Finalizada Em: 03/12/2019

Capítulo Único

Paris, 2019

null sabia que tinha algo errado ao acordar naquele sábado pela manhã e não ver null ao seu lado na cama. O marido não costumava acordar cedo em seu dia de folga, muito menos sair da cama sem dar-lhe um beijo na testa e esperar que ela acordasse e sorrisse para ele. Fora assim nos últimos 30 anos, sem faltar um dia se quer, por que, então, ele havia feito diferente naquela manhã?
Coçou os olhos e sentou-se na cama, olhando em volta rapidamente para ter a certeza de que o homem não estava no banheiro da suíte. Sem sinal de vida no outro cômodo. Onde diabos estava null?
Em sua cabeceira estava a garrafa de chardonnay pela metade, então, sua memória voltou como um tiro atingido seu peito e ela soube o que havia acontecido na noite anterior. null não estava em casa. Ele não havia dormido lá.
Sentou-se no colchão macio e repassou as últimas cenas que havia em sua mente.

Paris, 1989

Era o dia mais feliz de sua vida, ou, ao menos, deveria ser.
null suspirou e cobriu o rosto, sentindo que se encarasse a irmã por mais algum segundo as lágrimas escorreriam e ela não teria para onde correr. A verdade precisaria ser dita em voz alta e o destino de todos seria selado.
O casamento estava marcado há quase oito meses, quando seu pai descobrira que null estava começando a desconfiar que null tinha um caso com seu primo null. Não que ele estivesse errado, mas o casamento seria o negócio perfeito para ambas famílias, trazendo ainda mais riqueza e promessas de ótimos negócios futuros.
A família de null era grande e reconhecida no ramo petrolífero francês e a de null tinha ótimos contatos com diversos países em seu escritório de advocacia. Todos sabiam que o senhor Benoit tinha alguns negócios à margem de suspeitas e os laços entre null e null fariam com que tivesse proteção sempre que algo ameaçasse estourar na mídia mundial.
Seria benéfico para todos, não haveria um perdedor neste casamento arranjado. Até que null descobriu, após boatos, que sua adorável namorada fora vista aos beijos com um primo distante.
null ficara enlouquecido e, em termos legais, invadira a casa de null para tirar as devidas satisfações sobre os boatos que rondavam a elite parisiense. Lembrava-se perfeitamente da expressão de seu sogro ao entrar no quarto da filha e ouvir as palavras de null, questionando-a.
Minutos após isso, o senhor Benoit o convenceu a pedir a mão de sua filha mais velha, alegando que era uma moça jovem e inexperiente, que não tinha conhecimento sobre a vida e havia cometido um erro, mas que todos podiam perceber que ela realmente amava o Maillard mais novo.
Oito meses após a oficialização do noivado, null estava com sua irmã no quarto, arrumando-se para o grande dia, até ouvir a mais nova suspirar e gaguejar antes de falar.
- null, e-eu vi vocês ontem à noite. – null prendeu a respiração e andou até a cama de dossel, sentando-se devagar para ter tempo suficiente de pensar no que diria à irmã.
- Quem, Lis? null e eu vamos nos casar hoje, não fizemos nada de errado ontem. Você quem não deveria espiar pela porta de meu quarto – arrumou a primeira desculpa que pensou e sorriu amarelo, pensando em parecer convincente e esconder que sabia do que a irmã falava.
- null, não se faça de sonsa, por favor – arregalou os olhos com as palavras de Lisbeth. A irmã mais nova. Em seus 16 anos sendo irmã mais velha, fora a primeira vez que vira a caçula ser grosseira. – Você sabe do que estou falando. Você e null. Ontem. No quintal.
- Lisbeth, você precisa me prometer que isso nunca chegará aos ouvidos de mais ninguém, O papai me mataria se soubesse que eu ainda falo com null após todos esses meses. E na véspera de meu casamento! Você sa...
- null! Como você pode fazer isso com null? Ele é um homem tão bom e tão bonito! Ele gosta de você de verdade, não são apenas negócios como muita gente insiste em dizer. Você pode ser tão feliz com ele se apenas deixar que te mostre o que realmente sente.
- Lis, você ainda é muito nova para entender a vida. Papai diz que eu ainda não sei viver e que não conheço o mundo, mas conheço muito mais do que qualquer um de vocês possa imaginar. Eu sei dos sentimentos de null por mim, mas desde o começo deixei claro para ele que não deveria esperar algum sentimento de mim, ele tem ciência disso – suspirou e deu de ombros, olhando para o chão. – Ele sabe.
- Você ama null? - null suspirou e cobriu o rosto, sentindo que se encarasse a irmã por mais algum segundo as lágrimas escorreriam e ela não teria para onde correr. A verdade precisaria ser dita em voz alta e o destino de todos seria selado.
- Precisamos descer, o casamento já vai começar.

Paris, 1989

- null, eu já disse que não! - com as mãos na cintura, null o encarou brava. Estava cansada de negar as dúvidas do marido, mas não podia fingir que não gostava do ciúmes que ele estava demonstrando.
- null, sua irmã me ligou e disse que viu coisas noite passada. Eu já havia notado sua proximidade com esse homem, mas trair-me na noite anterior ao nosso casamento?
- null, pela última vez, eu não estava com null ontem! - a voz enfurecida ecoava pelo quarto de hotel. A loira não admitiria que havia sim estado com null.
- null, o que houve com a garota que queria apenas dançar e observar a noite parisiense? Ela se perdeu no meio de euros e conferências?
- Talvez. Ou ela apenas cresceu e viu que a vida não é só isso - deu as costas ao recém marido e sentou-se na cama de dossel, tirando os sapatos que apertavam seus pés desde o início do dia. - Nós precisamos encarar nossas responsabilidades de agora em diante, null. Não somos mais crianças. Nossa fase passou.
- null, você tem vinte anos! Você ainda é uma criança! - null já não tinha certeza sobre o motivo da discussão, mas sabia que se não parasse, a noite de núpcias seria traumática para ambos.
- A idade não significa nada, null, mas sim suas responsabilidades e o comprometimento que tem com cada uma delas. Venha, ajude-me a tirar esse vestido.
A pergunta havia sido inocente, mas o homem não foi capaz de segurar a malícia em sua expressão, fazendo com null risse e o clima do quarto ficasse descontraído.

Paris, 1990

- Ainda não entendo porque você insiste em me dizer essas coisas melosas. Não fazem efeito em mim - a mulher sentou-se na cadeira da cozinha e assoprou o café, observando a fumaça que saía da caneca.
- Após um ano de casados, você ainda não nutre nenhum sentimento por mim, null? Nem mesmo carinho? – null mordeu o lábio inferior e apoiou as mãos na pia, abaixando a cabeça e sentindo todo o peso daqueles trezentos e sessenta e cinco dias em seus ombros. A cada dia, pensava mais e mais sobre o porquê de ter-se deixado convencer pelo pai de null.
Aquele deveria ser considerado o pior casamento da humanidade.
- null, meu querido, você sabe que estamos casados apenas para ajudar os negócios de nossas famílias, não seja sentimental sobre isso, não há necessidade – dando um gole pequeno na bebida quente, levantou-se da cadeira e bateu as mãos no vestido florido que cobria alguns centímetros de seu corpo. – Se me der licença, vou encontrar-me com aquele amigo da família que te falei.
null balançou os cachos castanhos e endireitou a coluna, olhando-se rapidamente na geladeira espelhada para verificar se estava tudo em ordem. Sorriu satisfeita com a imagem que via e deu as costas, saindo da cozinha. Porém, alguns passos depois, decidiu voltar e cutucar um pouco mais a ferida que estava criando em null.
- Querido, você ainda tem aquelas camisinhas guardadas na gaveta?

