Capítulo 1
não tinha certeza de que tinha sequer conseguido completar quatro horas de sono naquela noite. Se piscasse por uma fração de segundo sequer a mais, suspeitava que fosse acabar abrindo os olhos apenas para se deparar com os papéis de sua demissão em sua frente.
Não que aquela possibilidade estivesse realmente tão distante assim de sua realidade. Afinal, era exatamente pelo medo desproporcional de ser demitido que tinha criado aquela privação de sono.
Tudo havia começado na reunião da segunda-feira cedo. não estava suando nervoso. Não estava sentindo o estômago virar. Não sentia uma ânsia estranha de bater o pé repetidamente contra o chão. Talvez o fato de tudo estar tão bem tivesse de ter sido percebido de cara como o primeiro sinal claro de que nada estava certo de fato. Era óbvio que alguma coisa estava prestes a chegar para destruir seus curtos e raros momentos de paz e tranquilidade.
Quando seu chefe lhe arremessou ao colo a incumbência de encontrar um novo ilustrador para o lançamento mais recente da principal autora da editora, ele pensou estar finalmente recebendo seu trote de estágio. Alguns amigos tinham comentado sobre isso.
Mas não. Jonathan, o ilustrador original tinha simplesmente entrado em um avião com destino para Seul e só se importou em avisar que não trabalhava mais para a editora quando já tinha o chip com o número de seu novo país em mãos, desconectando-se de vez do contato com seus antigos contratantes. Apenas um advogado tinha ficado para trás, a fim de resolver os últimos detalhes da demissão.
— Eu preciso de um ilustrador novo logo - Corey falava, andando de um lado para o outro da sala de reunião, enquanto soltava o nó da própria gravata, sentindo o adereço lhe sufocando como as garras imaginárias do estresse e do desespero que lhe corroíam.
— Nenhum dos outros ilustradores está disponível?
— Dois estão de férias, uma está mais atolada do que nunca e a outra está ocupada fazendo os desenhos para uma coleção infantil, então sem chance. Preciso de alguém que consiga fazer isso bem, rápido e me custando pouco.
— E, com todo o respeito, mas onde o senhor acha que eu vou conseguir alguém assim agora?
Corey ergueu os ombros, soltando-os de maneira dura.
— Confio que você vá dar um jeito. Afinal, acredito que sua efetivação seja um desejo mútuo aqui.
E lá estava a ameaça velada. Com o fim da faculdade de Letras se aproximando, era óbvio para qualquer um que tudo o que ele mais queria era sair do estágio efetivado, para não ter de assumir o rótulo de desempregado em busca de uma fonte de renda fixa. Ainda mais quando ele precisava do dinheiro se quisesse manter o aluguel do teto sobre a sua cabeça pago.
— Vou procurar algo, senhor - respondeu. — Entro em contato se encontrar alguém.
— Quando encontrar alguém - o chefe ergueu o indicador, corrigindo-o.
apenas sorriu amarelo ao vê-lo sair da sala, como se já soubesse que os próximos quatro dias seriam os piores de sua vida.
Ele não sabia quantas ligações tinha feito, mas sabia que, se tivesse usado seus próprios créditos para isso, não teria completado nem metade dos “nãos” recebidos. Abrir a aba de ‘Enviados’ de seu e-mail com as respostas era pedir para se chatear ao perceber que a maioria tinha sido lindamente ignorada por seus destinatários. Tinha doado suas horas de sono a um esforço cansativo e inútil de revirar suas opções em fusos horários distantes demais do seu e terminara com as mãos ainda vazias e olheiras tão profundas que ele tinha certeza de que conseguiria sustentar uma moeda ali.
Sem qualquer perspectiva de que alguma criatura divina se apiedasse de seu cansaço e decidisse lhe oferecer um milagre, derrubando um ilustrador em seu colo, ele simplesmente se permitiu abrir uma aba do twitter. Estaria na rua de qualquer forma, antes mesmo que seu chefe pudesse reclamar de seu intervalo para redes sociais.
Rolou a tela inicial sem muita atenção, correndo por tweets de alguns autores que seguia e de alguns astros da NBA que ele admirava. Havia passado tanto tempo focado no trabalho que só naquele instante descobrira que o Lakers havia batido, mais uma vez, o San Antonio Spurs. Pelo menos algo de positivo tirava daquela semana.
não era exatamente o tipo de cara com vários seguidores em seu perfil e também não fazia o tipo que seguia muitas pessoas além daquelas que contavam com um balão azul verificado ao lado do nome. Era esse o motivo de seu estranhamento ser ainda maior ao ver um desenho incrível ali, com traços finos e impactantes, cobrindo a capa do e-book que um de seus antigos veteranos da faculdade acabava de lançar.
Por alguns curtos segundos, sentiu-se mal por não fazer a mínima ideia de que o colega estava passando por um processo de lançamento próprio. Tinha que ser muito relapso para não saber de algo tão importante quanto aquilo. Sua preocupação e culpa, contudo, esvaíram-se rapidamente ao ler os agradecimentos no tweet, que incluíam um revisor, uma diagramadora e a ilustradora responsável pela arte da capa.
“Queria também agradecer à @_scarlett pela capa maravilhosa que soube transmitir e explicar minha história muito melhor do que eu mesmo. Sou muito feliz por poder contar com esse trabalho maravilhoso.”
Seus pés encontraram um ritmo frenético para bater no chão, enquanto ele sentia a empolgação retornando a si. Era um tiro no escuro, mas era seu último tiro e ele precisava tentar.
Clicou no perfil marcado na publicação e se permitiu perder alguns minutos olhando as mídias da conta. A tal Scarlett vinha oferecendo seus serviços por aquela plataforma, ajudando, especialmente, autores independentes que começavam a lançar suas obras na Amazon. E, ele tinha de admitir, eram serviços excelentes. Sempre que pensava ter se encantado definitivamente por uma das capas acabava encontrando outra que lhe parecia ainda melhor. Se tivesse mais tempo, teria ido atrás de cada uma das sinopses daquelas histórias, apenas para saciar seu interesse desperto pelas ilustrações.
Mas ele tinha um objetivo. E um objetivo que não poderia mais esperar.
Abriu a caixa de mensagens diretas e digitou uma mensagem:
Releu as palavras recém-digitadas três vezes antes de finalmente decidir enviar. Não sabia se estava sendo informal demais para alguém que estava quase implorando de joelhos para que outra pessoa assinasse um contrato, mas não sabia como fazer melhor do que aquilo. E, apesar de nunca ter sido exatamente um cara tão religioso quanto sua avó gostaria que ele fosse, ele quase quis rezar para que ao menos aquilo desse certo.
Fechou a guia, tentando se convencer de que não estava ansioso e seu coração não parecia prestes a entrar em fibrilação de tanto nervoso que o consumia a cada segundo repleto de espera e expectativa.
Abriu seu e-mail institucional da faculdade e o que utilizava no trabalho, encontrando-se pela primeira vez na vida realmente decepcionado que não tivesse uma mensagem ou pendência sequer para preencher seu momento de surto solitário.
Levantou-se abruptamente de sua cadeira, decidido a ocupar seu tempo organizando sua mesa. Esvaziou o pequeno cesto de lixo que mantinha sob a bancada, separando seus descartes de acordo com as características da coleta seletiva. Passou um pano umedecido com álcool sobre o notebook e o celular e começou a ordenar suas canetas por cor. Não sabia mais o que fazer.
Quando seu celular piscou com a notificação do aplicativo do twitter, ele largou tudo o mais rápido possível, tentando fazer os dedos pararem de tremer enquanto digitava o link do site novamente no computador.
Ela o havia respondido.
“Olá, . Me passa o seu número.”
Ele franziu as sobrancelhas, identificando no próprio reflexo contra a tela as rugas de confusão em sua testa. Apesar do estranhamento, obedeceu-a.
Após alguns minutos, outra notificação; agora do Whatsapp.
“ ?”
Ele confirmou, observando o aviso no contato, sinalizando se tratar de uma conta comercial. Não esperava algo tão comercial ou distante assim.
O aparelho, então, começou a vibrar, fazendo-o ignorar a aceleração cardíaca pelo susto e atender.
— Scarlett?
— Teoricamente, sim - respondeu a voz feminina risonha do outro lado. — Então, , amigo do Donald que lançou o primeiro livro, o que você quer de mim?
Ele abriu a primeira gaveta, puxando os papéis que revisara ao menos cinco vezes durante os últimos dias, com todas as informações de registro do livro.
— Bom, você conhece a autora Mackenzie Priest? Ela escreveu uma série de livros de romance recentemente que acabou virando até série do Netflix.
— Sim, estou familiarizada com a série. Continue.
— Ela vai lançar um novo projeto agora e estamos todos bastante animados com o resultado. Além de ser um momento importante de renovação da carreira dela, tem um ar distópico bastante interessante que acreditamos que fará sucesso com o público literário.
— , você não precisa vender o livro para mim e nem encher a bola de ninguém. Só quero saber onde eu entro nessa história.
— Certo - ele respondeu, meio sem jeito. — Bem, não temos nenhum ilustrador disponível no momento e queremos que o conceito seja definido logo para começarmos a preparar as divulgações.
— E deixaram que você fizesse o trabalho de entrar em contato comigo em nome da Editora Trembley?
O rapaz se levantou, caminhando até a porta da sala para garantir que a tinha fechado e que não havia nenhum par de orelhas intrometidas tentando prestar mais atenção do que o devido à sua conversa.
— Escuta, Scarlett, se é que esse é seu verdadeiro nome e não apenas sua marca artística - começou. — Como eu te disse na mensagem, eu sou estagiário aqui e estou a meio passo de ser efetivado. Acontece que esse contrato só sai se eu encontrar um ilustrador disponível ainda hoje e, acredite, eu passei a semana entrando em contato com todo mundo que eu conhecia.
— Parece um meio passo bem trabalhoso.
— E foi mesmo. Eu não tinha mais esperança alguma de encontrar alguém. Daí, acabei esbarrando no post de lançamento do Donald e adorei o seu trabalho, sinceramente. Acho que combina totalmente com o que queremos para essa nova série.
— E, se eu não aceitar, você meio que corre risco de ser demitido.
Ele odiava aquela palavra e como ela lhe causava um embrulhamento no estômago instantâneo só de lê-la ali. Mas, bom, no fim das contas, era mais ou menos aquilo mesmo. Não tinha como minimizar o impacto escolhendo palavras bonitas. A vida era muito mais o soco na boca do estômago que você só aceitava do que um tapinha no ombro em recordação de que as coisas poderiam ficar bem.
— É por aí.
A linha ficou totalmente silenciosa por alguns instantes. Ele conseguiria ouvir a respiração dela do outro lado se se esforçasse um pouco para desligar os pensamentos barulhentos que corriam descoordenadamente por sua cabeça.
— Certo. Eu não trabalho com editoras, sabe? Geralmente faço contato com autores independentes mesmo. Peguei uma leve aversão a editoras porque sinto que vocês estão sempre presos em manter o mesmo autor já famoso produzindo feito uma máquina e ignorando que existem vários outros incrivelmente talentosos aparecendo cada vez mais.
— Bom, estamos sempre buscando novos autores para publicar, mas concordo com você que existem vários potenciais incríveis não recebendo oportunidade. Pode ter certeza de que tudo o que eu mais queria era difundir cada vez mais a leitura e a escrita.
“Quanto a isso de continuar publicando autores já famosos, bem, é inevitável. Se nós não o fizermos, outra editora o fará. Sem contar que eles continuam sendo ótimos autores e merecendo espaço. E meio que é deles que vem a maior parte dos lucros, então…”
— É, eu sei. É o capitalismo. Fazer o quê? E é por causa dele que eu tenho pena de pessoas como você e não quero ser a causa da sua demissão. Sei me compadecer de histórias reais. Me encaminha as coisas formalmente, marca uma reunião com o gerente, chefe, dono, CEO, sei lá. Mas eu aceito.
O rapaz arregalou os olhos, sem saber ao certo o que lhe atingira.
— Calma, você realmente aceitou?
Ouviu a risada do outro lado.
— É, sei que é muito difícil de acreditar, mas nós dois precisamos de dinheiro para sobreviver. E eu gosto das histórias da Mackenzie. Querendo ou não, também é uma divulgação do meu trabalho.
Ele nem tinha pensado naquele mísero - e enorme - detalhe. Para alguém que mal tinha contatos fora do plano amador, ilustrar o livro que, com certeza, estaria na lista de mais vendidos por várias semanas realmente significava muita coisa. E ele era um péssimo argumentador por não ter percebido isso antes e utilizado a informação a favor de seu pobre poder de persuasão e convencimento.
— Eu nem sei como te agradecer, de verdade - admitiu. — Tenho certeza de que vai ser uma parceria de trabalho bastante proveitosa.
— E voltou às palavras profissionais. Ok, ok. É, vai ser legal, eu acho. Você tem meu número. Vou esperar o retorno depois que você der a notícia para o seu chefe. Obrigado pela proposta, .
— Pode deixar, Scarlett.
— Você tinha razão, aliás.
— Tenho razão sobre muitas coisas - comentou com falsa presunção. — Mas do que exatamente estamos falando nesse momento?
— Scarlett é só uma marca artística.
Ela desligou antes que ele pudesse fazer novas perguntas. Se tinha uma coisa que ele detestava na vida era que o deixassem curioso. Aquilo definitivamente não ficaria daquele jeito. Ele não conseguiria simplesmente deixar para lá.
Mas teria que ser em outra hora. Naquele momento, sua maior preocupação era sair o mais rápido possível daquela sala e encontrar Corey.
