Capítulo Único
O som das ondas era tudo o que conseguia ouvir, isso e o leve farfalhar das casuarinas quando a brisa marítima perpassava seus galhos. Em seus ouvidos, o som da água batendo nas rochas não era apenas isso, soava como um lamento. Soava como um grito de dor. De olhos fechados, o sol poente já não podia queimar a sua pele, mas o cheiro de maresia impregnava todos os seus sentidos. Era o cheiro de casa. A areia debaixo dos pés já não a incomodava, mas ainda parecia estranho. Tinha uma outra vida, agora.
Mas já não sentia o peso dos grilhões e isso, ao menos, a deixava grata. A imensidão azul e gelada causava-lhe espanto, medo, mas foi também onde ela nasceu. No início da vida, no ventre, somos cercados de água. Nada parecia mais lógico do que terminar ali. Era até mesmo poético. Ela entrou na água, trinta anos depois de surgir ali mesmo. O primeiro passo, hesitante. Ela se lembrou de como amava o mar, de como sentiu falta de nadar. Os passos seguintes foram fáceis.
O tecido do vestido pesou, mas mal sentiu. Ávida, ela correu para dentro da água. Mal importava que a temperatura estivesse baixa demais ou que as ondas fortes tentassem empurrá-la para fora. Seguiu em frente. A água chegou na altura de seu peito, do pescoço e, finalmente, a engoliu. Ela desapareceu. Água encheu seus pulmões.
No início da vida, ela esteve cercada de água. No final da vida, também. Não havia nada mais poético.
Trinta anos antes
A vida no mar é diferente. Os dias pareciam passar mais devagar ou, talvez, sua percepção de tempo tivesse sido alterada pela brusca mudança de ambiente. Tinha nadado tanto que seus músculos queimavam, mas o medo doía mais. Ainda sentia na pele a dor dos castigos físicos que recebeu cruelmente ao longo dos anos. Ser diferente exigia um preço que ela nunca quis pagar. A única coisa que fez foi, literalmente, nascer.
Mas soube, desde então, que seu lugar não era, e nem nunca foi, no mar. Na imensidão azul restava seu medo, tão amplo quanto os oceanos, de tudo e de todos. O céu azul brilhava sobre a sua cabeça, o sol esquentava a água e a sua pele. Onde quer que fosse, adultos e crianças coalhavam as areias claras, procurando um alívio para o verão escaldante. E ela procurava, também, um alívio, mas para o medo e a dor. Queria viver: desesperadamente, ardorosamente, livremente. Talvez por isso tivesse nadado tanto, até seu corpo não aguentar mais. Permanecer passiva e onde estava era como assinar a sentença de sua própria morte.
Mas até onde estava viva? Conseguia mexer os dedos das mãos e dos pés e era capaz de performar as funções mais básicas de seu corpo, mas até onde isso era real? Até onde estava, realmente, viva? Agora, com o corpo doendo e queimando cada músculo, ela entendia: estava viva até desistir de si mesma. Nada a mais, nada a menos.
Nadou tanto que, agora, tudo doía. Nadou por diversas praias até achar aquela. Naquela, ao menos, não havia ninguém por perto. Só a luz da lua iluminava o corpo nu, a pele macia, os cabelos encharcados e grudados ao corpo. Com passos trôpegos e hesitantes, caminhou para fora do mar com as ondas a empurrando. Ela caiu na areia, longe o suficiente do mar para que elas não a pegassem de novo, para que a água nem ao menos lhe alcançasse. Ela não sabia quando elas surgiriam de novo, mas elas sempre surgiam. Elas sempre a achavam no mar. Bem, ali era a terra firme. E elas não eram como ela. Eles não podiam segui-la até a terra firme, não é?
Devia ter desmaiado de exaustão porque, quando abriu os olhos, já era de manhã. Alguns banhistas cautelosos a olhavam de longe. Ela não podia culpá-los. Não era totalmente ignorante sobre a cultura dos humanos. Eles estavam assustados com a sua aparência, com o seu corpo nu, com o fato de ainda parecer com algo cuspido pelo mar (o que não era de todo errôneo). Uma parcela a olhava com pena, mas alguns banhistas a olhavam torto, claramente a considerando uma pervertida e mesmo a rejeição deles parecia incomodá-la como se agulhas invisíveis a espetassem em todos os lugares. Era medo. Por que tinha adormecido ali? Deveria ter ido mais longe, deveria ter ido embora dali.
Talvez, ela pensou, eu não devesse ter vindo para cá. Talvez eu devesse ter continuado no mar. Mas então se lembrou delas e ela sabia, do fundo de suas vísceras, que jamais poderia continuar no mar. O pensamento de voltar a assustou e ela olhou a água que ia e vinha na beira da praia, afastando-se ainda mais dela.
Um homem se aproximou da garota. Ele vestia algo diferente dos banhistas, mas seu rosto era jovem, seus olhos eram gentis e seu tom de voz parecia amigável. Ele a cobriu com algo e só então ela notou que estava com frio e que sua pele estava arrepiada.
— Olá, moça. — Ela o encarou atentamente, grandes olhos azuis acinzentados que refletiam o mar. — Está em perigo? A senhorita foi atacada?
Senhorita? A palavra soou estranha. Entendia a língua deles, mas não sabia se conseguia falar. Ela abanou a cabeça negativamente. Não tinha sido atacada naquele momento. Estendendo uma mão grande e firme, ele esperou até que ela finalmente se levantasse.
Até então, a garota jamais tinha usado as pernas para andar, apenas nadar. Ainda estava incerta sobre elas, levantando-se cautelosamente. O rapaz lhe deu apoio, oferecendo o próprio ombro enquanto era cuidadoso o suficiente para não mostrar o corpo pálido, escondido apenas pelo cobertor que tinha enrolado nela.
— Quem é essa?
Outro homem, dessa vez mais velho, em roupas parecidas. A garota o encarou por um momento, confusa. Ele emitia uma energia um pouco mais hostil e seus olhos a analisaram de cima a baixo. Ela voltou o olhar para o rapaz que a apoiava, um pouco mais angustiada.
— Eu não sei, recebemos a reclamação de alguns banhistas e a achei nua na beira da praia.
— Qual é o seu nome? — Ela não gostou do tom de voz dele. Não gostou de como ele lambeu os lábios e encarou sua pele exposta mais uma vez.
— …. — Acabou respondendo sem ânimo, sentindo a voz arranhar um pouco a sua garganta.
— , eu sou o Tom Jones. Esse é o meu parceiro, Louie King. Você tem um sobrenome?
Ah… Não. Sobrenomes não era para mestiças como ela. Ela negou com a cabeça. Todos ali tinham um sobrenome? Deveria inventar um?
— O que aconteceu com você? — Louie, segundo a apresentação de seu parceiro mais jovem, a perguntou com um pouco mais de animosidade do que deveria.
Bem… Esse era o problema, não era? Os humanos não sabiam que elas existiam. Os poucos que sabiam, não viviam muito tempo para contar a história. não poderia simplesmente dizer que estava fugindo de sereias. Eles ririam dela, diriam que era louca… Ou, pior, talvez acreditassem nela. E aí seria estudada e dissecada como um peixe. Porque não era humana, mas também não era inteiramente sereia. Era uma aberração, segundo as outras sereias, alguém que não pertencia ao mar.
— Eu não me lembro.
A mentira saiu fácil de seus lábios, sem um pingo de remorso para pesar as palavras. Não sabia se poderia confiar neles, nem mesmo no rapaz gentil. Enganá-los, então, não era difícil, não tirava a sua paz.
— Acha bom levá-la para a delegacia?
— Por quê? Ela não foi atacada. — A situação não parecia benéfica para ela, não? E não podia continuar ali, na praia, onde seria facilmente achada.
— Não, não! Me ajuda, por favor! — Só havia isso a fazer: implorar. Achava que qualquer coisa era melhor do que voltar para o mar. E nunca teve muito orgulho, de qualquer forma.
Louie deu de ombros, abrindo a porta do carro e gesticulando para que ela entrasse. O policial não entendia. Tinha completado cinquenta e seis anos esse ano, estava prestes a se aposentar, achava que já estava muito velho e já tinha um casamento de mais de trinta anos nas costas para se encantar com garotas jovens como aquela. Era por isso que estava irritado. Não conseguia se controlar, mesmo dirigindo. Olhava pelo retrovisor, vislumbrando um rosto pálido, de feições que pareciam meio estrangeiras, meio sobrenaturais, mas absolutamente belo. A garota era linda. E ela o pegou encarando-a pelo espelhinho. Ele voltou os olhos para a rua.
— Você está com fome? — Tom perguntou.
Ele era gentil, reconhecia, e ela não se sentia tão intimidada por ele. Não era como o homem mais velho, que a deixava insegura com seus olhares. Ela o olhou, tirando os olhos da janela do veículo. Nunca tinha visto nada como aquilo, estava intrigada com o carro, as ruas, os banhistas.
— Não. — Era mentira. Ela estava sempre com fome, não importava o quanto comesse.
Mesmo na delegacia, as cabeças se viravam para vê-la passar. Era disso que Calli falava quando a admoestava por chamar atenção demais. Mas depois Calli morreu… E ela ficou só. Foi quando as coisas pioraram de vez. Se a vida era difícil quando Calli estava viva, uma meia-sereia sozinha estava condenada a nada menos que uma vida de sofrimento e privações. Em terra firme, isso não deveria acontecer. Ela se parecia exatamente como qualquer um deles, dois braços, duas pernas, tudo. Por que a olhavam daquela forma?
— Você sabe onde está? — Ela negou. Não sabia tanto assim sobre eles. — Quer ligar para os seus pais?
Oh, bem… Seus pais. Isso era algo estranho. Ela não tinha conhecido seus pais. A mãe, sim, mas esta não viveu muito tempo e seu pai era um humano, possivelmente estava morto. Calli estava morta. Não tinha ninguém para cuidar dela.
— Você ao menos sabe quem são os seus pais?
— Eu não tenho pais. — Afirmou sem qualquer dúvida, esperando que ele entendesse que ela era sozinha. E sempre seria.
Tom deixou a sala e ela encarou as paredes. Tinham dado a ela algo simples para vestir, um conjunto de calça e blusa, além de sapatos sem salto, cortesia da seção de achados e perdidos da delegacia. Louie voltou. Ele a encheu de perguntas: sua idade, onde morava, o nome de seus pais. Ela respondeu o que pôde, apenas o que sabia. Quando perguntada de onde tinha vindo, ficou em silêncio. Apenas respondeu:
— Do mar.
Não havia ninguém desaparecido com suas características e ninguém a reconhecia. Até onde os policiais sabiam, (sem sobrenome e nem documentos) tinha surgido ali mesmo, na praia, da noite para o dia, sem qualquer coisa que a identificasse. O consenso era de que tinha perdido a sua memória (fato que ela não corrigiu, mesmo nos anos seguintes) e que tinha se perdido dos pais ou cuidadores em algum tipo de acidente no mar. Provavelmente, era estrangeira (por causa do leve sotaque) ou de fora da Califórnia, mas ninguém conseguia rastreá-la a lugar algum.
A assistente social também não deu muitas esperanças. Disse que levaria dias, talvez semanas, para identificá-la no estado da Califórnia. Isto é, se a tal fosse realmente de lá. Podia oferecer um abrigo a ela, mas não por muito tempo. Embora não conseguisse discernir tudo aquilo muito bem, até mesmo ela entendia que algo ia errado.
Eles a levaram para um abrigo, um orfanato apenas para garotas, longe da cidade, mas ainda perto o bastante da praia. Um convento. Um lugar onde poderia ter uma cama, um teto sobre a cabeça, conforto e proteção. Era tudo o que ela poderia pedir, mais do que poderia imaginar. Já era o bastante, já era muito mais do que tinha no mar. Havia esperança, pela primeira vez na vida. Ou assim ela pensava, até encarar o rosto austero da Madre Superiora.
Um ano depois
Garotas iam e vinham do abrigo. Algumas eram adotadas, outras ficavam por ali, as mais velhas podiam continuar por ali se quisessem se tornar freiras, como as caridosas, mas rígidas irmãs que cuidavam delas. Dentre elas, ajudava as irmãs tomando conta das meninas mais jovens. A Guerra do Vietnã ainda vitimava muitas famílias, muitas ali eram de lares que não podiam se sustentar mais sem o pai ou o irmão mais velho. E as crianças não pareciam deixá-la em paz. Andavam atrás dela a todo momento, chamando seu nome e sua atenção.
Com elas, sentia paz. Mesmo a fome intermitente parecia subsistir quando estava com as meninas, trançando seus cabelos ou ouvindo-as falar a todo momento. Era a mais velha das garotas que estavam sendo abrigadas (isso se não contasse seus anos no mar). Com a ajudas das freiras, tinha conseguido documentos e, ao final do ano, tinha uma vaga para trabalhar como babá de uma família rica. De alguma forma, as coisas tinham ocorrido bem.
não imaginava que Aryella e Jolesta procurariam por ela. Para as duas sereias, seria um alívio ver-se livre da aberração. Talvez acreditassem que estava morta, isso seria o ideal para a fugitiva. Foram doze meses de paz. Doze meses de alegria, mesmo nas pequenas coisas. Não era alegre a todo momento, como quando a irmã Mary decidia implicar com ela por nenhuma razão específica, mas tinha momentos de alegria. Naquelas garotas, todas tão perdidas quanto elas, ela se via refletida e se sentia bem de saber que haviam outras como ela. Talvez as coisas fossem ficar bem. Talvez.
O convento era simples. A comida era simples, as roupas que usavam eram simples, era tarefa das meninas limpá-las e conservá-las. Ensinavam isso a todas elas, a cuidar das tarefas, ajudar na limpeza do convento, cuidar das meninas mais novas e, acima de tudo, a serem tementes a Deus. Havia toda uma rotina de orações que deveriam fazer todas as manhãs, antes de comer e antes de dormir. A vida não era difícil. Se fosse comparar com sua vida no mar, a vida no convento era bastante fácil.
Era particularmente próxima de , uma garota apenas dois anos mais nova que a própria . Conversavam durante horas a fio, fosse durante a lavagem de roupas ou quando enfiava-se em sua cama porque abominava a ideia de dormir sozinha, depois de tudo o que passou. entendia sua dor, por vezes até a sentia porque assim era a espécia de sua mãe, então jamais recusou ceder sua cama já estreita a . Porque, no fundo, ela queria ter tido uma amiga depois de ter perdido tanto sua mãe quanto Calli. Então, e espremiam-se no colchão esburacado, abraçadas uma a outra, por vezes conversando até tarde da noite, quando dormiam e finalmente tinham um sono tranquilo, sem pesadelos e sem pânico.
No começo do ano seguinte, duas semanas depois do Natal, um novo padre chegou ao convento. Um professor, segundo a irmã Mary, já que haviam novas meninas para tomar conta e nem todas tinham instrução. Especialmente a própria , que muito embora soubesse as coisas mais básicas do dia a dia, era especialmente ignorante em assuntos acadêmicos. Sabia apenas o que Calli tinha lhe ensinado e, aparentemente, seu conhecimento sobre peixes, algas e marés era inútil ali. Calli tinha jurado ensiná-la sobre cura, sobre música e filosofia, mas a sereia tinha morrido antes de cumprir a promessa.
Então, quando a irmã Mary, de maneira especialmente mal humorada naquela manhã, a convocou para o seu escritório, achou que tinha feito algo errado.
— Quero que conheça o Padre Scott. Ele será o responsável por lecionar aqui no convento. Você vai ser a responsável pelas garotas mais novas e levá-las até a aula, entendeu?
— Sim, senhora.
— Mostre o convento ao padre. — Rude e autoritária, assim era a irmã Mary.
Se quisesse, sabia que poderia mudar os sentimentos da Madre, mas por que estragar as coisas usando seus poderes? Já estava acostumada ao temperamento da madre, então assentiu e deixou a sala, com o padre seguindo-a. Olhando-o, pensou que, a bem da verdade, ele não era um homem feio. Tampouco era bonito como um ator de Hollywood, mas o padre Scott era um homem charmoso, talvez no início de seus trinta anos. Andavam silenciosamente, lado a lado. Vez ou outra, quebrava o silêncio com sua voz baixa, apontando os locais.
— Aqui é o refeitório. Algumas das meninas mais velhas trabalham aqui, ajudando nas refeições. — Ela mostrou as órfãs de uniforme e aventais. — Nós fazemos algumas tarefas domésticas para ajudar as irmãs a manter o lugar. — Explicou em voz baixa, corando ligeiramente quando ele a encarou. Ela desviou o olhar, andando mais rápido. — E aqui é a capela.
caminhou pelo convento, que era pequeno e humilde, mantido pelo dízimo que o padre Davis recebia na igreja e pelas doações das famílias de algumas freiras ali, que eram de famílias ricas. Algumas, eram apenas decepções para as famílias, e tinham sido enterradas ali como se estivessem mortas, tendo como único elo entre elas e suas famílias as doações mensais ao convento.
— E quem cuidava da educação das meninas antes de mim?
— A irmã Eunice e a irmã Anna. — Não queria falar com ele. A presença dele era inquietante e ela sentia fome novamente.
Por sorte, o padre Scott anuiu e não peguntou muito além do necessário, apenas falou com ela novamente quando afirmou que se retiraria e se assentaria em seus aposentos.
Nas semanas seguintes, as aulas do Padre Scott tomaram o tempo das meninas. levava as meninas mais jovens até a sala de aula improvisada no fundo da paróquia, que era logo ao lado do convento, e as trazia de volta quando terminavam. Aprendia uma coisa ou outra durante as aulas, isso quando não se distraía com o padre. Era nessas horas que sua fome aumentava, mesmo que tomasse um café da manhã reforçado.
O padre Scott resistiu bravamente. Era normal que um homem de sua idade tivesse certos impulsos, afinal, sua vida tinha sido um tanto desregrada na adolescência. Tinha conhecido bebida, cigarros e sexo. E, depois, escolhido Deus acima de tudo isso, porque reconhecia que o Seu amor era muito maior do que qualquer prazer temporário que a vida pudesse lhe ofertar.
Mas … era algo diferente. Não tinha bem jeito de menina, já era quase maior de idade. E não dizia que ela parecia adulta porque era muito bonita ou porque era muito sensual porque não o era, o que a tornava tão “adulta” era a dor que ela carregava naqueles olhos azuis, tempestuosos como o mar revolto. Quando não estava com as crianças ou com a tiracolo, exibia uma melancolia muito além de seus poucos anos, uma tristeza quase palpável. Ela a lembrava de sua primeira namorada, uma jovem que escondia uma nostalgia terrível, uma depressão tão profunda que acabou por tirar a própria vida.
