Capítulo Único
— E terminamos.
Projetei o meu corpo para frente, me aproximando consideravelmente da penteadeira. Mexi com o cabelo negro e ondulado, alisei a franja curta, mas o que realmente se destacava era a maquiagem. Os meus olhos verdes tinham uma sombra preta esfumaçada, enquanto os lábios finos e definidos estavam pintados de vermelho.
— Então? — insistiu Gregory após um tempo de silêncio.
Pelo espelho podia ver a silhueta de Kate nos observando, nas mãos segurava o celular, algo comum.
— Acho que está bom. — Dei de ombros, enquanto observava a expressão de expectativa de Gregory se desfazer. — Estou brincando! — Deixei que uma risada descontraída saísse por entre meus lábios. — Está ótimo. Como sempre.
— Pelos céus, Charlie! — Levou uma mão ao peito. — Você sempre me assusta.
— E você sempre cai. — Rolei os olhos.
— Você é cruel. — Semicerrou os olhos, fingindo irritação.
Meu celular deu sinal de vida sobre a penteadeira, a vibração soou ainda mais forte sobre a madeira branca. O identificador mostrava o rosto redondo de minha mãe. Fiquei levemente surpresa com a ligação àquela hora, talvez estaria me ligando para desejar boa sorte mais cedo que o esperado.
— Boa tarde, sol da minha galáxia.
A risada dela retiniu do outro lado da ligação.
— Boa tarde, gravidade do meu planeta Terra.
Gregory foi para o fundo do cômodo, observei ele conversar algo com Kate.
— Como você está?
— Estou ótima, amor. E você?
— Melhor agora.
Ela riu mais uma vez.
— Sua tia Anna está mandando um beijo. — Quase podia ver ela rolar os olhos enquanto repassava o recado, era uma das muitas semelhanças que tínhamos.
— Mande outro para ela. Estou com saudade.
— Nos vimos ontem.
— Na verdade, falava sobre tia Anna.
— Ah. Imaginei.
E fez-se silêncio. Ela não tinha me ligado para desejar boa sorte, percebi pelo silêncio gritante que se fez na ligação e de repente fiquei preocupada.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não exatamente. Só é estranho, não queria te ligar por isso, não agora. Mas acho que ficaria brava se eu não te ligasse.
— O que foi? — Me remexi incomodada na cadeira, o som do couro chamou a atenção da dupla e agora eu tinha o olhar deles sobre mim.
— Eu recebi uma ligação do hospital hoje, no telefone mesmo.
— O que aconteceu?
— Era sobre Georgia.
Primeiro o choque foi por ouvir aquele nome depois de tanto tempo. Em segundo pelo fato de a ligação vir de um hospital. E por último, a ligação foi para a casa dos meus pais.
— Sobre o que era?
— Ela está internada. Parece que alguém a deixou logo cedo no hospital, não estava nada bem, os médicos não souberam dizer se era álcool, ou droga, ou os dois. Quem sabe?
— Por que ligaram para você?
— Falaram que era um dos números nos contratos de emergência do celular dela. E fomos o único que conseguiram contato.
Eu não podia acreditar que em todos aqueles anos, mesmo depois de tudo que acontecera entre nós duas, era o número da casa onde cresci que estava no contato de emergência de Georgia.
— Charlie?
— Oi. — voltei a realidade.
— O que vai fazer?
— Eu não sei. Qual hospital que é?
— Silver Birch Hospital.
— Tudo bem. Vou ver o que faço.
— Você está bem?
— Estou sim. Só um pouco chocada.
— Tudo bem. Depois nos falamos, então.
— Sim. Obrigada por ter me ligado, mãe.
— Por nada, amor.
— Te amo.
— Também te amo, querida.
Desliguei a chamada e fiquei encarando a tela bloqueada do celular.
— Charlie. — Senti um toque delicado em meu ombro, levantei o rosto encontrando Kate postada ao meu lado. — Aconteceu alguma coisa?
— Se lembra de Georgia?
O rosto de minha empresaria retorceu-se em uma expressão confusa, que reforçava as poucas rugas que os seus quarenta e cinco anos lhe trouxera. Ela sabia da história com Georgia, mesmo que tivesse acontecido antes de termos nos conhecido.
— Sim.
— Ligaram para minha mãe, no telefone da nossa casa. Ela está internada.
— E ligaram para seus pais?
Gregory estava do meu outro lado.
— Também não entendi direito. Parece que o número do telefone de casa estava entre os números de emergência dela.
— Que coisa mais esquisita. — O maquiador fez uma careta, passou a mão pelo cabelo platinado, jogando a franja para trás.
— Kate. — Girei a cadeira para o lado de minha empresária. — Quanto tempo temos até o show?
— Mas é o quê? — Gregory gritou em minhas costas. — Você não está pensando...
— Talvez ela esteja precisando de algo. Minha mãe falou que foi o único contato que o hospital conseguiu conversar.
— Charlotte, você deve estar louca. — Kate fitou-me seriamente, tomando a sua pose autoritária, tinha os braços cruzados ante o corpo. — Você tem um show para fazer.
— Quanto tempo temos, Kate?
— Por que vai atrás dela? — a questão veio do homem. — Depois de tanto tempo, Charlie.
— E pense em você. Como vai se sentir? Faz tanto tempo que não a vê e depois de tudo o que aconteceu.