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agradeceu profundamente pela xícara de cappuccino solúvel fumegante recém retirada do microondas. O tempo não estava dos mais amistosos há pelo menos uns três dias e olhar para o céu cinzento e carregado só o deixava mais desanimado e desacreditado em relação ao passar do próprio tempo. Às vezes nem parecia que ainda era de manhã quando ele precisava acender a luz do quarto a fim de não destruir seus olhos tentando enxergar seus papéis com anotações dos tópicos abordados com o orientador de seu último trabalho acadêmico, uma das poucas pendências que ainda tinha se quisesse se formar.
Vivia sempre na dualidade de reclamar que o tempo quente o deixava mal, com a pressão baixa e se sentindo sem forças e disposição, mas que o tempo frio tinha o lado negativo de ser tão acolhedor e tornar a cama, as cobertas e uma maratona de qualquer série muito mais convidativas do que de costume. A verdade era que ele só queria procrastinar e fingir que não tinha um prazo se aproximando independentemente da previsão do tempo. De certa forma, acreditava que merecia um descanso depois do estresse dos últimos dias.
Quando seus pensamentos começaram a deslizar em direção à conclusão de que poderia muito bem fechar o caderno, guardar as pastas e fazer aquilo em outro dia, ele recebeu o que julgava um sinal do universo, dando-lhe motivos para se dispersar de vez.
Uma mensagem de Scarlett.
“ , você está ocupado?”
Ele puxou o aparelho rapidamente para si, sentindo o ódio daqueles malditos segundos em que a porcaria do leitor não reconhecera sua digital, obrigando-o a digitar os números da senha.
“Ótimo, porque eu também preciso de um favor seu.”
“Fiz um rascunho à mão do que pensei para a capa depois de ler a sinopse e a resenha. Não tive tempo de terminar o livro ainda, mas imagino que você tenha tido, então me diz se eu estou no caminho certo.”
Alguns instantes depois, uma imagem carregou na tela, mostrando uma folha Canson com delineados pesados e robustos ao redor da fonte, mas que se tornavam mais fluidos e delicados conforme as letras eram substituídas pelos desenhos, que pareciam se quebrar na parte mais inferior, deixando claro que, ao fim, não existia nada além de cinzas.
abriu o Whatsapp no computador apenas para ter o prazer de ampliar a imagem em uma tela maior e observar cada detalhe, cada ponto em que o grafite parecia ter sido pressionado com um pouco mais de força, cada canto que tinha sido esfumado e transformado, passando exatamente tudo o que ele nem sabia que imaginava para a história. Ela tinha conseguido traduzir aquilo que ele mesmo não saberia descrever.
O celular vibrando contra a escrivaninha chamou a sua atenção. Atendeu rapidamente, sem nem esperar o segundo toque.
— Oi.
— Você continua online e não me responde. O que eu fiz de errado, ?
O rapaz quase riu do nervosismo claro dela. Compadecia-se daquela sensação. Sempre pensávamos que, se algo era realmente bom, as pessoas saberiam disso no mesmo instante. Se mais de alguns segundos fossem necessários, com certeza era para uma contabilização de defeitos que nem sempre estávamos prontos para encarar.
— A primeira coisa que você faz de errado é continuar me chamando pelo nome inteiro, parecendo meu pai quando queria me colocar de castigo. Só já é o suficiente.
— Tudo bem, - respondeu, enfatizando o nome. — E qual é a segunda coisa que eu fiz de errado? E a terceira e todas as outras também.
— A segunda é realmente ter a coragem de insinuar que tem algo de errado com essa capa. Ela está simplesmente maravilhosa. Eu só demorei porque abri no computador para ver os detalhes.
Se fisionomias pudessem ser ouvidas, ele com certeza diria que pôde escutar o sorriso de alívio e orgulho que ela dera do outro lado da linha.
— Você gostou mesmo? Não está falando isso só para ser agradável?
— Por mais que eu seja uma pessoa muito educada, eu não posso ceder ao luxo de ser agradável sem motivos, já que meu emprego meio que depende da minha sinceridade. Estou falando sério. Eu nem sabia o que eu imaginava para a capa, mas agora que você me enviou isso, eu posso te dizer que é bem melhor do que tudo que eu poderia ter pensado. E combina perfeitamente com a obra.
Ela suspirou, deixando que o ar fosse liberado pesadamente de seus pulmões. Havia retirado dos ombros um peso enorme dos ombros.
— Ainda vou trabalhar na versão digitalizada. Posso te mandar quando estiver terminando?
sorriu sozinho. De certa forma, era um tanto gratificante saber que alguém se importava verdadeiramente com a sua opinião. E ele estava tão curioso pela arte quanto estava pela artista.
— É claro que pode. Vou ficar feliz de poder fazer parte do seu processo criativo.
Ela riu do outro lado.
— Isso provavelmente soou um pouco mais prepotente do que você esperava.
— Talvez. É um pouco difícil estabelecer os limites da comunicação com alguém que você não conhece.
— Então é sobre isso?
Ele devolveu o celular para a escrivaninha, acionando a função do viva-voz. Precisava liberar as suas mãos para gastar a energia acumulada pelo nervosismo enquanto as mexia ritmicamente, agradecendo por aquela ser uma chamada limitada a áudio.
— É claro que é sobre isso. A última coisa que eu ouvi de você literalmente foi uma confirmação de que Scarlett sequer é o seu nome.
— É um pseudônimo, nome artístico, como preferir. Você está envolvido no meio literário, com certeza entende as motivações para isso melhor do que eu.
— Só se você tivesse algum motivo para se esconder.
— Descobriu o meu segredo. Sou foragida da polícia por aproveitar e captar a água da chuva para usar na descarga.
O movimento de suas mãos parou abruptamente, dando lugar ao franzir extremo das sobrancelhas e um ruído de descrença que não se assemelhava o suficiente a uma risada.
— Não sabia que pegar água da chuva era um crime.
— Eu sei que você está sendo irônico, mas essa literalmente foi uma lei secular no Colorado que só foi reavaliada poucos anos atrás. Vários fazendeiros foram realmente presos por isso.
tinha de admitir que estava verdadeiramente chocado. Se alguém pedisse para ele listar ações que poderiam ser consideradas crimes, captar água da chuva com certeza tinha sua posição de honra reservada bem ao fim da lista.
— Isso é bem surreal - comentou, no mesmo instante em que se deu conta de outra coisa. — Espera, então você é do Colorado?
— Talvez. Ou talvez eu só saiba das coisas porque sou uma mulher inteligente e cheia de informações e curiosidades culturais inúteis para oferecer ao mundo.
— E nós vamos continuar conversando sem que eu saiba absolutamente nada sobre você?
— Se te incomoda, eu posso desligar.
A presunção e o deboche desenhados nas nuances do timbre de sua voz eram palpáveis.
— Sem contar que não é como se eu soubesse tanta coisa assim sobre você.
— Eu sequer sei seu nome - ele a lembrou.
Do outro lado da linha, ela respirou profundamente.
— Se vai fazer tanta diferença assim na sua vida, é . Espero que agora você consiga dormir à noite.
E exatamente como fizera da primeira vez, seus dedos encontraram o botão que finalizava a ligação antes mesmo que ele pudesse formular novas perguntas.
📖📚📖
detestava, odiava, abominava energéticos. Detestava ainda mais ter de se submeter àquele projeto capitalista que fazia questão de vencê-la duas vezes: uma ao ser seu objeto de compra e consumo e outra ao parar para pensar que a única motivação disso era simplesmente produzir mais e mais rápido, como se seu tempo de lazer, descanso ou simplesmente sobrevivência significasse menos que nada.
Mas o pior não era aquele gosto adocicado estranho que parecia sempre disposto a lhe revirar o estômago, nem o fato de seu corpo se tornar agitado e, por vezes, excessivamente irrequieto, tentando lidar com a estimulação excessiva do quadro de alerta. O pior era não conseguir dormir quando ela finalmente poderia fazê-lo.
Havia cedido à bebida para conseguir prolongar seu trabalho por mais algumas horas em direção à madrugada, pois tinha acabado de se decidir por um detalhe de continuação da arte na lombada do livro e sabia que não poderia deixar que aquela faísca de criatividade extrema, na qual as coisas pareciam se encaixar tão facilmente e ganhar forma de maneira robusta e simultaneamente delicada, acabasse por se extinguir.
Agora, com a lombada precisando apenas de alguns ajustes finais - cuja necessidade seu cérebro só perceberia depois de se desconectar daquele frenesi momentâneo -, seu corpo já havia ocupado todas as posições possíveis na cama de casal e o sono não parecia de forma alguma mais próximo. Talvez devesse dobrar sua coluna sobre o colchão e deixar os cabelos tocarem o carpete até que seu fluxo sanguíneo tornasse a situação incômoda e ela ficasse tonta o suficiente para apagar.
Puxou o celular da mesinha de cabeceira, entediada o suficiente para começar a olhar as mensagens de status de seus contatos.
Assim que viu o trecho de uma das letras de uma música do Stevie Wonder, abriu a conversa com a melhor amiga, torcendo para que Jazmine estivesse insone, por mais dolorosamente egoísta que aquele pensamento fosse.
Visto por último ontem às 10:39 PM
olhou o relógio logo acima indicando que já estava mais perto das duas da manhã do que do momento em que a amiga pudesse estar acordada.
Bufou e voltou a seu desperdício de tempo inútil observando as mensagens de status alheias.
Entre várias mensagens prontas de “Disponível” e “No trabalho”, apareciam alguns trechos de músicas e citações, intercalados com emojis aparentemente aleatórios de luas, flores e frutas. Sua atenção foi, então, capturada por uma frase que ela reconheceria em qualquer lugar e poderia citar tranquilamente a qualquer momento:
“Palavras são, na minha nada humilde opinião, nossa inesgotável fonte de magia.”
Quando olhou para o contato detentor daquela frase, esboçou um sorriso de admiração quase desacompanhado de surpresa. Não esperava algo não literário de um estudante de letras que estagiava em uma das maiores editoras do país. Mas, definitivamente, havia o julgado mal por perceber que, provavelmente, esperava algo de pelo menos duzentos anos atrás, com palavras que já tivessem sido esquecidas pelo vocabulário cotidiano há tempos; não Harry Potter.
Em um instinto curioso que não conseguiu ignorar, abriu a conversa com ele, encontrando uma indicação completamente diferente daquela da amiga: online.
Piscou algumas vezes a mais do que a lubrificação de suas córneas realmente necessitava, como se aquela simples e desconectada ação fosse capaz de lhe fazer pensar e chegar a alguma conclusão do que fazer. Uma parte de si queria enviar uma mensagem qualquer, puxar um assunto e ocupar aquela vigília da madrugada. Todo o resto a lembrava de que um pingo de bom senso seria bom. Não conhecia o rapaz o suficiente e poderia parecer uma maluca - afinal, já o tinha abordado por ligação antes e, provavelmente, ultrapassado algum tipo de barreira imaginária de distanciamento que deveria manter de alguém que só a havia contratado para um serviço e nada mais -, sem contar que talvez ele estivesse ocupado e cansado, ao contrário dela, e não teria nem tempo e nem a inclinação para responder uma mensagem idiota qualquer. Ela realmente deveria simplesmente bloquear a porcaria do celular, virar a cabeça para o lado e se obrigar a tentar dormir, nem que fosse apenas um fingimento para tentar se convencer de que conseguiria.
Ainda havia um bichinho que lhe percorria, querendo clicar em cada uma das letras daquele teclado e apertar o botão de enviar de qualquer forma. Quer dizer, se ele não quisesse falar com ela, poderia simplesmente ignorar a mensagem para sempre - por mais que sua primeira impressão dele fosse de que ele era educado demais para isso. Mas, ainda assim, pelo horário, ele poderia deixar a mensagem aguardar em banho-maria até que a manhã chegasse. Não era como se uma simples pergunta ou comentário fosse um par de algemas incumbido de uma obrigatoriedade inevitável. Não era assim que as coisas funcionavam.
— Bom, foda-se - falou a si mesma, enquanto digitava uma mensagem rápida.
Ao enviá-la, só conseguiu estreitar os olhos e menear a cabeça, julgando a si mesma pelo conteúdo.
Se ele decidisse nunca mais respondê-la enquanto a humanidade ainda andasse sobre a Terra, ela meio que entenderia e apoiaria sua decisão. Provavelmente era sábia depois daquilo.
Mas não foi o que aconteceu.
“Que casa?”
abriu o teclado de emojis, escolhendo uma coruja e um raio na seção de animais e natureza.
Logo pôde observar o “digitando…” retornando à tela.
“AH! Lufa-lufa e você?”
Ela riu sozinha, guardando para si a piadinha de que ele realmente deveria ser bonzinho demais, exatamente como ela imaginava. Faria sentido afinal de contas. E, de quebra, ainda ganhava a alegria de dividir a casa com Cedrico Diggory, definitivamente um dos personagens mais injustiçados de toda a saga. Que descanse em paz.
“É bem a sua cara mesmo, senhora “inteligente e cheia de informações”.”
Ela revirou os olhos, compreendendo o deboche com as palavras exatas que lhe tinha dito ao compartilhar a informação não requisitada sobre a legislação estapafúrdia do Colorado.
Arrependeu-se imediatamente. Já era esquisita o suficiente por abordar uma pessoa com papo de Hogwarts e agora simplesmente era intrometida o suficiente para questionar coisas que, com certeza, não eram da sua conta.
“Vendo o jogo do Lakers com o Bulls de ontem.”
“Eu estava na faculdade na hora, então coloquei para gravar.”