Paris, 2019

A dor de cabeça começava a incomodá-la, fazendo com que fechasse os olhos e respirasse fundo por alguns instantes. null apenas não conseguia recordar o motivo de ter embriagado-se sozinha após a discussão da noite anterior, pois não é como se tivesse algum sentimento pelo marido para reagir daquela maneira.
Decidiu que iria se levantar e tomar um banho quente, pois começava a sentir o cheiro de álcool em si mesma e não era mais uma mulher de 25 anos. Ao levantar-se, escorregou em algo e deu alguns passos trôpegos para frente, cuidando para que não caísse e o cheiro azedo invadiu suas narinas. Cheiro que até então não havia sentido.
Aos pés da cama, uma poça de líquido escuro que com certeza era vômito. Enrugando a testa, null levantou-se e despiu a roupa, caminhando para o banheiro. Abriu o chuveiro e deixou que a água quente queimasse seu corpo por alguns minutos, recordando-se do momento em que chegara em casa na noite anterior.

A casa estava escura, o que significava que null havia dormido e não esperava por ela. Abriu a porta de entrada e caminhou devagar para dentro, estancando ao lado da sala ao sentir o cheiro estranho que vinha de lá. Colocou a cabeça para dentro do cômodo e viu a silhueta do marido na poltrona de couro. Seguiu até a mão esticada, vendo uma pequena luz vermelha que soltava fumaça. Irritou-se imediatamente.
- Não havíamos combinado nada de cigarro dentro de casa, null? – perguntou nervosa, sem ao menos dar-lhe boa noite.
- Não havíamos combinado nada de traição neste mês, null? – o rebote a pegou desprevenida.
É verdade, pensou ela, havia combinado que eu não sairia com ninguém esse mês, pois o casamento de Leroy aconteceria no dia 28 e os pais deveriam aparentar estarem bem.
- Não me faça perguntas ridículas, null. Você sabe que eu odeio o cheiro dessa porcaria que você fuma – cruzou os braços e deu passos duros para dentro do cômodo, acendendo a luz rapidamente para que a claridade incomodasse o marido. – Eu odeio quando você fuma. Meu Deus, null, você precisa estar vivo até o casamento de seu filho.
- Um cigarro a mais, um cigarro a menos – deu de ombros e demonstrou não se importar com a luz nos olhos. – Fumei minha vida toda, null. Fumamos. Ou esqueceu-se das noites em que me pedia um cigarro após suplicar que eu metesse fundo em você? – o canto dos lábios levantou-se sutilmente, mas o suficiente para que null sentisse o sangue borbulhar em suas veias.
- Seu pau nunca foi o suficiente para mim, meu querido, ou eu não o teria traído todas essas vezes durante todos esses anos – deu de ombros e sorriu vitoriosa vendo o marido encolher-se sutilmente na poltrona.
- Deve ser por isso que nossos filhos saíram tão facilmente de você. Essa boceta deve estar tão larga...

- Seu filho da puta...

Paris, 1996

null não se lembrava da última vez que a esposa o abraçara com tanto medo. As mãos de dedos longos apertavam seus braços e ele sentia que ficariam as marcas após soltá-los, mas não poderia impedir que ela despejasse toda sua dor nele. No fundo de seu peito, sentia que era culpa sua, pois a briga fora iniciada por si.
- Seria uma menininha, null, eu sei disso. Seria nossa menininha – a voz chorosa de null cortou seu coração e o homem a abraçou mais forte, sabendo que precisava passar toda a força que tinha a esposa. – Por que isso aconteceu justo agora? Não é justo que tenhamos que passar por isso.
- null, não era para ser. Eu sei que está doendo, dói em mim também, mas nossos meninos precisam de nós, eles ainda não estão grandes o suficiente para entender o que está acontecendo. Por mais que você não queira, estarei ao lado e você estará segura comigo.

Na madrugada daquela quarta-feira, null acordara com dores fortes e em pânico ao ver sangue em seu colchão. Sacudira null até acordá-lo e agitar-se para que fossem ao hospital o mais rápido possível. Apenas duas horas e meia depois, receberam a notícia de que null havia perdido o quarto filho do casal.
null sentia que estava perdendo seu chão. Tinha certeza de que aquela seria a menina do casal, após os três meninos que tiveram nos últimos anos. Seu coração doía, seu corpo ainda parecia sentir as contrações da madrugada, no momento em que expelia o pequeno feto sem vida. Estava física e mentalmente acabada. E era culpa de null. Sempre era culpa do cretino de seu marido.
- Saia daqui – disse entredentes.
- O que...?
- Eu mandei sair, null, ou você por acaso ficou surdo? – o mais velho apenas tirou os braços da esposa e afastou-se, olhando ferido para ela. null fingiu não notar, mas pode ver as lágrimas que escorriam pelo rosto da marido.
null afastou-se rapidamente, saindo do quarto quase correndo, querendo ficar o mais longe possível da mulher que não entendia seus sentimentos por ela.

Paris, 1990

Seu pai havia dado o veredicto. null, emburrada, pulava os olhos do marido para o pai, não acreditando na discussão que seguia diante de si.
- Vocês realmente acham que isso é necessário? Não vejo motivos para isso se concretize, pai, você já tem Lisbeth e Thierry, caso seja necessário. Eu não preciso de crianças sendo espirradas para fora de mim.
Observou null sentar-se ao seu lado e pegar suas mãos, olhando em seus olhos de maneira a não deixa-la desviar.
– Pense, null, como seria incrível pequenas criaturinhas que saíram de nós correndo pela casa. Como seria uma voz manhosa te chamando e querendo seu colo, sentir seu amor.
Por um momento, null deixou-se imaginar a cena, sorrindo levemente ao ver uma pequena garotinha com suas expressões, correndo em sua direção.
- Tudo bem, pai, nós podemos tentar. Apenas não tenha tanta expectativa, não sabemos se um de nós dois é estéril.
- null, nos deixe à sós um momento – null observou null sair do escritório de seu pai e olhou para o progenitor, aguardando o que seria dito. – Você sabe porque sua mãe e eu nos casamos, não sabe, null?
- Sei, papai. Os negócios estavam decaindo e meus avós viram uma grande oportunidade casando vocês, é praticamente a história de nossas gerações. Casamentos arranjados visando negócios e estabilidade financeira – a garota deu de ombros e arqueou a sobrancelha, num gesto que sabia irritar o pai.
- Exatamente, mas quero que diga quantas vezes, fora desta casa, você viu sua mãe e eu em cenas que deixavam claro para terceiros que não havia amor em nosso casamento. Apenas uma – null sabia que estava pisando em gelo fino. Umedeceu os lábios e deu de ombros, sem responder a pergunta do pai.
- Nunca.
- Isso. Nós fazemos parte da elite parisiense, menina, e a elite vive disto, aparências. Você precisa manter as aparências quando estiver em locais públicos, como fazia antes de casar-se com null. Por que é tão difícil para você entender que é necessário mostrar-se apaixonada por aquele imbecil?
- Eu não o amo, pai! Nunca amei, nunca tive nenhum tipo de sentimento por ele – os braços estavam cruzados novamente em seu peito, mostrando que estava insatisfeita com o rumo da conversa e que, por ela, já teria sido encerrada. – Você e mamãe nunca foram um exemplo para mim, sempre via como vocês olhavam um para o outro. O que você sempre me disse, pai? Casamentos arranjados são para serem arranjados, mas como vou levar em frente o que sempre me ensinou, se você mesmo não demonstrava essas coisas?
- O que quer dizer com isso, garota? – a voz soou fria e distante e por alguns segundos null pensou que deveria parar por ali, mas a raiva estava bagunçando tanto sua mente, que não segurou as palavras na boca.
- Você chorou no enterro da mamãe.
- Eu nunca amei sua mãe, null. Não a repudiava, no entanto. Isabel era uma grande mulher, muito forte e muito querida. Éramos bons amigos, mas eu precisava ser um marido desconsolado que não entendia porque a vida era tão mesquinha e havia tirado de mim a mulher que eu mais amei – null sorriu, imaginando-se na mesma farsa durante anos, até que, por acidente, talvez, null morresse.
A atenção dos dois foi tirada quando, pela fresta que null havia deixado na porta, um soluço foi ouvido. null levantou-se e foi até na ponta dos pés, sabendo que quem espiava os dois não podia vê-la se aproximar. Abriu a porta rapidamente e, num salto, Lisbeth tentou enxugar as lágrimas que escorriam.
- Lis... – o pais das meninas arregalou os olhos, sabendo que a filha mais nova era muito jovem para entender como funcionava a vida na elite parisiense,
- Vocês são dois monstros – a garota correu.