Era esse o canto da sereia. Não um canto literal, mas a inevitável maldição de parecer exatamente o que alguém precisava. E um padre precisava de almas para salvar. Calli explicou a o que era o canto da sereia, embora Aryella e Jolesta tivessem esnobado-a dizendo que provavelmente não tinha a tal “bênção” que elas possuíam, porque parecia mais humana do que sereia. De sereia, tinha apenas os olhos, olhos tormentosos como as águas do mar. Ela sabia bem porque os homens a olhavam como olhavam. Mas, se fosse ser bem sincera consigo mesma, não se importava que o padre a olhasse daquela forma.
E sempre que pensava nisso, lembrava-se de Jolesta gritando o quanto ela era uma vadia e o quanto merecia uma surra por ser daquela forma. E, então, após muitos gritos, era a vez da surra.
A garota foi despertada de seus pensamentos quando a pequena Grace correu para o seu colo.
— , ! A aula acabou, podemos brincar agora?
Seus cachos ruivos encheram sua visão e a fome diminuiu quando a abraçou com um sorriso. Ela se levantou de sua cadeira no fundo da sala, mas foi chamada pelo padre.
— Sim, senhor?
— Quero que venha conversar comigo quando tiver um tempo livre, está bem?
A princípio, não entendeu, mas concordou de qualquer forma. Ele pôs a mão em seu ombro e sorriu.
— Não fez nada de errado, quero apenas conversar com você.
— Sim, padre Scott.
Grace voltou a puxá-la pela mão e agora tinha um motivo feliz para livrar-se do padre. Quando olhou por cima do ombro, o padre Scott a olhava ir embora. Ela sentia que algo estava mudando. E, pior ainda, sabia que não tinha poder nenhum para parar o que quer que fosse se abater sobre o convento. O convento poderia não ser tão afastado da cidade, mas tinha sua própria aura de isolamento. Notícias sobre a guerra vinham raramente, assim como as meninas que não tinham para onde ir, como ela. E quanto mais envolvida estava pelo mundo humano, sentindo-se muito mais humana do que uma sereia mestiça, mais o mar a cercava. Na Califórnia, era quase como se o mar cercasse todo o lugar. O sentimento opressivo que tinha era de que, em breve, o mar tomaria o que era seu de volta: ela.
E da torre do sino, perto de onde dormia junto de , Jane e a pequena Grace, ainda podia ver o mar. Era quando o céu escurecia e a lua era refletida nas águas misteriosas que não conseguia se conter. Ia até a janela, olhava as profundezas geladas que escondiam milhares de segredos e dois sentimentos entravam em um combate intenso: o pavor das águas e a saudade de nadar.
— O que o padre Scott quer?
parecia especialmente mal humorada, os fios crespos presos em um rabo de cavalo enquanto ela lavava os uniformes no tanque.
— Conversar comigo.
bufou alto, aplicando ainda mais força na forma como esfregava uma saia cáqui no tanque. riu quando sentiu a raiva emanando dela, o ciúme (embora não soubesse se era por causa da atenção do padre ou da atenção de ) e mesmo se não conseguisse sentir as emoções dela, era sempre bastante transparente. Não conseguia esconder seus sentimentos por muito tempo.
— Não gosto dele. — Afirmou em alto e bom som, embora já tivesse percebido isso. Ela riu. — Não ria de mim! E se ele quiser abusar de você?
— Ele é um padre, .
— E você é uma ingênua! Ora, não sabe nem de onde veio, vai saber o que um homem quer com você?
Por alguns momentos, as duas continuaram esfregando as roupas em silêncio. Aquela era uma tarefa que detestava. Não se importava de descascar legumes para a sopa ou de varrer o chão do convento, mas lavar roupas era horrível. Ver suas mãos dentro do balde de água ativava algumas memórias horríveis em sua cabeça.
Por diversas noites, quando chegou ao convento, não conseguia dormir. Seus sonhos eram recheados das cenas de descaso e crueldade com que era tratada pelas novas tutoras. Naqueles primeiros dias, confessou que também tinha medo de dormir sozinha. Talvez não tivesse pedido para dormir em sua cama para o seu próprio bem, mas sim para apaziguar a menina sem pais, sem memória e sem passado.
— Quando vai vê-lo? — Foi quem trouxe o assunto de volta e deu de ombros.
— Quando acabar de lavar a roupa, eu acho.
não respondeu, em vez disso, andou até sua amiga e a encarou nos olhos. Com os rostos tão próximos, os olhos escuros de pareciam refletir emoções que nem mesmo conseguia identificar. O que a híbrida sabia era que seria completamente honesta com ela.
— Se ele tentar te agarrar, use isso. — enfiou um objeto na mão dela, uma lixa de unha de metal. E ela só conseguiu rir. — É sério! Não ria! Você não conhece as pessoas como eu!
Mas conhecia e conhecia a crueldade o suficiente para afirmar que o padre Scott, por mais que ela não o conhecesse, não tinha um osso cruel em seu corpo inteiro. estendeu a mão cheia de água com sabão e passou um dedo no nariz arrebitado da outra.
— Nunca mude, .
Quando as meninas estavam sob a tutela da irmã Clara, uma das freiras mais jovens e divertidas para se ter ao redor, bateu à porta do padre. Não sabia bem o que esperar dele. As poucas semanas em que conviveram não tinha sido o suficiente para medir seu caráter. E, para ser sincera, não sabia se era realmente boa nisso.
— Boa tarde, . Entre, por favor. — Ele a recebeu em trajes casuais, camisa branca de botões, calça jeans, parecendo bem mais jovem do que quando usava a batina.
Não era como se ela pensasse que ele usava a batina a todo tempo, mas, ainda assim, era estranho vê-lo daquela forma. Estava há um ano no convento e pouquíssimas vezes tinha visto qualquer uma das irmãs sem o hábito ou sequer sem o véu.
— Queria falar comigo?
Ela não gostava de como sua fome aumentava perto dele. Era como se ele fizesse seu apetite acordar vorazmente e isso não era usual justamente porque ela estava acostumada a ter o afeto da maioria das pessoas ali. Perto das crianças, quase nunca sentia fome. E algumas das freiras despertavam um pouco da fome, mas ele… Ela quase não conseguia se controlar. A fome quase nublava seus pensamentos. Por que ele não lhe dava afeto? Por que o padre Scott não a amava?
tinha demorado a entender o que sua metade sereia fazia, o que ela requeria e foi Calli que a explicou sobre tudo, que a ensinou sobre tudo durante os anos em que a mais velha praticamente a criou. O canto da sereia, que era muito menos melódico do que pensavam os humanos, ela entendia. Mas na teoria era uma coisa. Na prática, foi só quando foi amada de verdade que entendeu o que fazia sua fome passar: emoções. Ganhar o afeto de alguém, o carinho ou a amizade aquietava sua fome, a fazia quase diminuir e disso ela era cercada no convento. Não por parte das irmãs, ao menos não de todas, mas tinha bastante afeto das crianças. E era um amor tão puro que não precisava de muito mais.
sabia que o afeto que tinha delas era atrelado ao magnetismo surreal que exercia nos humanos. Era uma armadilha muito bem-feita: tudo em uma sereia compelia os humanos a amá-la e dar a ela o que ela quisesse. E o que as sereias queriam em troca era consumi-los, suas emoções, tudo o que fazia deles humanos. Porque as sereias, por mais lindas e inteligentes que fossem, jamais poderiam sentir como eles.
Ele pediu que ela se sentasse, se quisesse. O quarto era simples, como os das freiras, uma cama simples, de madeira, uma escrivaninha e uma cadeira do mesmo material. O único pedaço de decoração que havia no quarto inteiro era um crucifixo na parede da cama e, do padre Scott, apenas alguns livros arrumados nas prateleiras. Era um quarto impessoal, mas ela entendia o motivo. Padres como o padre Scott nunca ficava por muito tempo no mesmo local, indo e vindo conforme fosse a necessidade da Diocese.
— Eu queria conversar com você. Notei algo peculiar com o passar dos dias. — Ela o encarou diretamente, pela primeira vez desde que tinha entrado no quarto.
não sentia nada vindo dele. Nenhuma emoção que pudesse alimentá-la, nada que pudesse saciar sua fome. Era um homem santo, afinal, com anos de sacerdócio e, portanto, com um autocontrole que condizia com o posto. Por que tinha achado que poderia tirar algo dele? Nada a não ser compaixão. E compaixão sempre deixava um gosto meio amargo em sua boca.
— Fiz algo errado?
Ela sabia que não devia usá-los assim, que não devia consumir suas emoções daquela forma, por isso tentou se segurar com o padre. Mas, sendo bem sincera, seu controle era muito parco e disso ela sabia. Era por isso que Calli a admoestava tanto, para que aprendesse a se controlar. Segundo Calli, não tinha como saber como seria para uma híbrida, se os efeitos da alimentação dela eram tão desastrosos quanto eram os de uma sereia pura. Até agora, ao menos, as crianças estavam bem, então ela achava que os efeitos não seriam tão catastróficos assim. O amor das crianças era sempre puro, sempre a satisfazia, como o amor de mãe que Calli lhe dava.
— Não, você não fez nada de errado. Eu só queria conversar com você, ver como você se ajustou à vida no convento. Como está se sentindo aqui?
— Estou bem. — Ela parou de falar, mas, ao ver a face cheia de expectativa dele, forçou-se a continuar falando. — Todos sempre foram muito gentis comigo.
O padre Davis mal a via e, tirando algumas das irmãs, a maioria era, no mínimo, paciente com ela. As crianças e as outras garotas era do que mais gostava, elas eram uma família, unidas, fazendo companhia umas às outras. Mesmo quando não se davam tão bem, ainda cobriam umas às outras, de modo que as freiras não as castigassem por esse ou aquele malfeito. Nunca aprontavam muito.
Ele anuiu. Tinha começado a falar algo, mas, então, a garota o interrompeu.
— O que notou? — Ao ver a feição dele de leve confusão, ela complementou. — Disse que notou algo peculiar com o passar dos dias.
— Ah, sim. — Ele sorriu. Era preciso de um pouco de tato para assuntos delicados como aquele. — Notei a sua melancolia, o modo como parece perdida, mesmo aqui, na casa de Deus.
Porque ela não era dali. Imediatamente, corrigiu-se, era, sim, da terra firme. O mar não era mais o seu lar. ficou calada, não sabia bem como responder àquilo. Não sabia se acreditava em Deus, mas também não sabia se desacreditava. Sua crença ia e vinha, às vezes no mesmo dia.
— Eu gosto daqui, gosto da companhia das meninas e de ter um lugar para ficar. Eu não tenho nenhum lugar para ir, padre.
— É por causa da Guerra?
— Não. — Ela o pegou a olhando fixamente e desviou o olhar. — Não sei de onde vim. Me acharam na praia, no ano passado, e eu não tenho memórias do que aconteceu antes disso.
Aquela mentira havia se tornado tão natural que, às vezes, pegava-se pensando que aquilo era mesmo verdade, embora em seus sonhos ela voltasse ao mar, ao terror e tudo retornava como uma onda forte atingindo-a diretamente no peito.
— E sua família? — Ela deu de ombros diante da pergunta dele, evitando olhá-lo. — Eu sinto muito, .
Argh, compaixão e pena. Aquele gosto amargo quase a fez engasgar. Ela tinha que aprender logo a controlar seu apetite. Às vezes, acabava alimentando-se de emoções que nem gostaria.
— Eu não me lembro deles, então não sinto falta.
Outra mentira. Não lembrava-se de sua mãe, que morreu pouco depois do parto, mas Calli tinha sido sua mãe e lembrar-se da velha sereia a fazia triste, mesmo ali, cercada do amor de , Grace, Jane e as outras. Ela se sentia vazia.
O padre se aproximou e retesou-se quase inteira. Ter um homem perto dela ainda a fazia tensa. Ela se lembrava de quantos tritões tentava aproximar-se dela, porque muitos eram fracos demais para conseguir chegar perto de uma humana. Uma híbrida era o melhor que conseguiam. E suas mulheres sempre a perseguiam, como se fosse culpa dela, como se ela quisesse ser apenas uma fantasia sexual, apenas um fetiche, apenas um objeto.
Se o padre percebeu, não disse nada. Ele pousou a mão em seu ombro de forma quase paternal. A garota relaxou. Sentia o afeto vir dele como se fossem ondas de calor e ela não identificava nenhuma intenção maléfica nele.
— Eu sinto muito por você, , mas estou mais preocupado do que penalizado. O que você vai fazer quando tiver que sair do orfanato?
— A irmã Mary me arrumou uma vaga como babá em uma família que frequenta a paróquia. No final desse ano, irei para lá.
— Nunca pensou em ficar por aqui?
No convento? não sentia que poderia ser uma freira. Talvez, se fosse como a irmã Clara, que gostava das meninas, mas jamais como a sisuda irmã Mary. E não precisavam ter fé? A fé de variava mais do que as marés. Além do mais… não se sentiria à vontade enclausurada ali pelo resto da vida. Sereias envelheciam muito mais devagar. A própria , que era apenas metade sereia, parecia envelhecer duas vezes mais devagar que um humano normal. Passou décadas no mar, mas quando chegou em terra firme, o consenso era de que tinha de dezesseis a dezessete anos, segundo os exames médicos. E, assim, com quase trinta anos de existência no mar, na Califórnia ela estava prestes a completar dezoito anos. Sabia que se não quisesse chamar atenção, não poderia ficar sempre no mesmo lugar. Como ficar enclausurada ali ajudaria?
— Não acho que seria uma boa freira.
O padre não insistiu. Nem todo mundo era feito para a vida com Cristo e não havia nada de errado nisso.
— Minha filha, eu só quero me certificar de que você se sente bem.
A mão dele ainda estava no ombro dela. O padre Scott quase não percebeu como estava sendo atraído para ela como uma mosca para a luz. Ele só se sentia compelido a salvá-la, a fazê-la se sentir bem, queria ter certeza de que ela não acabaria como sua querida Tracy.
— Conheci uma moça que, assim como você, carregava uma tristeza no olhar que não condizia com a sua pouca idade. — Ele lambeu os lábios, sentia o corpo quente e sua pulsação estava acelerada, mas seguiu, mesmo assim, inclinando-se sobre ela. — E eu quero fazer o possível para impedir que você acabe como ela.
Ela era linda, como ele não tinha percebido antes? Até mesmo seu cheiro era inebriante e a forma como seus olhos se viraram para ele, tão límpidos, nada como os olhos azuis escuros que estava acostumado a ver, fizeram seu coração acelerar.
Já podia sentir o que ele sentia, a gana, o desejo de salvá-la, o outro tipo de desejo que começava a aflorar nele. E ao mesmo tempo que tinha fome, ela também tinha medo. Levantou-se de súbito, quebrando contato. Com a falta de proximidade, os pensamentos do padre voltaram a ficar claros.
Os dois encararam-se em silêncio. estava profundamente envergonhada pela forma como o afetara e ele, ainda mais envergonhado, mas também absolutamente confuso. Nunca tinha acontecido nada assim antes. Já tinha, é claro, sentido o desejo da carne, mas nunca antes estivera tão perto de quebrar seus votos como agora. E ela era uma criança, pelo amor de Deus. Ao menos, assim ele achava.
— Eu sinto muito, , eu…
— A culpa não é sua. — Ela se apressou em dizer, sabendo muito bem que não era uma garota comum, sabendo muito bem que era sua condição especial falando mais alto.
Antes que o padre pudesse se desculpar novamente ou sequer retorquir suas palavras, ela deu as costas e saiu correndo dali tão rápido quanto era possível. Não queria usá-lo e também não queria fazer aquilo mais. Se pudesse, jamais consumiria qualquer tipo de amor novamente, mas, para isso, precisava aprender a controlar seu apetite. E não sabia como.
O padre Scott jamais a chamou para conversar novamente, sequer a olhava quando ela ia levar as crianças para a aula. Apenas , que era sua melhor amiga, notou a diferença.
— O que há entre vocês dois?
sentiu-se ficar pálida com a mera insinuação, mas não percebeu, ocupada demais descascando as batatas para o almoço.
— Oras, nada. O que quer dizer?
Conseguiu disfarçar o nervosismo em sua voz e , só então, a encarou. Ela deu de ombros, de sua maneira rebelde e ligeiramente travessa.
— Não notou como ele a olha estranho? Acho que ele gostaria que você fosse a namorada dele. — Havia algo diferente no tom de , ciúmes. podia sentir aquilo mesmo com a distância entre elas.
— Ele é um padre, ele não pode ter uma namorada.
Mas , emburrada, bufou e deu de ombros novamente, dizendo para que ela esquecesse do assunto. E, eventualmente, se esqueceu. O padre Scott foi transferido às pressas, pouco depois do incidente e outro padre chegaria em breve. estava aliviada, tanto por ele quanto por ela.
(…)
O tempo passou mais rápido do que ela gostaria. Com o início de dezembro, chegava também a data de sua partida. A partida de tinha causado uma grande comoção entre as meninas, especialmente em .
A garota andava especialmente mal humorada, respondendo até mesmo a irmã Mary de modo torto. E sentia muito. Por mais que quisesse ficar ali, sabia que não poderia. Já tinha mentido demais e usado demais a generosidade da Igreja para seus fins egoístas.
Quando entrou na torre do sino, naquela noite, pronta para admirar o mar ao longe, encontrou em seu lugar. Surpresa, ela encarou a garota, seus cachinhos negros e macios, e sentou-se ao seu lado. Ela não sabia que conhecia seu esconderijo. Nunca tinha contado a ela, mesmo que fosse sua melhor amiga, porque aquela parte sua que gostava de observar o mar e se lembrava da sensação da água em seus cabelos era justamente a parte que mantinha escondida de todos ali.
Quando se virou, riu pelo nariz ao ver a expressão confusa nos olhos da garota.
— Você se acha tão esperta, . Acha que eu não sabia quando você se levantava da nossa cama e vinha aqui porque não conseguia dormir?
Da nossa cama. riu com a forma familiar que falava sobre o hábito das duas dormirem juntas. De todas elas, e Grace eram as que mais saciavam sua fome. A pequena Grace mal a deixava em paz naqueles últimos dias, a todo tempo agarrada na barra de seu vestido. E … Os sentimentos de tinham um gosto ligeiramente diferente ultimamente. Havia um pouco de tristeza nela. E sempre que perguntava, ela desconversava.
— Por que gosta de vir aqui?
encarou o mar, ao longe, perguntando-se mentalmente se a casa onde moraria também teria uma vista assim.