“E você?”
“Uma merda, né? Sempre acontece comigo em semanas de provas. Depois pareço um figurante de The Walking Dead de manhã.”
Ela riu, concordando com a cabeça, mesmo sabendo que ele não poderia vê-la. Levantou-se da cama, caminhando até a bancada da cozinha de seu apartamento carinhosamente chamado de “caixa de fósforo”. Despejou o resto do leite da geladeira em uma caneca personalizada que Jazmine havia lhe dado de natal e o colocou no microondas. Encostou as costas contra o mármore, sentindo o desconforto leve da pedra contra a base de sua lombar, enquanto o prato do eletrodoméstico rodava e seu barulho não permitia enganos e esquecimentos de que ele estava ligado. Sinceramente, esperava que o quarto do apartamento vizinho não fosse diretamente atrás da parede de sua cozinha ou acabaria conseguindo manter mais uma pessoa acordada àquela hora da madrugada.
“É compreensível. Eu ainda vejo por insistência mesmo, mas perdeu a graça com o passar do tempo.”
“De que séries você gosta?”
Ela retirou a caneca do microondas, tomando cuidado para equilibrar o celular em uma mão e a porcelana pela alça na outra, evitando queimar seus dedos. Deu um gole no conteúdo, sentindo o calor se espalhando rapidamente pelo seu peito, como se a queimasse de uma forma estranhamente agradável de dentro para fora. Sorriu de leve, livrando-se de sua insegurança pela possibilidade de estar sendo inconveniente ao perceber que ele também estava puxando assunto por conta própria. Seus ombros relaxaram, quando ela devolveu a caneca para a pia para conseguir digitar mais habilmente com as duas mãos livres.
“Emily Dickinson. Preciso ver essa série.”
“Estava esperando alguém fazer uma boa recomendação por medo de me decepcionar, ainda mais sendo de uma autora que gosto.”
“Continua sendo você. Não abro mão do meu cachecol amarelo de forma alguma.”
deu mais um gole longo em seu leite morno, enquanto arqueava uma sobrancelha.
Ela havia parado de ver basquete há séculos, mais precisamente desde que saíra de casa e deixara de dividir o quarto com o irmão caçula que praticamente não pensava em outra coisa na vida a não ser basquete. E, ocasionalmente, jogos de videogame que não fossem da NBA.
Pietro fazia questão de ver absolutamente todas as partidas do Cleveland Cavaliers, mesmo depois da saída de LeBron James. Ela nunca entendera aquela paixão, até porque não poderia usar o espírito local como justificativa, já que eles nunca haviam sequer cogitado pisar em Ohio. Mas era uma realidade incontestável. havia usado seu primeiro salário para comprar uma camisa oficial do time para ele e podia jurar nunca ter visto olhos mais contentes e brilhantes do que naquele momento. Sinceramente, esperava que fosse tão apaixonado por aquilo quanto ele. Era um humor e um amor bonitos demais de se ver.
“Na verdade, acabou de terminar. Lakers ganhou de 117 a 115.”
“E mais aliviado também. Meu Deus, acho que eu não sentia tanto nervoso com um jogo assim desde os playoffs contra o Miami Heat ano passado.”
terminou seu copo de leite, lembrando-se da temporada anterior. Deveria admitir que bem tinha torcido para que o Miami Heat pelo menos empatasse em vitórias na final, simplesmente pelo fato de se ver continuamente torcendo pelos azarões, que jamais entrariam para a lista de favoritos do público ao título. Mas era mais do que justo e belo ter o Los Angeles Lakers levantando a taça e perpetuando o legado do time, além de honrar a memória de Bryant e a mentalidade Mamba.
“Até, .”
Ela bloqueou o celular, colocando-o sobre a prateleira aberta do armário, enquanto lavava o copo usado e o deixava no escorredor, deixando que a gravidade cumprisse sua função e evitasse mais uma tarefa doméstica.
O som de uma notificação foi a única coisa que a impediu de simplesmente largar o celular carregando na tomada e ir dormir.
“Sabe, a gente poderia fazer uma watch party e ver Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban uma hora dessas.”
“Quer dizer, só se você quiser. Sei lá.”
deu uma risada leve, achando aquela situação de desconcerto repentino um tanto fofa. Não que ele precisasse disso. Qualquer pessoa que soubesse exatamente qual dos oito filmes escolher já merecia uma chance.
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sentiu o gás do refrigerante subindo de uma forma totalmente incômoda para o nariz quando riu com a boca cheia do líquido, sentindo que poderia cuspi-lo a qualquer momento. deveria ser uma das poucas pessoas que realmente o fazia gargalhar com gosto a cada meme que enviava, em vez de apenas fazê-lo dar uma risada leve pelo nariz e digitar um ‘HAHAHAHA’ bem mais exagerado do que a reação real.
Tinham conversado todos os dias da última semana. Trocaram memes, fotos de bichinhos vestidos como personagens literários ou do cinema, piadas ruins e desabafos sobre o dia a dia com a facilidade que só se tinha com alguém que você sabia que estava simplesmente disposto a escutar, sem julgamentos e sem ideias prévias. Aquela estranha e peculiar amizade havia se tornado uma das melhores coisas do ano para ambos.
estava contente por ter feito parte do processo criativo de cada detalhe da arte da capa, opinando e encorajando-a sempre que possível. , por sua vez, acabou voltando a assistir basquete só para ter mais alguma coisa em comum com ele - e, de certa forma, também com o seu irmão que sempre a fazia sentir saudades de casa - e leu Emily Dickinson. Declamara em frente ao espelho um poema cujos versos ainda recordava com facilidade:
“Não viverei em vão, se puder
Salvar de partir-se um coração,
Se eu puder aliviar uma vida
Sofrida, ou abrandar uma dor,
Ou ajudar exangue passarinho
A subir de novo ao ninho —
Não viverei em vão.”
Antes disso, ela sinceramente não fazia nem ideia de que a palavra exangue existia. Se a visse por aí, pensaria que era um erro de digitação. Mas é bastante difícil culpar a digitação de uma pessoa que não viveu o suficiente para imaginar o que seria isso sendo realmente algo indispensável à vida dos escritores.
O rapaz digitou uma mensagem rápida, com uma resposta nada esperta à piada e foi ao banheiro verificar o estado de seu cabelo pela décima vez. Por Deus, não havia se importado tanto com a posição dos seus fios nem quando compareceu à entrevista do estágio. O problema, na verdade, era que era bem fácil arrumar o cabelo de forma que ele ficasse perfeitamente alinhado. O difícil era encontrar o ponto certeiro entre o arrumado e a bagunça despojada que passava a ideia de que aquilo com certeza não era algo com o qual ele se preocupava, mesmo quando o fazia. E muito.
Era sábado à noite e não havia outro lugar no mundo no qual ele mais desejasse estar do que sentado em sua cama, com uma almofada alta sobre o colo apenas para impedir que o fundo do notebook esquentasse suas coxas. Não precisava mesmo ficar estéril exatamente em um momento tão delicado. Ela não precisava conhecê-lo enquanto passava por aquilo.
Ele nunca recebera um sobrenome para o nome, então não pôde se aventurar pelas redes sociais. Questionava-se se ela o teria pesquisado no facebook apenas para saber quem ele era para além daquela foto de perfil - que ele usava em todas as redes sociais, afinal não era sempre que se conseguia uma foto boa - em que ele aparecia vestido de Miles Morales no Halloween do ano anterior.
Ele sabia que o código de localização do número dela era de Nevada, mas quando a questionou sobre isso ela contou que não havia trocado o chip de casa ainda. Mesmo tendo se mudado para a Califórnia há algum tempo, simplesmente tinha sentido preguiça demais para realmente se preocupar em mudar o seu número. Desde então, ele só conseguia pensar em como ela poderia estar fisicamente bem mais perto do que ele imaginava. Quem sabe, talvez, com muita sorte, passeando por Los Angeles, frequentando as mesmas lanchonetes que ele tanto adorava, indo ao mesmo banco quando precisava sacar dinheiro por algum motivo aleatório. Talvez já tivessem coexistido em uma mesma sala de cinema sem nem saber da existência um do outro. Talvez tivessem compartilhado todas as reações simultaneamente durante a pré-estreia de Harry Potter e as Relíquias da Morte - Parte 2 sem sequer pensarem sobre as outras fileiras. Talvez. Tudo para eles, desde o começo, vinha parecendo sempre um grande e grotescamente gritante talvez.
Haviam finalmente combinado a tal ‘watch party’ e ele tinha passado o dia inteiro em uma completa pilha de nervos, sem saber muito bem o que pensar ou sentir. Olhando o relógio, percebeu que a hora marcada se aproximava finalmente - depois de ter passado toda a tarde parecendo que não chegaria nunca, apenas para torturar sua ansiedade mais um pouco e empurrá-lo a um limite que ele não estava tão interessado assim em conhecer.
Quando ela finalmente ligou, ele respirou profundamente três vezes, exalando o ar com toda a calma do mundo, antes de finalmente atender e ver a imagem dela se ampliando na tela.
E, que merda. Por que ela tinha que ser muito melhor do que qualquer coisa que ele havia imaginado? Seus cabelos caíam em ondas pesadas sobre os ombros, de forma a refletir tons diferentes e brilhantes sob a luz que iluminava o seu ambiente. Os lábios grossos e a sobrancelha marcada o encaravam com curiosidade e, até mesmo, um tom de humor em resposta à sua reação. sabia fingir muito melhor que ele que não estava encantada com a imagem que via.
Ele deu um sorriso nervoso, antes de pegar a pequena garrafa de refrigerante aberta na mesa de cabeceira e virar mais um gole.
— Está se alcoolizando para me encarar, ? Não sei se me sinto honrada ou ofendida.
Ele sentiu um calafrio esquisito subindo pela nuca ao ouvir a voz que ele já conhecia tão bem, agora saindo da boca que ele desejara por dias conhecer. Era uma sensação agradável e desconfortável simultaneamente e nem seu vocabulário super refinado pela leitura dos clássicos reconhecia uma possível definição para aquilo. Era simplesmente bizarro.
— É refrigerante - respondeu, ao finalmente encontrar a sua voz. — E eu já estava tomando antes de você ligar.
Ela assentiu, concordando finalmente. Levou as mãos aos cabelos, enquanto os enrolava sobre as costas, liberando os ombros e o colo.
— Sabe, eu não te imaginava assim - comentou.
O rapaz franziu o cenho imediatamente.
— Como assim? O que você imaginava.
— Alguém com mais cara de nerd, talvez.
— Talvez eu seja a prova de que esse papo de cara de nerd não existe.
— Ou seja apenas um ponto fora da curva.
Ele riu de leve.
— Você também não é exatamente uma releitura fiel do que eu esperava.
— E o que seria?
— Não sei - admitiu, sentindo-se um completo idiota. — Mas não era isso.
— E essa é a segunda vez em menos de cinco minutos de conversa que eu não sei se deveria me ofender.
Apesar de saber que ela estava brincando, ele sentiu sua bochecha queimando como se estivesse sendo atingida duramente por uma ducha de água desreguladamente quente - daquelas que queima tanto que você simplesmente para de sentir suas próprias terminações e só se dá conta ao olhar para baixo e ver o estrago na pele intensamente vermelha dos pés. Não era possível que ele realmente teria talento o suficiente para estragar tudo antes mesmo de saber o que raios esse ‘tudo’ significava.
— Não foi uma ofensa. Sinceramente, por mais que possa ter soado mal, essa foi a forma menos objetiva de dizer algo totalmente positivo. Isso eu posso garantir.
— Certo, certo. Vou escolher acreditar em você antes que você volte a falar palavras difíceis e me faça pensar muito.
Quando ela se moveu de onde estava, alcançando o carregador de notebook ao seu lado, ele finalmente viu o moletom vinho com ‘Stanford’ escrito em letras garrafais.
— Ah, você faz Stanford - comentou. — Isso é bem legal. Quer dizer, é o que todo mundo sempre diz.
— Deve ser legal mesmo, mas eu não saberia te responder. Não fiz e nem faço Stanford. Meu pai me comprou essa blusa uma semana antes de eu receber um gigantesco ‘não’ na minha inscrição. Ele disse que não precisávamos esperar porque tinha certeza de que eu passaria, mas adivinha só.
— Isso deve ter sido complicado.
Ela balançou a cabeça concordando.
— No começo foi mesmo - admitiu. — Eu queria odiá-lo por ser tão positivo e cheio de expectativas porque achava que a pressão sobre os meus ombros era culpa dele e do fato de que ele esperava demais de mim. No fim das contas, percebi que era eu quem estava me cobrando em excesso e ninguém além de mim estava realmente decepcionado ao extremo. Era a mim que eu odiava naquele momento. Eu me odiei por não ter entrado em mais um clube durante o colegial, por não ter tirado um ponto a mais no SAT, por não ter pego só mais uma disciplina extracurricular ou feito mais um trabalho de caridade para deixar o meu currículo melhor. Naquele momento, eu tive a mais absoluta certeza de que eu seria um eterno fracasso porque não havia me esforçado o suficiente. Porque me acomodei com pouco.
— Duvido que você tenha feito pouco.
— Na verdade, eu fiz muita coisa. Só demorei para perceber isso e entender que não era culpa minha. Não havia nada que eu pudesse ter feito de diferente. Algumas coisas na vida simplesmente não eram para ser e estava tudo bem. Acabei indo para São Francisco para fazer artes e design e não poderia ser mais feliz com a escolha que a vida fez por mim. E não é como se tivesse mudado muito o planejamento por conta de distância de casa e tudo mais. Deu tudo bastante certo no final.