Paris, 2019

Os olhos ainda estavam fechados quando recordou null na madrugada em que havia perdido seu quarto bebê. A imagem percorrera sua memória diversas vezes ao longo daqueles anos, mas sempre dava um jeito de espantá-las, em sua maioria, arrumando algum assunto bobo onde pudesse iniciar uma discussão com o marido, recordando-se, em seguida, que na noite em que perdera sua garotinha a briga começara com ele. Mesmo que por conta de mais uma de suas ações impensadas.
null, porém, decidiu naquela manhã de sábado que era hora de aceitar que esnobara a dor de null, que não permitira que ele sofresse pelo bebê perdido, como se não tivesse o direito, já que era ela quem carregava a criança naqueles breves dois meses e meio.
Como podia ter sido tão insensível e esquecido do homem tão doce que ele era? Sabia que null também estava sofrendo, mas não deu o braço a torcer para que ele pudesse mostrar que também doía nele, apesar de ouvi-lo chorar algumas noites após aquela fatídica madrugada fria.
Abrindo os olhos para procurar o sabonete perfumado, decidiu que pediria desculpas para ele, mesmo que mais de quinze anos houvessem passado. null precisava daquela redenção e, quem sabe, enfim sentir a dor que tivera de esconder por tanto tempo. Nos poucos minutos em que permaneceu de olhos fechados sob a água quente, null sentiu-se um monstro. Sentimento que nunca havia visto durante os trinta anos de casamento.
E foi tal sentimento que a fez parar, abismada, e perceber que desde os primeiros meses do relacionamento, ela sempre fora o monstro. Ela sempre fizera o marido sofrer, cutucando a ferida toda vez que sabia estar cicatrizando, fazendo com que ele chafurdasse na dor e permanecesse perdido em seu limbo durante meses, sem escapatória, pois ela estivera à espreita para empurrar a escada quando ele começava a subir.

Paris, 1983

null estava escondida atrás do sofá, respirando baixo para que os pais não descobrissem que havia uma testemunha da conversa sórdida se desenrolava. Aquela fora a primeira vez que a pré-adolescente tinha um vislumbre de como era a vida adulta da elite parisiense e imaginou se em todos os outros países acontecia da mesma forma. Se os pais de seus amigos, os amigos de seus pais e todos os adultos que conhecia eram daquela mesma maneira e era algum tipo de complô implícito entre a sociedade.
- Isabel, acho que está na hora de conversamos com null e iniciar sua apresentação à sociedade francesa. A garota ainda é muito ingênua e não entende o que acontecerá nos próximos anos. Esses dias a ouvi conversando com aquela garota, Julien, e elas falavam sobre o que os garotos deveriam ter sob as calças. A menina não sabe o que é um pau, Isabel – o pai parecia nervoso, mas ela não se importou com aquilo no momento.
Então, os garotos tinham um pau. Certo, Mas o que era isso?
- Marsílio, ela ainda é muito jovem. Devemos esperar mais dois anos, pelo menos, até que ela seja apresentada como sucessora de nossa empresa. Enquanto isso, podemos continuar procurando por noivos em potencial e vendo quais trarão maiores benefícios para nós. Não pense pequeno e não aja por impulso. Apresentá-la agora seria um erro, imagine quantos pretendentes seriam perdidos? Ela não teve sua primeira menstruação ainda, deixe-a ser uma criança por mais alguns meses e pensaremos novamente sobre isso.
Ouviu o pai suspirar e soube que ele havia se rendido aos encantos da esposa. Era sempre assim, seu pai dava opinião sob determinado assunto, mas se sua mãe não concordasse com ela, a palavra final era dela. Assim seria seu casamento. Cheio de amor, filhos e bons negócios.
null, porém, não sabia que em alguns instantes descobriria a verdade sobre seus pais, seu casamento e, até mesmo, os filhos que tanto amavam.
- Sobre noite retrasada, você usou camisinha, certo? Pelo amor de Deus, Marsílio, você não pode aparecer com um filho por aí – null arregalou os olhos.
- Claro que sim, minha querida, os únicos filhos que terei em minha vida serão seus, afinal, precisamos cuidar que nossa empresa não saia de nosso sangue – Marsílio acendeu o charuto amadeirado que costumava fumar e null ouvir o tilintar do gelo no copo de uísque. – Mas conte, Bel, como estão as coisas com aquele seu namoradinho? Ouvi dizer que ele é muito bom na cama – a voz do pai estava diferente, mas a garota não sabia exatamente o que ele estava tentando dizer.
- Ah, mas é claro! Quem sabe, se tivermos a oportunidade um dia, eu o traga aqui. Seria tão bom ter vocês dois dentro de mim.
- Você é uma pervertida safada.
null descobriu o que era um pau. E o que eram os barulhos que vinham do quarto de seus pais nas madrugadas.

Paris, 2004

null havia saído de casa na noite anterior e, após mais de 12 horas, não havia voltado. null sabia que ela estava com null e só fazia piorar a dor que sentia em seu peito.
As crianças corriam pelo quintal e ele tomava café e fumava um cigarro de palha, sentado à sala de estar.
Fazia exatamente vinte e um anos que estavam casados e a cada dia, pensava que era um erro ter ouvido o sogro naquela terça-feira de 1989. Estava claro, sempre esteve, que null não o amava como amava-a, mas talvez, um talvez bem pequeno, ela tivesse deixado de sentir aquelas coisas ruins que sempre lhe jogava na cara em qualquer discussão.
Mas após vinte e um anos, ela ainda via null. E isso machucava como quando você puxava a casquinha de um ralado no joelho.
Ouviu a porta da sala se abrir e a esposa apareceu, parecendo bastante cansada e com olheiras profundas.
null sentiu a sobrancelha arquear, mas em desespero, pois sempre brigavam quando ele fumava dentro de casa. Porém, diferente de todas as outras vezes, null não falou nada. Não discutiu. Não bradou. Aproximou -se devagar e sentou em seu colo, abraçando seu pescoço e deixando a cabeça repousar em seu ombro.
- null? - chamou baixo, deixando a mão correr para a coluna esguia e acariciar com a ponta dos dedos. - O que houve, meu amor?
Sem resposta, permaneceu na posição durante longos minutos, acariciando a esposa e sentindo a camisa ser molhada por lágrimas, acompanhando o balançar do corpo enquanto entoava uma calma canção que sua mãe ensinara.
Algo muito ruim acontecera para deixar null daquele jeito, mas ele seria tão ruim assim por aproveitar o pequeno aconchego?
- Meu pai... Ele está internado, null - franziu o cenho indiscutível e esperou por explicações. - Eu estava no hospital a noite inteira. Lisbeth me ligou e fui até eles o mais rápido que pude. Ele infartou - null respirou fundo. O sogro tinha algumas ideias que iam contra seus princípios, mas era um bom homem. Sempre fora, ao menos para ele.
- Como ele está agora? - continuou acariciando a esposa, sentindo -se um monstro por gostar de vê-la fragilizada. Apenas porque estava buscando consolo em si, aproximando-o.
- Quando saí, desacordado. Foi bem feito. Lisbeth estava desesperada quando me ligou. Eu... Eu não sei o que fazer se ele se for, null. Foi horrível quando mamãe morreu, mas ele é meu mundo.
- Vai ficar tudo bem, null. Vai ficar tudo bem.
Recostando a cabeça em seu ombro novamente, null passou a respirar profundamente e null decidiu que a levaria para cama.