— Sabe como eu apareci, não sabe? No mar? — anuiu. — Eu tenho medo do mar até hoje, mas, ao mesmo tempo, não consigo ficar muito longe. Gosto de vê-lo daqui.
a encarou durante um longo tempo, baixando os olhos quando a encarou de volta. Os cílios escuros e espessos escondiam seus olhos castanhos, mas não esconderam suas lágrimas. A mais velha observou as lágrimas caindo na camisola branca, nos joelhos onde tinha apoiado os braços e o rosto. Quando estendeu a mão para limpar suas lágrimas, a outra desviou o rosto.
— Não é justo você ir embora. Você não tem para onde ir.
— E você tem? — gracejou, mas seu humor se dissipou quando viu que agora chorava mais. — Ah, , é natural. No ano que vem, você também vai sair daqui.
— Bom, é um ano que vou passar sem você! E você nem tem memórias, não sabe nada da vida, como elas podem te mandar embora assim?
Sentindo que a mais nova ficava cada vez mais agitada, achou melhor que as duas descessem da janela da torre, pegando a outra pela mão e a levando para o chão.
— Ei, eu vou ficar bem. Já tenho um emprego e nós podemos trocar cartas.
Emburrada, mais parecia uma criança birrenta com as bochechas estufadas e o rosto corado em um profundo tom de vermelho. riu, encostando a testa na dela.
— Eu juro que está tudo bem.
— Não está. Você vai embora amanhã e eu não consigo te contar nem mesmo agora…
— Contar o que?
bufou de novo. Ela se afastou da outra e cruzou os braços.
— Você é tão burra, é por isso que não acho justo te mandarem embora. — Sua atitude rebelde estava de volta e se sentiu ofendida com a súbita falta da garota.
— Por que eu sou burra?
— Porque nunca percebeu que eu gosto de você! Burra! Burra, burra, burra!
sabia que, em um nível, a amava porque se alimentava do amor dela. Mas, para ela, o amor de era como o de Grace. Pelo menos, parecia tão puro quanto. ficou parada por um momento, encarando como se a visse pela primeira vez na vida. Era errado. Calli sempre disse que amores entre sereias e humanos terminavam em tragédia, como foi para a sua mãe. Calli a fez prometer que jamais amaria um humano de volta.
Era impossível que os humanos não a amassem quando tudo nela deveria ser atrativo para eles. Mas o sentimento não era real. Eles amavam o que achavam que ela era, porque ela se parecia com tudo o que eles precisavam, por causa do canto da sereia, sua maldição e sua bênção. O amor de não era real. E a realização a machucou um pouco mais do que previra.
— Não vai dizer nada? — não era tão comedida. Cobrava uma resposta e não tinha medo do que viria. A seu ver, já tinha perdido . Ela iria embora de qualquer forma.
— Isso não é real, .
Seu coração doía. Era mau agouro amar uma sereia. Não queria que nada acontecesse com , mas, talvez, devesse se preocupar mais com o próprio coração.
— O que eu sinto por você? Por quê? Por que é pecado?
Pecados não a assustavam. Querendo ou não, a concepção de sobre sociedade tinha nascido no mar, na sociedade de lá. E, ao menos lá, esse tipo de relacionamento não era proibido. As afeições entre sereias, por exemplo, jamais seria algo mal visto, Jolesta e Aryella viviam como companheiras há anos sem que ninguém as desprezasse.
— Não é pecado, apenas não é real. Você acha que me ama, mas vai perceber, quando eu for embora, que não se sente assim de verdade.
Quando ela se afastar o suficiente, o canto – ou até encanto – seria quebrado. Talvez nem mesmo Grace se lembrasse dela. Com o tempo, seria apenas uma memória distante.
— Você gostava dele? Do padre Scott?
— O que isso tem a ver com o padre Scott, ?
balançou a cabeça negativamente. Gostar era algo muito forte e ela não podia dizer que sua única curiosidade era para se alimentar de um homem santo. E isso era desprezível até mesmo para uma aberração como ela.
Mas não sabia e, diferentemente de , que podia sentir suas emoções com clareza, a garota não sabia como adivinhar os pensamentos da mais velha. Era injusto. percebeu apenas naquele momento o quanto era injusta a relação das duas. pensava que estava apaixonada por ela, mas tinha apenas caído em seu canto de sereia. E quando fosse embora, ela perceberia o quanto estava errada, o quando não significava nada para ela.
Quando Calli lhe disse que o relacionamento entre sereias e humanos geralmente terminava em tragédias, pensou que isso significasse que os humanos poderiam ser destruídos se as sereias se alimentassem demais de suas emoções. Haviam estudos que mostrava o quanto humanos podiam se tornar obcecados por elas, pelas sereias, por causa de tudo o que a natureza sobrenatural delas incitava neles. jamais pensou que também pudesse terminar mal para ela. O aperto que sentia em seu peito quase tirava seu fôlego. Ela não entendia como isso tinha acontecido.
— Você acha que eu não gosto de você? — A voz dela estava embargada. Em todo o seu tempo ali, jamais a vira chorar. E se sentia mal com isso, como se fosse algo proibido, algo que seus olhos jamais deveriam ver. — E quanto a todas as vezes que eu te acobertei? Ou quando eu te abracei para afastar os seus pesadelos? Eu faria isso se eu não te amasse?
Dor. podia sentir a dor emanando dela. Ela estava machucando .
— E agora você vai embora! — A voz dela se elevou um pouco. — E eu não vou te ver todos os dias, nem dividir a cama com você, nem ver o seu sorriso e nem ouvir você assoviando enquanto descasca os legumes e eu estou assustada porque não consigo imaginar a minha vida aqui sem você, !
— Você vai embora no ano que vem, .
— É muito tempo, .
suspirou. Suas melhores memórias eram recheadas com . Para alguém que conseguia discernir os sentimentos alheios com tanta facilidade, os seus ainda eram um mistério para si mesma. Ela queria ver , queria ficar com ela todos os dias. Era isso que era amor? Só conseguia sentir o gosto dele quando vinha de outra pessoa, não sabia identificar o sentimento em seu peito. Era isso?
Mas, então, não era real. O amor de não era real. Era apenas… Um truque de sua metade sereia. Uma ilusão. Mas continuar negando o amor de apenas a machucava e as lágrimas eram testamento daquilo.
Ela se aproximou, limpando as lágrimas da outra. A princípio, negou a aproximação, mas, depois de olhar nos olhos azuis, dessa vez calmos e mais escuros do que nunca, deixou que a tocasse, a abraçasse, que ela beijasse o topo de sua cabeça.
— Eu acredito em você.
As mãos de agarraram-se a ela, abraçando seu corpo de modo desajeitado. Aquele amor que sentia antes, aquele sentimento que a alimentava tão bem o tempo inteiro, a preencheu novamente. Era ótimo ser amada, mesmo que por uma ilusão. E, agora, ela se perguntava se a amava de volta daquela mesma forma. Por um momento, desejou que fosse como ela, que sentisse o que ela sentia, porque aí teria uma confirmação exata.
— Vamos trocar cartas, tudo bem? Até você sair daqui. E se você ainda me amar depois de um ano, então nós ficaremos juntas lá fora. Eu ainda não tenho o endereço de lá, mas eu vou te enviar uma carta e você pode responder.
encostou o rosto na mão dela, absorvendo de o quanto podia, tentando gravar seu toque, seu cheiro. Para ela, era fácil. Tinha amado desde a primeira vez que a viu, desde quando encarou seus olhos misteriosos, desde quando a ensinou a lavar as roupas ou a descascar os legumes. Ela era gentil, inteligente, carinhosa. era tudo o que imaginava que queria. Ela era seu segredo. Se as freiras seques desconfiassem que sentia algo por , expulsariam as duas dali sem pensar duas vezes. Ao contrário de , tinha ouvido a vida inteira que não amava outras mulheres, que aquilo era pecado, que seus sentimentos eram, apenas, admiração. Mas ela sabia. Sabia desde sempre. Sabia que não conseguiria amar um homem sequer além do velho pai. E ela era tão certa de seu amor, tão arrogante em sua própria verdade, que não admitia para si mesma que aquele amor que sentia pela melhor amiga era qualquer coisa além de real. Por mais que achasse ingênua, era que agia inocentemente. O que ela achava? Que poderiam viver seu amor livremente lá fora? Que, longe do convento, todos a aceitariam como era? Por isso, não tinha nenhum grama de incerteza em seu corpo quando proclamou em alto e bom som:
— É claro que eu ainda vou te amar.
E queria acreditar que sim. Ela queria acreditar que o amor de não era algo causado por seu magnetismo sobrenatural, não queria que fosse uma ilusão. Quando segurou seu rosto e pressionou os lábios sobre os dela, algo novo aconteceu. Algo novo e intenso, maravilhoso, algo que jamais sentiu antes. Emoções literalmente à flor da pele, um jeito novo de consumir afeto, amor misturado com paixão. E o gosto era… Inebriante.
Talvez sentisse o mesmo? O beijo era tão cândido, tão desastrado e cheio de pureza e, ainda assim, aquela era a coisa mais intensa que já sentira na vida inteira. Ela encarou , analisando-a, vendo se tinha sentido o mesmo, se isso era comum. Nunca tinha beijado ninguém. Nunca tinha sido tocada daquela forma.
Seus conceitos sobre carícias tinham sido esmagados no convento. Beijos eram proibidos. Sexo era um tabu. Sexo entre mulheres era mais que um tabu, mas uma passagem apenas de ida para o inferno. E, ainda que suas almas estivessem em risco, ainda que arriscassem queimar no inferno, beijaram-se de novo. E de novo. E de novo, até que os lábios estivessem inchados, avermelhados, até que seus hálitos se misturassem, até que respirassem no mesmo ritmo.
Entreolharam-se, arfando, cúmplices daquele desvio. traçou os lábios dela com o indicador, baixando os olhos negros para a boca que havia beijado pelos últimos minutos, maravilhada e surpresa.
— Se você vai embora amanhã, pode ser minha apenas durante essa noite?
E, para , nenhuma resposta além de sim era sequer cogitada. Quando se beijaram novamente, tinha ficado para trás o cuidado, os medos e anseios. Tinham apenas uma noite juntas, apenas uma chance de criar uma memória que perdurasse no ano que ficariam afastadas.
Beijos, afagos e carícias foram trocados em silêncio, por vezes em sussurros cuidadosos. As duas garotas, ainda um tanto inocentes em suas afeições, exploraram-se com reverência e cuidado, fazendo com que gemidos e pequenos pedidos ecoassem apenas entre as duas. Descobrindo-se pela primeira vez, amando pela primeira vez, pecando, na visão da Igreja, em solo sagrado pela primeira vez. E foi a primeira vez que se sentiu tão satisfeita, tão alimentada, tão cheia de energia.
E no dia seguinte, quando se despediram, teve esperança. Pelas lágrimas não derramadas nos olhos de , pelo abraço que recebeu de sua amante e confidente, pela forma como as meninas mais jovens gritavam por ela. Dessa vez, talvez, o afeto fosse real. Quando entrou no carro da família, ao lado da austera mulher de meia idade que a contratou, ela ainda tinha esperança.
Nas primeiras semanas, as cartas transcorreram normalmente. Mesmo que o trabalho como babá dos três filhos da sra. Baker, uma viúva carola e mandona, fosse extenuante, ela ainda se sentava para escrever para uma noite por semana.
Com o tempo, no entanto… As cartas pararam. ainda se sentava para escrevê-las, porque era terapêutico, mas sentia o peito encher-se de ansiedade a cada vinda do carteiro. E decepcionava-se logo depois.
O trabalho não era ruim, mas, fosse como fosse, a sra. Baker não se deixava cair por seus encantos. Talvez seu charme não funcionasse em mulheres como a irmã Mary e a sra. Baker, amargas e rígidas demais para caírem por ela, e não queria testar com medo do que poderia acontecer se tentasse manipular suas emoções. As crianças, no entanto, que antes tinham um comportamento igualmente vicioso e mimado, faziam tudo o que pedia. Eram três: dois meninos mais velhos, Johnny e Caleb, e Eve, a mais nova da casa.
Como que por encanto, os dois meninos tinham parado de assustar as babás e apenas queriam a todo momento. Tinham começado a comer bem, a tomar banho sem reclamar e não mais se lamentavam para fazer o dever de casa.
Enquanto seu coração era partido, tinha continuado com seu trabalho de forma excelente. Mesmo a viúva tinha dito isso a ela uma vez, durante o café da manhã.
— Não achei que você fosse durar aqui. — Disse a sra. Baker enquanto via os dois rapazotes se levantarem da mesa e irem – sem correr – com o motorista para a escola. — Garotas como você não costumam ser tão boas com crianças.
Garotas como você. Havia um enorme motivo para que a sra. Baker não caísse em seus encantos de sereia: ela já não gostava de qualquer ser humano que não fosse seu próprio sangue. Depois da morte do marido, seu coração amargurado havia se fechado para qualquer pessoa. O falecido sr. Baker tinha deixado uma boa fortuna para a viúva, permitindo que ela vivesse confortavelmente. E porque não precisava trabalhar, a sra. Baker tinha o hábito de falar dos vizinhos ou de seus funcionários. Como a babá era a mais nova adição ao time de funcionários da casa, costumava ser o principal foco das observações importunas da sra. Baker.
Durante a maior parte do tempo, procurava não ouvi-la. Era uma mulher que tinha se casado mais tarde e perdido o marido, não tinha nada que amasse e, se não fossem as crianças, sua vida seria triste e vazia. Ela tentava não pensar nas coisas que a sra. Baker tinha a dizer.
— Às vezes, agradeço por Phillip ter morrido. Acho que ele não resistiria a uma assanhada feito você.
Havia dois homens no quadro de funcionários da casa: Gianni, o cozinheiro, um senhor de certa idade, italiano e provavelmente o homem mais alto que já vira; e Greg, o motorista, um homem divorciado que beirava seus quarenta anos. O último, aliás, fazia questão de não disfarçar os olhares para a babá. E os olhares dele apenas a enojavam. Mas é claro que a sra. Baker achava que ela queria seduzir todos os homens ao seu alcance…
— Já terminou seu café da manhã, sra. Baker? — Decidiu fazer-se de surda. Era o melhor que poderia fazer nessas circunstâncias. Toda vez que ela fazia isso, no entanto, a viúva fungava.
— Você viu como Greg a olhou?
— Não estou interessada nisso, sra. Baker.
— O carteiro também a olha.
suspirou audivelmente, fazendo um esforço para não se recostar na cadeira e sentir-se derrotada pela insistência.
Infeliz. É o que ela era. Todos os dias, quando as crianças estavam ausentes, encontrava-se infeliz. Sem elas por perto, finalmente pensava sobre o orfanato, sobre o padre, sobre e sua falta de resposta. O ano que combinaram de falar passou rápido. Quando deu por si, outro natal já tinha passado e as férias de inverno a exauriram mais do que tinha pensado.
As crianças ficavam a mil, queriam brincar no quintal a todo momento e, na maioria das vezes, a sra. Baker não permitia. Porque ela vivia trancafiada em casa, sem sequer querer sair, achava que o mesmo devia acontecer aos filhos, mesmo que insistisse que estaria com eles a todo momento.
Não que planejasse ficar longe dos três diabretes. Eles eram a única coisa que a mantinha sã, sem pensar em seu coração quebrado e, principalmente, sem fome. Não queria alimentar-se do motorista, embora achasse que ele merecia, e tampouco queria fazer com que Gianni sentisse qualquer coisa que não fosse fraternal. Não era justo.
E era quando tinha fome que ela se lembrava de , de como o amor dela tinha sido o mais satisfatório até então, de como o seu desejo pela sereia tinha um gosto tão melhor do que o amor puro de uma criança.
E esse era todo o problema. Poderia provocar a luxúria em basicamente qualquer um, caso assim desejasse, como já tinha feito antes, sem querer, com o padre. Mas era de que sentia falta e era com ela que queria sentir aquilo novamente, aquele gosto viciante, aquele sentimento que fazia seu coração saltar no peito. Não queria qualquer um, queria a melhor amiga, amante, a mulher que fazia seu coração latejar fora do peito.
Pensava em ligar para o orfanato e pedir informações sobre ela. já tinha saído de lá pelas suas contas, pois fazia quase dois anos desde que tinha deixado o orfanato para trás. estava certa em pensar que o amor de não era real, mas algo que o canto da sereia provocou.
Era por isso que não saía, mesmo nas noites de folga, e porque jamais deu nenhuma atenção a Greg. Nada era real. Nenhum deles a amava de verdade. Se ela se afastasse das crianças, de Johnny, Eve e Caleb, eles também deixariam de amá-la. Aquele pensamento, aquela certeza, era o que tirava dela a vontade de ter alguém a seu lado. Não importava que ela pudesse amar, jamais seria verdadeiramente amada de volta.
O amor não era o problema, a verdade que era. O que queria era um amor real. E em seus anos em terra firme, aquela era a primeira vez que se tocava de que isso era a única coisa que jamais poderia ter. Podia ter exércitos de homens e mulheres aos seus pés e fazê-los se apaixonar por ela, mas jamais poderia ter, genuinamente, seus corações. Não era triste? Era por isso que o amor entre uma sereia e um humano era trágico? Porque as sereias jamais seriam verdadeiramente amadas de volta?
A pequena Eve já era uma mocinha. Seus cachos castanhos, ligeiramente dourados, vinham em alta velocidade até a babá. a ergueu facilmente em seus braços quando Eve pulou sobre ela, arrancando uma gostosa gargalhada da menina. Dos três, Eve era a sua preferida. Era mais calma, mais alegre e sua personalidade inocentemente travessa a lembrava de e suas traquinagens.
Nas férias da primavera, conseguiu convencer a sra. Baker, diante de uma grande insistência das crianças, a levar todos eles em uma viagem. Com o fim da guerra, a normalidade retornava aos poucos para a maioria das famílias americanas. A sra. Baker arrumou uma casa no campo. As férias não eram, de todo, perfeitas. Muitas vezes, a viúva não permitia que levasse as crianças em passeios e não queria que o motorista passasse muito tempo perto da babá, pois tinha a impressão que, se tivesse seus próprios filhos, então não cuidaria tão bem dos seus. E o motorista não escondia que ainda tinha esperança de conseguir a atenção da babá.
Mesmo agora, quando ele deveria se manter calado diante das crianças, o mais velho tinha completado doze anos semanas atrás, ele tentava puxar assunto com a jovem. Que, mais irritada do que tudo, propositalmente o ignorava para ajeitar os cabelos da pequena Eve. havia conseguido a permissão da viúva para levar as crianças até o festival, a vinte minutos de carro de onde estavam. Ouvira sobre ele por engano, mas achou que seria uma boa oportunidade para os meninos se divertirem. E eles, é claro, soavam animados e se remexiam inquietos no banco de couro.