— E o casaco?
— Ah, eu pensei em vários jeitos de destruí-lo. Pensei em pregá-lo num mastro e atear fogo. Pensei em picotar ele todinho até não conseguir mais ler essas letras ridículas. Pensei em jogar no lixo, em deixar ele completamente manchado de tintas, em dar de paninho para o cachorro. Mas, no fim das contas, ele é bem grande, bem confortável e bem quentinho. É simplesmente o melhor moletom do mundo para usar em casa, então eles que se fodam.
riu, concordando. Fazia sentido. Ou ao menos ele achava que sim. Não era exatamente a pessoa mais confiável para decidir sobre isso naquele momento. Tinha quase certeza de que acharia absolutamente tudo o que saísse da boca dela completamente correto e incrível, mesmo que fosse explicitamente um completo absurdo.
— Que refrigerante você está tomando?
— Ah, é coca-cola de cereja.
Ela fez uma careta.
— Meu Deus, essa é a pior merda do mundo depois do energético.
— Eu tenho gostos peculiares, você não entenderia.
gargalhou, entrando em uma pequena crise de tosse por ter se engasgado levemente com a própria saliva em seu acesso de risos.
— Primeiro Harry Potter e agora Cinquenta Tons de Cinza? Pensei que os estudantes de Letras tivessem preferências literárias mais refinadas.
— Bom, primeiramente, apesar de a autora ser horrível e transfóbica e sua existência precisar ser ignorada, Harry Potter é um absoluto clássico incrível e atemporal. Acredito verdadeiramente que seja uma das poucas obras da nossa geração capazes de perdurar como os livros antigos.
— Concordo.
— Em segundo lugar - ele continuou -, eu nunca li e nem vi Cinquenta Tons, mas todo mundo sabe da existência dessa cena por causa das piadinhas do facebook e você praticamente implorou para que eu usasse essa referência.
— Justo.
— E, por último, eu realmente tenho outros gostos literários duvidosos, mas isso não vem ao caso.
sorriu de canto, arqueando uma sobrancelha.
— Sabe que não deveria ter falado isso, não sabe? Porque agora eu não vou descansar enquanto não o fizer admitir cada um deles.
riu, assentindo. Não era como se fossem amigos de longa data, que sabiam de cada passo, característica e maneirismo do outro, mas ele gostava de pensar que a conhecia bem o suficiente para esperar explicitamente aquele tipo de atitude.
— Com certeza. Mas em outra hora, porque agora temos um filme para ver.
— Tem razão. Vamos começar logo, antes que minha pipoca esfrie - ela comentou, enquanto puxava o balde de plástico amarelo para o colo.
— Eu não acredito que você fez pipoca.
— Como não? Esperava que eu fizesse o quê para ver filme? Uma lasanha à bolonhesa?
Ele a fuzilou com os olhos, como se a repreendesse por tirar uma com a cara dele com tanta facilidade.
— Não. É porque eu não tenho pipoca.
— Ué, levanta e faz.
— , não tem pipoca nesse apartamento.
— Que tipo de pessoa não tem pipoca em casa? De verdade, o que você janta?
— Comida?
— Adultos jovens morando sozinhos têm a obrigação legal de comer porcarias pouco nutritivas de vez em quando e ter a audácia de chamar isso de jantar; aprenda. Mas, no momento, apenas sofra morrendo de inveja porque essa aqui está bem salgadinha e amanteigada. Uma delícia.
Ele meneou a cabeça para os lados, em um misto de negação e descrença.
— Você é uma pessoa horrível.
— Você quis dizer incrível - ela o corrigiu. — Agora dá play nesse filme.
Assistiram ao filme, comentando sobre curiosidades aleatórias no meio dele e observações de easter eggs, como a presença do nome de Newt Scamander no Mapa do Maroto. falou sobre as tatuagens de Sirius Black e a intenção da representatividade similar russa dos desenhos, que decoravam o corpo daqueles que deviam ser respeitados e temidos dentro da prisão. admitiu que Emma Watson como Hermione Granger havia sido seu primeiro crush em personagens fictícios quando mais novo e que concordava abertamente com aqueles que falavam que ela era a verdadeira protagonista da série.
— Você acha que esse livro novo da Mackenzie vai ter uma adaptação cinematográfica tão boa quanto essa?
— Não faço ideia. Tenho um pouco de medo de adaptações de sagas distópicas. Depois do que fizeram com o último de Divergente…
— Não precisamos falar sobre aquela catástrofe - concordou. — Acho que Jogos Vorazes acabou sendo um dos poucos que realmente deu certo.
— O que mais me deixa frustrado é que o primeiro filme foi muito bom e eles conseguiram colocar as expectativas lá no alto.
— E depois todas elas se arremessaram do penhasco e explodiram de desgosto na minha cara - ela completou, assentindo. — Uma grande porcaria.
— Às vezes eu prefiro que livros muito bons não ganhem adaptações cinematográficas exatamente por isso. Até porque muito mais pessoas verão o filme do que lerão os livros e daí a opinião em massa é baseada em duas horas de surtos e desespero.
— Realmente, é um grande dilema.
se levantou rapidamente, para jogar a garrafa de refrigerante no cesto separado para reciclagem e voltou para a cama com uma garrafa de água. Nesse meio tempo, colocou a vasilha da pipoca na pia, perguntando-se se seria feio demais deixá-la lá para lavar no dia seguinte. Infelizmente, a vantagem de ser a única pessoa que poderia cobrá-la de suas tarefas incentivava o adiamento da maioria delas.
— Vai precisar de mais do que uma dessas para limpar o seu organismo daquela bomba de corante e saborizante - ela brincou, ao vê-lo com a água.
E continuaram na discussão sobre sagas e demais livros, compartilhando momentos favoritos, decepções, insatisfações com mortes de alguns personagens que, com toda a certeza do mundo, mereciam mais do que um final daqueles e as reviravoltas mais inteligentes.
A conversa fluía com tamanha naturalidade que a noite simplesmente se aprofundou sem que eles se dessem conta da progressão do horário em direção à madrugada. Que bom que haviam tomado a sensata decisão de marcar aquele protótipo de sessão de cinema em um sábado.
De repente, ele já sabia que ela nunca tinha saído do país, amava pizza de pepperoni e passava mal com o frappuccino do Starbucks. Ela havia descoberto que ele tinha realmente gostos peculiares para além daquele maldito refrigerante de cereja, tendo a coragem de adorar sorvete de menta com chocolate, mas achar pistache uma abominação completa.
Entre as risadas e as exclamações de choque, ela apenas balançou a cabeça em descrença, mas com uma sensação estranha e certeira de que ainda teria a oportunidade, ao vivo e a cores, de fazê-lo mudar de opinião para além de uma tela.
📖📚📖
não via o pai há tanto tempo que já estava começando a desenvolver um receio aparentemente melodramático e exagerado, mas muito palpável de ter se esquecido de como era ver o seu rosto para além das fotos que mantinha no próprio rolo da câmera. O mais velho tinha simplesmente se negado a ceder às novas tecnologias, redes sociais e aplicativos de comunicação. Uma vez por semana, aproximadamente, o filho realizava uma ligação para casa, discando o número de uma das poucas pessoas que ele ainda conhecia que mantinham um telefone fixo. Ao menos da voz dele não poderia se esquecer assim.
— Pensei que só fosse te ver quando eu estivesse no meu leito de morte - o homem brincou, puxando o filho para um abraço apertado.
— Que exagero, vira essa boca para lá - reclamou. — O senhor sabe que não é por mal. Com o último ano e o estágio ficando cada vez mais intenso, é difícil de verdade ter tempo para pegar um ônibus por horas e fazer essa viagem.
— Eu sei, , só estou te enchendo. E você sabe como tenho muito orgulho do homem dedicado e trabalhador que eu te criei para ser.
O rapaz sorriu, sentindo o peso daquelas palavras. Não era, nem de longe, o tipo de pessoa que tinha problemas de relacionamento familiar e negligência parental durante a infância e passava a vida sedento para receber, por mais mínimo que fosse, qualquer gesto e sinal de afeto que demonstrasse um pingo de orgulho sequer. Mesmo assim, era sempre engrandecedor e fortificador saber que aquele que fora seu exemplo enquanto crescia lhe olhava com a mesma admiração e contentamento.
Quando decidira fazer Letras e se especializar na parte editorial da literatura, sentira medo. Medo porque parecia que todas as pessoas à sua volta tinham uma opinião não solicitada a dar, com uma meia reação que oscilava entre a decepção e o desprezo, como se ele estivesse desperdiçando algum tipo de capacidade admirável com tão pouco, enquanto ele se sentia exatamente da forma oposta: como se tivesse querendo abraçar algo demais enquanto era tão pequeno.
Mas seu pai nunca pensara dessa forma e a isso ele era muito grato. Quando contou de suas intenções e perspectivas, o mais velho o abraçou com lágrimas nos olhos e disse que sabia que ele seria feliz e era apenas isso que lhe importava. Leu sua redação de aplicação às universidades em que se inscreveu de cabo a rabo mais de uma vez, apenas pelo prazer de conhecer as palavras do próprio filho, tão familiares a ele que quase ouvia sua voz enquanto seus olhos as assimilavam. sabia que grande parte da pessoa que ele se tornara dependia diretamente do apoio constante da figura paterna e esperava, um dia, descobrir uma forma de demonstrar a isso toda a sua gratidão.
Os dois carregaram as malas para dentro, deixando-as no antigo quarto do rapaz, que ainda mantinha as mesmas paredes azuis e o mesmo abajur do Batman. Era como uma cápsula do tempo com destino direto às lembranças nostálgicas de tempos em que sua maior preocupação era torcer para que não chovesse no fim da tarde, já que era o único momento em que, terminadas as lições de casa e os estudos, ele finalmente podia ir para a rua e encontrar com outras crianças. Esses momentos de imersão tendiam sempre a ser agridoces por virem acompanhados da inafastável percepção de que o tempo passava, as pessoas envelheciam e as coisas mudavam. Não que isso fosse ruim. Se as coisas não tivessem mudado, ele não teria motivos para nutrir uma nova expectativa no fim da tarde, sabendo que era costumeiramente o momento em que ela o chamava para conversar e contar sobre o seu dia, perguntando sobre o dele na sequência.
arrumou o quarto meio por cima, decidido que seu estômago era mais importante no momento. Seguiu para a área externa, onde abriu uma cerveja e foi até a churrasqueira, ajudar o pai a virar as carnes.
— Como vai o estágio?
— Cansativo, pai. Mas vai bem.
— Você acha que vai ser efetivado? Vejo você se dedicando tanto a esse trabalho, tenho certeza de que merecimento não falta.
O rapaz soltou o ar com um pouco de força extra pelo nariz, em uma risada torta e estranha.
— Tem um livro importante para sair e ficamos sem ilustrador para a capa - contou. — Meu chefe decidiu que era uma missão impossível encontrar um substituto e, por isso, entregou ela a mim, valendo minha efetivação.
— Filho da puta - o mais velho ralhou, enquanto apertava os bifes de leve para verificar o ponto e a suculência. — E você conseguiu?
— Depois de entregar minhas horas de sono e a minha sanidade, acabei conseguindo. Ela ainda não entregou o trabalho final, então não sei se o Corey vai achar bom o suficiente ou inventar uma nova regra para essa corrida maluca e me ferrar.
— Se foi você quem a escolheu, tenho certeza de que será ótima. Você sempre teve bom gosto.
— E mesmo assim você insistia em me colocar aqueles suspensórios horríveis quando eu era pequeno.
O mais velho soltou uma gargalhada alta, enquanto servia a carne nos dois pratos.
— Você ficava bem bonitinho neles, especialmente pela cara de bravo.
revirou os olhos teatralmente, dando um longo gole em sua cerveja. Puxou o celular do bolso, abrindo a conversa com para buscar em suas mídias compartilhadas a última foto que ela havia mandado da versão atual da capa em sua mesa digitalizadora.
— Aqui. - Ofereceu o aparelho ao pai. — Essa é a última foto que ela me mandou de como está ficando.
O homem ajeitou os óculos de grau ao rosto, encontrando a posição certa da lente para que enxergasse melhor. Estreitou os olhos, como se aquilo fosse ajudá-lo a prestar atenção em cada detalhe.
— Não entendi nada - disse. — Mas é muito bonita. Fica fácil julgar um livro pela capa assim.
— Não é? - O mais novo concordou. — Ela manda muito bem.
Foi a vez do pai soltar uma risadinha, enquanto o encarava.
— Conheço bem esse seu sorrisinho transbordando aos poucos de empolgação. Quantos anos ela tem?
fez uma careta.
— Que tipo de pergunta é essa? Foi você quem me ensinou que a gente não pergunta a idade dos outros a menos que seja caso de vida ou morte.
— Bom, eu tinha pensado em uma pessoa com seus trinta anos de carreira já enquanto você contava a história, mas aí vi essa sua cara de bobo e, por mais que eu seja um homem muito tolerante, não acho que uma grande diferença de idade seja tão natural assim.
— Ela é da minha idade.
— E como ela se chama?
— , pai. Será que a gente pode parar com o momento interrogatório? Eu estou me sentindo de volta ao meu primeiro baile da escola com essas suas perguntas sem noção.
O homem riu.
— Eu posso ser sem noção. Ganhei esse direito ao te colocar no mundo.
— Bom, teoricamente, não foi você.
— Não me vem com esse papinho. Mas eu paro com as perguntas.
— Obrigado.
— Posso ver uma foto dela?
— Pai!