— Vocês não têm que se preocupar com isso. — Me coloquei em pé, Kate tinha vantagem na altura por conta dos saltos finos. — Posso garantir que o que aconteceu já ficou no passado. Eu já superei tudo o que passamos. É ela quem tem o número da minha família, então se alguém não superou algo é Georgia.
Kate trocou olhares com Gregory, como se esperasse que o homem tivesse algo mais a dizer.
— Tudo bem.
— Kate!
— Vai com ela Gregory.
— Por que?
— Não preciso de babá. — Bufei insatisfeita.
— Só quero garantir que não vá se atrasar. Você só tem uma hora, Charlotte. Uma hora!
— Estamos de volta em 40 minutos. — pronunciou um maquiador contrariado. — Em menos tempo se Charlie fizer alguma besteira.
— Levem um dos seguranças também.
Não era animação que me tomava por dentro quando saímos pelo saguão do hotel. Eu diria que era ansiedade, depois de tanto tempo, ver Georgia seria o teste definitivo para eu me provar que dentro de mim não tinha mais resquício algum daquilo que um dia senti por ela.
As vezes não conseguia acreditar que era possível caber tanta beleza em uma única pessoa. Observei a forma delicada como Georgia penteavas suas madeixas loiras.
— O que está fazendo? — Ela riu consigo mesma, sem parar de mexer com a escova.
— Só estava te vendo. — Sorri delicadamente e por fim entrei no quarto.
Georgia girou a cadeira de rodinhas, um item vindo direto da minha escrivaninha. Os olhos de um azul intenso se prenderam a mim, ainda podia sentir o poder que o seu olhar tinha sobre a minha respiração, quase como se estivesse vivendo novamente a primeira vez que nos encontramos no corredor da escola.
— Devia passar um pouco de maquiagem. — Colocou-se em pé em um salto e avançou em minha direção sobre suas pernas longas e finas. Passou uma mão por meu cabelo negro, colocando uma mexa para trás de minha orelha. — Trazer um pouco de cor para essa pele pálida. Logo mais você fica transparente.
— Certo. — Afastei suas mãos e rolei os olhos. — Vou pensar no que faço.
Me encaminhei até a penteadeira. Não podia negar a paixão de Georgia por maquiagem, ela havia uma infinidade de itens os quais eu sequer saberia dizer quais eram a suas finalidades. Qual a necessidade de tantos pincéis diferentes? Ou uma quantidade de paletas de sombras que lotavam uma única gaveta? Georgia entendia a necessidade.
— Sempre que você vem com essa de vou pensar no que faço, no fim passa apenas rímel. — Me pegou pelos ombros, obrigando-me a ficar de frente para ela. — Eu sei que os seus cílios são invejáveis, mas convenhamos, não é a única coisa que tem para ser chamativa nesse rostinho. — Sorriu gentilmente.
Forçou-me a sentar no verdadeiro banquinho da penteadeira, enquanto ela ocupada o lugar em minha cadeira vermelha. Seus olhos vagavam por toda a extensão do meu rosto, observando e trabalhando com cuidado sobre a minha pele. Embora realmente não gostasse de maquiagem, descobri que quanto mais me recusava a usa-la, mais Georgia insistia que eu devia usar algo e assim era a oportunidade perfeita para ela o fazer em mim.
Adorava a forma como o cenho dela franzia sob a concentração dos seus olhos atentos em meu rosto. O toque dos seus dedos finos em minha pele me deixava extasiada, me fazia querer provar mais do toque dela.
— Temos um show hoje. — comentou eufórica. — Você precisa estar maravilhosa naquele palco.
— É mais uma apresentação. Chamar isso de show é dar moral de mais para uma banda de garagem.
A garota fez uma careta.
— Não subestime o nosso talento.
— Não estou dizendo que não temos talento. Só não temos pessoas o apreciando. — Dei de ombros.
Não passávamos de uma banda de garagem, algo que começou como uma brincadeira no colegial, quando Georgia, recém-chegada dos EUA, juntou-se ao nosso grupo; e de alguma forma milagrosa perdurou até a universidade. No fim eu não acreditava que éramos realmente bons, mas aquilo era importante para Georgia, então eu acreditava com ela.
— Pronto. — Passou uma última vez o batom meus lábios. — Olhe só! — Girei meu tronco na direção do espelho. Nossos reflexos nos olhavam de volta, Georgia com um sorriso largo nos lábios fartos e pintados de vermelho, enquanto eu tinha uma expressão de surpresa. Não era sempre que via meus olhos e lábios tão destacados. A boca pintada com um tom escuro de roxo, enquanto os olhos exibiam um perfeito delineado. — Está maravilhosa.
Voltei-me para Georgia. Os olhos dela estavam tomados de um brilho hipnotizante, senti que poderia me perder neles por toda a eternidade e nunca sequer me dar conta da situação. E então sem aviso, ou qualquer indicio, ela se aproximou de mim e tocou nossos lábios com delicadeza. Vermelho no roxo. Um toque leve e rápido, que me deixou sedenta por mais.
— Estamos atrasadas.
Não era novidade. Georgia pegou em minha mão, entrelaçando os nossos dedos em um aperto firme e me guiou para fora do quarto, por pouco não consigo apagar a luz.
Chegamos ao pub com o restante da banda já à nossa espera. Pela tranquilidade do trio a nossa espera, provavelmente já esperavam que o atraso fosse acontecer.