Paris, 2019

Fora o dia mais desesperador de sua vida. Achou que fosse perder seu pai e seu mundo estava em ruínas. null fora tão bom com ela. Tão delicado. Cuidadoso. Estivera ao seu lado em todos os momentos, até mesmo quando fora visitar seu pai, diversas vezes ao dia.
Era um bom homem. Que ela corrompera ao longo dos anos.
Onde estaria null agora? Em algum prostíbulo? Com alguma garota de programa? Ou aquela nova secretária da empresa?
Enquanto penteava o cabelo e encarava o próprio rosto envelhecido no espelho da penteadeira, perguntou-se qual o motivo de null continuar ali após todas as vezes em que ela o destroçara. Em seu ínfimo, pensou que a gota d-água fora a noite anterior.
Ela precisava ser uma megera toda vez que null era um cavalheiro?

Paris, 1990

null sorriu e null sentiu o estômago revirar. O esposo parecia tão feliz, no outro lado do quintal, enquanto apontava para ela e mostrava, com gestos estranhos, o ângulo da barriga que se projetava pelo vestido fino.
Ele estava radiante. Mais do que ela, a grávida.
null havia se decido sobre ter filhos e tinha certeza, ou quase isso, de que seria uma boa mãe, mas vendo-os ali, queria que os pais de seus filhos fosse null. Talvez os filhos fossem lindos, caso puxassem os olhos de null, mas ela não queria filhos de um homem que não amava.
Era estranho olhar-se no espelho a cada dia e ver sua barriga crescendo, seu corpo mudando com a nova etapa, seus hormônios começando a demonstrar instabilidade. Estava grávida. Sentiria a maior dádiva da vida de uma mulher, segundo sua avó.
null não estava feliz.
- null, você quer um pouco? – virou-se para trás e sorriu para Claire, uma amiga de infância, que lhe oferecia um copo com suco de laranja. – Agora você precisa de muitas vitaminas, pois há uma pessoinha que gosta muito delas – levou a mão para sua barriga e acariciou, brincando. null achou estranho, pois ainda não havia um bebê ali, mas decidiu ignorar.
- Você acha que eu serei uma boa mãe? – tomou um gole do suco e virou-se para a amiga, sentando-se no banco. – Eu acho que não.
- Por que diz isso? Eu acho que você será ótima – Claire deu de ombros e sorriu, virando-se para sair da varanda, mas olhando para null uma última vez. – E se você não for, nós culpamos sua mãe.
Observou Claire sumir entre as pessoas que estavam na casa de seus pais naquele domingo à tarde. A visão ficou turva e o corpo parecia girar quando null levou às mãos à cabeça e sentiu-se balançar em suas pernas.
O que estava acontecendo? Talvez fosse sua pressão muito alta, afinal, estava cada dia mais nervosa.
Braços rodearam sua cintura e a breve sensação de segurança foi embora quando o leve aroma de lavanda, do seu sabonete caseiro, penetrou suas narinas.
- Você está bem, meu anjo? – a voz de null, preocupada daquele jeito, fez com que null sentisse ainda mais tudo girar.
- Eu estou bem null. Largue-me – tentou desvencilhar as mãos de null, mas estava tentando bloquear seus movimentos e segurá-la. – EU JÁ DISSE QUE ESTOU BEM! – o homem assustou-se com o grito, assim como os convidados, que os olharam.
null abriu os olhos e empurrou as mãos do marido e deu passos para o lado, saindo de sua frente.
- Quando eu precisar de você null, eu chamarei. Me deixe em paz.

Paris, 2001

- Cheguei! - null levantou-se e correu para o marido. Os olhos estavam inchados e as mãos ainda tremiam. - Shhh, respire, meu amor - o homem beijou a testa da esposa e abraçou forte, sentindo o corpo pequeno ter alguns espasmos em seus braços. - O que aconteceu?
- Foi Morrice. Ele estava brincando e gritou. Corri até ele e estava caído ao chão, com Antoine e Christopher desesperados. Corri com ele para cá e ele está cirurgia, null. Seu apêndice estourou.
null sentiu o ar sumir de seus pulmões. Seu pequeno menino está passando por uma cirurgia e ainda não completou seus dez anos de idade.
- Eu sou uma péssima mãe. Devia tê-lo levado ao médico quando disse sobre a dor a primeira vez.
- Você é a melhor mãe que eu já conheci, null. Você cuida, ama, brinca e briga. Todos os dias, você senta aqueles três durante horas e conta histórias, brinca do que eles sugerem e ajuda com a lições de casa.
- Você também faz isso...
- Sim, mas você é incrível. Porque você não teve uma mãe assim e não deixou que isso interferisse no jeito de criar nossos filhos. Você é incrível, null - selou os lábios da esposa e sentiu o coração acelerar. Ela não havia o empurrado.

Paris, 2019

A porta do hall bateu e null sentiu o coração acelerar, porém, fingiu que não estava preocupada, nem demonstrou nervosismo em vê-lo novamente.
Minutos se passaram e nenhum outro barulho foi ouvido em toda a casa, então, ela percebeu que fora apenas algum barulho qualquer que imaginou ser a porta abrindo-se. Onde estava com a cabeça? Nem mesmo quando null sofrera aquele acidente de carro ficou tão preocupada com ele, apesar de sentir o peito pesado durante os meses em que ficou internado.
- Onde você estava? – null continuou com seu cigarro, fazendo a esposa se enfurecer ainda mais.
- Não te interessa onde estava ou com quem estava. Você tem sua vida, null, e eu não me meto nela, não se meta na minha – null estava furiosa com o homem e sentia que daquela vez, apena daquela vez, seria capaz de batê-lo se a irritasse demais.
- Queira você ou não, eu ainda sou seu marido e pai dos seus filhos. Você realmente não me deve satisfação do que você faz, null, mas poderia ter um pouco de consideração e avisar quando passar metade de suas vinte e quatro horas diárias fora de casa.
- E seu eu estivesse fazendo compras? No hospital? Com meu pai ou minha irmã? Você continuaria me atacando dessa forma? Deixando implícito o que acha que eu estava fazendo? Você me trata como se eu fosse uma vagabunda – a mulher cruzou os braços e o encarou debochada, como sabia que o irritava. Se null queria brigar, ela iria não esperaria o último assalto para reagir.
- Às vezes você se parece com uma e eu nunca te disse nada, não é agora que vou mudar minha forma de agir com você. Mas acho que isso já foi longe demais.
null sentiu uma pontada estranha no peito, mas estava tão furiosa que a ignorou por completo, sentindo o sangue a ponto de borbulhar em suas veias.


Paris, 1996

- null Maillard? – a voz desconhecida perguntou e a loira sentiu medo, pois não era de nenhuma das mulheres que conhecia.
- Sim, quem deseja? – continuou cortando a cebola e decidindo ignorar a ligação estranha.
- Sou Marianne, do Hôpital Saint Joseph. Você é o primeiro contado de emergência do senhor null – null gritou ao telefone, pedindo desculpas em seguida, e enrolando o dedo com o pano de pratos que estava em seu ombro. Quando ouviu o local em que a mulher estava, pensou em seu pai, mas lembrou-se de que ele não estava no país no momento. Então, em segundos, pensou em Lisbeth e null, cortando-se por conta da distração.
- null?
- Sim, a senhora pode vir, por gentileza? Precisa assinar alguns papeis.
No hospital, null ficou preocupada com o que ouviu, mesmo que não demostrasse e fingisse não perceber que a equipe médica a olhava confusa. Seu marido havia sofrido um grave acidente de caro, porque ela não demonstrava alguma reação? Algum medo?
null passava por cirurgia e null estava tentando falar com sua irmã, pois alguém precisaria ficar com as crianças por algumas horas, até que ela fosse para casa com o fim do horário de visitas.
Após falar com uma prima e verificar se estava tudo bem em sua casa, sentou-se nas cadeiras de espera do hospital e apoiou os cotovelos nos joelhos, soltando a cabeça entre as mãos e respirando fundo algumas vezes.
Estivera tão preocupada em falar com alguém para cuidar de seus filhos, que não pensou em como o marido deveria estar. Era um acidente de carro, poderia ter morrido e, então, ela ficaria sozinha. Onde estava com a cabeça? null, apesar de alguns momentos, era um bom homem e faria uma grande falta, principalmente naquele momento.
O médico demoraria muito para chamá-la?