— O que custa?
— Que inferno.
pegou o celular de novo, mostrando a ele uma foto que havia enviado para ele enquanto fazia cookies red velvet e deixava as mãos tão manchadas de corante que pareciam peças de uma cena de crime.
— Ela é bem bonita. Eu falei que você tinha bom gosto.
— Chega - cortou-o decidido, tomando o celular e o bloqueando novamente. — Que tal a gente falar da sua vida em vez da minha?
— E que graça tem nisso? Eu mal saio dessa casa.
— Pois deveria. Quantas vezes já conversamos sobre os eventos comunitários que acontecem naquele centro aqui perto? Você deveria ir, conhecer pessoas novas, conversar, encher mais gente que não seja eu.
— Eu estou indo.
O rapaz largou os talheres na hora, mastigando mais rápido apenas para poder falar logo.
— Sério? Pai, isso é incrível!
O mais velho fez um gesto com a mão, como se quisesse dissipar aquela animação súbita.
— Não é nada. Eu fui a duas confraternizações só. Não tenho mais energia para ficar até tão tarde fora.
— Mentiroso. Você só não quer dar o braço a torcer de que está gostando já que recusou a ideia por anos desde que eu sugeri pela primeira vez.
— Que seja.
— O senhor é cabeça dura demais.
— E você puxou isso de mim.
Terminaram o almoço com insistindo, entre uma cerveja e outra, para que o pai contasse sobre os novos amigos. No fim das contas, haviam sido mais do que apenas duas confraternizações. Ele já tinha saído para “beber uma” na casa de pelo menos dois deles e parecia estar fingindo não receber flertes de uma viúva da região que sempre dizia o quanto o seu bigode era charmoso.
— O senhor deveria dar uma chance a ela.
— Que nem você está dando uma chance à ?
bufou, fazendo o pai rir.
— Você pediu por essa.
O mais velho recusou a oferta de ajuda com a louça, insistindo que o filho deveria descansar depois de ter acordado tão cedo para pegar o ônibus até ali. não insistiu, mas lhe assegurou que a louça do jantar seria sua responsabilidade.
Acabou dormindo por mais tempo do que esperava e levantou correndo, indo ao banheiro para tomar um banho. Saiu com uma toalha amarrada no quadril, voltando até o quarto para se trocar. Enquanto tentava arrumar a bagunça que havia feito na mala, ouviu o celular tocando. Correu para cama, sorrindo largamente ao atender a chamada.
— Oi, sumido - ela disse do outro lado. — Espera aí. Que parede azul é essa? , me diz que eu não estou no seu banheiro, porque eu acho que é o único cômodo que eu ainda não conheci e prefiro continuar assim.
— Na verdade, esse é o meu quarto - respondeu. — Só que na casa do meu pai. Eu escolhi esse azul há mais de dez anos.
— Bom, isso basicamente explica tudo.
Ela riu de leve do outro lado, enquanto esfregava os olhos.
— Como assim?
— Isso explica porque a primeira coisa que eu fiz ao chegar à Trembley foi perguntar por você e ninguém sabia me dizer porque você não tinha ido hoje.
foi incapaz de esboçar qualquer tipo de reação. Era como se seu cérebro ainda não tivesse sido capaz de processar a informação.
— Você foi à Trembley?
Ela balançou a cabeça em concordância.
— Tinha uma reunião com o babaca do seu chefe, que por sinal não apareceu e mandou um assistente sem expressão nenhuma no lugar dele.
— Acho que sei quem é - ele murmurou, ainda digerindo a tal novidade. Ela estava em Los Angeles. Ela estava na editora. Mas quem não estava em Los Angeles e muito menos na editora era ele.
Se soubesse que ela iria, teria adiado suas férias sem pensar duas vezes. Cansara de pensar e verbalizar sobre como estava ansioso para finalmente conhecê-la e sabia que a recíproca era totalmente verdadeira.
— Por que você não me disse que iria?
Ela deu de ombros, com um sorriso de canto.
— Queria que fosse uma surpresa. Nem pensei que você poderia não estar lá.
— Tirei uma semana de férias. Caramba, que azar.
— Bom, acontece.
Ambos os tons de voz não poderiam deixar mais claro o quanto estavam, de fato, ambos frustrados.
— Mas como estão as coisas por aí?
— Ah, tranquilas - ele respondeu. — E aí?
— Na mesma.
se assustou com o som da porta do quarto abrindo, olhando para o lado subitamente e se deparando com a figura do pai, fazendo uma careta e pedindo desculpas por ter atrapalhado. No entanto, ele não fez menção alguma de sair.
— É ela? - Perguntou, na tentativa mais falha de toda a história de sussurrar.
segurou uma risada do outro lado.
O mais velho se aproximou, aparecendo na câmera também para observá-la.
— Oi, senhor ! Tudo bem?
Ele encarou o filho, com o cenho franzido.
— Ela está te vendo, pai.
Ele pareceu chocado.
— Meu pai se recusou a ter um celular - ele explicou à garota. — Ele não entende muito bem como funciona.
— Não tem problema - ela assegurou, sorrindo de forma simpática.
O mais velho finalmente acenou de volta.
— Tudo bem, . E você?
— Irritada com o chefe do seu filho, mas bem também.
— Então somos dois. Já falei que aquele cara é um explorador idiota.
— E sem consideração - ela acrescentou.
— Ele faltou a reunião que marcou com ela - explicou ao pai.
— Que filho da puta!
O rapaz fez uma careta, rindo do palavrão tão inesperadamente colocado. gargalhou alto do outro lado.
— Um dos grandes - concordou. — Obrigada por me entender.
O senhor trocou mais algumas palavras com a garota, logo abandonando o cômodo para que os dois terminassem de conversar.
— Seu pai é legal.
— Ele é.
— Vocês são muito parecidos mesmo.
— Que bom que você só falou isso agora, porque ele ia ter se vangloriado por horas e te alugado para explicar todos os pontos em que ele acha que puxei a ele.
— Eu ouviria tranquilamente, só marcar. Aproveita as férias, .
E ele não disse que adoraria aproveitá-las com ela porque, por mais inclinado a romances, gestos e momentos como os dos livros, ainda sabia que a vida real era bem diferente e que aquilo era ser rápido demais e sem noção demais. Não precisava bancar o Ted Mosby emocionado. Tudo o que precisava era ter um pouco de paciência. E, por ela, ele teria.
📖📚📖
havia passado seu perfume favorito naquela manhã e já havia conseguido questionar sua decisão ao fazer seu colega - altamente alérgico e com crises de rinite constantes - espirrar repetidamente. Nunca se perdoaria se estivesse fedendo por exagero, por mais que soubesse que havia aplicado pouco.
Também estava usando sua jaqueta predileta e o par de tênis mais novo que encontrou no armário. Havia esperado tanto por aquele momento que mal conseguira dormir à noite, mesmo sabendo abertamente como admitir algo assim era tosco em excesso até mesmo para ele.
Os últimos quinze dias haviam preparado-o para aquele momento. O prazo final da entrega da arte para impressão se aproximava e voltaria à Trembley para apresentá-la oficialmente. Ele tinha até comprado um pacote de chocolate recheado com caramelo salgado, pois sabia que era o favorito dela e ela bem merecia.
— - a voz do chefe o retirou de seus devaneios. — Mackenzie enviou uma alteração nos agradecimentos da obra. Pode repassar para o pessoal da diagramação?
Ele assentiu imediatamente.
— Posso fazer isso logo depois da reunião.
— A reunião foi cancelada, então você pode fazer isso agora mesmo.
sentiu seu coração murchar como se tivessem usado uma agulha para espetar o balão que carregava toda a sua expectativa.
— Como assim?
— A garota acabou de ligar cancelando. Está doente.
O rapaz engoliu em seco, não conseguindo pensar em mais nada além de mandar uma mensagem para ela perguntando de verdade como ela estava. Tinha certeza de que sua preocupação estava abertamente estampada em sua cara.
— Bom, pode voltar ao trabalho - Corey afirmou, antes de abandonar a sala.
puxou o celular, vendo todas as notificações de mensagens dela. Aquela era a primeira vez na vida em que se arrependera dos dias em que deixava o celular completamente silencioso, abrindo mão até do modo vibratório.
“, eu acho que não vou conseguir ir.”
“Me desculpa, eu fiz tudo o que pude. Tomei uns chás estranhos, jantei uma sopa esquisita ontem, fiquei em silêncio completo e tomei os remédios direito, mas eu mal consigo levantar da cama.”
“É uma grande droga que isso esteja acontecendo e eu não poderia estar mais decepcionada. Enviei a capa para o Corey por e-mail. Acho que ele vai repassá-la em reunião para a equipe amanhã.”
“Enfim, vou parar de abarrotar sua caixa de entrada. Desculpa. Mesmo.”
Ele percebeu imediatamente como qualquer sinal de chateação tinha ido para o espaço e dado lugar à preocupação e a uma vontade gigante de poder, de alguma forma, impedir que ela se sentisse mal.
encaminhou o que Corey havia solicitado para diagramação, enviou alguns e-mails e saiu precisamente no seu horário, tendo praticamente contado os segundos para isso.
Em seu apartamento, tirou a roupa do serviço e tomou um banho rápido. Logo estava sentado em sua cama, clicando no botão que realizaria uma chamada de vídeo.
— Que coisa mais corta clima.
Ele ouviu a voz dela, ligeiramente fanha, mas só via a luz no teto.
— Cadê você?
— Eu estou péssima. Não é assim que a gente se apresenta para as pessoas com quem ainda estamos flertando.
deu uma risadinha nervosa ao ouvi-la admitindo aquilo em alto e bom tom. Ao menos agora tinha a consciência confirmada, literalmente, de que estavam ambos na mesma página.
— Para com isso. Deixa eu te ver.
Ela finalmente se deu por vencida, direcionando a câmera para o próprio rosto. Suas olheiras estavam evidentes e ela estava pelo menos dois tons mais pálida, com o nariz avermelhado em destaque.
— Linda - ele disse.
— Ai, cala a boca - ela ralhou, enquanto ria. — Desculpa mesmo por não ter aparecido. Eu não queria contaminar vocês com os meus vírus. E tenho a impressão de que não ia conseguir chegar em Los Angeles assim mesmo se eu não tivesse o mínimo de bom senso para ficar em casa.
— O que é que você tem?
— Sei lá. Acho que é só gripe, mas ela veio de caminhão e me atropelou.
Ele meneou a cabeça.
— Entendi. E você está tomando remédios?
— Eu estava tomando dipirona só, na verdade. Por causa da dor de cabeça.
sentiu de novo aquele comichão no peito, como um sinalizador aceso queimando intensamente enquanto lhe dizia que ele preferia que fosse com ele, só para que ela não precisasse se sentir daquela forma.
— Você não tem noção de como eu estou chateada por não ter conseguido ir. Sério, que ódio. Não tinha um momento pior para ficar doente.
— Relaxa. Já falei que a única coisa com a qual você precisa se preocupar é com a sua saúde. O resto a gente ajeita.
— Mas é mais um adiamento.
— Vamos ter outras oportunidades - ele disse, enquanto abria a notificação de e-mail novo na caixa de entrada da conta que usava apenas para a empresa.
Era um convite para a festa de estreia do novo livro de Mackenzie Priest e, aparentemente, além dos figurões do ramo e dos influencers literários, a editora tivera o mínimo de respeito e consideração ao considerar os funcionários que trabalharam diretamente com o processo de publicação da obra.
Foi naquele momento que uma luzinha se acendeu em sua cabeça, como fazia nos desenhos. Provavelmente não era o único ali a receber aquele convite.
— Espera aí, eu preciso fazer uma coisa. Eu te ligo daqui a pouco.
— O quê? , espera.
Mas ele já havia desligado, fazendo uma careta por perceber que havia sido um tanto mal educado. Esperava que ela fosse capaz de perdoá-lo ao entender seus motivos.
Abriu o aplicativo de delivery que oferecia a opção de entrega de compras de mercado e farmácia e começou a adicionar ao carrinho as coisas de que precisava. Nas observações da compra, adicionou apenas uma frase, pedindo que ela fosse escrita no cartão cafona que também estava em sua lista. Digitando o endereço dela, recebeu a notificação de que a encomenda seria entregue em aproximadamente trinta minutos.
“O que aconteceu?”
“Fala comigo”
Lutou para ignorar a sensação de culpa por preocupá-la e se ocupou separando as roupas que precisava pôr para lavar. Reorganizou os potes de açúcar, farinha, cacau em pó e sal na prateleira, não se contentando com a ordem apesar de já ter tentado todas as combinações que a matemática permitia. Só descansou quando recebeu a confirmação do aplicativo de que o entregador já havia deixado o pedido.
Retornou a ligação para , torcendo para que ela o atendesse.
— Posso saber o que rolou?
— Ah, você vai - ele disse, com um sorrisinho.
Um barulho um tanto agudo e irritante soou do outro lado. A garota levantou da cama, arrastando-se até a porta.
Os trinta segundos em que ela ficou fora de seu campo de visão haviam sido os trinta segundos mais longos de toda a sua vida.
— Bom, o zelador veio me entregar isso. - Ergueu a sacola de papel reciclado. — Porque disse que sabia que eu estava doente.
— Parece um homem muito atencioso.
— O que é que você aprontou, ?
Ele deu de ombros, ignorando a pergunta e aguardando que ela abrisse.
logo deu uma risadinha.
— Um antigripal?
— É. Você já deveria estar tomando isso há uns dias pelo visto, mas vai te ajudar com esse mal estar.
Ela assentiu, puxando a próxima coisa que encontrara.