— Já está tudo pronto, praticamente. — Will apontou na direção do que pequeno palco. Os instrumentos e suportes já estavam montados. — Só precisamos passar os microfones de vocês e a sua guitarra, Charlie. — apontou em minha direção, dei algumas batidinhas na base da case que carregava nas costas.
Cada apresentação me parecia com uma nova oportunidade de sentir a ansiedade me tomar de todas as formas possíveis. Enquanto ficava postada sobre o palco, com a guitarra pendurada ao meu ombro, um microfone diante de mim e um grupo de não mais de dez pessoas espalhadas pelas mesas do pub – que não estavam ali necessariamente por nós −, sentia meu corpo prestes a se desfazer em pó.
A guitarra de repente parecia pesar quinhentas toneladas, as palmas das minhas mãos suavam a ponto de formas gotas e meu peito era tomado pela temperatura de uma fornalha trabalhando a todo vapor.
Georgia estava diante do microfone principal, tomando o seu lugar como vocalista da banda, o corpo relaxado e a respiração balanceada me fazia questionar se estar diante de uma plateia, por menor que ela fosse, não afetava minha garota de alguma forma. E a resposta era não.
Ela parecia ter sido feita para os holofotes. Não cedia à pressão de estar à frente de algo, sua voz era sempre firme e as palavras claras, suas frases não falhavam uma única vez. E sua voz, especialmente quando cantava, era digna de toda a atenção do mundo.
— Boa noite. — a voz de Georgia soou pelo pub, chamando a atenção de três pessoas, talvez quatro. Ela sorriu para o público que nos ignorava. — Somos a Sleeping Dopamine e desejamos bom divertimento para todos.
A primeira música passou de forma que eu mal me dei conta. Costumava demorar um pouco para me situar em tudo o que realmente acontecia ao meu redor, provavelmente por conta da ansiedade. Eu focava toda a minha atenção nas notas que tinham que sair de minha guitarra para o bom andamento da música e era a única que minha cabeça conseguia processar por pelo menos duas músicas.
Na terceira eu já me permita interagir com Sally do outro lado do palco com o seu baixo, apesar de que ainda precisava me manter próxima ao microfone, pois era o apoio de Georgia. E na quarta música já estava quase respirando normal novamente.
Eu amava música e embora não acreditasse completamente em nosso talento como banda de garagem de quinta categoria, ainda havia alguma coisa naquela empreitada que me encantava. Fosse ver a forma empolgada com que Will tocava a bateria, ou a concentração de Sally nas cordas do seu baixo, ou o jeito extrovertido de David tocando o teclado. Mas especialmente a paixão com que Georgia se apoiava ao microfone e colocava para fora todo o poder de sua voz. Eu nunca conseguiria negar aquele sentimento que me tomava por dentro quando se tratava dela.
O público aumentou algumas cabeças com o passar das músicas. A voz de Georgia tornou-se ainda mais forte e mais decidida, naquela apresentação em especial ela parecia tomada de uma confiança, que eu não tinha visto antes.
— Obrigada pela presença de todos. — a vocalista pronunciou ao final da última música, pela forma como ela falava, quase podia acreditar que aquelas vinte pessoas no pub realmente estavam ali por nossa banda. — Nós somos a Sleeping Dopamine e desejamos uma boa noite.
Não negaria o alivio que me tomou assim que desci do palco, era uma sensação única cantar e tocar, porém a segurança do chão e distância do olhar de desconhecidos era ainda melhor. Georgia me tomou em um braço e me puxou para um canto isolado do pub, quando consegui observar o seu rosto, sua expressão era voraz, quase predatória.
— Você não vai acreditar. — saia quase em um sussurro, precisei aproximar meu rosto ainda mais do dela para entender o que dizia.
— O que foi? — Não entendia aquela reação aleatória dela, estivemos juntas o tempo todo e não percebi nada de diferente acontecer.
— Naquela mesa — apontou da forma mais discreta possível, tomei o devido cuidado para olhar com cuidado o ponto indicado. — está ninguém menos que Leslie Y. Olbert.
Observei um homem de costas para nós, o cabelo penteado para trás e coberto de gel, me parecia usar uma camisa social.
— Eu não sei de quem está falando. — Dei de ombros, levemente confusa com a animação de Georgia.
— Meu Deus! — tentou manter o tom baixo de voz, embora saísse com certo ênfase. — Ele só é um dos produtores musicais mais famosos do Reino Unido!
De repente fez sentido toda a animação dela, continuava sem saber exatamente quem era o homem, mas Georgia era ligada nesse tipo de assunto, acreditaria nela de olhos fechados.
— Ele está aqui por nós? — minha voz demonstrou choque e apreensão.
— Não. Acredito que não. Acho que vou falar com ele.
— Falar o quê?
— Não sei. Tenho que vender o nosso peixe. — Seu sorriso alargou-se. Se tinha alguém que era capaz de passar uma boa imagem da banda, essa pessoa era Georgia, a pessoa mais dinâmica de todo o grupo. A garota depositou um selinho em meus lábios e se afastou novamente. — Me deseje sorte.
— Boa sorte! — Levantei as mãos mostrando os dedos cruzados, ela imitou o gesto a medida em que se afastava.
A SUV preta parou diante do hospital. A primeira coisa que recebi foi um olhar repreensivo de Gregory.
— O que foi?