Ele a seguira pelo festival, também, aparentemente nem um pouco desencorajado pelo estoico silêncio da babá. Greg tagarelava por dois enquanto mantinha os olhos cuidadosamente sobre os garotos correndo à sua frente.
— Se me permite dizer, srta. … — Ela se preparou para mais um elogio. Já tinha ouvido um punhado deles. — Está belíssima nesse vestido.
— Obrigada. — Sua vontade em ser amável com aquele homem já dava sinais de estar em seu fim, mas ele seguiu, apesar da resposta seca.
— Não sei se reparou… — Ela podia sentir a luxúria emanando dele e, embora o gosto fosse bom, sentia nojo de si mesma por gostar de se alimentar dele. — Mas sempre quis uma chance para levá-la a algum lugar como esse.
— A sra. Baker nos trouxe até aqui.
— Sim, é claro, mas o que eu quis dizer…
— Gregory. — A voz tinha soado um pouco mais estridente que o normal. A pequena Eve, que segurava sua mão como se fosse um porto seguro, parou ao lado dela quando se virou para o motorista. — Eu sinto muito, mas prefiro namorar homens da minha idade. Por favor, não insista.
Ela não sabia a reação do motorista porque, nesse momento, uma risada conhecida preencheu-lhe os ouvidos. Os cabelos anelados, presos elegantemente em um coque alto, a pele escura e os olhos castanhos… A babá sentiu seu fôlego prender-se em sua garganta, o coração flutuando desagradavelmente no peito. . Era ela. Não havia dúvida. Aquele riso, que ela tinha aprendido a amar e que tinha desgraçado seu coração quando se lembrava, ainda ecoava em sua mente, deixando sua boca seca.
Ela tinha as mãos entrelaçadas às de outra moça, rindo de algo que a segunda mulher havia lhe cochichado. E não se importava com os olhares, parecia brilhar sob o escrutínio de quem a achava um tanto atrevida. Tinha sido sempre assim. E como se não fosse o suficiente… Os olhos escuros dela encontraram os azuis dela. quase parou, o sorriso vacilando, a moça ao seu lado mal percebeu.
E foi então que deu a volta, levando a pequena Eve pela mão enquanto o motorista foi atrás dela.
— Quem era ela? — A babá fingiu que não ouviu a pergunta dele, apressando o passo assim que pôs a criança no colo. — !
— Cale a boca! — Ela se virou, um tanto afastada da cordialidade fria que, até hoje, tinha permeado o relacionamento de ambos. — Maldito seja, Gregory, cale-se por um momento só, droga!
Gregory notara as faces coradas, os olhos semiabertos, mas cheios de lágrimas, e, principalmente, o modo como o peito dela subia e descia enquanto ela fazia o possível para não arfar. Ele não entendeu, a princípio, mas deduziu que a jovem devia ser uma velha conhecida. Alguém que não a fez bem. E entendia o suficiente para saber que tampouco era bem-vindo no passeio. Pela primeira vez desde que o conhecia, a babá viu o motorista se portar de forma comedida e responsável, anuindo respeitosamente e anunciando que a esperaria no carro, mas que se atentasse ao horário para que as crianças não fossem dormir tarde demais.
Sozinha com Eve, ela respirou um pouco mais aliviada. As mãozinhas gorduchas da menina pousaram em suas bochechas e puxaram seu rosto para ela.
— , você está bem?
— Sim, querida. Tudo está bem.
Olhando ao redor, não pôde mais perceber nem a melodiosa gargalhada de e muito menos a presença dela. Respirando mais aliviada, embora seu peito ainda doesse, colocou a pequena Eve no chão. Os dois meninos tinham corrido na frente e provavelmente precisavam de sua supervisão. Ela encarou a pequenina, que puxava a barra de seu vestido.
— Eu posso comer algodão doce? — Ela piscou os grandes olhos cor de mel, esperando que cedesse, como fazia sua mãe.
— Claro, querida.
Durante a noite, não tinha conseguido se esquecer de , de sua gargalhada, da moça com quem ela andava ou do modo como seu vestido a deixava ainda mais bonita. tinha mudado. Nem ela e nem eram mais aquelas garotas inocentes do convento, que achavam que o mundo girava em torno de seus umbigos e de seus corações. E de uma forma bem peculiar, sentia-se uma péssima sereia.
que deveria amá-la, que deveria sofrer por ela. Era um pensamento horrível, mas era a verdade, era a sua natureza: ser amada, ser desejada, ser venerada. Ela devia despertar esses sentimentos em humanos, não o contrário. E amava , tanto que seu coração doía e ela precisava se segurar para não chorar e estragar a noite dos meninos.
A volta para a casa de praia foi silenciosa. Exaustos, os meninos se embolaram uns aos outros, dormindo no colo da babá enquanto o carro andava. Já a babá, estava terrivelmente alerta. Seus olhos estavam grudados no vidro, encarando a estrada escura como um convite a se enterrar em seus pensamentos. O ciúme a permeava e a fazia ter ânsia de vômito. Desde quando estava com aquela moça? E, que diabos, mas foi por ela que foi trocada? Ela não era nada especial.
— Está bem?
Preocupação exalava do motorista, mas ela o ignorou. Ele suspirou alto, mas não fez mais nenhuma tentativa de contato. Bom, pensou, porque já não sabia se conseguiria manter a paciência. Estava amargurada a tal ponto que apenas queria machucar alguém, queria apenas infligir tanta dor quanto sentia agora.
Os dois levaram as crianças para dentro, a sra. Baker estava rigidamente sentada na sala de estar, esperando as crianças com os olhos cravados no grande relógio de mogno.
— Vocês estão atrasados. — Ela apenas tirou os olhos do relógio para encarar a dupla.
O motorista carregava os dois rapazes, enquanto a pequena Eve estava aninhada nos braços da babá. Respirando fundo, apenas encarou a sra. Baker que, aos poucos, amenizou as feições depois de se erguer e tocar a testa do filho mais velho. Era bom que ela estivesse tão perto, caso contrário sabia que não conseguiria se livrar do sermão.
— Levem-nos para a cama, não vou brigar com vocês quando eles parecem tão contentes.
— Sim, sra. Baker.
(...)
Já em seu quarto, jogou-se na cama com um longo suspiro. Agora que estava sozinha, as lágrimas se amontoavam em seus olhos desavergonhadamente e seu peito queimava. Ali, tinha acabado de descobrir mais uma diferença entre ela, uma mera híbrida, e as sereias: elas se alimentavam de emoções porque não conseguiam sentir. E ela? Se alimentava de emoções e as sentia profundamente. Era uma existência amaldiçoada: por que tinha que sentir? Por um momento, pensou na cruel Jolesta, questionando-se se realmente queria ser como a sereia, mas o aperto em seu peito a fez fungar e afundar o rosto no travesseiro. Qualquer coisa era melhor do que sentir seu coração quebrar pela primeira vez.
Se fosse uma dor física, aguentaria bravamente. Mas a dor era mental, sentimental, impossível de ser contida. Chorou tudo o que tinha para chorar. Os sentimentos que fervilhavam em seu peito pareciam querer rasgá-la ao meio. Sentia-se a legre por ter visto , mas também triste por vê-la com outra; estava desapontada consigo mesma por ser tão sensível, mas tampouco queria ser cruel e irascível; queria ir atrás dela, mas também não queria mais vê-la.
Os conflitos em seu coração e em sua mente não tinha fim e a força desse embate a deixou acordada a noite inteira. Antes que percebesse, o sol nascia e os raios de luz atravessavam as finas cortinas azuis. Desistindo de dormir, ela se levantou e foi até o banheiro. Precisava esfregar o rosto o suficiente para que seus olhos vermelhos e inchados não chamassem a atenção da viúva.
Ela preparou as crianças para o café da manhã, descendo com elas apenas para encontrar a sra. Baker já acordada e à mesa.
— Bom dia, sra. Baker. — Ela entoou mecanicamente, sentando-se ao lado de Eve para servir-lhe o mingau.
— O que aconteceu com o seu rosto? — Nenhuma educação? Nem mesmo um bom dia? A babá suspirou.
— Estou tendo um pouco de alergia.
— Pois peça para que a empregada limpe o seu quarto direito, toda essa casa é uma poeirada… Se o meu quarto estava empoeirado, imagino o seu.
— Sim, senhora.
O olhar atento de Eve fixou-se na mãe por um momento, antes de se voltar para o rosto da babá. sorriu para a menina, urgindo-a a tomar seu mingau. Amanhã havia transcorrido pacificamente, exceto dentro do peito da sereia. Quando sua mente não tinha o que pensar, ela revivia o momento breve onde reencontrara sua paixão. Jamais achou que seria assim. Sempre tinha esperado que o reencontro delas fosse diferente.
No dia seguinte, sua gloriosa folga semanal, por algum motivo, Eve não a deixou em paz o dia inteiro. Quando a sra. Baker tentava tirá-la de perto da babá, ela chorava e esperneava, fazia birra e gritava por . A babá teve que sair escondido de casa, pela porta dos fundos, de modo que a pequena não a visse.
Andou sem rumo, os pés formando o caminho errático, mas certeiro: a praia. Pensou em voltar, por um minuto, mas tantos anos em terra lhe deram a coragem para caminhar sobre a areia. Aquele era o mais perto que ela tinha chegado do mar em anos… E, surpreendentemente, ela sentia falta do mar. Se podia ter o melhor dos dois mundos, respirando tanto debaixo d’água quanto em terra firme, por que não podiam deixá-la em paz para isso?
Ah… Ela sentiu o peito se constringir dolorosamente e, pela primeira vez, aquela dor não era a sua.
— Sei que você sabe que estou aqui. De alguma forma, você sempre soube.
Seus olhos não deixaram as ondas, que quebravam-se a poucos metros de seus pés. Ela permaneceu em silêncio. Sentia a dor de duas pessoas, a que assombrava o peito de e a própria. Cuidadosamente, como se tivesse medo de vê-la, ela olhou para trás. E lá estava , linda como se lembrava, ainda parecendo a espoleta que costumava ser. Seu peito doeu ainda mais e ela já não sabia de quem era a dor que a assombrava agora.
Por um momento, as duas permaneceram em silêncio. Foi quem quebrou o silêncio.
— Não imaginei que você fosse se vestir de maneira tão sóbria aqui fora.
Suas roupas eram conservadoras e simples. não tinha muita vontade de possuir vestidos extravagantes e detestava sapatos de salto. Ela baixou os olhos para a areia.
— Não vai dizer nada? — Era difícil de ler a expressão de , assim como era difícil digerir os sentimentos vários que exalavam dela naquele momento. Por que estava magoada com ela se tinha sido a própria garota a deixá-la?
— Por que você nunca me respondeu?
estava surpresa por seu tom de voz, por soar tão desesperada por afeição. Mas era assim que era. Desesperada por amor de verdade, causticamente ansiando pela única coisa que ela não poderia ter.
— Eu? — riu, mas não havia viço no riso. — Foi você quem parou de me escrever.
— Eu parei? Eu continuei enviando cartas para você, mesmo depois que você parou de respondê-las. Eu achei que poderia…
O momento de confusão se estendeu. parecia desconfortável enquanto acabava por chegar à mesma conclusão que .
— A madre… Sim, isso parece coisa dela. — tinha olhos brilhantes de lágrimas, o farto lábio inferior preso entre os dentes enquanto ela respirava fundo. — , ela me disse que não tinha chegado nada, que você não tinha escrito…
Alívio. As lágrimas eram de alívio. A sereia podia senti-las se formando também. Seu coração ribombava no peito. Talvez… Ainda pudessem dar certo. Apenas talvez. Um momento estranho se estendeu entre as duas, que não sabiam bem como lidar com a avalanche de sentimentos que permeava a conversa. Havia alívio, felicidade, mágoa, ansiedade… E esperança.
— Você continuou mesmo me escrevendo durante todo esse tempo? — afastou uma mecha do cabelo crespo do rosto, pondo-a atrás da orelha. pensou que ela era ainda mais bonita com seu cabelo solto.
— Sim. — Respondeu sem hesitar. — E você… Cumpriu sua promessa?
— A de amar você? — Dessa vez, quando ela riu, a sereia sabia que era real. limpou uma lágrima que escorreu por sua bochecha. — Talvez.
Seu coração ecoava tão alto, ela encarou , que se aproximava dela. Entrelaçaram os dedos timidamente.
— Você estava com outra garota.
— Quem, Lily? — Ela pareceu surpresa. — Você está com ciúmes? Lily é minha colega de apartamento.
A sereia não respondeu, em vez disso sentiu as bochechas queimarem. Estava soando como alguma garota patética, não estava? Ela se sentiu envergonhada.
— … — As pontas dos dedos dela tocarem seu rosto com tanto cuidado e devoção que, mesmo que seus poderes empáticos não existissem, a sereia saberia que aquela era uma mulher que a amava. — Sempre foi você. Sempre será você. Eu não deixei de pensar em você por um dia, tentei encontrá-la, mas ninguém me disse…
— Então me prometa. Prometa que sempre serei eu.
riu. O som de sua gargalhada era um que ela tinha ansiado por ouvir novamente. Aquilo era real. Ela precisava que aquilo fosse real. Não sabia o que faria se descobrisse que estava apenas enfeitiçada…
— Eu prometo amá-la para sempre, do mar.
O mar… A sereia virou-se para trás, observando as águas escuras que, pouco a pouco, tragavam cada vez mais um pedaço da faixa de areia.
— Tem algo que você precisa saber.
— O que? Você se casou com o engomadinho da feira? Ele não é um pouco velho?
O tom bem-humorado quase a fez rir. Ela soltou as mãos de , que a encarou sem entender.
— Eu vim do mar.
— Sim, eu conheço a história.
— Não, … Eu… Bem, você vai precisar ver.
De costas para a água, com os olhos oceânicos fixados nela, sentiu o mar pela primeira vez em todos aqueles anos. Sentia as ondas lambendo seus tornozelos e o calafrio que arrepiava os pelos da sua pele.
— ? O que você está fazendo?
De costas, adentrava mais e mais do mar. Até que uma onda maior a cobriu completamente. Ela inspirou, abrindo os olhos dentro da água salgada. Tinha tanta saudade de nadar que ela se surpreendeu com a felicidade que explodiu em seu coração. Não sabia que sentia assim tanta falta de nadar. Ela só emergiu quando ouviu a voz de chamar por ela.
— Saia daí, , por deus… Vamos, você vai se afogar.
— Não vou. Eu nasci aqui.
— Que diabos você está dizendo?
Os olhos tinham se tornado ainda mais azuis, percebeu mesmo de longe, e pareciam carregar as ondas do mar na imensidão das íris, contidas por pálpebras oblíquas. Ela parecia mais… Bonita. Quase como se brilhasse, quase como se sua pele pálida fosse feita de algo que não apenas carne. , no mar, parecia algo sobrenatural. Vendo que não lhe respondia, ela insistiu:
— O que você quer dizer com isso?
— Quero dizer que nasci no mar, tal como uma sereia comum.
— Você… você é o que?
— Eu? — Ela sorriu. Estar no mar parecia curar as dores do peito, parecia tirar um enorme peso de seus ombros. — Não existe um nome para algo como eu. Eu sou… Apenas metade sereia.
quedou em silêncio, a expressão séria ponderando o que tinha acabado de dizer. Por fim, ela cedeu.
— E o que você pode fazer?
— Posso respirar debaixo d’água. E posso sentir suas emoções. Elas são como… Um alimento.
— Você se alimenta das minhas emoções!? Isso é loucura.
— Por que eu inventaria isso?
pareceu pensar. Em seguida, deu de ombros.
— Eu acredito em você, agora saia daí! Não quero vê-la com um resfriado.
A outra a interceptou antes mesmo que estivesse completamente fora do mar, puxando-a para um beijo salgado e cheio de sentimentos. pressionou a boca contra a da outra, as mãos emprenhando-se nos negros cabelos molhados, a língua invadindo sua boca, o peito pressionado ao dela. Quando aquele beijo acabou, tocou a testa dela com a da amada e riu.
— Você se alimentou disso? — A sereia riu.
— Sim.
— E qual é o gosto?
— O mais doce. — Beijou-a novamente, dessa vez com mais calma, apreciando-a por todos aqueles anos separadas.
— Venha morar conosco, Lily e eu. Nós temos um quarto vago desde que nossa última colega de apartamento saiu para se casar. Não que eu espere que você durma lá…
Ela riu, deleitada. Tudo ia tão bem… Ela concordou, exasperada consigo mesma, mas tão afogada em júbilo que não podia se controlar. As coisas ficariam realmente bem de agora em diante. Nada poderia abalá-la se estivesse com . Tudo daria certo. Ela se ajeitaria com as crianças, poderiam morar perto da sra. Baker… Dariam um jeito, é claro. se arrependeu de amaldiçoar sua existência. No final… Existir amor até para aberrações como ela.
Dias atuais
O mar cobriu sua cabeça e ela inspirou a água salgada, a familiar sensação de abandono afundando em seu peito como um navio afundaria ali. Deixava para trás mais um nome, mais uma vida, mais um amor que acabara em tragédia. nadava em direção ao alto-mar, o corpo perfeitamente adaptado a tal atividade.
Por que seus amores não podiam dar certo? Ela se sentia tão sozinha e estava tão cansada, tão cansada de lentamente sugar todos os sentimentos de alguém, até que apenas uma casca vazia restasse. Tão cansada de se alimentar delas, mesmo que não quisesse. E todas elas, lentamente, descendiam inevitavelmente a um estado de frenesi e carência que apenas poderia ser algum tipo de insanidade. Todas elas. Todas as mulheres que já amou. Desde até a última, Laura, ela tinha lentamente esgotado todas elas.
O que poderia fazer? Era uma criatura que se alimentava de amor. Tentava, com todas as forças, não machucá-las, porque as amava de verdade. Mas, é claro, seu amor era envenenado, manchado, feito para dilacerar-lhes os corações. Ela estava tão cansada de matá-las aos poucos. Tão cansada de se sentir sozinha. Durante toda a sua vida, só queria sentir um amor real. Como poderia?
Era uma criatura azarada e sem par, trazia mau agouro a quem quer que ousasse amá-la. E sua sina, ela achava, era caminhar pelo mundo sozinha, sem que tivesse amor. Sem afagos, sem carinhos, sem ternura. Mas, apenas até que tivesse fome novamente. Ela devia saber que seu amor só traria tragédia. Sua esperança desvanecia. Quando chegou a uma nova praia, saindo do mar, estava cansada e ignorando as pessoas ao seu redor. Era hora de recomeçar.