— Não acredito que você se lembrou do meu chocolate favorito.
Ele puxou a própria embalagem da bancada da cozinha.
— Eu tinha comprado uma para te dar hoje. Como você não veio até ela, ela vai até você. Quer dizer, não ela precisamente. Ah, você me entendeu.
— Acho que tem mais uma coisa aqui no fundo.
Ela sacudiu o pacote até que o cartão caísse. Virou o papel para ele, mostrando os dois bonecos desenhados dançando de forma estranha.
— O que raios é isso?
— Abre - ele pediu.
— , você aceita ir ao baile comigo?
O rapaz sentiu o próprio coração se acelerando sob o compasso de toda a tensão que havia criado.
— O que é isso, ?
— Bom, vai ter essa festa de lançamento do livro e eu tenho certeza de que você também foi convidada e isso torna tudo menos especial, mas eu sei que você não recebeu um convite decente para o baile. Também sei que este está longe de ser um substituto à altura para reparar a primeira decepção, mas eu só consegui pensar nisso.
Ela abriu um sorriso doce. não sabia se era apenas um reflexo da gripe, mas podia jurar que ela tinha algumas lágrimas nos olhos.
— É perfeito - comentou. — Eu aceito ser a sua acompanhante. Será uma honra.
📖📚📖
“Eu juro que já estou chegando. É que tem uma fila enorme de carros e eu me recuso a descer e andar nesses paralelepípedos com esses saltos enormes até aí. Não vou cair na frente das câmeras.”
riu, tentando se obrigar a não imaginar a cena.
Ele podia sentir suas mãos suando frio, enquanto tentava secá-las discretamente contra o tecido grosso do paletó. Até aquela maldita gravata, de repente, parecia apertada demais e prestes a lhe roubar o ar de que precisaria.
Havia esperado por aquele momento por semanas e mal conseguia conter o seu nervosismo. Não acreditava que, depois de tantos desencontros, finalmente aquilo iria acontecer. Tentou se lembrar de inspirar profundamente e expirar de forma lenta até liberar a maior parte do gás carbônico de seus pulmões. Estava tentando sorrir de forma simpática para os convidados que chegavam, mas queria mesmo era tomar o posto do segurança contratado e começar a sinalizar para que os motoristas agilizassem.
Em meio a tantas pessoas parando para as fotos e para cumprimentar seus conhecidos, ele finalmente a viu. Linda. Deslumbrante. Fascinante. Exatamente da forma que ele já esperava que ela estaria.
Os cabelos caíam em ondas, da forma pela qual ele se encantara desde a primeira vez. A maquiagem leve permitia que o vestido dourado se consolidasse como ponto de atração visual, fazendo-a brilhar com ainda mais facilidade no meio daquele salão.
Já era difícil o suficiente evitar que o queixo caísse enquanto a observava tão perfeita e tão presente, em carne e osso, logo ali na sua frente. Quando ela sorriu para ele, então, seu coração despencou junto com a sua mandíbula.
Ele não sabia o que fazer ou o que dizer, além de sorrir de volta. Por sorte, parecia mais sã do que ele e correu para ele, aproveitando-se da altura extra conferida pelos saltos para passar os braços por volta de seu pescoço, abraçando-o apertado.
— Finalmente - sussurrou, ainda ali. tinha sentido cada uma daquelas letras ressonando pelo seu próprio corpo por estar em contato tão próximo quanto o dela.
Parecia até mentira. Depois de tanto esperar, de alguma forma, mesmo com toda a paciência e esperança do universo, a perspectiva de que aquele momento realmente acontecesse por vezes se tornava algo mais parecido com um sonho distante carregado de desejos ilusórios do que algo que realmente poderia acontecer.
Mas era verdade. Ele sentia a realidade daquilo pesando sobre seu tato, conforme cada um de seus dedos se ajustava à sua cintura e seu pescoço parecia se encaixar no vão entre o ombro e o colo dela. Finalmente.
Quando, por fim, decidiram se separar, entrelaçaram os dedos e caminharam em direção ao salão. estava contando sobre o episódio da escolha do vestido e de como a vendedora parecia prestes a chutá-la da loja quando percebeu que ela continuava desinteressada pelas peças após provar mais de dez delas. estava tão atento a cada uma de suas palavras que mal percebeu o chefe se aproximando.
— , - Corey os cumprimentou. — Essa é Mackenzie Priest, nossa admirável autora.
O rapaz se segurou para não fazer uma reverência vergonhosa, limitando-se a sorrir abertamente.
— É um prazer conhecê-la - assegurou, sendo seguido por uma confirmação de .
— Mackenzie, esse é o meu estagiário estrela. Foi ele quem encontrou a garota que fez as suas ilustrações.
— Acredito que deva lhe agradecer, então, . Fez um ótimo trabalho me dando a oportunidade de ter essas artes maravilhosas passando exatamente tudo o que eu esperava da minha obra.
sorriu, sem jeito. Não estava acostumada a receber elogios sem seu pseudônimo como muralha de proteção.
— E é por isso que ele mereceu essa efetivação - Corey prosseguiu. — Segunda de manhã assinamos seu novo contrato.
A garota apertou a mão dele um pouco mais, tentando demonstrar toda a animação que sentia por ele.
— Isso é sério?
— Ora, claro que sim! Não foi o que combinamos? Te dei uma tarefa e você a cumpriu maravilhosamente. Temos um acordo?
— Sim, sim, é claro - respondeu, engasgando um pouco nas próprias palavras.
— E, , com certeza iremos querer trabalhar com você novamente em obras futuras.
Ela assentiu, concordando.
— Será um prazer.
Corey e Mackenzie se afastaram, deixando os dois jovens pulando animadamente em seus lugares, ignorando o que poderiam pensar todos os outros convidados ao seu redor. Afinal, depois de tudo pelo que tinham passado, mereciam ter aquele momento só para eles.
— Precisamos beber para comemorar - ela disse.
— Pelo que ouvi, tem várias bebidas caras sendo servidas no bar.
— Então vamos precisar experimentar cada uma delas.
gargalhou, concordando.
— Já tem onde passar a noite depois daqui?
Ela deu de ombros.
— Depois eu vejo.
— Bom, sempre tem espaço no meu apartamento.
— Um brinde a isso - ela respondeu, erguendo sua bebida antes de tomá-la.
Com um sorriso de canto, ele assentiu, erguendo o próprio copo em um brinde àquilo. A eles.
Não que aquela possibilidade estivesse realmente tão distante assim de sua realidade. Afinal, era exatamente pelo medo desproporcional de ser demitido que tinha criado aquela privação de sono.
Tudo havia começado na reunião da segunda-feira cedo. não estava suando nervoso. Não estava sentindo o estômago virar. Não sentia uma ânsia estranha de bater o pé repetidamente contra o chão. Talvez o fato de tudo estar tão bem tivesse de ter sido percebido de cara como o primeiro sinal claro de que nada estava certo de fato. Era óbvio que alguma coisa estava prestes a chegar para destruir seus curtos e raros momentos de paz e tranquilidade.
Quando seu chefe lhe arremessou ao colo a incumbência de encontrar um novo ilustrador para o lançamento mais recente da principal autora da editora, ele pensou estar finalmente recebendo seu trote de estágio. Alguns amigos tinham comentado sobre isso.
Mas não. Jonathan, o ilustrador original tinha simplesmente entrado em um avião com destino para Seul e só se importou em avisar que não trabalhava mais para a editora quando já tinha o chip com o número de seu novo país em mãos, desconectando-se de vez do contato com seus antigos contratantes. Apenas um advogado tinha ficado para trás, a fim de resolver os últimos detalhes da demissão.
— Eu preciso de um ilustrador novo logo - Corey falava, andando de um lado para o outro da sala de reunião, enquanto soltava o nó da própria gravata, sentindo o adereço lhe sufocando como as garras imaginárias do estresse e do desespero que lhe corroíam.
— Nenhum dos outros ilustradores está disponível?
— Dois estão de férias, uma está mais atolada do que nunca e a outra está ocupada fazendo os desenhos para uma coleção infantil, então sem chance. Preciso de alguém que consiga fazer isso bem, rápido e me custando pouco.
— E, com todo o respeito, mas onde o senhor acha que eu vou conseguir alguém assim agora?
Corey ergueu os ombros, soltando-os de maneira dura.
— Confio que você vá dar um jeito. Afinal, acredito que sua efetivação seja um desejo mútuo aqui.
E lá estava a ameaça velada. Com o fim da faculdade de Letras se aproximando, era óbvio para qualquer um que tudo o que ele mais queria era sair do estágio efetivado, para não ter de assumir o rótulo de desempregado em busca de uma fonte de renda fixa. Ainda mais quando ele precisava do dinheiro se quisesse manter o aluguel do teto sobre a sua cabeça pago.
— Vou procurar algo, senhor - respondeu. — Entro em contato se encontrar alguém.
— Quando encontrar alguém - o chefe ergueu o indicador, corrigindo-o.
apenas sorriu amarelo ao vê-lo sair da sala, como se já soubesse que os próximos quatro dias seriam os piores de sua vida.
Ele não sabia quantas ligações tinha feito, mas sabia que, se tivesse usado seus próprios créditos para isso, não teria completado nem metade dos “nãos” recebidos. Abrir a aba de ‘Enviados’ de seu e-mail com as respostas era pedir para se chatear ao perceber que a maioria tinha sido lindamente ignorada por seus destinatários. Tinha doado suas horas de sono a um esforço cansativo e inútil de revirar suas opções em fusos horários distantes demais do seu e terminara com as mãos ainda vazias e olheiras tão profundas que ele tinha certeza de que conseguiria sustentar uma moeda ali.
Sem qualquer perspectiva de que alguma criatura divina se apiedasse de seu cansaço e decidisse lhe oferecer um milagre, derrubando um ilustrador em seu colo, ele simplesmente se permitiu abrir uma aba do twitter. Estaria na rua de qualquer forma, antes mesmo que seu chefe pudesse reclamar de seu intervalo para redes sociais.
Rolou a tela inicial sem muita atenção, correndo por tweets de alguns autores que seguia e de alguns astros da NBA que ele admirava. Havia passado tanto tempo focado no trabalho que só naquele instante descobrira que o Lakers havia batido, mais uma vez, o San Antonio Spurs. Pelo menos algo de positivo tirava daquela semana.
não era exatamente o tipo de cara com vários seguidores em seu perfil e também não fazia o tipo que seguia muitas pessoas além daquelas que contavam com um balão azul verificado ao lado do nome. Era esse o motivo de seu estranhamento ser ainda maior ao ver um desenho incrível ali, com traços finos e impactantes, cobrindo a capa do e-book que um de seus antigos veteranos da faculdade acabava de lançar.
Por alguns curtos segundos, sentiu-se mal por não fazer a mínima ideia de que o colega estava passando por um processo de lançamento próprio. Tinha que ser muito relapso para não saber de algo tão importante quanto aquilo. Sua preocupação e culpa, contudo, esvaíram-se rapidamente ao ler os agradecimentos no tweet, que incluíam um revisor, uma diagramadora e a ilustradora responsável pela arte da capa.
“Queria também agradecer à @_scarlett pela capa maravilhosa que soube transmitir e explicar minha história muito melhor do que eu mesmo. Sou muito feliz por poder contar com esse trabalho maravilhoso.”
Seus pés encontraram um ritmo frenético para bater no chão, enquanto ele sentia a empolgação retornando a si. Era um tiro no escuro, mas era seu último tiro e ele precisava tentar.
Clicou no perfil marcado na publicação e se permitiu perder alguns minutos olhando as mídias da conta. A tal Scarlett vinha oferecendo seus serviços por aquela plataforma, ajudando, especialmente, autores independentes que começavam a lançar suas obras na Amazon. E, ele tinha de admitir, eram serviços excelentes. Sempre que pensava ter se encantado definitivamente por uma das capas acabava encontrando outra que lhe parecia ainda melhor. Se tivesse mais tempo, teria ido atrás de cada uma das sinopses daquelas histórias, apenas para saciar seu interesse desperto pelas ilustrações.
Mas ele tinha um objetivo. E um objetivo que não poderia mais esperar.
Abriu a caixa de mensagens diretas e digitou uma mensagem:
“Olá, Scarlett! Como vai?
Meu nome é e eu sou estagiário na Editora Trembley.
Vi suas artes agora (você ilustrou a capa do primeiro livro de um amigo meu, o Donald) e fiquei totalmente encantado! Por coincidência, estamos precisando de um ilustrador meio que urgentemente. Gostaria de saber se você não estaria interessada no serviço. Com certeza lhe pagaríamos adequadamente.
Aguardarei uma resposta e, desde já, agradeço pelo seu tempo e atenção.”
Meu nome é e eu sou estagiário na Editora Trembley.
Vi suas artes agora (você ilustrou a capa do primeiro livro de um amigo meu, o Donald) e fiquei totalmente encantado! Por coincidência, estamos precisando de um ilustrador meio que urgentemente. Gostaria de saber se você não estaria interessada no serviço. Com certeza lhe pagaríamos adequadamente.
Aguardarei uma resposta e, desde já, agradeço pelo seu tempo e atenção.”
Releu as palavras recém-digitadas três vezes antes de finalmente decidir enviar. Não sabia se estava sendo informal demais para alguém que estava quase implorando de joelhos para que outra pessoa assinasse um contrato, mas não sabia como fazer melhor do que aquilo. E, apesar de nunca ter sido exatamente um cara tão religioso quanto sua avó gostaria que ele fosse, ele quase quis rezar para que ao menos aquilo desse certo.