— Vamos mesmo fazer isso? Eu deveria contar tudo ao Will.
— Você não vai fazer nada. — Puxei a trava do carro. — Sou eu que vou entrar lá e ver o que aconteceu. E nem você ou Willian mandam em mim.
Abri a porta e desci em um salto de dentro do carro. O segurança designado a nos acompanhar saiu do veículo conosco, seguindo para dentro do hospital em nosso encalço. A primeira parada foi na recepção, uma enfermeira levantou os olhos castanhos para nós.
— Boa tarde. Posso ajudar?
— Boa tarde. — Sorri. — Me ligaram mais cedo a respeito de Georgia McDurmon.
— Certo. Um segundo. — A mulher abaixou os olhos para o monitor preto diante dela, observei seus olhos varrerem a tela com interesse, até pararem em um ponto especifico e por fim se voltarem para mim. — Preciso de identidades, por favor.
O processo na portaria foi rápido e cordial. A enfermeira nos indicou o caminho a ser seguido, após nos dar fitas com nossos nomes impressos e o motivo de nossa passagem por ali. Terceiro andar, corredor a direita, porta de número 103; era onde Georgia deveria estar.
Passamos por uma porção de empregados do hospital. Cumprimentava aqueles por quem passava, enquanto Gregory passava de largo, fingindo estar concentrado em seu caminho ao meu lado, me recusava a acreditar que era aquela educação que a mãe dera à ele. Algumas cadeiras estavam expostas no decorrer do longo corredor, dando apoio e descanso para aqueles que visitavam pacientes do hospital. Eu tive certeza de que estava no lugar certo quando deparei-me com Leslie sentado, a cabeça baixa apoiada e escondida entre as palmas das mãos.
Sua primeira reação foi como a de quem acabara de ver uma fantasma, talvez eu realmente fosse algo do gênero em sua memória, assim como ele era em minha. Fantasma de uma história que tínhamos compartilhado. Então colocou-se em pé em um salto, ainda tinha os olhos vidrados em mim.
— Charlotte. — saiu em um sussurro quase inaudível.
Ouvi Gregory respirar profundamente ao meu lado, provavelmente irritado. Ele conhecia a história.
— Ligaram para minha mãe. — respondi com firmeza.
— Fiquei sabendo. — a voz dele ainda era baixa. — Não consegui atender quando ligaram a primeira vez.
O mais velho abaixou os olhos. O cabelo dele adotara um tom mais claro do que me lembrava, os sinais da idade começavam a ficar visíveis nos tons brancos de alguns fios, assim como nas marcar mais visíveis de seu rosto quadrado. Meus olhos abaixaram-se rapidamente até sua mão esquerda, tudo por uma questão de curiosidade.
— Você quer vê-la?
— Não. — a resposta ríspida veio de Gregory. — Viemos aqui ficar olhando sua cara de cão arrependido.
Virei-me irritada para o meu amigo e maquiador. Eu não estava ali com a intenção de discutir sobre o passado, e não precisava que Gregory o fizesse por mim. Aquilo não era da alçada dele, saber da história não o tornava parte dela.
— Pode entrar. — Leslie apontou na direção da porta com a placa 103. — Acho que ela ainda está dormindo. — E então levantou os olhos, sua atenção diretamente direcionada a mim. — Talvez seja bom ela encontrar um rosto amigo quando acordar.
Georgia e eu não éramos amigas. Nunca fomos desde muito antes de toda a confusão que separou os nossos caminhos, o que nos conectou foi algo ainda mais íntimo.
Éramos cinco dentro do utilitário de Will, mas se prestasse muita atenção, a animação se tornava quase uma sexta pessoa. Nossa agitação estava no ápice, a ponto se ser quase palpável no ar e não era por menos: estávamos a caminho do estúdio que a partir de agora nos abrigaria como banda. Ainda não acreditava que Georgia conseguira aquilo.
Seu indicador direito fazia círculos sobre a minha perna, enquanto todos cantamos Welcome To The Jungle em uma única voz pouco harmoniosa. Praticamente todos estavam matando algum período da faculdade, mas naquela tarde nos permitimos ser veteranos sem peso na consciência por isso, porque para a nossa surpresa, aquela banda de garagem estava dando em alguma coisa boa.
William parou no meio fio com um solavanco, David ao meu lado direito bateu a cabeça no encosto do bando da frente. Rimos daquela coisa idiota como se fosse a maior piada do mundo, estávamos eufóricos demais, quase bêbados de excitação.
Paramos diante da fachada da gravadora, não era nada de extraordinário, apenas uma porta simples, uma única janela para a rua e uma placa pequena.
— É só isso? — Sally tentou reprimiu uma careta sem muito sucesso.
— Claro que não. — Georgia revirou os olhos, sua mão agarrou-se a minha, entrelaçando fortemente os nossos dedos. — Leslie falou que esse é um dos estúdios da gravadora.
— E nos mandou vir ao menor de todos?
— Somos uma bandinha universitária, você espera que entremos no prédio principal no centro de Londres?
A nossa amiga limitou-se a dar de ombros, quase podia ver estampado no rosto dela a decepção em ter faltado a aula do professor gostoso de história da arte – palavra usada pela própria para descrevê-lo −, para estar em um estúdio de quinta categoria.