Paris, 1998

null estava confuso. Seus filhos deveriam estar em casa, mas tudo estava no mais profundo silêncio. Onde estariam as três pestinhas de sua vida?
Vasculhou toda a parte inferior da casa e não havia um sinal das crianças ou null, o que era estranho. Pensando que eles poderiam ter saído, decidiu ir para o quarto e descansar um pouco, pois o dia havia sido difícil. Franziu o cenho ao chegar à metade da escada, pois, jogado em um dos degraus, estava um pequeno papel rosa. null odiava coisas fora do lugar.
Pegou o papel e o abriu, reconhecendo a letra da esposa de imediato.

"Treze de março. Que dia é hoje?"

null estava confuso novamente. Se era treze de março, que dia mais seria? Colocou o papel em seu bolso traseiro e balançou a cabeça. Talvez fosse alguma brincadeira com as crianças e o papel cairá ali.
Pensando onde sua família poderia estar, abriu a porta do quarto e assustou-se em seguida.
- SURPRESA! - quatro vozes distinguiram-se, mostrando que sua família estava escondida de si.
Antoine, o filho mais Velho, segurava a ponta de uma faixa que era suspensa por Morrice no meio e o pequeno Christopher na outra ponta. null segurava um pequeno bolo com algumas velas finas.
- Treze de março é meu aniversário - riu sozinho e se aproximou, beijando os filhos e parando em frente à esposa. - Achei que não fosse lembrar.

Paris, 1991

A risada vinha do final do corredor, mais especificamente do quarto de hospedes. null andou nas pontas dos pés, certificando-se de que a esposa não ouviria sua chegada. Devagar, espiou pela porta entreaberta e a viu, linda, completamente nua em cima da cama.
Os dedos percorriam todo o contorno do corpo, iluminado apenas pela lua, enquanto a outra mão parecida desenhar em seus seios.
Era uma visão que nunca tivera, nem mesmo antes de estarem casados, e segurou-se para não soltar algum tipo de exclamação de surpresa.
Permaneceu por alguns minutos ali, parado, apenas observando a beleza da mulher com quem tivera a sorte de se casar. null era a criatura mais linda que vira em toda sua vida, com as bochechas naturalmente rosadas e os longos fios espalhados pela cama, teve vontade de buscar sua câmera e registrar para todo sempre aquela doce cena.
Acompanhou os delicados movimentos dos dedos, o subir e descer descontínuo do peito, os lábios entreabertos e as respirações que ficavam pesadas. Como amava aquela mulher. Uma perfeita rosa. Linda, delicada e doce, porém, espinhosa, dificultando aproximação.
null desceu a mão por seu baixo-ventre, acariciando-se, tocando cada centímetro de pele que sentia nas pontas dos dedos. Chegou até o centro, umedecendo-se e acariciando.
null já baixara o zíper de sua calça, acariciando-se também.
Separados por uma porta, cada um sentia um prazer diferente. null, deliciando-se com toques delicados. null, mordendo os lábios para que a respiração pesada não escapasse.
O homem queria empurrar a porta e tomar sua mulher, fazê-la completamente sua e sentir seu corpo estremecer embaixo do seu. Queria passear com sua língua por todo o delineado da esposa, seu sabor, seu suor. Queria tê-la, mas segurava-se, pois não sabia qual seria sua reação.
Mas todas as suas barreiras foram ao chão quando, ao atingir o ponto máximo de seu prazer, null gemeu.
- null...

Paris, 2019

Há quanto tempo não iam para a cama como naquela noite? Há quanto tempo não tornavam-se um só e deixavam que seus corpos suados e dominados pelo prazer decidissem seus próximos passos? Sentia falta dos toques apaixonados de null e seus gemidos roucos no pé do ouvido.
Em todos aqueles anos, havia apenas um lugar no qual os dois sempre se entendiam, mas null já não sabia há quanto tempo não o levava por aqueles devaneios.
Encarou-se durante longo tempo, pensando no motivo de todas as lembranças estarem voltando naquele momento, após aquela briga. E já havia chegado à conclusão, só não queria dizê-la ou pensar com todas as letras, pois faria com que fosse real e preferia que continuasse apenas aquilo, algo subconsciente.
Vagou pela casa, rastejando os pés pelo carpete recém trocado, até chegar a cozinha e servir-se um copo de suco de laranja gelado. Era a técnica secreta de null para curar ressacas e sempre dava certo. Nunca souberam se de fato ajudava ou era uma espécie de emplasto.
Sentou-se no banco e perdeu-se olhando para a cozinha branca. Há quanto tempo estavam juntos? Trinta anos. Trinta e um se contar desde a primeira vez que foram para a cama. Sempre fora uma pessoa horrível, que gostava de machucar e não sentia remorso algum do que fazia e falava.
E null? Por que continuava ali? Por que aguentava tudo o que o fazia passar? Todas as vezes em que o machucou e cutucou a ferida até que ele não aguentasse e falasse algo para ser o errado de toda a discussão?
Não era possível que mesmo após tudo aquilo, ele sentisse algo bom por ela. Deveria ser comodismo. Só podia ser isso.
E ela? null finalmente dava-se conta.
Infelizmente, ela sabia, era tarde demais.

Paris, 1995

O cansaço atingiu null ao sentir outro orgasmo percorrer seu corpo. Deus, como amava null e tudo aquilo que a fazia sentir.
Porém, não poderia dormir daquela vez. Havia uma coisa muito séria que precisava conversar com o primo e teria que ser ali, naquele quarto de hotel.
- null, está acordado? – o homem respondeu puxando-a para mais perto e selando seu ombro. – Há algo que preciso dizer.
- O que houve, null? Você parece preocupada.
- Faz cerca de um mês que fui para a cama com null pela última vez – null assentiu, mesmo que a mais nova não pudesse ver. - Ao mesmo tempo, eu dormi com você nessa mesma época. No mesmo dia, na verdade – o homem levantou-se assustado, sentando-se na beirada da cama e sentindo o coração palpitar.
- null, tenha muito cuidado com o que você irá dizer. Isso poderá causar muitas coisas – disse apreensivo, pois, se de fato fosse seu primeiro pensamento, não estaria preparado para aquilo.
- Estou grávida – null respirou fundo e fechou os olhos com força. – E não sei qual de vocês é o pai.

Paris, 2016

Era o aniversário de vinte e dois anos de Christopher, seu filho mais novo, no entanto, null decidira que o presente seria seu.
O filho ainda morava consigo e null, então, era fácil achar fios de cabelo ou algum lugar em que teria algo que tivesse seu DNA. Era hora de saber de quem o garoto era filho, dúvida que a atormentava pelos últimos vinte anos.
Entrou no quarto do filho e foi diretamente para a cama, buscar fios de cabelo no travesseiro do garoto. Havia diversos fios espalhados pela cama, compridos, loiros, ruivos, cacheados e alguns que não pareciam cabelo de mulher.
Porém, no travesseiro, apenas aquele pequeno cacho escuro que Christopher herdara de sua família materna. O que contribuía para sua desconfiança ainda mais.
O fio foi colocado em um saquinho de papel e null saiu do quarto o mais rápido que pode, com medo de ser vista por alguma das pessoas que a auxiliava a preparar a festa surpresa de seu caçula.
Ao sair, deparou-se com Antoine, seu primogênito, encostado na porta, de braços cruzados, a encarando.
- O que fazia no quarto dele? Está procurando algum vestígio da última garota que ele trouxe aqui? – o homem riu, abrindo os braços e puxando a mãe para um abraço rápido. – Ele ainda é muito novo para tomar um jeito nessa vida, mãe, mas não se preocupe. Você ainda verá os filhos dele correndo pelos corredores dessa casa.
null riu e balançou a cabeça, vendo um dos grandes amores de sua vida descendo as escadas para o andar térreo da casa.
Christopher teria o mesmo sangue que o dele com cem por cento de compatibilidade?
Duas semanas depois, quando null entrou em sua casa com o envelope do exame, não teve coragem de abri-lo e simplesmente acendeu a lareira e o jogou ali, observando queimar e virar mais uma da porção de cinzas que havia no lugar.