Fechou a guia, tentando se convencer de que não estava ansioso e seu coração não parecia prestes a entrar em fibrilação de tanto nervoso que o consumia a cada segundo repleto de espera e expectativa.
Abriu seu e-mail institucional da faculdade e o que utilizava no trabalho, encontrando-se pela primeira vez na vida realmente decepcionado que não tivesse uma mensagem ou pendência sequer para preencher seu momento de surto solitário.
Levantou-se abruptamente de sua cadeira, decidido a ocupar seu tempo organizando sua mesa. Esvaziou o pequeno cesto de lixo que mantinha sob a bancada, separando seus descartes de acordo com as características da coleta seletiva. Passou um pano umedecido com álcool sobre o notebook e o celular e começou a ordenar suas canetas por cor. Não sabia mais o que fazer.
Quando seu celular piscou com a notificação do aplicativo do twitter, ele largou tudo o mais rápido possível, tentando fazer os dedos pararem de tremer enquanto digitava o link do site novamente no computador.
Ela o havia respondido.
“Olá, . Me passa o seu número.”
Ele franziu as sobrancelhas, identificando no próprio reflexo contra a tela as rugas de confusão em sua testa. Apesar do estranhamento, obedeceu-a.
Após alguns minutos, outra notificação; agora do Whatsapp.
“ ?”
Ele confirmou, observando o aviso no contato, sinalizando se tratar de uma conta comercial. Não esperava algo tão comercial ou distante assim.
O aparelho, então, começou a vibrar, fazendo-o ignorar a aceleração cardíaca pelo susto e atender.
— Scarlett?
— Teoricamente, sim - respondeu a voz feminina risonha do outro lado. — Então, , amigo do Donald que lançou o primeiro livro, o que você quer de mim?
Ele abriu a primeira gaveta, puxando os papéis que revisara ao menos cinco vezes durante os últimos dias, com todas as informações de registro do livro.
— Bom, você conhece a autora Mackenzie Priest? Ela escreveu uma série de livros de romance recentemente que acabou virando até série do Netflix.
— Sim, estou familiarizada com a série. Continue.
— Ela vai lançar um novo projeto agora e estamos todos bastante animados com o resultado. Além de ser um momento importante de renovação da carreira dela, tem um ar distópico bastante interessante que acreditamos que fará sucesso com o público literário.
— , você não precisa vender o livro para mim e nem encher a bola de ninguém. Só quero saber onde eu entro nessa história.
— Certo - ele respondeu, meio sem jeito. — Bem, não temos nenhum ilustrador disponível no momento e queremos que o conceito seja definido logo para começarmos a preparar as divulgações.
— E deixaram que você fizesse o trabalho de entrar em contato comigo em nome da Editora Trembley?
O rapaz se levantou, caminhando até a porta da sala para garantir que a tinha fechado e que não havia nenhum par de orelhas intrometidas tentando prestar mais atenção do que o devido à sua conversa.
— Escuta, Scarlett, se é que esse é seu verdadeiro nome e não apenas sua marca artística - começou. — Como eu te disse na mensagem, eu sou estagiário aqui e estou a meio passo de ser efetivado. Acontece que esse contrato só sai se eu encontrar um ilustrador disponível ainda hoje e, acredite, eu passei a semana entrando em contato com todo mundo que eu conhecia.
— Parece um meio passo bem trabalhoso.
— E foi mesmo. Eu não tinha mais esperança alguma de encontrar alguém. Daí, acabei esbarrando no post de lançamento do Donald e adorei o seu trabalho, sinceramente. Acho que combina totalmente com o que queremos para essa nova série.
— E, se eu não aceitar, você meio que corre risco de ser demitido.
Ele odiava aquela palavra e como ela lhe causava um embrulhamento no estômago instantâneo só de lê-la ali. Mas, bom, no fim das contas, era mais ou menos aquilo mesmo. Não tinha como minimizar o impacto escolhendo palavras bonitas. A vida era muito mais o soco na boca do estômago que você só aceitava do que um tapinha no ombro em recordação de que as coisas poderiam ficar bem.
— É por aí.
A linha ficou totalmente silenciosa por alguns instantes. Ele conseguiria ouvir a respiração dela do outro lado se se esforçasse um pouco para desligar os pensamentos barulhentos que corriam descoordenadamente por sua cabeça.
— Certo. Eu não trabalho com editoras, sabe? Geralmente faço contato com autores independentes mesmo. Peguei uma leve aversão a editoras porque sinto que vocês estão sempre presos em manter o mesmo autor já famoso produzindo feito uma máquina e ignorando que existem vários outros incrivelmente talentosos aparecendo cada vez mais.
— Bom, estamos sempre buscando novos autores para publicar, mas concordo com você que existem vários potenciais incríveis não recebendo oportunidade. Pode ter certeza de que tudo o que eu mais queria era difundir cada vez mais a leitura e a escrita.
“Quanto a isso de continuar publicando autores já famosos, bem, é inevitável. Se nós não o fizermos, outra editora o fará. Sem contar que eles continuam sendo ótimos autores e merecendo espaço. E meio que é deles que vem a maior parte dos lucros, então…”
— É, eu sei. É o capitalismo. Fazer o quê? E é por causa dele que eu tenho pena de pessoas como você e não quero ser a causa da sua demissão. Sei me compadecer de histórias reais. Me encaminha as coisas formalmente, marca uma reunião com o gerente, chefe, dono, CEO, sei lá. Mas eu aceito.
O rapaz arregalou os olhos, sem saber ao certo o que lhe atingira.
— Calma, você realmente aceitou?
Ouviu a risada do outro lado.
— É, sei que é muito difícil de acreditar, mas nós dois precisamos de dinheiro para sobreviver. E eu gosto das histórias da Mackenzie. Querendo ou não, também é uma divulgação do meu trabalho.
Ele nem tinha pensado naquele mísero - e enorme - detalhe. Para alguém que mal tinha contatos fora do plano amador, ilustrar o livro que, com certeza, estaria na lista de mais vendidos por várias semanas realmente significava muita coisa. E ele era um péssimo argumentador por não ter percebido isso antes e utilizado a informação a favor de seu pobre poder de persuasão e convencimento.
— Eu nem sei como te agradecer, de verdade - admitiu. — Tenho certeza de que vai ser uma parceria de trabalho bastante proveitosa.
— E voltou às palavras profissionais. Ok, ok. É, vai ser legal, eu acho. Você tem meu número. Vou esperar o retorno depois que você der a notícia para o seu chefe. Obrigado pela proposta, .
— Pode deixar, Scarlett.
— Você tinha razão, aliás.
— Tenho razão sobre muitas coisas - comentou com falsa presunção. — Mas do que exatamente estamos falando nesse momento?
— Scarlett é só uma marca artística.
Ela desligou antes que ele pudesse fazer novas perguntas. Se tinha uma coisa que ele detestava na vida era que o deixassem curioso. Aquilo definitivamente não ficaria daquele jeito. Ele não conseguiria simplesmente deixar para lá.
Mas teria que ser em outra hora. Naquele momento, sua maior preocupação era sair o mais rápido possível daquela sala e encontrar Corey.
agradeceu profundamente pela xícara de cappuccino solúvel fumegante recém retirada do microondas. O tempo não estava dos mais amistosos há pelo menos uns três dias e olhar para o céu cinzento e carregado só o deixava mais desanimado e desacreditado em relação ao passar do próprio tempo. Às vezes nem parecia que ainda era de manhã quando ele precisava acender a luz do quarto a fim de não destruir seus olhos tentando enxergar seus papéis com anotações dos tópicos abordados com o orientador de seu último trabalho acadêmico, uma das poucas pendências que ainda tinha se quisesse se formar.
Vivia sempre na dualidade de reclamar que o tempo quente o deixava mal, com a pressão baixa e se sentindo sem forças e disposição, mas que o tempo frio tinha o lado negativo de ser tão acolhedor e tornar a cama, as cobertas e uma maratona de qualquer série muito mais convidativas do que de costume. A verdade era que ele só queria procrastinar e fingir que não tinha um prazo se aproximando independentemente da previsão do tempo. De certa forma, acreditava que merecia um descanso depois do estresse dos últimos dias.
Quando seus pensamentos começaram a deslizar em direção à conclusão de que poderia muito bem fechar o caderno, guardar as pastas e fazer aquilo em outro dia, ele recebeu o que julgava um sinal do universo, dando-lhe motivos para se dispersar de vez.
Uma mensagem de Scarlett.
“ , você está ocupado?”
Ele puxou o aparelho rapidamente para si, sentindo o ódio daqueles malditos segundos em que a porcaria do leitor não reconhecera sua digital, obrigando-o a digitar os números da senha.
“Na verdade, estava precisando de um motivo para largar o que eu deveria estar fazendo.”
“Você está me fazendo um favor.”
“Ótimo, porque eu também preciso de um favor seu.”
“Fiz um rascunho à mão do que pensei para a capa depois de ler a sinopse e a resenha. Não tive tempo de terminar o livro ainda, mas imagino que você tenha tido, então me diz se eu estou no caminho certo.”
Alguns instantes depois, uma imagem carregou na tela, mostrando uma folha Canson com delineados pesados e robustos ao redor da fonte, mas que se tornavam mais fluidos e delicados conforme as letras eram substituídas pelos desenhos, que pareciam se quebrar na parte mais inferior, deixando claro que, ao fim, não existia nada além de cinzas.
abriu o Whatsapp no computador apenas para ter o prazer de ampliar a imagem em uma tela maior e observar cada detalhe, cada ponto em que o grafite parecia ter sido pressionado com um pouco mais de força, cada canto que tinha sido esfumado e transformado, passando exatamente tudo o que ele nem sabia que imaginava para a história. Ela tinha conseguido traduzir aquilo que ele mesmo não saberia descrever.
O celular vibrando contra a escrivaninha chamou a sua atenção. Atendeu rapidamente, sem nem esperar o segundo toque.
— Oi.
— Você continua online e não me responde. O que eu fiz de errado, ?
O rapaz quase riu do nervosismo claro dela. Compadecia-se daquela sensação. Sempre pensávamos que, se algo era realmente bom, as pessoas saberiam disso no mesmo instante. Se mais de alguns segundos fossem necessários, com certeza era para uma contabilização de defeitos que nem sempre estávamos prontos para encarar.
— A primeira coisa que você faz de errado é continuar me chamando pelo nome inteiro, parecendo meu pai quando queria me colocar de castigo. Só já é o suficiente.
— Tudo bem, - respondeu, enfatizando o nome. — E qual é a segunda coisa que eu fiz de errado? E a terceira e todas as outras também.
— A segunda é realmente ter a coragem de insinuar que tem algo de errado com essa capa. Ela está simplesmente maravilhosa. Eu só demorei porque abri no computador para ver os detalhes.
Se fisionomias pudessem ser ouvidas, ele com certeza diria que pôde escutar o sorriso de alívio e orgulho que ela dera do outro lado da linha.
— Você gostou mesmo? Não está falando isso só para ser agradável?
— Por mais que eu seja uma pessoa muito educada, eu não posso ceder ao luxo de ser agradável sem motivos, já que meu emprego meio que depende da minha sinceridade. Estou falando sério. Eu nem sabia o que eu imaginava para a capa, mas agora que você me enviou isso, eu posso te dizer que é bem melhor do que tudo que eu poderia ter pensado. E combina perfeitamente com a obra.
Ela suspirou, deixando que o ar fosse liberado pesadamente de seus pulmões. Havia retirado dos ombros um peso enorme dos ombros.
— Ainda vou trabalhar na versão digitalizada. Posso te mandar quando estiver terminando?
sorriu sozinho. De certa forma, era um tanto gratificante saber que alguém se importava verdadeiramente com a sua opinião. E ele estava tão curioso pela arte quanto estava pela artista.
— É claro que pode. Vou ficar feliz de poder fazer parte do seu processo criativo.
Ela riu do outro lado.
— Isso provavelmente soou um pouco mais prepotente do que você esperava.
— Talvez. É um pouco difícil estabelecer os limites da comunicação com alguém que você não conhece.
— Então é sobre isso?
Ele devolveu o celular para a escrivaninha, acionando a função do viva-voz. Precisava liberar as suas mãos para gastar a energia acumulada pelo nervosismo enquanto as mexia ritmicamente, agradecendo por aquela ser uma chamada limitada a áudio.
— É claro que é sobre isso. A última coisa que eu ouvi de você literalmente foi uma confirmação de que Scarlett sequer é o seu nome.
— É um pseudônimo, nome artístico, como preferir. Você está envolvido no meio literário, com certeza entende as motivações para isso melhor do que eu.
— Só se você tivesse algum motivo para se esconder.
— Descobriu o meu segredo. Sou foragida da polícia por aproveitar e captar a água da chuva para usar na descarga.
O movimento de suas mãos parou abruptamente, dando lugar ao franzir extremo das sobrancelhas e um ruído de descrença que não se assemelhava o suficiente a uma risada.
— Não sabia que pegar água da chuva era um crime.
— Eu sei que você está sendo irônico, mas essa literalmente foi uma lei secular no Colorado que só foi reavaliada poucos anos atrás. Vários fazendeiros foram realmente presos por isso.
tinha de admitir que estava verdadeiramente chocado. Se alguém pedisse para ele listar ações que poderiam ser consideradas crimes, captar água da chuva com certeza tinha sua posição de honra reservada bem ao fim da lista.
— Isso é bem surreal - comentou, no mesmo instante em que se deu conta de outra coisa. — Espera, então você é do Colorado?
