar sobre aquele trecho da carta que nos causou tanta dúvida. E, droga, não sei como eu não notei isso tudo antes.
Ele estava vermelho, falando alto e gesticulando de uma forma um tanto incomum à sua pessoa. mantinha uma sobrancelha franzida.
- É você. Todos os abraços e os ciúmes, os fins de semana e os segredos na madrugada. Sempre foi você. , eu te amo. Sempre amei, mas acho que fui idiota o suficiente para não enxergar. E agora estou aqui com as suas flores favoritas e o coração na mão porque não quero perder mais um segundo sequer dessa vida sem você ao meu lado. Talvez você nem me queira e eu sei que posso destruir nossa amizade por algo que você pode considerar um simples capricho meu. Mas acontece que eu não posso mais esperar, não posso mais evitar. Eu amo você e preciso saber se eu sou um retardado passando vergonha ou se você sente o mesmo.
começou a rir descontroladamente, contorcendo a barriga que já começava a doer. sentiu seu corpo inteiro duplicar a tensão sobre os músculos e o coração apertou.
- Eu realmente não acredito que você demorou tanto tempo para perceber isso. Porra, , todo mundo sempre soube que eu sou louca por você. Só você, cego, não viu.
O rapaz começou a se sentir um babaca novamente, mas a amiga não permitiu que aquilo durasse muito tempo. Levantou-se rapidamente e passou os braços pelo pescoço dele, beijando-o da forma que queria há tanto tempo.
Em uma mistura inexplicável de sentimentos e sensações, no meio do que com certeza era o melhor beijo de toda a sua vida, agradeceu a ex-noiva mentalmente. Por mais abrupto que tivesse sido o fim deles, foi isso que permitiu que o mais novo e belo começo que ele poderia desejar pudesse existir. E ele tinha certeza de que esse era o último de todos os inícios. Uma história que teria um longo meio e, Deus quisesse, jamais um fim.
Agora entendia quando lhe disseram que um coração não poderia ser despedaçado e remendado pela mesma pessoa. Seu peito machucado precisava de carinho, de amor e de alguns pontos, mas esses pontos tinham que ser dados por outra pessoa. Pela sua pessoa. E dali para frente, seriam os dois contra o mundo, fechando as cicatrizes um do outro.
Fim.
Nota da autora: Eu nem acredito que consegui completar esse ficstape aos acréscimos do segundo tempo. Foi 100% sangue nos olhos, noites viradas, mas cá temos um novo amorzinho meu.
Ficou curtinha, eu sei, mas foi feita com muito carinho sobre essa música que eu gosto tanto.
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Outras Fanfics:
04. Someone New
06. If I Could Fly
4th of the July
Side by Side
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