Paris, 2002

- Você acha que seria mais fácil se fôssemos nós dois? - null soltou o canudo e olhou para null, sentindo -se estranha em estar com ele ali, na varanda da casa se seu pai.
- Eu acho que seria muito mais difícil. Nossos pais não se gostam, sabe disso, imagine só? Acho que a cada jantar, um jogo de pratos e copos seria substituído - riu docemente e, pela primeira vez, null não sentiu o estômago revirar.
- Talvez, eu goste de null. Ele é um bom homem e sempre muito delicado - deu de ombros, suspirando. Por que era tudo tão difícil quando se tratava de null?
- Você o ama, null. Apenas não é capaz de permitir-se sentir, porque leva à ferro e fogo o que seus pais sempre disseram - null parecia bastante decidido em fazê-la entender seus sentimentos pelo marido e a mulher começava a se perguntar o porquê. - Veja Lisbeth, aquela doce criança. Ela se recusa a viver como seus pais querem. Já disse que não se importa em ser deserdada, mas que nunca casará com um homem que não ama.
- O que está havendo com você? - foi direta. O primo não gostava de rodeios e sempre preferia a pergunta desejada.
- Estou apaixonado, null. E vou me casar com ela.
null preparou-se para a dor que viria. A sensação de que seus pés estavam no vácuo e seu peito se comprimia como se estivesse no fundo do mar, não aguentando a pressão exercida sobre si. Mas não houve nada além de um sorriso bobo e feliz.
- Serei a madrinha.

Paris, 2019

A mulher estava à beira de um colapso. Lembrara-se de toda a discussão da noite anterior. As ofensas, as quase agressões de sua parte, os momentos em que, pela primeira vez, null dissera que talvez aquilo já tivesse ido longe demais.

null dissera tantas vezes que já não estava dando certo, que null, em sua fúria descontrolada, resolvera ataca-lo com algo que havia prometido à si mesma nunca contar à ninguém.
- Pelo menos, eu sei que meus três filhos são meus. Ainda mais o meu favorito.
No momento em que as palavras saíram de sua boca, null sentiu o peso delas. O marido parou tudo o que está fazendo e a encarou, franzindo o cenho e abrindo a boca algumas vezes antes de finalmente falar algo.
- O que você está querendo dizer com isso? – sem responder à pergunta do marido, a loira deu alguns passos para trás e respirou fundo, pensando no que poderia dizer para tirar qualquer ideia de seus pensamento. – null, o que você quer dizer com isso?


Em trinta e um anos, null nunca ouvir aquele tom de voz vindo de null. O ódio era quase palpável de tão grande e seus olhos estavam escuros como nunca vira. Seu marido estava transformado em alguém que não conhecia e teve medo do que poderia acontecer com aquela versão do homem, outrora tão calmo.
Sem que tivesse tempo de responder qualquer coisa, null a empurrou de sua frente e saiu pela sala. null ficou assustada, ouvindo, apenas, a porta do hall se bater.
Por que ela falara aquilo?

Paris, 2010

- Você não acha que isso sairá muito caro? – tirou os olhos do folheto de informações e encarou o marido, torcendo os lábios para ele. – Não sei, não tenho certeza se ele merece. E é tão novo ainda.
- null, minha querida, deixe o menino aproveitar sua juventude. Quanto ele terá essa nova experiência de fazer um intercâmbio e tão cedo? Sem contar que ele irá com a escola, então não vamos ficar tão preocupados, pois muitos professores vão.
- Christopher só não é mais louco do que Morrice, você sabe – null continuava defendendo que o filho mais novo não estava pronto para uma aventura como aquela.
- Exatamente! E você se lembra de como em seu intercâmbio, Morrice voltou muito mais responsável?
- Sim, ele continua sendo desligado, mas é um garoto aplicado – null riu de seu comentário e deu de ombros para o marido, decidida a aceitar a opinião dele sobre o intercâmbio do filho e as consequências que aquilo teria.

Paris, 1988

- Então, quer dizer que você é filha do grande senhor Benoit? – o homem sorriu de lado, levando o cigarro aos lábios enquanto esperava sua resposta.
- Sim, eu sou. Às vezes tenho dúvidas se isso me veio para o bem ou para o mal. Acredito, na verdade, que não saberia dizer – a jovem deu de ombros, sentindo-se aérea, mas feliz. Havia algum tempo que seus pais não a deixavam sair e aproveitar a noite parisiense.
null já não aguentava mais permanecer em todas aquelas reuniões chatas e entrevistas, chamada-conferências e tudo aquilo. Ela ainda era nova demais para aprender suas futuras obrigações como presidente da empresa de seu pai.
O que ela gostava mesmo era de noites como aquela, em que o pai a dava uma folga curta e ela fugia para o centro da cidade.
A noite de Paris era a coisa mais linda que vira em sua vida e, mesmo que várias vezes por semana, sempre ficava encantada quando chegava ao local e, de longe, observava o brilho da Torre Eiffel.
Naquela noite, porém, fora à um bar próximo ao monumento, onde, agora, estava embaixo com o tal null Maillard.
- A vida, querida null Benoit, é muito mais do que empresas, holerites e faturamentos. Você precisa dar-se conta disso antes que esteja afundada dentro de salas conferenciais como seu pai – o homem, alguns anos mais velho que ela, sorriu e por um momento, null pensou que seu sorriso era capaz de superar todo o brilho de sua Paris noturna. – O que você está pensando?
- Que você deveria parar de falar e me beijar.

Paris, 1992

O pequeno Antoine batia palminhas e sorria meio brincalhão, meio assustado. Olhava em volta, para todas aquelas pessoas cantando e sorria ainda mais para os pais que o seguravam e cantavam junto.
Era o primeiro aniversário de um Benoit-Maillard e, além de amigos e familiares, muitos associados e clientes de ambas empresas estavam presentes no aniversário do garotinho. E claro, havia a imprensa do lado de fora, querendo fotografar quem aparecesse por lá.
null estava comendo seu pedaço de bolo quando viu uma mulher desconhecida aproximar-se de null e iniciar uma conversa que parecia íntima demais. Os encarou por longos minutos, vendo a ruiva abrir a boca e projetar-se, sempre tentando encostar em seu marido ou pronunciar os seios que pulavam para fora de seu vestido. Quem era aquela e como ousava fazer algo do tipo no aniversário de seu filho?
null levantou-se e caminhou devagar por entre as pessoas que estavam no salão, sorrindo para quem a cumprimentava e apressando o passo sempre que alguém tentava a pará-la para conversar.
- Amor, você pode me ajudar por um momento? –null pareceu confuso com a atitude inesperada da mais nova, porém, assentiu e virou as costas para as mulheres, indo até o local em que a mulher estava. – Se você chegar perto de meu marido novamente, saberá do que null Benoit-Maillard é capaz.