Mas já não sentia o peso dos grilhões e isso, ao menos, a deixava grata. A imensidão azul e gelada causava-lhe espanto, medo, mas foi também onde ela nasceu. No início da vida, no ventre, somos cercados de água. Nada parecia mais lógico do que terminar ali. Era até mesmo poético. Ela entrou na água, trinta anos depois de surgir ali mesmo. O primeiro passo, hesitante. Ela se lembrou de como amava o mar, de como sentiu falta de nadar. Os passos seguintes foram fáceis.
O tecido do vestido pesou, mas mal sentiu. Ávida, ela correu para dentro da água. Mal importava que a temperatura estivesse baixa demais ou que as ondas fortes tentassem empurrá-la para fora. Seguiu em frente. A água chegou na altura de seu peito, do pescoço e, finalmente, a engoliu. Ela desapareceu. Água encheu seus pulmões.
No início da vida, ela esteve cercada de água. No final da vida, também. Não havia nada mais poético.
Trinta anos antes
A vida no mar é diferente. Os dias pareciam passar mais devagar ou, talvez, sua percepção de tempo tivesse sido alterada pela brusca mudança de ambiente. Tinha nadado tanto que seus músculos queimavam, mas o medo doía mais. Ainda sentia na pele a dor dos castigos físicos que recebeu cruelmente ao longo dos anos. Ser diferente exigia um preço que ela nunca quis pagar. A única coisa que fez foi, literalmente, nascer.
Mas soube, desde então, que seu lugar não era, e nem nunca foi, no mar. Na imensidão azul restava seu medo, tão amplo quanto os oceanos, de tudo e de todos. O céu azul brilhava sobre a sua cabeça, o sol esquentava a água e a sua pele. Onde quer que fosse, adultos e crianças coalhavam as areias claras, procurando um alívio para o verão escaldante. E ela procurava, também, um alívio, mas para o medo e a dor. Queria viver: desesperadamente, ardorosamente, livremente. Talvez por isso tivesse nadado tanto, até seu corpo não aguentar mais. Permanecer passiva e onde estava era como assinar a sentença de sua própria morte.
Mas até onde estava viva? Conseguia mexer os dedos das mãos e dos pés e era capaz de performar as funções mais básicas de seu corpo, mas até onde isso era real? Até onde estava, realmente, viva? Agora, com o corpo doendo e queimando cada músculo, ela entendia: estava viva até desistir de si mesma. Nada a mais, nada a menos.
Nadou tanto que, agora, tudo doía. Nadou por diversas praias até achar aquela. Naquela, ao menos, não havia ninguém por perto. Só a luz da lua iluminava o corpo nu, a pele macia, os cabelos encharcados e grudados ao corpo. Com passos trôpegos e hesitantes, caminhou para fora do mar com as ondas a empurrando. Ela caiu na areia, longe o suficiente do mar para que elas não a pegassem de novo, para que a água nem ao menos lhe alcançasse. Ela não sabia quando elas surgiriam de novo, mas elas sempre surgiam. Elas sempre a achavam no mar. Bem, ali era a terra firme. E elas não eram como ela. Eles não podiam segui-la até a terra firme, não é?
Devia ter desmaiado de exaustão porque, quando abriu os olhos, já era de manhã. Alguns banhistas cautelosos a olhavam de longe. Ela não podia culpá-los. Não era totalmente ignorante sobre a cultura dos humanos. Eles estavam assustados com a sua aparência, com o seu corpo nu, com o fato de ainda parecer com algo cuspido pelo mar (o que não era de todo errôneo). Uma parcela a olhava com pena, mas alguns banhistas a olhavam torto, claramente a considerando uma pervertida e mesmo a rejeição deles parecia incomodá-la como se agulhas invisíveis a espetassem em todos os lugares. Era medo. Por que tinha adormecido ali? Deveria ter ido mais longe, deveria ter ido embora dali.
Talvez, ela pensou, eu não devesse ter vindo para cá. Talvez eu devesse ter continuado no mar. Mas então se lembrou delas e ela sabia, do fundo de suas vísceras, que jamais poderia continuar no mar. O pensamento de voltar a assustou e ela olhou a água que ia e vinha na beira da praia, afastando-se ainda mais dela.
Um homem se aproximou da garota. Ele vestia algo diferente dos banhistas, mas seu rosto era jovem, seus olhos eram gentis e seu tom de voz parecia amigável. Ele a cobriu com algo e só então ela notou que estava com frio e que sua pele estava arrepiada.
— Olá, moça. — Ela o encarou atentamente, grandes olhos azuis acinzentados que refletiam o mar. — Está em perigo? A senhorita foi atacada?
Senhorita? A palavra soou estranha. Entendia a língua deles, mas não sabia se conseguia falar. Ela abanou a cabeça negativamente. Não tinha sido atacada naquele momento. Estendendo uma mão grande e firme, ele esperou até que ela finalmente se levantasse.
Até então, a garota jamais tinha usado as pernas para andar, apenas nadar. Ainda estava incerta sobre elas, levantando-se cautelosamente. O rapaz lhe deu apoio, oferecendo o próprio ombro enquanto era cuidadoso o suficiente para não mostrar o corpo pálido, escondido apenas pelo cobertor que tinha enrolado nela.
— Quem é essa?
Outro homem, dessa vez mais velho, em roupas parecidas. A garota o encarou por um momento, confusa. Ele emitia uma energia um pouco mais hostil e seus olhos a analisaram de cima a baixo. Ela voltou o olhar para o rapaz que a apoiava, um pouco mais angustiada.
— Eu não sei, recebemos a reclamação de alguns banhistas e a achei nua na beira da praia.
— Qual é o seu nome? — Ela não gostou do tom de voz dele. Não gostou de como ele lambeu os lábios e encarou sua pele exposta mais uma vez.
— …. — Acabou respondendo sem ânimo, sentindo a voz arranhar um pouco a sua garganta.
— , eu sou o Tom Jones. Esse é o meu parceiro, Louie King. Você tem um sobrenome?
Ah… Não. Sobrenomes não era para mestiças como ela. Ela negou com a cabeça. Todos ali tinham um sobrenome? Deveria inventar um?
— O que aconteceu com você? — Louie, segundo a apresentação de seu parceiro mais jovem, a perguntou com um pouco mais de animosidade do que deveria.
Bem… Esse era o problema, não era? Os humanos não sabiam que elas existiam. Os poucos que sabiam, não viviam muito tempo para contar a história. não poderia simplesmente dizer que estava fugindo de sereias. Eles ririam dela, diriam que era louca… Ou, pior, talvez acreditassem nela. E aí seria estudada e dissecada como um peixe. Porque não era humana, mas também não era inteiramente sereia. Era uma aberração, segundo as outras sereias, alguém que não pertencia ao mar.
— Eu não me lembro.
A mentira saiu fácil de seus lábios, sem um pingo de remorso para pesar as palavras. Não sabia se poderia confiar neles, nem mesmo no rapaz gentil. Enganá-los, então, não era difícil, não tirava a sua paz.
— Acha bom levá-la para a delegacia?
— Por quê? Ela não foi atacada. — A situação não parecia benéfica para ela, não? E não podia continuar ali, na praia, onde seria facilmente achada.
— Não, não! Me ajuda, por favor! — Só havia isso a fazer: implorar. Achava que qualquer coisa era melhor do que voltar para o mar. E nunca teve muito orgulho, de qualquer forma.
Louie deu de ombros, abrindo a porta do carro e gesticulando para que ela entrasse. O policial não entendia. Tinha completado cinquenta e seis anos esse ano, estava prestes a se aposentar, achava que já estava muito velho e já tinha um casamento de mais de trinta anos nas costas para se encantar com garotas jovens como aquela. Era por isso que estava irritado. Não conseguia se controlar, mesmo dirigindo. Olhava pelo retrovisor, vislumbrando um rosto pálido, de feições que pareciam meio estrangeiras, meio sobrenaturais, mas absolutamente belo. A garota era linda. E ela o pegou encarando-a pelo espelhinho. Ele voltou os olhos para a rua.
— Você está com fome? — Tom perguntou.
Ele era gentil, reconhecia, e ela não se sentia tão intimidada por ele. Não era como o homem mais velho, que a deixava insegura com seus olhares. Ela o olhou, tirando os olhos da janela do veículo. Nunca tinha visto nada como aquilo, estava intrigada com o carro, as ruas, os banhistas.
— Não. — Era mentira. Ela estava sempre com fome, não importava o quanto comesse.
Mesmo na delegacia, as cabeças se viravam para vê-la passar. Era disso que Calli falava quando a admoestava por chamar atenção demais. Mas depois Calli morreu… E ela ficou só. Foi quando as coisas pioraram de vez. Se a vida era difícil quando Calli estava viva, uma meia-sereia sozinha estava condenada a nada menos que uma vida de sofrimento e privações. Em terra firme, isso não deveria acontecer. Ela se parecia exatamente como qualquer um deles, dois braços, duas pernas, tudo. Por que a olhavam daquela forma?
— Você sabe onde está? — Ela negou. Não sabia tanto assim sobre eles. — Quer ligar para os seus pais?
Oh, bem… Seus pais. Isso era algo estranho. Ela não tinha conhecido seus pais. A mãe, sim, mas esta não viveu muito tempo e seu pai era um humano, possivelmente estava morto. Calli estava morta. Não tinha ninguém para cuidar dela.
— Você ao menos sabe quem são os seus pais?
— Eu não tenho pais. — Afirmou sem qualquer dúvida, esperando que ele entendesse que ela era sozinha. E sempre seria.
Tom deixou a sala e ela encarou as paredes. Tinham dado a ela algo simples para vestir, um conjunto de calça e blusa, além de sapatos sem salto, cortesia da seção de achados e perdidos da delegacia. Louie voltou. Ele a encheu de perguntas: sua idade, onde morava, o nome de seus pais. Ela respondeu o que pôde, apenas o que sabia. Quando perguntada de onde tinha vindo, ficou em silêncio. Apenas respondeu:
— Do mar.
Não havia ninguém desaparecido com suas características e ninguém a reconhecia. Até onde os policiais sabiam, (sem sobrenome e nem documentos) tinha surgido ali mesmo, na praia, da noite para o dia, sem qualquer coisa que a identificasse. O consenso era de que tinha perdido a sua memória (fato que ela não corrigiu, mesmo nos anos seguintes) e que tinha se perdido dos pais ou cuidadores em algum tipo de acidente no mar. Provavelmente, era estrangeira (por causa do leve sotaque) ou de fora da Califórnia, mas ninguém conseguia rastreá-la a lugar algum.
A assistente social também não deu muitas esperanças. Disse que levaria dias, talvez semanas, para identificá-la no estado da Califórnia. Isto é, se a tal fosse realmente de lá. Podia oferecer um abrigo a ela, mas não por muito tempo. Embora não conseguisse discernir tudo aquilo muito bem, até mesmo ela entendia que algo ia errado.
Eles a levaram para um abrigo, um orfanato apenas para garotas, longe da cidade, mas ainda perto o bastante da praia. Um convento. Um lugar onde poderia ter uma cama, um teto sobre a cabeça, conforto e proteção. Era tudo o que ela poderia pedir, mais do que poderia imaginar. Já era o bastante, já era muito mais do que tinha no mar. Havia esperança, pela primeira vez na vida. Ou assim ela pensava, até encarar o rosto austero da Madre Superiora.
Um ano depois
Garotas iam e vinham do abrigo. Algumas eram adotadas, outras ficavam por ali, as mais velhas podiam continuar por ali se quisessem se tornar freiras, como as caridosas, mas rígidas irmãs que cuidavam delas. Dentre elas, ajudava as irmãs tomando conta das meninas mais jovens. A Guerra do Vietnã ainda vitimava muitas famílias, muitas ali eram de lares que não podiam se sustentar mais sem o pai ou o irmão mais velho. E as crianças não pareciam deixá-la em paz. Andavam atrás dela a todo momento, chamando seu nome e sua atenção.
Com elas, sentia paz. Mesmo a fome intermitente parecia subsistir quando estava com as meninas, trançando seus cabelos ou ouvindo-as falar a todo momento. Era a mais velha das garotas que estavam sendo abrigadas (isso se não contasse seus anos no mar). Com a ajudas das freiras, tinha conseguido documentos e, ao final do ano, tinha uma vaga para trabalhar como babá de uma família rica. De alguma forma, as coisas tinham ocorrido bem.
não imaginava que Aryella e Jolesta procurariam por ela. Para as duas sereias, seria um alívio ver-se livre da aberração. Talvez acreditassem que estava morta, isso seria o ideal para a fugitiva. Foram doze meses de paz. Doze meses de alegria, mesmo nas pequenas coisas. Não era alegre a todo momento, como quando a irmã Mary decidia implicar com ela por nenhuma razão específica, mas tinha momentos de alegria. Naquelas garotas, todas tão perdidas quanto elas, ela se via refletida e se sentia bem de saber que haviam outras como ela. Talvez as coisas fossem ficar bem. Talvez.
O convento era simples. A comida era simples, as roupas que usavam eram simples, era tarefa das meninas limpá-las e conservá-las. Ensinavam isso a todas elas, a cuidar das tarefas, ajudar na limpeza do convento, cuidar das meninas mais novas e, acima de tudo, a serem tementes a Deus. Havia toda uma rotina de orações que deveriam fazer todas as manhãs, antes de comer e antes de dormir. A vida não era difícil. Se fosse comparar com sua vida no mar, a vida no convento era bastante fácil.
Era particularmente próxima de , uma garota apenas dois anos mais nova que a própria . Conversavam durante horas a fio, fosse durante a lavagem de roupas ou quando enfiava-se em sua cama porque abominava a ideia de dormir sozinha, depois de tudo o que passou. entendia sua dor, por vezes até a sentia porque assim era a espécia de sua mãe, então jamais recusou ceder sua cama já estreita a . Porque, no fundo, ela queria ter tido uma amiga depois de ter perdido tanto sua mãe quanto Calli. Então, e espremiam-se no colchão esburacado, abraçadas uma a outra, por vezes conversando até tarde da noite, quando dormiam e finalmente tinham um sono tranquilo, sem pesadelos e sem pânico.
No começo do ano seguinte, duas semanas depois do Natal, um novo padre chegou ao convento. Um professor, segundo a irmã Mary, já que haviam novas meninas para tomar conta e nem todas tinham instrução. Especialmente a própria , que muito embora soubesse as coisas mais básicas do dia a dia, era especialmente ignorante em assuntos acadêmicos. Sabia apenas o que Calli tinha lhe ensinado e, aparentemente, seu conhecimento sobre peixes, algas e marés era inútil ali. Calli tinha jurado ensiná-la sobre cura, sobre música e filosofia, mas a sereia tinha morrido antes de cumprir a promessa.
Então, quando a irmã Mary, de maneira especialmente mal humorada naquela manhã, a convocou para o seu escritório, achou que tinha feito algo errado.
— Quero que conheça o Padre Scott. Ele será o responsável por lecionar aqui no convento. Você vai ser a responsável pelas garotas mais novas e levá-las até a aula, entendeu?
— Sim, senhora.
— Mostre o convento ao padre. — Rude e autoritária, assim era a irmã Mary.
Se quisesse, sabia que poderia mudar os sentimentos da Madre, mas por que estragar as coisas usando seus poderes? Já estava acostumada ao temperamento da madre, então assentiu e deixou a sala, com o padre seguindo-a. Olhando-o, pensou que, a bem da verdade, ele não era um homem feio. Tampouco era bonito como um ator de Hollywood, mas o padre Scott era um homem charmoso, talvez no início de seus trinta anos. Andavam silenciosamente, lado a lado. Vez ou outra, quebrava o silêncio com sua voz baixa, apontando os locais.
— Aqui é o refeitório. Algumas das meninas mais velhas trabalham aqui, ajudando nas refeições. — Ela mostrou as órfãs de uniforme e aventais. — Nós fazemos algumas tarefas domésticas para ajudar as irmãs a manter o lugar. — Explicou em voz baixa, corando ligeiramente quando ele a encarou. Ela desviou o olhar, andando mais rápido. — E aqui é a capela.
caminhou pelo convento, que era pequeno e humilde, mantido pelo dízimo que o padre Davis recebia na igreja e pelas doações das famílias de algumas freiras ali, que eram de famílias ricas. Algumas, eram apenas decepções para as famílias, e tinham sido enterradas ali como se estivessem mortas, tendo como único elo entre elas e suas famílias as doações mensais ao convento.
— E quem cuidava da educação das meninas antes de mim?
— A irmã Eunice e a irmã Anna. — Não queria falar com ele. A presença dele era inquietante e ela sentia fome novamente.
Por sorte, o padre Scott anuiu e não peguntou muito além do necessário, apenas falou com ela novamente quando afirmou que se retiraria e se assentaria em seus aposentos.
Nas semanas seguintes, as aulas do Padre Scott tomaram o tempo das meninas. levava as meninas mais jovens até a sala de aula improvisada no fundo da paróquia, que era logo ao lado do convento, e as trazia de volta quando terminavam. Aprendia uma coisa ou outra durante as aulas, isso quando não se distraía com o padre. Era nessas horas que sua fome aumentava, mesmo que tomasse um café da manhã reforçado.
O padre Scott resistiu bravamente. Era normal que um homem de sua idade tivesse certos impulsos, afinal, sua vida tinha sido um tanto desregrada na adolescência. Tinha conhecido bebida, cigarros e sexo. E, depois, escolhido Deus acima de tudo isso, porque reconhecia que o Seu amor era muito maior do que qualquer prazer temporário que a vida pudesse lhe ofertar.
Mas … era algo diferente. Não tinha bem jeito de menina, já era quase maior de idade. E não dizia que ela parecia adulta porque era muito bonita ou porque era muito sensual porque não o era, o que a tornava tão “adulta” era a dor que ela carregava naqueles olhos azuis, tempestuosos como o mar revolto. Quando não estava com as crianças ou com a tiracolo, exibia uma melancolia muito além de seus poucos anos, uma tristeza quase palpável. Ela a lembrava de sua primeira namorada, uma jovem que escondia uma nostalgia terrível, uma depressão tão profunda que acabou por tirar a própria vida.