Georgia entrou na frente, forçando-me a segui-la. Ela não hesitou e nem se intimidou, entrou decidida e confiante na recepção, que fazia jus ao estúdio: não passava de uma sala pequena e simples. Atrás de um balcão branco estava uma única mulher muito interessada com seja lá o que for que estivesse na tela do seu computador. Georgia precisou pigarrar para ela nos dar sua atenção, não parecia ter mais de vinte e cinco anos e uma pele bronzeada.
— Boa tarde. — minha namorada pronunciou com simpatia.
— Boa tarde. — a recepcionista respondeu. — Posso ajudá-los em algo?
— Leslie Y. Olbert pediu para encontrarmos com ele aqui. Georgia Pratt.
— Certo. Uma identidade, por favor.
E foi o momento que a mão de Georgia separou-se da minha, observei ela procurar em sua carteira da Betty Boop por sua identidade, em seguida entregando a carteira de motorista para a recepcionista.
Demorou pouco mais de dois minutos para que a mulher voltasse para nós, dessa vez tinha um sorriso largo nos lábios, algo que não acreditava que ela era capaz de fazer até então.
— Podem me seguir. O senhor Olbert já está à espera de vocês.
Georgia virou-se para mim com um sorriso aberto no rosto, os olhos encolhidos. Acompanhamos a recepcionista para além da entrada do estúdio, entrando por uma porta lateral, quase ignorável naquele cômodo tão medíocre. Adentramos um longo corredor, havia uma porção de portas, no entanto apenas uma delas se encontrava aberta e era de onde passava um feixe de luz.
Ouvi um suspiro impressionado vir de David quando entramos oficialmente no estúdio, não era tão pequeno, ou ordinário, quanto aquele lugar havia se mostrado até então. Uma imensa mesa de som estava diante de um vidro, com todos os controles do estúdio, adiante daquele vidro estavam os instrumentos e os microfones. Meu peito comprimiu-se em expectativa, quase não conseguia respirar.
— Boa tarde! — Leslie estava literalmente de braços abertos em nossa recepção. — Foi fácil encontrar o estúdio?
— Foi sim. — Georgia respondeu. — Will conhece a região. — o rapaz sorriu, enquanto David se perdia olhando ao redor.
— Até que não é tão ruim. — Sally sussurrou ao meu ouvido, eu reprimi uma risada. Na verdade aquele lugar era muito mais do que um dia tínhamos almejado.
Leslie nos apresentou a equipe que o acompanhava, alguns operadores de som, um segundo produtor e outros dois músicos.
— Bom, hoje não vai ser nada além de uma grande experiência. Nada muito definitivo. Queremos ver como vão às coisas e colocar vocês a par de como funciona uma gravação.
Fomos guiados para dentro do estúdio, aquilo me parecia um universo paralelo, no qual inicialmente nós não nos encaixávamos muito bem. Nunca tivemos grandes planos com a banda, de repente estarmos dentro de um estúdio, cercados por pessoas que entendiam daquele negócio, era demais para lidar, ao menos era como minha mente se comportava. Sentia como se estivesse dormindo.
Entregaram-me um violão e apontaram o meu lugar no estúdio, em um canto próximo à bateria. Georgia estava no centro de tudo, com um microfone exclusivo para si.
— Pensei em começarmos com a primeira música da apresentação que eu assisti. — Leslie falou. — O que acham?
— Pode ser. — a resposta veio de Georgia.
— Podem tocar da forma que já estão acostumados
E sem dizer mais nada, ele deixou o estúdio, fechando a porta atrás dele, juntou-se aos dois homens que trabalhavam na mesa se som.
— Will? — o rapaz entendeu a deixa de Georgia e começou a contar o tempo na baqueta.
Eu não diria que o fato de não ter uma plateia de espectadores nos assistindo diminuiu a minha ansiedade, na verdade, saber que tinham profissionais do outro lado daquele vidro, pessoas que já tinham estado com grandes nomes do entretenimento, fez eu me sentir ainda mais tensa. Tinha que ser no mínimo perfeita para que aquilo desse certo.
— Ótimo! — a voz de Leslie soou dentro do estúdio quando terminamos a primeira música. — Já é um bom começo. Precisamos acertar algumas coisas, mas ótimo!
Meu corpo ficou estático. Eu teria feito alguma coisa errada? Eu tinha impressão de todos os olhos atrás daquele vidro estarem sobre mim, de repente eu queria sair correndo daquele lugar.
— Que tal seguirmos a setlist da apresentação mesmo? Podem continuar com a segunda música.
Demos introdução a segunda música da nossa apresentação anterior. Meus olhos procuravam pelos de Georgia, que estavam focados adiante dela. Invejava mais do que nunca a confiança que ela exalava, desejava que ela me invadisse também, que eu pudesse me sentir ao menos uma vez indestrutível. Na verdade, eu era tomada por todas as dúvidas do mundo.
Gravamos uma terceira música ainda e por ora era suficiente.
— Vocês são ótimos. — Leslie pronunciou assim que voltamos para o comando de todo o estúdio. — São como pedras brutas, que aos poucos vamos dar uma lapidada. — Piscou para nós.
— Charlie não vai cantar também? — a questão veio de Sally.
Meu coração deu um salto no peito, em questão de segundos o meu rosto queimou em brasas.
— Charlie é...? — Os olhos do homem vagaram por todo o grupo, pelo canto do olho percebi Sally apontar diretamente para mim.
— Ela também é uma das cantoras.