Paris, 2019

Analisando todas as lembranças que eram jogadas em sua mente naquela manhã, null percebeu que havia sido muito ruim com null durante muito tempo, mas nem sempre fora assim.
Ela havia sido uma esposa dedicada. Que cuidava e, quando estava de bom humor, lhe dava carinho. É claro que poderia ter sido melhor, principalmente quando null precisou e não havia ninguém ao seu lado. E não precisava ter dito todas as vezes as coisas ruins, apenas para atacá-lo sem motivo.
Encarou a foto do casamento sobre a estante da sala, notando como, mesmo com o casamento sendo arranjado, estavam felizes no grande dia. null não lembrava de ter sorrido daquela maneira em outra foto e null estava radiante com seu smoking preto.
A idade havia contribuído para o relacionamento estar fracassado daquela forma? Sabia que era uma mulher muito bonita e ainda chamava atenção quando estava na rua e null continuava com seus olhos perspicazes e seduzentes. Mas trinta anos depois, sob todas as brigas e machucados reabertos, eles estavam casados. Estavam em uma rotina maçante e sem previsão de fim. Era um péssimo ciclo.
null cogitou que fora aquilo. Um grande amor sem a possibilidade de florescer, fadado ao fracasso por inúmeros motivos e que havia chego ao fim. Ela não queria. Queria lutar por eles. Por tudo que acontecera ao longo do casamento, afinal, relacionamentos eram isso, certo? Cada um abdicar de algo para que possam se encontrar num meio termo bom para ambos.
null perdera anos demais acreditando que, como seus pais, havia casado apenas para preservar os negócios da família.
Sabia que não, talvez fosse hora de sentar e conversar com null sobre mentiras que contara durante aqueles anos de casamento, mas sentia medo de sua reação.
Não era uma mulher vulgar e nunca tivera qualquer envolvimento com outro homem, apenas null. Mas esse era um caso antigo e fazia tantos anos que os dois não se olhavam com segundas intenções que, se ainda não fosse a dúvida sobre a paternidade de Christopher, nem mesmo lembraria de que dormira com o primo por tanto tempo.
null estava decidida a tomar um novo rumo em seu casamento e contar a verdade a null. Todas as vezes em que dissera estar com outros homens e ter passado a noite com eles, era mentira. Porque queria parecer como sua mãe. Porque queria que seu casamento fosse apenas negócios, mas era incapaz de tudo aquilo.
Era hora de deixá-lo saber.

Paris, 1994

- Vamos, null, mais um pouquinho e nós conseguiremos! – null não sabia quantas vezes havia escutado a mesma frase ao longo daquela madrugada, mas tinha certeza de que não seria a última vez.
Estava fraca, com fome e com dores. Não tinha mais noção do intervalo entre suas contrações, nem mesmo se havia tomado algum medicamento para amenizar. Sabia que aquele seria o mais difícil de seus partos, pois Christopher seria um bebê grande. E fazia dezoito horas que entrara em trabalho de parto. Seus outros dois foram extremamente rápidos, mas o terceiro filho não queria ajudar a mulher.
null gritou e apertou a mão de null ainda mais forte, fazendo o exercício de respiração em seguida, para que não perdesse o fôlego e não conseguisse a nova onda de força necessária.
null falava algo em seu ouvido, mas seu desespero era tão grande que não compreendia uma sílaba sequer. Sentia alguém bater levemente em sua testa, algo para secar o suor talvez. Ou algo que a fizesse sentir raiva e projetasse mais força em seu ventre e no meio de suas pernas.
- null, ele está coroando. Vamos, só mais um pouquinho – null apertou a mão de null e gritou uma última vez, empurrando com o máximo de força que achou ser capaz.
Logo, um choro estridente preencheu a sala e a mãe desmoronou sobre a maca, fechando os olhos e tentando controlar a respiração novamente. Não sentia a mão do marido e ouvia as vozes de todos que estava ali.
- É um menino tão lindo. Veja como é cabeludo! – a loira sentia seu corpo dolorido e o sono já tomava conta de seu organismo, mas teve um último lapso de força ao ouvir a voz de null em seu ouvido, aproximando-se com o recém-nascido para que ela pudesse vê-lo.
- Olhe, null, como esse é um meninão – null sorriu vendo o marido soltar as lágrimas. Ela era uma mulher de sorte. Seus filhos teriam um pai incrível e que ensinaria tudo o que eles precisariam saber sobre o mundo.

Paris, 2019

null estava tremendo.
Estava preparado para ver null. Havia passado a noite toda pensando em como conversaria com ela e finalmente colocaria um ponto final em toda àquela história que nunca devia ter começado. Se pudesse voltar no tempo, voltaria para a fatídica noite de 1988 em que a conheceu e não teria chamado a bela garota de vestido azul para dançar.
Não teria a levado para a cama, muito menos conhecido seu pai. Não teria filhos. Não teria uma esposa mal-humorada e que buscava nas menores brechas algo para machucá-lo.
Mas seria um homem feliz, de coração inteiro e sem mágoas profundas que talvez nunca tivessem algum cuidado.
null sabia que seu casamento estava fadado ao fracasso desde que o pai de null o fizera acreditar que era a única solução para sobrevivência das empresas Benoit e Maillard. E porquê? Apenas porque o homem com negócios por baixo do pano precisava de alguns advogados sempre à disposição. Era um homem inocente que deixara-se levar pela promessa de uma boa vida e um bom casamento, mas fora enganado, traído, humilhado.
null era uma megera indomável. O prazer que sentia em maltratar as pessoas era palpável. Era fria, calculista e importava-se apenas com seus próprios desejos. Como uma mulher de seu tipo conseguia sentir algum tipo de afeição pelos filhos? Será que sentia, na verdade?
Mas era bela e, quando necessário, era o ser mais doce da Terra. Durante as madrugadas, sem nem mesmo perceber, enroscava seu corpo no de null e o abraçava fortemente, sem se mexer durante horas, até o dia começar a amanhecer e o resquício de sono permitir que o marido a acordasse sem que brigas ecoassem pelo quarto do casal.
null sabia que null não era o tipo de mulher que casava por amor, não fora criada para acreditar nisso, mas era uma mulher que precisava de carinho e cuidados. Coisas que nenhum outro homem fora capaz de fazer durante aqueles anos.
Ela tivera diversos casos, com diversos homens diferentes, mas nenhum deles permaneceu à seu lado por muito tempo. Talvez porque ela fosse um ser humano desprezível em grande parte dos dias. Talvez, porque esses casos nunca aconteceram e ela só os falava para tentar magoá-lo.
Olhando para o Sol que ameaçava sair, null suspirou e deixou um sorriso fraco rasgar seus lábios. Era triste. Docemente triste, mas estava decidido. Aquela fora a última vez que null o fazia sentir que não era digno de nada. Fosse pelo bem ou pelo mal, ele daria um ultimato.
Não era possível que após trinta e um anos, nada nunca mudasse.
null faria mudar.