Era esse o canto da sereia. Não um canto literal, mas a inevitável maldição de parecer exatamente o que alguém precisava. E um padre precisava de almas para salvar. Calli explicou a o que era o canto da sereia, embora Aryella e Jolesta tivessem esnobado-a dizendo que provavelmente não tinha a tal “bênção” que elas possuíam, porque parecia mais humana do que sereia. De sereia, tinha apenas os olhos, olhos tormentosos como as águas do mar. Ela sabia bem porque os homens a olhavam como olhavam. Mas, se fosse ser bem sincera consigo mesma, não se importava que o padre a olhasse daquela forma.
E sempre que pensava nisso, lembrava-se de Jolesta gritando o quanto ela era uma vadia e o quanto merecia uma surra por ser daquela forma. E, então, após muitos gritos, era a vez da surra.
A garota foi despertada de seus pensamentos quando a pequena Grace correu para o seu colo.
— , ! A aula acabou, podemos brincar agora?
Seus cachos ruivos encheram sua visão e a fome diminuiu quando a abraçou com um sorriso. Ela se levantou de sua cadeira no fundo da sala, mas foi chamada pelo padre.
— Sim, senhor?
— Quero que venha conversar comigo quando tiver um tempo livre, está bem?
A princípio, não entendeu, mas concordou de qualquer forma. Ele pôs a mão em seu ombro e sorriu.
— Não fez nada de errado, quero apenas conversar com você.
— Sim, padre Scott.
Grace voltou a puxá-la pela mão e agora tinha um motivo feliz para livrar-se do padre. Quando olhou por cima do ombro, o padre Scott a olhava ir embora. Ela sentia que algo estava mudando. E, pior ainda, sabia que não tinha poder nenhum para parar o que quer que fosse se abater sobre o convento. O convento poderia não ser tão afastado da cidade, mas tinha sua própria aura de isolamento. Notícias sobre a guerra vinham raramente, assim como as meninas que não tinham para onde ir, como ela. E quanto mais envolvida estava pelo mundo humano, sentindo-se muito mais humana do que uma sereia mestiça, mais o mar a cercava. Na Califórnia, era quase como se o mar cercasse todo o lugar. O sentimento opressivo que tinha era de que, em breve, o mar tomaria o que era seu de volta: ela.
E da torre do sino, perto de onde dormia junto de , Jane e a pequena Grace, ainda podia ver o mar. Era quando o céu escurecia e a lua era refletida nas águas misteriosas que não conseguia se conter. Ia até a janela, olhava as profundezas geladas que escondiam milhares de segredos e dois sentimentos entravam em um combate intenso: o pavor das águas e a saudade de nadar.
— O que o padre Scott quer?
parecia especialmente mal humorada, os fios crespos presos em um rabo de cavalo enquanto ela lavava os uniformes no tanque.
— Conversar comigo.
bufou alto, aplicando ainda mais força na forma como esfregava uma saia cáqui no tanque. riu quando sentiu a raiva emanando dela, o ciúme (embora não soubesse se era por causa da atenção do padre ou da atenção de ) e mesmo se não conseguisse sentir as emoções dela, era sempre bastante transparente. Não conseguia esconder seus sentimentos por muito tempo.
— Não gosto dele. — Afirmou em alto e bom som, embora já tivesse percebido isso. Ela riu. — Não ria de mim! E se ele quiser abusar de você?
— Ele é um padre, .
— E você é uma ingênua! Ora, não sabe nem de onde veio, vai saber o que um homem quer com você?
Por alguns momentos, as duas continuaram esfregando as roupas em silêncio. Aquela era uma tarefa que detestava. Não se importava de descascar legumes para a sopa ou de varrer o chão do convento, mas lavar roupas era horrível. Ver suas mãos dentro do balde de água ativava algumas memórias horríveis em sua cabeça.
Por diversas noites, quando chegou ao convento, não conseguia dormir. Seus sonhos eram recheados das cenas de descaso e crueldade com que era tratada pelas novas tutoras. Naqueles primeiros dias, confessou que também tinha medo de dormir sozinha. Talvez não tivesse pedido para dormir em sua cama para o seu próprio bem, mas sim para apaziguar a menina sem pais, sem memória e sem passado.
— Quando vai vê-lo? — Foi quem trouxe o assunto de volta e deu de ombros.
— Quando acabar de lavar a roupa, eu acho.
não respondeu, em vez disso, andou até sua amiga e a encarou nos olhos. Com os rostos tão próximos, os olhos escuros de pareciam refletir emoções que nem mesmo conseguia identificar. O que a híbrida sabia era que seria completamente honesta com ela.
— Se ele tentar te agarrar, use isso. — enfiou um objeto na mão dela, uma lixa de unha de metal. E ela só conseguiu rir. — É sério! Não ria! Você não conhece as pessoas como eu!
Mas conhecia e conhecia a crueldade o suficiente para afirmar que o padre Scott, por mais que ela não o conhecesse, não tinha um osso cruel em seu corpo inteiro. estendeu a mão cheia de água com sabão e passou um dedo no nariz arrebitado da outra.
— Nunca mude, .
Quando as meninas estavam sob a tutela da irmã Clara, uma das freiras mais jovens e divertidas para se ter ao redor, bateu à porta do padre. Não sabia bem o que esperar dele. As poucas semanas em que conviveram não tinha sido o suficiente para medir seu caráter. E, para ser sincera, não sabia se era realmente boa nisso.
— Boa tarde, . Entre, por favor. — Ele a recebeu em trajes casuais, camisa branca de botões, calça jeans, parecendo bem mais jovem do que quando usava a batina.
Não era como se ela pensasse que ele usava a batina a todo tempo, mas, ainda assim, era estranho vê-lo daquela forma. Estava há um ano no convento e pouquíssimas vezes tinha visto qualquer uma das irmãs sem o hábito ou sequer sem o véu.
— Queria falar comigo?
Ela não gostava de como sua fome aumentava perto dele. Era como se ele fizesse seu apetite acordar vorazmente e isso não era usual justamente porque ela estava acostumada a ter o afeto da maioria das pessoas ali. Perto das crianças, quase nunca sentia fome. E algumas das freiras despertavam um pouco da fome, mas ele… Ela quase não conseguia se controlar. A fome quase nublava seus pensamentos. Por que ele não lhe dava afeto? Por que o padre Scott não a amava?
tinha demorado a entender o que sua metade sereia fazia, o que ela requeria e foi Calli que a explicou sobre tudo, que a ensinou sobre tudo durante os anos em que a mais velha praticamente a criou. O canto da sereia, que era muito menos melódico do que pensavam os humanos, ela entendia. Mas na teoria era uma coisa. Na prática, foi só quando foi amada de verdade que entendeu o que fazia sua fome passar: emoções. Ganhar o afeto de alguém, o carinho ou a amizade aquietava sua fome, a fazia quase diminuir e disso ela era cercada no convento. Não por parte das irmãs, ao menos não de todas, mas tinha bastante afeto das crianças. E era um amor tão puro que não precisava de muito mais.
sabia que o afeto que tinha delas era atrelado ao magnetismo surreal que exercia nos humanos. Era uma armadilha muito bem-feita: tudo em uma sereia compelia os humanos a amá-la e dar a ela o que ela quisesse. E o que as sereias queriam em troca era consumi-los, suas emoções, tudo o que fazia deles humanos. Porque as sereias, por mais lindas e inteligentes que fossem, jamais poderiam sentir como eles.
Ele pediu que ela se sentasse, se quisesse. O quarto era simples, como os das freiras, uma cama simples, de madeira, uma escrivaninha e uma cadeira do mesmo material. O único pedaço de decoração que havia no quarto inteiro era um crucifixo na parede da cama e, do padre Scott, apenas alguns livros arrumados nas prateleiras. Era um quarto impessoal, mas ela entendia o motivo. Padres como o padre Scott nunca ficava por muito tempo no mesmo local, indo e vindo conforme fosse a necessidade da Diocese.
— Eu queria conversar com você. Notei algo peculiar com o passar dos dias. — Ela o encarou diretamente, pela primeira vez desde que tinha entrado no quarto.
não sentia nada vindo dele. Nenhuma emoção que pudesse alimentá-la, nada que pudesse saciar sua fome. Era um homem santo, afinal, com anos de sacerdócio e, portanto, com um autocontrole que condizia com o posto. Por que tinha achado que poderia tirar algo dele? Nada a não ser compaixão. E compaixão sempre deixava um gosto meio amargo em sua boca.
— Fiz algo errado?
Ela sabia que não devia usá-los assim, que não devia consumir suas emoções daquela forma, por isso tentou se segurar com o padre. Mas, sendo bem sincera, seu controle era muito parco e disso ela sabia. Era por isso que Calli a admoestava tanto, para que aprendesse a se controlar. Segundo Calli, não tinha como saber como seria para uma híbrida, se os efeitos da alimentação dela eram tão desastrosos quanto eram os de uma sereia pura. Até agora, ao menos, as crianças estavam bem, então ela achava que os efeitos não seriam tão catastróficos assim. O amor das crianças era sempre puro, sempre a satisfazia, como o amor de mãe que Calli lhe dava.
— Não, você não fez nada de errado. Eu só queria conversar com você, ver como você se ajustou à vida no convento. Como está se sentindo aqui?
— Estou bem. — Ela parou de falar, mas, ao ver a face cheia de expectativa dele, forçou-se a continuar falando. — Todos sempre foram muito gentis comigo.
O padre Davis mal a via e, tirando algumas das irmãs, a maioria era, no mínimo, paciente com ela. As crianças e as outras garotas era do que mais gostava, elas eram uma família, unidas, fazendo companhia umas às outras. Mesmo quando não se davam tão bem, ainda cobriam umas às outras, de modo que as freiras não as castigassem por esse ou aquele malfeito. Nunca aprontavam muito.
Ele anuiu. Tinha começado a falar algo, mas, então, a garota o interrompeu.
— O que notou? — Ao ver a feição dele de leve confusão, ela complementou. — Disse que notou algo peculiar com o passar dos dias.
— Ah, sim. — Ele sorriu. Era preciso de um pouco de tato para assuntos delicados como aquele. — Notei a sua melancolia, o modo como parece perdida, mesmo aqui, na casa de Deus.
Porque ela não era dali. Imediatamente, corrigiu-se, era, sim, da terra firme. O mar não era mais o seu lar. ficou calada, não sabia bem como responder àquilo. Não sabia se acreditava em Deus, mas também não sabia se desacreditava. Sua crença ia e vinha, às vezes no mesmo dia.
— Eu gosto daqui, gosto da companhia das meninas e de ter um lugar para ficar. Eu não tenho nenhum lugar para ir, padre.
— É por causa da Guerra?
— Não. — Ela o pegou a olhando fixamente e desviou o olhar. — Não sei de onde vim. Me acharam na praia, no ano passado, e eu não tenho memórias do que aconteceu antes disso.
Aquela mentira havia se tornado tão natural que, às vezes, pegava-se pensando que aquilo era mesmo verdade, embora em seus sonhos ela voltasse ao mar, ao terror e tudo retornava como uma onda forte atingindo-a diretamente no peito.
— E sua família? — Ela deu de ombros diante da pergunta dele, evitando olhá-lo. — Eu sinto muito, .
Argh, compaixão e pena. Aquele gosto amargo quase a fez engasgar. Ela tinha que aprender logo a controlar seu apetite. Às vezes, acabava alimentando-se de emoções que nem gostaria.
— Eu não me lembro deles, então não sinto falta.
Outra mentira. Não lembrava-se de sua mãe, que morreu pouco depois do parto, mas Calli tinha sido sua mãe e lembrar-se da velha sereia a fazia triste, mesmo ali, cercada do amor de , Grace, Jane e as outras. Ela se sentia vazia.
O padre se aproximou e retesou-se quase inteira. Ter um homem perto dela ainda a fazia tensa. Ela se lembrava de quantos tritões tentava aproximar-se dela, porque muitos eram fracos demais para conseguir chegar perto de uma humana. Uma híbrida era o melhor que conseguiam. E suas mulheres sempre a perseguiam, como se fosse culpa dela, como se ela quisesse ser apenas uma fantasia sexual, apenas um fetiche, apenas um objeto.
Se o padre percebeu, não disse nada. Ele pousou a mão em seu ombro de forma quase paternal. A garota relaxou. Sentia o afeto vir dele como se fossem ondas de calor e ela não identificava nenhuma intenção maléfica nele.
— Eu sinto muito por você, , mas estou mais preocupado do que penalizado. O que você vai fazer quando tiver que sair do orfanato?
— A irmã Mary me arrumou uma vaga como babá em uma família que frequenta a paróquia. No final desse ano, irei para lá.
— Nunca pensou em ficar por aqui?
No convento? não sentia que poderia ser uma freira. Talvez, se fosse como a irmã Clara, que gostava das meninas, mas jamais como a sisuda irmã Mary. E não precisavam ter fé? A fé de variava mais do que as marés. Além do mais… não se sentiria à vontade enclausurada ali pelo resto da vida. Sereias envelheciam muito mais devagar. A própria , que era apenas metade sereia, parecia envelhecer duas vezes mais devagar que um humano normal. Passou décadas no mar, mas quando chegou em terra firme, o consenso era de que tinha de dezesseis a dezessete anos, segundo os exames médicos. E, assim, com quase trinta anos de existência no mar, na Califórnia ela estava prestes a completar dezoito anos. Sabia que se não quisesse chamar atenção, não poderia ficar sempre no mesmo lugar. Como ficar enclausurada ali ajudaria?
— Não acho que seria uma boa freira.
O padre não insistiu. Nem todo mundo era feito para a vida com Cristo e não havia nada de errado nisso.
— Minha filha, eu só quero me certificar de que você se sente bem.
A mão dele ainda estava no ombro dela. O padre Scott quase não percebeu como estava sendo atraído para ela como uma mosca para a luz. Ele só se sentia compelido a salvá-la, a fazê-la se sentir bem, queria ter certeza de que ela não acabaria como sua querida Tracy.
— Conheci uma moça que, assim como você, carregava uma tristeza no olhar que não condizia com a sua pouca idade. — Ele lambeu os lábios, sentia o corpo quente e sua pulsação estava acelerada, mas seguiu, mesmo assim, inclinando-se sobre ela. — E eu quero fazer o possível para impedir que você acabe como ela.
Ela era linda, como ele não tinha percebido antes? Até mesmo seu cheiro era inebriante e a forma como seus olhos se viraram para ele, tão límpidos, nada como os olhos azuis escuros que estava acostumado a ver, fizeram seu coração acelerar.
Já podia sentir o que ele sentia, a gana, o desejo de salvá-la, o outro tipo de desejo que começava a aflorar nele. E ao mesmo tempo que tinha fome, ela também tinha medo. Levantou-se de súbito, quebrando contato. Com a falta de proximidade, os pensamentos do padre voltaram a ficar claros.
Os dois encararam-se em silêncio. estava profundamente envergonhada pela forma como o afetara e ele, ainda mais envergonhado, mas também absolutamente confuso. Nunca tinha acontecido nada assim antes. Já tinha, é claro, sentido o desejo da carne, mas nunca antes estivera tão perto de quebrar seus votos como agora. E ela era uma criança, pelo amor de Deus. Ao menos, assim ele achava.
— Eu sinto muito, , eu…
— A culpa não é sua. — Ela se apressou em dizer, sabendo muito bem que não era uma garota comum, sabendo muito bem que era sua condição especial falando mais alto.
Antes que o padre pudesse se desculpar novamente ou sequer retorquir suas palavras, ela deu as costas e saiu correndo dali tão rápido quanto era possível. Não queria usá-lo e também não queria fazer aquilo mais. Se pudesse, jamais consumiria qualquer tipo de amor novamente, mas, para isso, precisava aprender a controlar seu apetite. E não sabia como.
O padre Scott jamais a chamou para conversar novamente, sequer a olhava quando ela ia levar as crianças para a aula. Apenas , que era sua melhor amiga, notou a diferença.
— O que há entre vocês dois?
sentiu-se ficar pálida com a mera insinuação, mas não percebeu, ocupada demais descascando as batatas para o almoço.
— Oras, nada. O que quer dizer?
Conseguiu disfarçar o nervosismo em sua voz e , só então, a encarou. Ela deu de ombros, de sua maneira rebelde e ligeiramente travessa.
— Não notou como ele a olha estranho? Acho que ele gostaria que você fosse a namorada dele. — Havia algo diferente no tom de , ciúmes. podia sentir aquilo mesmo com a distância entre elas.
— Ele é um padre, ele não pode ter uma namorada.
Mas , emburrada, bufou e deu de ombros novamente, dizendo para que ela esquecesse do assunto. E, eventualmente, se esqueceu. O padre Scott foi transferido às pressas, pouco depois do incidente e outro padre chegaria em breve. estava aliviada, tanto por ele quanto por ela.
(…)
O tempo passou mais rápido do que ela gostaria. Com o início de dezembro, chegava também a data de sua partida. A partida de tinha causado uma grande comoção entre as meninas, especialmente em .
A garota andava especialmente mal humorada, respondendo até mesmo a irmã Mary de modo torto. E sentia muito. Por mais que quisesse ficar ali, sabia que não poderia. Já tinha mentido demais e usado demais a generosidade da Igreja para seus fins egoístas.
Quando entrou na torre do sino, naquela noite, pronta para admirar o mar ao longe, encontrou em seu lugar. Surpresa, ela encarou a garota, seus cachinhos negros e macios, e sentou-se ao seu lado. Ela não sabia que conhecia seu esconderijo. Nunca tinha contado a ela, mesmo que fosse sua melhor amiga, porque aquela parte sua que gostava de observar o mar e se lembrava da sensação da água em seus cabelos era justamente a parte que mantinha escondida de todos ali.
Quando se virou, riu pelo nariz ao ver a expressão confusa nos olhos da garota.
— Você se acha tão esperta, . Acha que eu não sabia quando você se levantava da nossa cama e vinha aqui porque não conseguia dormir?
Da nossa cama. riu com a forma familiar que falava sobre o hábito das duas dormirem juntas. De todas elas, e Grace eram as que mais saciavam sua fome. A pequena Grace mal a deixava em paz naqueles últimos dias, a todo tempo agarrada na barra de seu vestido. E … Os sentimentos de tinham um gosto ligeiramente diferente ultimamente. Havia um pouco de tristeza nela. E sempre que perguntava, ela desconversava.
— Por que gosta de vir aqui?
encarou o mar, ao longe, perguntando-se mentalmente se a casa onde moraria também teria uma vista assim.
— Sabe como eu apareci, não sabe? No mar? — anuiu. — Eu tenho medo do mar até hoje, mas, ao mesmo tempo, não consigo ficar muito longe. Gosto de vê-lo daqui.
a encarou durante um longo tempo, baixando os olhos quando a encarou de volta. Os cílios escuros e espessos escondiam seus olhos castanhos, mas não esconderam suas lágrimas. A mais velha observou as lágrimas caindo na camisola branca, nos joelhos onde tinha apoiado os braços e o rosto. Quando estendeu a mão para limpar suas lágrimas, a outra desviou o rosto.