— No show entendi que era o apoio vocal, não? — O homem arqueou as sobrancelhas.
— Não exatamente.
— Em estúdio trabalhamos apenas com o vocal da vocalista. O apoio entra em apresentações ao vivo.
Sally não pareceu satisfeita com o retorno, me pareceu buscar alguma resposta com Georgia, que por sua vez tinha a atenção completamente no produtor diante de si. Na época eu não soube ao certo como me sentir com aquilo.
Abri a porta do quarto delicadamente, o cômodo estava quase completamente no escuro, a não ser por alguns aparelhos em funcionamento e por um abajur no canto do quarto, que davam uma claridade fantasmagórica ao ambiente. Georgia dormia naquele momento, aconchegada debaixo de um cobertor felpudo.
Me aproximei pisando o mais delicadamente possível sobre o chão claro do hospital. Nunca tinha parado para pensar ao certo como seria ver Georgia de novo depois de tanto tempo, às vezes acreditava que cairia aos prantos, ou talvez sentisse uma completa e absurda raiva dela. Não senti nada, apenas uma pontada de surpresa por ela estar tão diferente da última imagem que eu tinha dela em minha mente.
Seu rosto estava magro de uma forma doentia, haviam olheiras fortes debaixo de cada um dos seus olhos e o cabelo acobreado estava opaco e bagunçado. Até podia me lembrar, mas aquele não era o rosto que eu adimirei algum dia, era apenas uma sombra da versão da Georgia que conheci quando erámos apenas duas adolescentes.
Eu senti pena da pessoa que se encontrava diante de mim. Eu senti pena que a pessoa que um dia amei tivesse deixado se tornar algo quase irreconhecível. Por um tempo me lembrava de ter pensado que deveria ter lutado por nós, que devia ter feito mais por ela. Mas aquela situação na qual Georgia se encontrava no momento, nada tinha a ver comigo, ou com nós. Seguimos em frente, ou ao menos era o que eu tinha feito.
Puxei para mais perto da cama a cadeira que estava postada no canto do quarto e sentei-me. Eu tinha algum tempo disponível ainda, pensei que não teria problema algum fazer companhia para ela como uma conhecida de anos.
Observei Georgia na penteadeira ao lado, ela encarava o próprio reflexo no espelho, mexendo com as madeixas acobreadas. Desviou levemente os olhos em minha direção, olhos grandes e azuis.
— Ainda não se maquiou? — questionou seriamente, quase ríspida.
— Não sei se…
— Querida, — soou estupidamente falso. — não é uma apresentação de bar. Tem cinco mil pessoa fora desse camarim esperando ver um show.
Não entendi o que uma maquiagem iria fazer de diferente em meu rosto, não quando todo o holofote estava indo para ela desde o começo da turnê há menos de um mês. Não tive coragem de repondê-la.
— Angela? — Georgia olhou ao redor, a mulher baixa e magra aproximou-se saltitando, o cabelo azul movimentou-se junto com a agitação do corpo. — Pode fazer alguma coisa com a Charlotte? Acho que tem que ser alguma coisa rápida, logo entramos no palco.
Minha mente se recusava a acreditar que a pessoa que amava estava sendo tão arrogantemente ultimamente e a tendência se mostrava piorar a cada novo show. A agitação do público, a devoção dos fãs a cada nova parada do ônibus, tudo parecia alimentar um ego que eu não via nela antes.
— Alguma sugestão? — Angela fitou-me, me tratando com mais simpatia que a minha própria namorada.
— Pode fazer o que achar melhor.
O show foi tão animado quanto esperado, ao menos era o que eu podia dizer do público, que nos saldou em alvoroço. Olhei para o outro lado do palco, sentindo falta de encontrar Sally segurando o baixo que agora estava nas mãos de Gabe, um garoto que a gravadora descolou para a banda após Sally sair antes da gravação do segundo álbum em 2011.
Tentei pegar um pouco da animação do público e transferir para o meu interior, queria também compartilhar daquele sentimento, mas algo dentro de mim repelia aquele sentimento com afinco.
A verdade era que as pessoas estavam ali por Georgia, ela dominava o palco com sua presença e voz, nos transformando quase em sua banda de apoio, eu sequer tinha mais o meu microfone de apoio vocal. Tentei me convencer de que estava tudo bem, mas naquela noite em particular eu sabia que não estava nada bem.
— Muito obrigada pela noite especial, Londres. — Georgia falou ao final do show, as pessoas gritaram ainda mais. — Eu sou Georgia e nós somos Sleeping Dopamine.
Observei Will jogar uma de suas baquetas furiosamente contra o chão do palco.
— Eu não acredito que ela fez isso de novo. — saiu pisando forte em direção aos bastidores, enquanto a cortina vermelha abaixava diante do palco.
Entreguei minha guitarra para um garoto da equipe e segui rapidamente na direção à qual vira Will seguir minutos antes, apenas fui alcançá-lo já dentro do camarim.
— O que foi, Will?
— Você é cega ou surda, Charlie?
Me encolhi levemente em meu lugar.
— Qual é o motivo de todo esse show? — Georgia entrou no camarim tratando com nosso amigo no mesmo tom em que ele me tratava.
— Eu sou Georgia e nós somos Sleeping Dopamine. Sério isso? Esqueceu que também fazemos parte? Que temos nomes?
Georgia cruzou os braços, fitou William com olhos semicerrados.