null estava na varanda, perdida em seus pensamentos, quando a porta da sala bateu e ela correu para dentro de casa, sabendo que naquele momento realmente era null chegando.
O homem parecia impecável. Perfeitamente alinhado, sem cheiro de álcool ou qualquer coisa que fugisse de seu estado normal. A mulher nunca pensou que fosse ficar tão aliviada em sentir o costumeiro odor de nicotina que transcendia o marido e suas roupas do dia.
Horas talvez não fossem o bastante para alguém tomar a iniciativa e iniciar a séria conversa que ambos sabiam ser necessária, mas minutos bastaram para que cada um observasse o outro nos mínimos detalhes e notassem coisas nunca vistas.
null percebera os olhos vermelhos e com pequenas bolsas escuras. Os lábios ressecados de quem passara a noite bebendo e não sabia ao certo como acabar com a sensação de garganta seca.
A esposa estava com o vestido florido que sempre usava em momentos que julgava importantes, os cabelos soltos e despenteados. Sentia, ao longe, o cheiro do perfume que ela adorava e sempre fora o melhor presente nos aniversários de casamento. Os pés, descalços, estavam inquietos e null sentiu o coração palpitar acelerado, querendo correr e beijá-la longamente, enquanto outra parte de si queria manda-la ao espaço e que sumisse de sua vida.
Os anos foram bons com null Benoit-Maillard. Ela não envelhecia como as outras pessoas. Continuava bela, com curvas delicadas e chamativas. O sorriso a única coisa que ainda fazia null lembrar-se do motivo de ter se casado com ela. null era linda. Uma mulher de atitude, independente e que não media esforços para alcançar seus objetivos, mas uma mulher rude e egoísta.
Era a perfeita combinação de tudo o que era bom e mau, o certo e o errado. Quem fazia null lutar mais e mais para suas conquistas, mas quem o desestimulava a alcança-las. Era a antagonista da história que protagonizava. O caos que destruía a paz.
null considerava que sua vida era uma brisa, talvez um temporal. null era seu furacão. Destruía. Matava. Mas era o Sol no dia seguinte, mostrando que ainda havia esperança.
Para null, null nunca esteve tão bonito. Os olhos marcados pela noite insone, os dentes marcando os lábios inferiores e o chapéu batendo em sua perna. Como podia nunca ter reparado na beleza do homem que esteve ao seu lado durante vinte anos? Era de uma beleza simples, mas desafiadora. Os olhos, apesar de já terem completado seus cinquenta e cinco anos, ainda mantinham o brilho travesso de garoto apaixonado pela vida.
Nos primeiros anos do relacionamento, null costumava dizer-se um libertário, apesar de ela nunca ter entendido com certeza o que ele queria dizer. O que pensava, então, era onde todo aquele amor à vida, à paixão por aventuras e o sorriso de menino brincalhão foram parar.
Ela havia destruído.
null era um homem lindo, inteligente e sabia como fazer uma pessoa rir. Porque, perguntava-se novamente naquele dia, ele havia permanecido ao seu lado durante todos aqueles anos em que apenas soubera maltratá-lo?
- Eu poderia ter ido embora na primeira vez em que você me machucou, null – sua respiração pareceu presa, o coração rimbombando em seu peito. – Não teríamos nem mesmo nos casado, mas você era apenas uma criança e eu decidi perdoá-la, pois ainda não sabia direito o que estava fazendo. Só que você continuou, cada vez mais. Nem mesmo quando nosso primeiro filho nasceu, você tomou jeito. Eu estive à ponto de deixar você incontáveis vezes, mas você sempre pressentia e as coisas mudavam.
- null...
- Não, null, agora é a minha vez de falar – null soltou o chapéu ao chão e deu um passo à frente, aproximando-se de null em alguns centímetros. – Você não sabe como foi difícil acordar todos esses anos, sem saber se eu poderia beijar tua face ou correr para o mais longe possível. Você nunca me permitiu ficar por muito tempo, somente quando você queria, o quanto você queria. Isso me destruiu tantas vezes, até que eu aprendi a aceitar. E agora, nem mesmo eu quero esperar os momentos em que você me quer. Finjo que já não existem mais e, quando você quer, surpreendo-me como na noite em que te conheci e você era a garota que não sabia ao certo o que fazer da vida, que queria dançar e ver o amanhecer de Paris.
null estava receosa do rumo das palavras de null. Ele nunca havia imposto sua voz, nunca quisera conversar sobre eles verdadeiramente e, após a briga da noite anterior, a mulher sentia que tudo havia terminado entre eles. Após trinta anos de matrimônio.
- Nós éramos jovens, null, e não serei hipócrita em dizer que você foi a única errada. Destruímos um ao outro, repetidas vezes, e talvez seja isso. Nós, talvez, sempre estivemos fadados à isso, autodestruição. Somos uma bomba relógio e não sabemos quando iremos implodir.
- Sim, sempre fomos uma bomba relógio. E eu fui um ser humano desprezível e mereço todo o rancor que você tiver de mim, mas null, pensei tanta coisa e por tanto tempo nas últimas horas e...
- null, não venha dizer que deparou-se com seus sentimentos e que me pede desculpas. Você não acha que é tarde demais para isso?
- Não acho. Estou, na verdade, odiando a mim mesma. Porque dei-me conta do homem que sempre tive ao meu lado e de tudo o que perdi por agir dessa maneira. Passei tanto tempo tentando me convencer de que nosso casamento deveria ser como o de meus pais, sem amor, apenas negócios, que me perdi dentro de mim mesma e criei subterfúgios para fugir do que tudo me apontava, querendo colocar em mim que não, não era amor, nunca foi. Mas é, sempre fora. Eu apenas levei muito tempo para percebê-lo.
- null... – sem deixa-lo falar, a mulher aproximou-se rapidamente e selou os lábios do marido, pousando as mãos em seus ombros e o segurando para que não se afastasse. Permaneceu com os lábios grudados por poucos instantes e afastou-se ligeiramente para encarar os olhos castanhos que sempre esconderam as tormentas do mundo.
- Somos uma bomba relógio. Eu sou a pólvora e você meu fio vermelho. Você é a única pessoa capaz de me desarmar e eu sou a única que pode dar sentido para seu monstro interior. Juntos, somos capazes de destruir o que tocarmos, somos perigosos, e essa é a melhor parte de nós. null... Eu... Eu amo você.
Como um soco, as palavras de null atingiram null. O homem a afastou bruscamente e deu passos para trás, aumentando o espaço que os separava. Com as mãos no rosto, gritou, assustando-a, e tão logo se afastou, voltou para perto e segurou sua cintura, puxando-a para si.
- Você sabe, null, quantas vezes eu tive a oportunidade de ficar com outras mulheres? De pedir divórcio? De simplesmente sair por aquela porta e nunca mais voltar? Perdi as contas. Eu poderia ter ido embora por todos esses anos, poderia ter desaparecido de sua vida e esquecido que um dia me casei com você. Mas, null, eu amo você.
- Por que você continuou aqui, null? Por que você não foi embora enquanto era tempo? – null sussurrou, aproximando o rosto do marido e sentindo o cheiro de cigarro que vinha de suas roupas e cabelo. As mãos rodearam a nuca e os dedos longos acariciaram a pele fria.
- Porque eu sou um libertário, null – null sorriu para ela. – E nós somos uma bomba relógio.

Paris, 2029

Olhando ao redor, null não reconheceu muitas das pessoas que estavam em sua frente, sorrindo e batendo palmas. Os filhos e suas famílias eram os mais próximos, logo em frente à grande mesa branca. Outros familiares, amigos e clientes preenchiam os lugares no salão, mas a mulher só podia sorrir e apertar fortemente os dedos de null.
- Essa é a primeira vez que temos bodas e realmente nos amamos, estamos felizes – o homem sussurrou em seu ouvido e null apertou o sorriso, lembrando-se novamente, de quantos jantares como aquele ela perdera.
- O primeiro de muitos. A não ser que, você sabe, null...
- Um de nós tenha explodido? - perguntou brincalhão, sabendo que seria exatamente isso o que null falaria.
- Sim. Porque não podemos confiar em bombas relógio - em meio aos aplausos que ficaram mais fortes, o casal selou os lábios. - Quarenta anos! - null sorriu.
- E contando!

Paris, 1988

null deixou o copo vazio em cima de uma mesa qualquer e voltou para o círculo de seus amigos, rindo de alguma piada que não ouvira direito. Estava aéreo, feliz e meio bêbado, mas não poderia estar melhor.
Era a primeira noite quente em muitas semanas. Paris, iluminada àquela maneira, poderia ser comparada à um sonho ou à Noite Estrelada, de Van Gogh. Ali, tão próximo à Torre Eiffel e em um bar que não sabia o nome, null sentia que algo muito bom iria acontecer.
A música soava alta em seus ouvidos e seu corpo mexia-se de acordo com o que achava certo. O clima do local era intenso e as pessoas estavam felizes com o início do verão. Aquela era a primeira de muitas festas que iria naquele ano. Tinha vontade de interromper seus amigos falando de arte e exclamar alguma frase de Karl Marx, apenas por diversão, mas estava tão perdido no estupor que o dominava, que permanecia balançando-se lentamente e observando em volta, em busca de algo que ainda não identificara, apesar de não saber o que procurava.
Foi quando, entre um riff de guitarra e outro, que seus olhos pousaram sobre a garota que entrava no bar com algumas outras. Rindo, era o ser mais bonito que vira em toda sua vida. Naquele momento, null encontrou o que procurava. Seguiu a garota por toda entrada do bar, até que ela se juntou com um grupo de outras pessoas e segurou um copo de cerveja, dançando timidamente enquanto o álcool ainda não fazia efeito.
- Aquela é null Benoit – ouviu um de seus amigos falar e apontar para a garota que captara sua atenção.
- É mesmo? – perguntou, franzindo o cenho. Conhecia aquele sobrenome. null riu e deu de ombros, decidindo chamar a garota para dançar.
- Sim – o amigo riu e balançou a cabeça. – Cuidado, null. Essa mulher destruirá sua vida.




Fim.



Nota da autora: Sem nota.



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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