— Não é justo você ir embora. Você não tem para onde ir.
— E você tem? — gracejou, mas seu humor se dissipou quando viu que agora chorava mais. — Ah, , é natural. No ano que vem, você também vai sair daqui.
— Bom, é um ano que vou passar sem você! E você nem tem memórias, não sabe nada da vida, como elas podem te mandar embora assim?
Sentindo que a mais nova ficava cada vez mais agitada, achou melhor que as duas descessem da janela da torre, pegando a outra pela mão e a levando para o chão.
— Ei, eu vou ficar bem. Já tenho um emprego e nós podemos trocar cartas.
Emburrada, mais parecia uma criança birrenta com as bochechas estufadas e o rosto corado em um profundo tom de vermelho. riu, encostando a testa na dela.
— Eu juro que está tudo bem.
— Não está. Você vai embora amanhã e eu não consigo te contar nem mesmo agora…
— Contar o que?
bufou de novo. Ela se afastou da outra e cruzou os braços.
— Você é tão burra, é por isso que não acho justo te mandarem embora. — Sua atitude rebelde estava de volta e se sentiu ofendida com a súbita falta da garota.
— Por que eu sou burra?
— Porque nunca percebeu que eu gosto de você! Burra! Burra, burra, burra!
sabia que, em um nível, a amava porque se alimentava do amor dela. Mas, para ela, o amor de era como o de Grace. Pelo menos, parecia tão puro quanto. ficou parada por um momento, encarando como se a visse pela primeira vez na vida. Era errado. Calli sempre disse que amores entre sereias e humanos terminavam em tragédia, como foi para a sua mãe. Calli a fez prometer que jamais amaria um humano de volta.
Era impossível que os humanos não a amassem quando tudo nela deveria ser atrativo para eles. Mas o sentimento não era real. Eles amavam o que achavam que ela era, porque ela se parecia com tudo o que eles precisavam, por causa do canto da sereia, sua maldição e sua bênção. O amor de não era real. E a realização a machucou um pouco mais do que previra.
— Não vai dizer nada? — não era tão comedida. Cobrava uma resposta e não tinha medo do que viria. A seu ver, já tinha perdido . Ela iria embora de qualquer forma.
— Isso não é real, .
Seu coração doía. Era mau agouro amar uma sereia. Não queria que nada acontecesse com , mas, talvez, devesse se preocupar mais com o próprio coração.
— O que eu sinto por você? Por quê? Por que é pecado?
Pecados não a assustavam. Querendo ou não, a concepção de sobre sociedade tinha nascido no mar, na sociedade de lá. E, ao menos lá, esse tipo de relacionamento não era proibido. As afeições entre sereias, por exemplo, jamais seria algo mal visto, Jolesta e Aryella viviam como companheiras há anos sem que ninguém as desprezasse.
— Não é pecado, apenas não é real. Você acha que me ama, mas vai perceber, quando eu for embora, que não se sente assim de verdade.
Quando ela se afastar o suficiente, o canto – ou até encanto – seria quebrado. Talvez nem mesmo Grace se lembrasse dela. Com o tempo, seria apenas uma memória distante.
— Você gostava dele? Do padre Scott?
— O que isso tem a ver com o padre Scott, ?
balançou a cabeça negativamente. Gostar era algo muito forte e ela não podia dizer que sua única curiosidade era para se alimentar de um homem santo. E isso era desprezível até mesmo para uma aberração como ela.
Mas não sabia e, diferentemente de , que podia sentir suas emoções com clareza, a garota não sabia como adivinhar os pensamentos da mais velha. Era injusto. percebeu apenas naquele momento o quanto era injusta a relação das duas. pensava que estava apaixonada por ela, mas tinha apenas caído em seu canto de sereia. E quando fosse embora, ela perceberia o quanto estava errada, o quando não significava nada para ela.
Quando Calli lhe disse que o relacionamento entre sereias e humanos geralmente terminava em tragédias, pensou que isso significasse que os humanos poderiam ser destruídos se as sereias se alimentassem demais de suas emoções. Haviam estudos que mostrava o quanto humanos podiam se tornar obcecados por elas, pelas sereias, por causa de tudo o que a natureza sobrenatural delas incitava neles. jamais pensou que também pudesse terminar mal para ela. O aperto que sentia em seu peito quase tirava seu fôlego. Ela não entendia como isso tinha acontecido.
— Você acha que eu não gosto de você? — A voz dela estava embargada. Em todo o seu tempo ali, jamais a vira chorar. E se sentia mal com isso, como se fosse algo proibido, algo que seus olhos jamais deveriam ver. — E quanto a todas as vezes que eu te acobertei? Ou quando eu te abracei para afastar os seus pesadelos? Eu faria isso se eu não te amasse?
Dor. podia sentir a dor emanando dela. Ela estava machucando .
— E agora você vai embora! — A voz dela se elevou um pouco. — E eu não vou te ver todos os dias, nem dividir a cama com você, nem ver o seu sorriso e nem ouvir você assoviando enquanto descasca os legumes e eu estou assustada porque não consigo imaginar a minha vida aqui sem você, !
— Você vai embora no ano que vem, .
— É muito tempo, .
suspirou. Suas melhores memórias eram recheadas com . Para alguém que conseguia discernir os sentimentos alheios com tanta facilidade, os seus ainda eram um mistério para si mesma. Ela queria ver , queria ficar com ela todos os dias. Era isso que era amor? Só conseguia sentir o gosto dele quando vinha de outra pessoa, não sabia identificar o sentimento em seu peito. Era isso?
Mas, então, não era real. O amor de não era real. Era apenas… Um truque de sua metade sereia. Uma ilusão. Mas continuar negando o amor de apenas a machucava e as lágrimas eram testamento daquilo.
Ela se aproximou, limpando as lágrimas da outra. A princípio, negou a aproximação, mas, depois de olhar nos olhos azuis, dessa vez calmos e mais escuros do que nunca, deixou que a tocasse, a abraçasse, que ela beijasse o topo de sua cabeça.
— Eu acredito em você.
As mãos de agarraram-se a ela, abraçando seu corpo de modo desajeitado. Aquele amor que sentia antes, aquele sentimento que a alimentava tão bem o tempo inteiro, a preencheu novamente. Era ótimo ser amada, mesmo que por uma ilusão. E, agora, ela se perguntava se a amava de volta daquela mesma forma. Por um momento, desejou que fosse como ela, que sentisse o que ela sentia, porque aí teria uma confirmação exata.
— Vamos trocar cartas, tudo bem? Até você sair daqui. E se você ainda me amar depois de um ano, então nós ficaremos juntas lá fora. Eu ainda não tenho o endereço de lá, mas eu vou te enviar uma carta e você pode responder.
encostou o rosto na mão dela, absorvendo de o quanto podia, tentando gravar seu toque, seu cheiro. Para ela, era fácil. Tinha amado desde a primeira vez que a viu, desde quando encarou seus olhos misteriosos, desde quando a ensinou a lavar as roupas ou a descascar os legumes. Ela era gentil, inteligente, carinhosa. era tudo o que imaginava que queria. Ela era seu segredo. Se as freiras seques desconfiassem que sentia algo por , expulsariam as duas dali sem pensar duas vezes. Ao contrário de , tinha ouvido a vida inteira que não amava outras mulheres, que aquilo era pecado, que seus sentimentos eram, apenas, admiração. Mas ela sabia. Sabia desde sempre. Sabia que não conseguiria amar um homem sequer além do velho pai. E ela era tão certa de seu amor, tão arrogante em sua própria verdade, que não admitia para si mesma que aquele amor que sentia pela melhor amiga era qualquer coisa além de real. Por mais que achasse ingênua, era que agia inocentemente. O que ela achava? Que poderiam viver seu amor livremente lá fora? Que, longe do convento, todos a aceitariam como era? Por isso, não tinha nenhum grama de incerteza em seu corpo quando proclamou em alto e bom som:
— É claro que eu ainda vou te amar.
E queria acreditar que sim. Ela queria acreditar que o amor de não era algo causado por seu magnetismo sobrenatural, não queria que fosse uma ilusão. Quando segurou seu rosto e pressionou os lábios sobre os dela, algo novo aconteceu. Algo novo e intenso, maravilhoso, algo que jamais sentiu antes. Emoções literalmente à flor da pele, um jeito novo de consumir afeto, amor misturado com paixão. E o gosto era… Inebriante.
Talvez sentisse o mesmo? O beijo era tão cândido, tão desastrado e cheio de pureza e, ainda assim, aquela era a coisa mais intensa que já sentira na vida inteira. Ela encarou , analisando-a, vendo se tinha sentido o mesmo, se isso era comum. Nunca tinha beijado ninguém. Nunca tinha sido tocada daquela forma.
Seus conceitos sobre carícias tinham sido esmagados no convento. Beijos eram proibidos. Sexo era um tabu. Sexo entre mulheres era mais que um tabu, mas uma passagem apenas de ida para o inferno. E, ainda que suas almas estivessem em risco, ainda que arriscassem queimar no inferno, beijaram-se de novo. E de novo. E de novo, até que os lábios estivessem inchados, avermelhados, até que seus hálitos se misturassem, até que respirassem no mesmo ritmo.
Entreolharam-se, arfando, cúmplices daquele desvio. traçou os lábios dela com o indicador, baixando os olhos negros para a boca que havia beijado pelos últimos minutos, maravilhada e surpresa.
— Se você vai embora amanhã, pode ser minha apenas durante essa noite?
E, para , nenhuma resposta além de sim era sequer cogitada. Quando se beijaram novamente, tinha ficado para trás o cuidado, os medos e anseios. Tinham apenas uma noite juntas, apenas uma chance de criar uma memória que perdurasse no ano que ficariam afastadas.
Beijos, afagos e carícias foram trocados em silêncio, por vezes em sussurros cuidadosos. As duas garotas, ainda um tanto inocentes em suas afeições, exploraram-se com reverência e cuidado, fazendo com que gemidos e pequenos pedidos ecoassem apenas entre as duas. Descobrindo-se pela primeira vez, amando pela primeira vez, pecando, na visão da Igreja, em solo sagrado pela primeira vez. E foi a primeira vez que se sentiu tão satisfeita, tão alimentada, tão cheia de energia.
E no dia seguinte, quando se despediram, teve esperança. Pelas lágrimas não derramadas nos olhos de , pelo abraço que recebeu de sua amante e confidente, pela forma como as meninas mais jovens gritavam por ela. Dessa vez, talvez, o afeto fosse real. Quando entrou no carro da família, ao lado da austera mulher de meia idade que a contratou, ela ainda tinha esperança.
Nas primeiras semanas, as cartas transcorreram normalmente. Mesmo que o trabalho como babá dos três filhos da sra. Baker, uma viúva carola e mandona, fosse extenuante, ela ainda se sentava para escrever para uma noite por semana.
Com o tempo, no entanto… As cartas pararam. ainda se sentava para escrevê-las, porque era terapêutico, mas sentia o peito encher-se de ansiedade a cada vinda do carteiro. E decepcionava-se logo depois.
O trabalho não era ruim, mas, fosse como fosse, a sra. Baker não se deixava cair por seus encantos. Talvez seu charme não funcionasse em mulheres como a irmã Mary e a sra. Baker, amargas e rígidas demais para caírem por ela, e não queria testar com medo do que poderia acontecer se tentasse manipular suas emoções. As crianças, no entanto, que antes tinham um comportamento igualmente vicioso e mimado, faziam tudo o que pedia. Eram três: dois meninos mais velhos, Johnny e Caleb, e Eve, a mais nova da casa.
Como que por encanto, os dois meninos tinham parado de assustar as babás e apenas queriam a todo momento. Tinham começado a comer bem, a tomar banho sem reclamar e não mais se lamentavam para fazer o dever de casa.
Enquanto seu coração era partido, tinha continuado com seu trabalho de forma excelente. Mesmo a viúva tinha dito isso a ela uma vez, durante o café da manhã.
— Não achei que você fosse durar aqui. — Disse a sra. Baker enquanto via os dois rapazotes se levantarem da mesa e irem – sem correr – com o motorista para a escola. — Garotas como você não costumam ser tão boas com crianças.
Garotas como você. Havia um enorme motivo para que a sra. Baker não caísse em seus encantos de sereia: ela já não gostava de qualquer ser humano que não fosse seu próprio sangue. Depois da morte do marido, seu coração amargurado havia se fechado para qualquer pessoa. O falecido sr. Baker tinha deixado uma boa fortuna para a viúva, permitindo que ela vivesse confortavelmente. E porque não precisava trabalhar, a sra. Baker tinha o hábito de falar dos vizinhos ou de seus funcionários. Como a babá era a mais nova adição ao time de funcionários da casa, costumava ser o principal foco das observações importunas da sra. Baker.
Durante a maior parte do tempo, procurava não ouvi-la. Era uma mulher que tinha se casado mais tarde e perdido o marido, não tinha nada que amasse e, se não fossem as crianças, sua vida seria triste e vazia. Ela tentava não pensar nas coisas que a sra. Baker tinha a dizer.
— Às vezes, agradeço por Phillip ter morrido. Acho que ele não resistiria a uma assanhada feito você.
Havia dois homens no quadro de funcionários da casa: Gianni, o cozinheiro, um senhor de certa idade, italiano e provavelmente o homem mais alto que já vira; e Greg, o motorista, um homem divorciado que beirava seus quarenta anos. O último, aliás, fazia questão de não disfarçar os olhares para a babá. E os olhares dele apenas a enojavam. Mas é claro que a sra. Baker achava que ela queria seduzir todos os homens ao seu alcance…
— Já terminou seu café da manhã, sra. Baker? — Decidiu fazer-se de surda. Era o melhor que poderia fazer nessas circunstâncias. Toda vez que ela fazia isso, no entanto, a viúva fungava.
— Você viu como Greg a olhou?
— Não estou interessada nisso, sra. Baker.
— O carteiro também a olha.
suspirou audivelmente, fazendo um esforço para não se recostar na cadeira e sentir-se derrotada pela insistência.
Infeliz. É o que ela era. Todos os dias, quando as crianças estavam ausentes, encontrava-se infeliz. Sem elas por perto, finalmente pensava sobre o orfanato, sobre o padre, sobre e sua falta de resposta. O ano que combinaram de falar passou rápido. Quando deu por si, outro natal já tinha passado e as férias de inverno a exauriram mais do que tinha pensado.
As crianças ficavam a mil, queriam brincar no quintal a todo momento e, na maioria das vezes, a sra. Baker não permitia. Porque ela vivia trancafiada em casa, sem sequer querer sair, achava que o mesmo devia acontecer aos filhos, mesmo que insistisse que estaria com eles a todo momento.
Não que planejasse ficar longe dos três diabretes. Eles eram a única coisa que a mantinha sã, sem pensar em seu coração quebrado e, principalmente, sem fome. Não queria alimentar-se do motorista, embora achasse que ele merecia, e tampouco queria fazer com que Gianni sentisse qualquer coisa que não fosse fraternal. Não era justo.
E era quando tinha fome que ela se lembrava de , de como o amor dela tinha sido o mais satisfatório até então, de como o seu desejo pela sereia tinha um gosto tão melhor do que o amor puro de uma criança.
E esse era todo o problema. Poderia provocar a luxúria em basicamente qualquer um, caso assim desejasse, como já tinha feito antes, sem querer, com o padre. Mas era de que sentia falta e era com ela que queria sentir aquilo novamente, aquele gosto viciante, aquele sentimento que fazia seu coração saltar no peito. Não queria qualquer um, queria a melhor amiga, amante, a mulher que fazia seu coração latejar fora do peito.
Pensava em ligar para o orfanato e pedir informações sobre ela. já tinha saído de lá pelas suas contas, pois fazia quase dois anos desde que tinha deixado o orfanato para trás. estava certa em pensar que o amor de não era real, mas algo que o canto da sereia provocou.
Era por isso que não saía, mesmo nas noites de folga, e porque jamais deu nenhuma atenção a Greg. Nada era real. Nenhum deles a amava de verdade. Se ela se afastasse das crianças, de Johnny, Eve e Caleb, eles também deixariam de amá-la. Aquele pensamento, aquela certeza, era o que tirava dela a vontade de ter alguém a seu lado. Não importava que ela pudesse amar, jamais seria verdadeiramente amada de volta.
O amor não era o problema, a verdade que era. O que queria era um amor real. E em seus anos em terra firme, aquela era a primeira vez que se tocava de que isso era a única coisa que jamais poderia ter. Podia ter exércitos de homens e mulheres aos seus pés e fazê-los se apaixonar por ela, mas jamais poderia ter, genuinamente, seus corações. Não era triste? Era por isso que o amor entre uma sereia e um humano era trágico? Porque as sereias jamais seriam verdadeiramente amadas de volta?
A pequena Eve já era uma mocinha. Seus cachos castanhos, ligeiramente dourados, vinham em alta velocidade até a babá. a ergueu facilmente em seus braços quando Eve pulou sobre ela, arrancando uma gostosa gargalhada da menina. Dos três, Eve era a sua preferida. Era mais calma, mais alegre e sua personalidade inocentemente travessa a lembrava de e suas traquinagens.
Nas férias da primavera, conseguiu convencer a sra. Baker, diante de uma grande insistência das crianças, a levar todos eles em uma viagem. Com o fim da guerra, a normalidade retornava aos poucos para a maioria das famílias americanas. A sra. Baker arrumou uma casa no campo. As férias não eram, de todo, perfeitas. Muitas vezes, a viúva não permitia que levasse as crianças em passeios e não queria que o motorista passasse muito tempo perto da babá, pois tinha a impressão que, se tivesse seus próprios filhos, então não cuidaria tão bem dos seus. E o motorista não escondia que ainda tinha esperança de conseguir a atenção da babá.
Mesmo agora, quando ele deveria se manter calado diante das crianças, o mais velho tinha completado doze anos semanas atrás, ele tentava puxar assunto com a jovem. Que, mais irritada do que tudo, propositalmente o ignorava para ajeitar os cabelos da pequena Eve. havia conseguido a permissão da viúva para levar as crianças até o festival, a vinte minutos de carro de onde estavam. Ouvira sobre ele por engano, mas achou que seria uma boa oportunidade para os meninos se divertirem. E eles, é claro, soavam animados e se remexiam inquietos no banco de couro.