— Eu me esqueci.
— Certo. Certo. Igual esqueceu nos dois shows anteriores. — Soltou um riso carregado de ironia. — Por que não coloca o seu nome no lugar da banda de uma vez? Já estamos servindo só como seu pano de fundo mesmo.
David estava do meu lado, seus olhos vagavam entre os dois explodindo diante de nós e vinha para o meu corpo estático ao seu lado. Ele parecia questionar o que fazer quanto à discussão, eu não sabia que resposta lhe dar.
— Vou sair da banda. — simples assim, Georgia soltou a bomba entre nós quatro, a voz calma dava a impressão de não estar aos gritos segundos antes, ou que estava apenas dizendo algo trivial.
— Sair da banda?
— É. — levantou os olhos para Will. — Eu vou terminar essa turnê. Terminar a divulgação do segundo álbum. E vou sair.
Toda a máscara irritada de William se desfez em total surpresa. Eu não me sentia menos atônica que meu amigo, o pior daquilo era saber que morávamos debaixo do mesmo teto, compartilhando da mesma cama e em momento algum eu vi aquilo vindo.
— Recebi uma proposta de seguir solo. E é o que vou fazer.
Agora não era apenas David que me encarava, William tinha os seus olhos arregalados virados para mim. Não entendi o que ele esperava encontrar em mim, talvez as respostas das perguntas que rondavam a mente dele, que eu podia garantir, que provavelmente eram as mesmas que rondavam a minha.
E então houve um intervalo no rosto do baterista, seu rosto retorceu-se em uma carranca, ainda pior do que a primeira, pois ele entendeu que o mesmo golpe que o atingira me acertou.
— Isso é coisa do Leslie! — gritou novamente, mais furioso, com mais ódio. — Eu já me cansei dessa palhaçada toda. — E então virou-se para mim. — Eles têm um caso, Charlie.
O silêncio pesou entre nós, senti como se ele tivesse criado forma e seus dedos congelantes se apertaram ao redor do meu pescoço, tornando impossível a missão de respirar.
— Qual é o seu problema? — o grito agora veio de Georgia. Meus olhos só conseguiam focar no rosto pesaroso de Will.
— Eu não queria te contar assim, Charlie. Assim como não quis ter escondido de você. — E virou o rosto de volta para Georgia, não dispensando para ela a mesma simpática com que tratava comigo. — Vocês acharam mesmo que o corredor do hotel era um bom lugar para se pegarem?
— Pare de dizer essas coisas, Will. — Senti o toque da mão de David em meu ombro, sem pensar direito afastei com um tapa.
— Charlie... — Georgia estava virada para mim, deu um passo em minha direção e eu voltei um para trás, devolvendo a distância entre nós. — Por favor...
— Por favor?! — minha voz saiu mais forte do que esperava. — Você... Eu... Nós... — minha cabeça não conseguia trabalhar de uma forma a construir frases lógicas. Minha mente vagava para todas as direções, tentando encontrar em todo aquele tempo que estivemos juntas, algum indicio, qualquer marquinha que pudesse indicar o momento em que estávamos vivendo no presente.
— Que show maravilhoso, pessoal! — a voz de Leslie tomou o ambiente tenso que se formara entre nós.
Todos os rostos viraram para ele, que por sua vez pareceu confuso com o que quer que estivesse acontecendo dentro daquele camarim. Minha mente se perdeu em algum ponto entre imaginação e realidade, quando me dei conta do momento presente, estava em cima de Leslie socando o homem com uma força que eu não sabia que tinha até então.
Eu não senti nada por algum tempo, enquanto meus amigos tentavam me afastar a todo custo, gritando para que eu tentasse me acalmar, os gritos de Georgia enchiam os meus ouvidos. Então senti em meu pulso direito as consequências de quando se atingia o punho uma dezena de vezes contra algo sólido, e precisei ir ao hospital, assim como Leslie.
— Charlie. — ouvir a voz de Georgia no corredor do hospital me fez acelerar ainda mais os meus passos para sair dali, Willian me esperava em algum lugar do lado de fora.
Ouvi o som dos saltos dela em meu encalço. Levei a mão imobilizada junto ao peito e sai para o frio de uma noite de março.
— Espere! Por favor.
— Eu vou tirar as minhas coisas do apartamento. — falei apressada, a voz falhando pelo frio. — Assim você fica livre de mim de uma vez por todas.
— Pare! — Sua mão agarrou-se ao meu braço livre, o solavanco me fez ficar de frente para ela. — Por favor! — os olhos vermelhos entregavam que ela estivera chorando, àquela altura já não tinha certeza se era por mim. — Eu sinto tanto. — a voz estava embargada, iria chorar novamente e isso me deu um segundo de pena. — Eu não queria que as coisas acabassem assim.
A última frase me atingiu como um soco no estômago. Sem aviso, ou qualquer iniciativa consciente da minha mente, os olhos marejaram e as primeiras lágrimas rolaram por meu rosto.
— Acabassem? — não passou de um sussurro sufocado. — Você ia acabar mesmo?
Sua resposta veio na forma de um soluço. De repente os últimos anos que compartilhamos pareceram uma invenção de minha mente criativa, uma história fula de algum filme de romance, que no fim todos acreditávamos que era perfeito demais para poder acontecer na realidade. Nem mesmo sobre os palcos, enquanto a gravadora me colocava cada vez mais para trás, como apenas uma pequena peça do show de Georgia, eu me senti tão pequena e substituível.