Ele a seguira pelo festival, também, aparentemente nem um pouco desencorajado pelo estoico silêncio da babá. Greg tagarelava por dois enquanto mantinha os olhos cuidadosamente sobre os garotos correndo à sua frente.
— Se me permite dizer, srta. … — Ela se preparou para mais um elogio. Já tinha ouvido um punhado deles. — Está belíssima nesse vestido.
— Obrigada. — Sua vontade em ser amável com aquele homem já dava sinais de estar em seu fim, mas ele seguiu, apesar da resposta seca.
— Não sei se reparou… — Ela podia sentir a luxúria emanando dele e, embora o gosto fosse bom, sentia nojo de si mesma por gostar de se alimentar dele. — Mas sempre quis uma chance para levá-la a algum lugar como esse.
— A sra. Baker nos trouxe até aqui.
— Sim, é claro, mas o que eu quis dizer…
— Gregory. — A voz tinha soado um pouco mais estridente que o normal. A pequena Eve, que segurava sua mão como se fosse um porto seguro, parou ao lado dela quando se virou para o motorista. — Eu sinto muito, mas prefiro namorar homens da minha idade. Por favor, não insista.
Ela não sabia a reação do motorista porque, nesse momento, uma risada conhecida preencheu-lhe os ouvidos. Os cabelos anelados, presos elegantemente em um coque alto, a pele escura e os olhos castanhos… A babá sentiu seu fôlego prender-se em sua garganta, o coração flutuando desagradavelmente no peito. . Era ela. Não havia dúvida. Aquele riso, que ela tinha aprendido a amar e que tinha desgraçado seu coração quando se lembrava, ainda ecoava em sua mente, deixando sua boca seca.
Ela tinha as mãos entrelaçadas às de outra moça, rindo de algo que a segunda mulher havia lhe cochichado. E não se importava com os olhares, parecia brilhar sob o escrutínio de quem a achava um tanto atrevida. Tinha sido sempre assim. E como se não fosse o suficiente… Os olhos escuros dela encontraram os azuis dela. quase parou, o sorriso vacilando, a moça ao seu lado mal percebeu.
E foi então que deu a volta, levando a pequena Eve pela mão enquanto o motorista foi atrás dela.
— Quem era ela? — A babá fingiu que não ouviu a pergunta dele, apressando o passo assim que pôs a criança no colo. — !
— Cale a boca! — Ela se virou, um tanto afastada da cordialidade fria que, até hoje, tinha permeado o relacionamento de ambos. — Maldito seja, Gregory, cale-se por um momento só, droga!
Gregory notara as faces coradas, os olhos semiabertos, mas cheios de lágrimas, e, principalmente, o modo como o peito dela subia e descia enquanto ela fazia o possível para não arfar. Ele não entendeu, a princípio, mas deduziu que a jovem devia ser uma velha conhecida. Alguém que não a fez bem. E entendia o suficiente para saber que tampouco era bem-vindo no passeio. Pela primeira vez desde que o conhecia, a babá viu o motorista se portar de forma comedida e responsável, anuindo respeitosamente e anunciando que a esperaria no carro, mas que se atentasse ao horário para que as crianças não fossem dormir tarde demais.
Sozinha com Eve, ela respirou um pouco mais aliviada. As mãozinhas gorduchas da menina pousaram em suas bochechas e puxaram seu rosto para ela.
— , você está bem?
— Sim, querida. Tudo está bem.
Olhando ao redor, não pôde mais perceber nem a melodiosa gargalhada de e muito menos a presença dela. Respirando mais aliviada, embora seu peito ainda doesse, colocou a pequena Eve no chão. Os dois meninos tinham corrido na frente e provavelmente precisavam de sua supervisão. Ela encarou a pequenina, que puxava a barra de seu vestido.
— Eu posso comer algodão doce? — Ela piscou os grandes olhos cor de mel, esperando que cedesse, como fazia sua mãe.
— Claro, querida.
Durante a noite, não tinha conseguido se esquecer de , de sua gargalhada, da moça com quem ela andava ou do modo como seu vestido a deixava ainda mais bonita. tinha mudado. Nem ela e nem eram mais aquelas garotas inocentes do convento, que achavam que o mundo girava em torno de seus umbigos e de seus corações. E de uma forma bem peculiar, sentia-se uma péssima sereia.
que deveria amá-la, que deveria sofrer por ela. Era um pensamento horrível, mas era a verdade, era a sua natureza: ser amada, ser desejada, ser venerada. Ela devia despertar esses sentimentos em humanos, não o contrário. E amava , tanto que seu coração doía e ela precisava se segurar para não chorar e estragar a noite dos meninos.
A volta para a casa de praia foi silenciosa. Exaustos, os meninos se embolaram uns aos outros, dormindo no colo da babá enquanto o carro andava. Já a babá, estava terrivelmente alerta. Seus olhos estavam grudados no vidro, encarando a estrada escura como um convite a se enterrar em seus pensamentos. O ciúme a permeava e a fazia ter ânsia de vômito. Desde quando estava com aquela moça? E, que diabos, mas foi por ela que foi trocada? Ela não era nada especial.
— Está bem?
Preocupação exalava do motorista, mas ela o ignorou. Ele suspirou alto, mas não fez mais nenhuma tentativa de contato. Bom, pensou, porque já não sabia se conseguiria manter a paciência. Estava amargurada a tal ponto que apenas queria machucar alguém, queria apenas infligir tanta dor quanto sentia agora.
Os dois levaram as crianças para dentro, a sra. Baker estava rigidamente sentada na sala de estar, esperando as crianças com os olhos cravados no grande relógio de mogno.
— Vocês estão atrasados. — Ela apenas tirou os olhos do relógio para encarar a dupla.
O motorista carregava os dois rapazes, enquanto a pequena Eve estava aninhada nos braços da babá. Respirando fundo, apenas encarou a sra. Baker que, aos poucos, amenizou as feições depois de se erguer e tocar a testa do filho mais velho. Era bom que ela estivesse tão perto, caso contrário sabia que não conseguiria se livrar do sermão.
— Levem-nos para a cama, não vou brigar com vocês quando eles parecem tão contentes.
— Sim, sra. Baker.
Já em seu quarto, jogou-se na cama com um longo suspiro. Agora que estava sozinha, as lágrimas se amontoavam em seus olhos desavergonhadamente e seu peito queimava. Ali, tinha acabado de descobrir mais uma diferença entre ela, uma mera híbrida, e as sereias: elas se alimentavam de emoções porque não conseguiam sentir. E ela? Se alimentava de emoções e as sentia profundamente. Era uma existência amaldiçoada: por que tinha que sentir? Por um momento, pensou na cruel Jolesta, questionando-se se realmente queria ser como a sereia, mas o aperto em seu peito a fez fungar e afundar o rosto no travesseiro. Qualquer coisa era melhor do que sentir seu coração quebrar pela primeira vez.
Se fosse uma dor física, aguentaria bravamente. Mas a dor era mental, sentimental, impossível de ser contida. Chorou tudo o que tinha para chorar. Os sentimentos que fervilhavam em seu peito pareciam querer rasgá-la ao meio. Sentia-se a legre por ter visto , mas também triste por vê-la com outra; estava desapontada consigo mesma por ser tão sensível, mas tampouco queria ser cruel e irascível; queria ir atrás dela, mas também não queria mais vê-la.
Os conflitos em seu coração e em sua mente não tinha fim e a força desse embate a deixou acordada a noite inteira. Antes que percebesse, o sol nascia e os raios de luz atravessavam as finas cortinas azuis. Desistindo de dormir, ela se levantou e foi até o banheiro. Precisava esfregar o rosto o suficiente para que seus olhos vermelhos e inchados não chamassem a atenção da viúva.
Ela preparou as crianças para o café da manhã, descendo com elas apenas para encontrar a sra. Baker já acordada e à mesa.
— Bom dia, sra. Baker. — Ela entoou mecanicamente, sentando-se ao lado de Eve para servir-lhe o mingau.
— O que aconteceu com o seu rosto? — Nenhuma educação? Nem mesmo um bom dia? A babá suspirou.
— Estou tendo um pouco de alergia.
— Pois peça para que a empregada limpe o seu quarto direito, toda essa casa é uma poeirada… Se o meu quarto estava empoeirado, imagino o seu.
— Sim, senhora.
O olhar atento de Eve fixou-se na mãe por um momento, antes de se voltar para o rosto da babá. sorriu para a menina, urgindo-a a tomar seu mingau. Amanhã havia transcorrido pacificamente, exceto dentro do peito da sereia. Quando sua mente não tinha o que pensar, ela revivia o momento breve onde reencontrara sua paixão. Jamais achou que seria assim. Sempre tinha esperado que o reencontro delas fosse diferente.
No dia seguinte, sua gloriosa folga semanal, por algum motivo, Eve não a deixou em paz o dia inteiro. Quando a sra. Baker tentava tirá-la de perto da babá, ela chorava e esperneava, fazia birra e gritava por . A babá teve que sair escondido de casa, pela porta dos fundos, de modo que a pequena não a visse.
Andou sem rumo, os pés formando o caminho errático, mas certeiro: a praia. Pensou em voltar, por um minuto, mas tantos anos em terra lhe deram a coragem para caminhar sobre a areia. Aquele era o mais perto que ela tinha chegado do mar em anos… E, surpreendentemente, ela sentia falta do mar. Se podia ter o melhor dos dois mundos, respirando tanto debaixo d’água quanto em terra firme, por que não podiam deixá-la em paz para isso?
Ah… Ela sentiu o peito se constringir dolorosamente e, pela primeira vez, aquela dor não era a sua.
— Sei que você sabe que estou aqui. De alguma forma, você sempre soube.
Seus olhos não deixaram as ondas, que quebravam-se a poucos metros de seus pés. Ela permaneceu em silêncio. Sentia a dor de duas pessoas, a que assombrava o peito de e a própria. Cuidadosamente, como se tivesse medo de vê-la, ela olhou para trás. E lá estava , linda como se lembrava, ainda parecendo a espoleta que costumava ser. Seu peito doeu ainda mais e ela já não sabia de quem era a dor que a assombrava agora.
Por um momento, as duas permaneceram em silêncio. Foi quem quebrou o silêncio.
— Não imaginei que você fosse se vestir de maneira tão sóbria aqui fora.
Suas roupas eram conservadoras e simples. não tinha muita vontade de possuir vestidos extravagantes e detestava sapatos de salto. Ela baixou os olhos para a areia.
— Não vai dizer nada? — Era difícil de ler a expressão de , assim como era difícil digerir os sentimentos vários que exalavam dela naquele momento. Por que estava magoada com ela se tinha sido a própria garota a deixá-la?
— Por que você nunca me respondeu?
estava surpresa por seu tom de voz, por soar tão desesperada por afeição. Mas era assim que era. Desesperada por amor de verdade, causticamente ansiando pela única coisa que ela não poderia ter.
— Eu? — riu, mas não havia viço no riso. — Foi você quem parou de me escrever.
— Eu parei? Eu continuei enviando cartas para você, mesmo depois que você parou de respondê-las. Eu achei que poderia…
O momento de confusão se estendeu. parecia desconfortável enquanto acabava por chegar à mesma conclusão que .
— A madre… Sim, isso parece coisa dela. — tinha olhos brilhantes de lágrimas, o farto lábio inferior preso entre os dentes enquanto ela respirava fundo. — , ela me disse que não tinha chegado nada, que você não tinha escrito…
Alívio. As lágrimas eram de alívio. A sereia podia senti-las se formando também. Seu coração ribombava no peito. Talvez… Ainda pudessem dar certo. Apenas talvez. Um momento estranho se estendeu entre as duas, que não sabiam bem como lidar com a avalanche de sentimentos que permeava a conversa. Havia alívio, felicidade, mágoa, ansiedade… E esperança.
— Você continuou mesmo me escrevendo durante todo esse tempo? — afastou uma mecha do cabelo crespo do rosto, pondo-a atrás da orelha. pensou que ela era ainda mais bonita com seu cabelo solto.
— Sim. — Respondeu sem hesitar. — E você… Cumpriu sua promessa?
— A de amar você? — Dessa vez, quando ela riu, a sereia sabia que era real. limpou uma lágrima que escorreu por sua bochecha. — Talvez.
Seu coração ecoava tão alto, ela encarou , que se aproximava dela. Entrelaçaram os dedos timidamente.
— Você estava com outra garota.
— Quem, Lily? — Ela pareceu surpresa. — Você está com ciúmes? Lily é minha colega de apartamento.
A sereia não respondeu, em vez disso sentiu as bochechas queimarem. Estava soando como alguma garota patética, não estava? Ela se sentiu envergonhada.
— … — As pontas dos dedos dela tocarem seu rosto com tanto cuidado e devoção que, mesmo que seus poderes empáticos não existissem, a sereia saberia que aquela era uma mulher que a amava. — Sempre foi você. Sempre será você. Eu não deixei de pensar em você por um dia, tentei encontrá-la, mas ninguém me disse…
— Então me prometa. Prometa que sempre serei eu.
riu. O som de sua gargalhada era um que ela tinha ansiado por ouvir novamente. Aquilo era real. Ela precisava que aquilo fosse real. Não sabia o que faria se descobrisse que estava apenas enfeitiçada…
— Eu prometo amá-la para sempre, do mar.
O mar… A sereia virou-se para trás, observando as águas escuras que, pouco a pouco, tragavam cada vez mais um pedaço da faixa de areia.
— Tem algo que você precisa saber.
— O que? Você se casou com o engomadinho da feira? Ele não é um pouco velho?
O tom bem-humorado quase a fez rir. Ela soltou as mãos de , que a encarou sem entender.
— Eu vim do mar.
— Sim, eu conheço a história.
— Não, … Eu… Bem, você vai precisar ver.
De costas para a água, com os olhos oceânicos fixados nela, sentiu o mar pela primeira vez em todos aqueles anos. Sentia as ondas lambendo seus tornozelos e o calafrio que arrepiava os pelos da sua pele.
— ? O que você está fazendo?
De costas, adentrava mais e mais do mar. Até que uma onda maior a cobriu completamente. Ela inspirou, abrindo os olhos dentro da água salgada. Tinha tanta saudade de nadar que ela se surpreendeu com a felicidade que explodiu em seu coração. Não sabia que sentia assim tanta falta de nadar. Ela só emergiu quando ouviu a voz de chamar por ela.
— Saia daí, , por deus… Vamos, você vai se afogar.
— Não vou. Eu nasci aqui.
— Que diabos você está dizendo?
Os olhos tinham se tornado ainda mais azuis, percebeu mesmo de longe, e pareciam carregar as ondas do mar na imensidão das íris, contidas por pálpebras oblíquas. Ela parecia mais… Bonita. Quase como se brilhasse, quase como se sua pele pálida fosse feita de algo que não apenas carne. , no mar, parecia algo sobrenatural. Vendo que não lhe respondia, ela insistiu:
— O que você quer dizer com isso?
— Quero dizer que nasci no mar, tal como uma sereia comum.
— Você… você é o que?
— Eu? — Ela sorriu. Estar no mar parecia curar as dores do peito, parecia tirar um enorme peso de seus ombros. — Não existe um nome para algo como eu. Eu sou… Apenas metade sereia.
quedou em silêncio, a expressão séria ponderando o que tinha acabado de dizer. Por fim, ela cedeu.
— E o que você pode fazer?
— Posso respirar debaixo d’água. E posso sentir suas emoções. Elas são como… Um alimento.
— Você se alimenta das minhas emoções!? Isso é loucura.
— Por que eu inventaria isso?
pareceu pensar. Em seguida, deu de ombros.
— Eu acredito em você, agora saia daí! Não quero vê-la com um resfriado.
A outra a interceptou antes mesmo que estivesse completamente fora do mar, puxando-a para um beijo salgado e cheio de sentimentos. pressionou a boca contra a da outra, as mãos emprenhando-se nos negros cabelos molhados, a língua invadindo sua boca, o peito pressionado ao dela. Quando aquele beijo acabou, tocou a testa dela com a da amada e riu.
— Você se alimentou disso? — A sereia riu.
— Sim.
— E qual é o gosto?
— O mais doce. — Beijou-a novamente, dessa vez com mais calma, apreciando-a por todos aqueles anos separadas.
— Venha morar conosco, Lily e eu. Nós temos um quarto vago desde que nossa última colega de apartamento saiu para se casar. Não que eu espere que você durma lá…
Ela riu, deleitada. Tudo ia tão bem… Ela concordou, exasperada consigo mesma, mas tão afogada em júbilo que não podia se controlar. As coisas ficariam realmente bem de agora em diante. Nada poderia abalá-la se estivesse com . Tudo daria certo. Ela se ajeitaria com as crianças, poderiam morar perto da sra. Baker… Dariam um jeito, é claro. se arrependeu de amaldiçoar sua existência. No final… Existir amor até para aberrações como ela.
Dias atuais
O mar cobriu sua cabeça e ela inspirou a água salgada, a familiar sensação de abandono afundando em seu peito como um navio afundaria ali. Deixava para trás mais um nome, mais uma vida, mais um amor que acabara em tragédia. nadava em direção ao alto-mar, o corpo perfeitamente adaptado a tal atividade.
Por que seus amores não podiam dar certo? Ela se sentia tão sozinha e estava tão cansada, tão cansada de lentamente sugar todos os sentimentos de alguém, até que apenas uma casca vazia restasse. Tão cansada de se alimentar delas, mesmo que não quisesse. E todas elas, lentamente, descendiam inevitavelmente a um estado de frenesi e carência que apenas poderia ser algum tipo de insanidade. Todas elas. Todas as mulheres que já amou. Desde até a última, Laura, ela tinha lentamente esgotado todas elas.
O que poderia fazer? Era uma criatura que se alimentava de amor. Tentava, com todas as forças, não machucá-las, porque as amava de verdade. Mas, é claro, seu amor era envenenado, manchado, feito para dilacerar-lhes os corações. Ela estava tão cansada de matá-las aos poucos. Tão cansada de se sentir sozinha. Durante toda a sua vida, só queria sentir um amor real. Como poderia?
Era uma criatura azarada e sem par, trazia mau agouro a quem quer que ousasse amá-la. E sua sina, ela achava, era caminhar pelo mundo sozinha, sem que tivesse amor. Sem afagos, sem carinhos, sem ternura. Mas, apenas até que tivesse fome novamente. Ela devia saber que seu amor só traria tragédia. Sua esperança desvanecia. Quando chegou a uma nova praia, saindo do mar, estava cansada e ignorando as pessoas ao seu redor. Era hora de recomeçar.
Fim
Nota da autora: Não sei o que é, mas músicas da Lana sempre me urgem a escrever algo mais de época. Espero que tenham gostado! Até a próxima.
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