— Então acho que é isso. — Respirei fundo, reprimindo o soluço que ameaçava alcançar minha boca. — Boa sorte com sua turnê.
— Como assim?
— Eu estou fora.
— Charlie... Não pode fazer isso. — Tentou aproximar-se, porém afastei um passo.
— Já está acabado mesmo. Você já seguiu solo há muito tempo, eu só não sabia. Acho que é a minha vez de fazer o mesmo.
Meu coração comprimia-se a cada passo que eu dava para longe de Georgia, parte de mim desejava com todas as forças que ela corresse até mim, que lutasse por nós, que me dissesse que era tudo uma bobeira e no fim todas as vezes que disse que me amava não era mentira.
Eu pensei em voltar correndo para ela, pedir desculpas por qualquer coisa, que ainda tinha como fazer aquilo funcionar. Que aquelas duas jovens descobrindo o amor uma na outra ainda estavam dentro de nós, ao menos ainda estava dentro de mim, quebrada e angustiada, mas ainda tinha a melhor parte de si para oferecer, o outro só tinha que estar disposto a aceitar.
Encontrei com Will alguns metros adiante, ele me procurava desesperadamente. Sentir seus braços fechando-se ao meu redor, a temperatura quente do seu corpo, me fez sentir menos sozinha naquela rua escura. Naquele momento eu não sabia, mas tempos depois ficaria grata por ele ter me segurado com todas as suas forças e me impedido de ir pedir perdão por algo que não tinha feito.
Olhei o relógio na tela do celular, do tempo que Kate me dera, me restara apenas vinte dele disponível. Me surpreendia àquela altura ela ainda não ter me ligado, ou talvez tivesse falado com Gregory e ele apenas me poupara de sua antipatia. Não me importaria caso ele estivesse atormentando Leslie.
Quando levantei os olhos do celular, decidida a deixar o quarto, encontrei com um par de olhos me encarando através do intenso azul das írises. Ao menos algo naquela pessoa que eu podia reconhecer.
— Charlie. — Os seus olhos encheram-se de lágrimas à ponto de escorrerem por seu rosto.
— Oi, Georgia.
— Você está maquiada. — Um riso abafado escapou por entre os seus lábios
— É. Tenho um show em menos de três horas. — E uma empresaria que ficaria furiosa caso me atrasasse.
— Não devia estar aqui então.
— Eu sei. E nem você.
Seu rosto voltou-se para cima e observei o momento em que ela por fim liberou as suas lágrimas. Passou penosamente uma de suas mãos pelo rosto cansado e olhou-me novamente, podia ver o caminho que as lágrimas percorriam por sua face.
— Eu sinto tanto por tudo, Charlie.
— Eu sei.
— Onde foi que nos perdemos?
— Não posso dizer isso por você, mas nunca estive perdida.
— Você está diferente. — Um sorriso fraco tomou sua boca, embora ainda fosse tristeza que eu via em seus olhos.
— Nenhumas de nós somos mais as mesmas pessoas que se conheceram no colegial.
— Tenho certeza que não.
Uma batida chamou a nossa atenção, em seguida a porta se abriu exibindo o rosto redondo de Gregory.
— Temos que ir, Charlie. Kate não para de me encher o saco, falei que já estávamos de saída.
— Tudo bem. Já estou indo.
Sem dizer mais nada o homem fechou a porta, deixando Georgia e eu sozinha mais uma vez. Me coloquei em pé, a cadeira protestou com o movimento.
— Você tem raiva de mim?
— Não mais. — Parei ao lado da cama. — Eu senti raiva de mim por muito tempo. Perdi a conta de quantas vezes me perguntei o que podia ter feito por nós duas e não foi fácil perceber que no fim eu não podia ter feito nada. Perdoar você foi o alivio que a mente precisava para seguir em frente e eu segui.
Georgia assentiu em compreensão, mais uma lágrima escorreu por seu rosto quase irreconhecível.
— Tenho que ir.
Dei-lhe as costas, dando os primeiros passos na direção da saída.
— Charlie. — Parei à um passo da porta. — Não sei. Talvez nós possamos sair qualquer dia desses, apenas para conversar.
Eu sorri comigo mesma. Cinco anos antes eu teria gritado um sonoro sim, talvez me jogado aos pés dela. Eu amei Georgia com todo o meu coração e era uma pena no final ter depositado tanto de mim em alguém como ela.
— Acredito que isso não vá acontecer. — Virei apenas o meu rosto. — Guardo algumas poucas boas memórias de nós duas, de um tempo em que nada disso era sequer um plano em nossas vidas. Prefiro manter apenas essas lembranças, sem esperar por novas.
Ela não respondeu à isso. Preferi acreditar que era por pensar da mesma maneira, em nossa situação atual, depois de toda a história que vivemos juntas, acho que era um ponto final definitivo e eu estava bem com isso. Estava bem por finalmente acabar com aquilo.
Fim!
Nota da autora: Para você que chegou até esse ponto, obrigada por ter dado um pouquinho do seu tempo para ler a história. O prazer é claro que foi meu em fazer parte da ficstape desse álbum maravilhoso e principalmente com uma das músicas que eu mais gosto. E sem mais delongas, não deixem de conferir as outras histórias da ficstape. Beijos no coração!
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