— Talvez. Ou talvez eu só saiba das coisas porque sou uma mulher inteligente e cheia de informações e curiosidades culturais inúteis para oferecer ao mundo.
— E nós vamos continuar conversando sem que eu saiba absolutamente nada sobre você?
— Se te incomoda, eu posso desligar.
A presunção e o deboche desenhados nas nuances do timbre de sua voz eram palpáveis.
— Sem contar que não é como se eu soubesse tanta coisa assim sobre você.
— Eu sequer sei seu nome - ele a lembrou.
Do outro lado da linha, ela respirou profundamente.
— Se vai fazer tanta diferença assim na sua vida, é . Espero que agora você consiga dormir à noite.
E exatamente como fizera da primeira vez, seus dedos encontraram o botão que finalizava a ligação antes mesmo que ele pudesse formular novas perguntas.
detestava, odiava, abominava energéticos. Detestava ainda mais ter de se submeter àquele projeto capitalista que fazia questão de vencê-la duas vezes: uma ao ser seu objeto de compra e consumo e outra ao parar para pensar que a única motivação disso era simplesmente produzir mais e mais rápido, como se seu tempo de lazer, descanso ou simplesmente sobrevivência significasse menos que nada.
Mas o pior não era aquele gosto adocicado estranho que parecia sempre disposto a lhe revirar o estômago, nem o fato de seu corpo se tornar agitado e, por vezes, excessivamente irrequieto, tentando lidar com a estimulação excessiva do quadro de alerta. O pior era não conseguir dormir quando ela finalmente poderia fazê-lo.
Havia cedido à bebida para conseguir prolongar seu trabalho por mais algumas horas em direção à madrugada, pois tinha acabado de se decidir por um detalhe de continuação da arte na lombada do livro e sabia que não poderia deixar que aquela faísca de criatividade extrema, na qual as coisas pareciam se encaixar tão facilmente e ganhar forma de maneira robusta e simultaneamente delicada, acabasse por se extinguir.
Agora, com a lombada precisando apenas de alguns ajustes finais - cuja necessidade seu cérebro só perceberia depois de se desconectar daquele frenesi momentâneo -, seu corpo já havia ocupado todas as posições possíveis na cama de casal e o sono não parecia de forma alguma mais próximo. Talvez devesse dobrar sua coluna sobre o colchão e deixar os cabelos tocarem o carpete até que seu fluxo sanguíneo tornasse a situação incômoda e ela ficasse tonta o suficiente para apagar.
Puxou o celular da mesinha de cabeceira, entediada o suficiente para começar a olhar as mensagens de status de seus contatos.
Assim que viu o trecho de uma das letras de uma música do Stevie Wonder, abriu a conversa com a melhor amiga, torcendo para que Jazmine estivesse insone, por mais dolorosamente egoísta que aquele pensamento fosse.
Visto por último ontem às 10:39 PM
olhou o relógio logo acima indicando que já estava mais perto das duas da manhã do que do momento em que a amiga pudesse estar acordada.
Bufou e voltou a seu desperdício de tempo inútil observando as mensagens de status alheias.
Entre várias mensagens prontas de “Disponível” e “No trabalho”, apareciam alguns trechos de músicas e citações, intercalados com emojis aparentemente aleatórios de luas, flores e frutas. Sua atenção foi, então, capturada por uma frase que ela reconheceria em qualquer lugar e poderia citar tranquilamente a qualquer momento:
“Palavras são, na minha nada humilde opinião, nossa inesgotável fonte de magia.”
Quando olhou para o contato detentor daquela frase, esboçou um sorriso de admiração quase desacompanhado de surpresa. Não esperava algo não literário de um estudante de letras que estagiava em uma das maiores editoras do país. Mas, definitivamente, havia o julgado mal por perceber que, provavelmente, esperava algo de pelo menos duzentos anos atrás, com palavras que já tivessem sido esquecidas pelo vocabulário cotidiano há tempos; não Harry Potter.
Em um instinto curioso que não conseguiu ignorar, abriu a conversa com ele, encontrando uma indicação completamente diferente daquela da amiga: online.
Piscou algumas vezes a mais do que a lubrificação de suas córneas realmente necessitava, como se aquela simples e desconectada ação fosse capaz de lhe fazer pensar e chegar a alguma conclusão do que fazer. Uma parte de si queria enviar uma mensagem qualquer, puxar um assunto e ocupar aquela vigília da madrugada. Todo o resto a lembrava de que um pingo de bom senso seria bom. Não conhecia o rapaz o suficiente e poderia parecer uma maluca - afinal, já o tinha abordado por ligação antes e, provavelmente, ultrapassado algum tipo de barreira imaginária de distanciamento que deveria manter de alguém que só a havia contratado para um serviço e nada mais -, sem contar que talvez ele estivesse ocupado e cansado, ao contrário dela, e não teria nem tempo e nem a inclinação para responder uma mensagem idiota qualquer. Ela realmente deveria simplesmente bloquear a porcaria do celular, virar a cabeça para o lado e se obrigar a tentar dormir, nem que fosse apenas um fingimento para tentar se convencer de que conseguiria.
Ainda havia um bichinho que lhe percorria, querendo clicar em cada uma das letras daquele teclado e apertar o botão de enviar de qualquer forma. Quer dizer, se ele não quisesse falar com ela, poderia simplesmente ignorar a mensagem para sempre - por mais que sua primeira impressão dele fosse de que ele era educado demais para isso. Mas, ainda assim, pelo horário, ele poderia deixar a mensagem aguardar em banho-maria até que a manhã chegasse. Não era como se uma simples pergunta ou comentário fosse um par de algemas incumbido de uma obrigatoriedade inevitável. Não era assim que as coisas funcionavam.
— Bom, foda-se - falou a si mesma, enquanto digitava uma mensagem rápida.
Ao enviá-la, só conseguiu estreitar os olhos e menear a cabeça, julgando a si mesma pelo conteúdo.
“De que casa você é?”
Se ele decidisse nunca mais respondê-la enquanto a humanidade ainda andasse sobre a Terra, ela meio que entenderia e apoiaria sua decisão. Provavelmente era sábia depois daquilo.
Mas não foi o que aconteceu.
“Que casa?”
abriu o teclado de emojis, escolhendo uma coruja e um raio na seção de animais e natureza.
Logo pôde observar o “digitando…” retornando à tela.
“AH! Lufa-lufa e você?”
Ela riu sozinha, guardando para si a piadinha de que ele realmente deveria ser bonzinho demais, exatamente como ela imaginava. Faria sentido afinal de contas. E, de quebra, ainda ganhava a alegria de dividir a casa com Cedrico Diggory, definitivamente um dos personagens mais injustiçados de toda a saga. Que descanse em paz.
“Corvinal.”
“É bem a sua cara mesmo, senhora “inteligente e cheia de informações”.”
Ela revirou os olhos, compreendendo o deboche com as palavras exatas que lhe tinha dito ao compartilhar a informação não requisitada sobre a legislação estapafúrdia do Colorado.
“O que faz acordado tão tarde?
Arrependeu-se imediatamente. Já era esquisita o suficiente por abordar uma pessoa com papo de Hogwarts e agora simplesmente era intrometida o suficiente para questionar coisas que, com certeza, não eram da sua conta.
“Vendo o jogo do Lakers com o Bulls de ontem.”
“Eu estava na faculdade na hora, então coloquei para gravar.”
“E você?”
“Tomei energético para trabalhar e agora não consigo dormir.”
“Uma merda, né? Sempre acontece comigo em semanas de provas. Depois pareço um figurante de The Walking Dead de manhã.”
Ela riu, concordando com a cabeça, mesmo sabendo que ele não poderia vê-la. Levantou-se da cama, caminhando até a bancada da cozinha de seu apartamento carinhosamente chamado de “caixa de fósforo”. Despejou o resto do leite da geladeira em uma caneca personalizada que Jazmine havia lhe dado de natal e o colocou no microondas. Encostou as costas contra o mármore, sentindo o desconforto leve da pedra contra a base de sua lombar, enquanto o prato do eletrodoméstico rodava e seu barulho não permitia enganos e esquecimentos de que ele estava ligado. Sinceramente, esperava que o quarto do apartamento vizinho não fosse diretamente atrás da parede de sua cozinha ou acabaria conseguindo manter mais uma pessoa acordada àquela hora da madrugada.
“Não consegui ver essa série. Acho que larguei lá na primeira temporada.”
“É compreensível. Eu ainda vejo por insistência mesmo, mas perdeu a graça com o passar do tempo.”
“De que séries você gosta?”
Ela retirou a caneca do microondas, tomando cuidado para equilibrar o celular em uma mão e a porcelana pela alça na outra, evitando queimar seus dedos. Deu um gole no conteúdo, sentindo o calor se espalhando rapidamente pelo seu peito, como se a queimasse de uma forma estranhamente agradável de dentro para fora. Sorriu de leve, livrando-se de sua insegurança pela possibilidade de estar sendo inconveniente ao perceber que ele também estava puxando assunto por conta própria. Seus ombros relaxaram, quando ela devolveu a caneca para a pia para conseguir digitar mais habilmente com as duas mãos livres.
“Se eu começar a falar das séries que eu gosto, nós vamos ficar acordados não só essa madrugada, mas a próxima também.”
“Tem várias de vários tipos. Minhas séries de conforto são as de comédia mesmo, Brooklyn 99, Modern Family… Mas eu estou vendo uma agora que estou adorando, também bem rapidinha, divertida e interessante por ser meio biográfica. Chama ‘Dickinson’. Acho que não preciso explicar para você o porquê.”
“Emily Dickinson. Preciso ver essa série.”
“Estava esperando alguém fazer uma boa recomendação por medo de me decepcionar, ainda mais sendo de uma autora que gosto.”
“Quem é o inteligente, culto da Corvinal agora?”
“Continua sendo você. Não abro mão do meu cachecol amarelo de forma alguma.”
deu mais um gole longo em seu leite morno, enquanto arqueava uma sobrancelha.
“Bom, eu decidi ver a série por causa da Hailee Steinfeld, você está pensando em literatura clássica. Teremos de rever os seus conceitos.”
“Aliás, como está o seu time?”
Ela havia parado de ver basquete há séculos, mais precisamente desde que saíra de casa e deixara de dividir o quarto com o irmão caçula que praticamente não pensava em outra coisa na vida a não ser basquete. E, ocasionalmente, jogos de videogame que não fossem da NBA.
Pietro fazia questão de ver absolutamente todas as partidas do Cleveland Cavaliers, mesmo depois da saída de LeBron James. Ela nunca entendera aquela paixão, até porque não poderia usar o espírito local como justificativa, já que eles nunca haviam sequer cogitado pisar em Ohio. Mas era uma realidade incontestável. havia usado seu primeiro salário para comprar uma camisa oficial do time para ele e podia jurar nunca ter visto olhos mais contentes e brilhantes do que naquele momento. Sinceramente, esperava que fosse tão apaixonado por aquilo quanto ele. Era um humor e um amor bonitos demais de se ver.
“Na verdade, acabou de terminar. Lakers ganhou de 117 a 115.”
“Bom, pelo menos agora alguém vai dormir mais feliz.”
“E mais aliviado também. Meu Deus, acho que eu não sentia tanto nervoso com um jogo assim desde os playoffs contra o Miami Heat ano passado.”
terminou seu copo de leite, lembrando-se da temporada anterior. Deveria admitir que bem tinha torcido para que o Miami Heat pelo menos empatasse em vitórias na final, simplesmente pelo fato de se ver continuamente torcendo pelos azarões, que jamais entrariam para a lista de favoritos do público ao título. Mas era mais do que justo e belo ter o Los Angeles Lakers levantando a taça e perpetuando o legado do time, além de honrar a memória de Bryant e a mentalidade Mamba.
“Vou deixar você descansar então. Até mais, .
“Até, .”
Ela bloqueou o celular, colocando-o sobre a prateleira aberta do armário, enquanto lavava o copo usado e o deixava no escorredor, deixando que a gravidade cumprisse sua função e evitasse mais uma tarefa doméstica.
O som de uma notificação foi a única coisa que a impediu de simplesmente largar o celular carregando na tomada e ir dormir.
“Sabe, a gente poderia fazer uma watch party e ver Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban uma hora dessas.”
“Quer dizer, só se você quiser. Sei lá.”
deu uma risada leve, achando aquela situação de desconcerto repentino um tanto fofa. Não que ele precisasse disso. Qualquer pessoa que soubesse exatamente qual dos oito filmes escolher já merecia uma chance.
“Estarei esperando ansiosamente.”
sentiu o gás do refrigerante subindo de uma forma totalmente incômoda para o nariz quando riu com a boca cheia do líquido, sentindo que poderia cuspi-lo a qualquer momento. deveria ser uma das poucas pessoas que realmente o fazia gargalhar com gosto a cada meme que enviava, em vez de apenas fazê-lo dar uma risada leve pelo nariz e digitar um ‘HAHAHAHA’ bem mais exagerado do que a reação real.
Tinham conversado todos os dias da última semana. Trocaram memes, fotos de bichinhos vestidos como personagens literários ou do cinema, piadas ruins e desabafos sobre o dia a dia com a facilidade que só se tinha com alguém que você sabia que estava simplesmente disposto a escutar, sem julgamentos e sem ideias prévias. Aquela estranha e peculiar amizade havia se tornado uma das melhores coisas do ano para ambos.
estava contente por ter feito parte do processo criativo de cada detalhe da arte da capa, opinando e encorajando-a sempre que possível. , por sua vez, acabou voltando a assistir basquete só para ter mais alguma coisa em comum com ele - e, de certa forma, também com o seu irmão que sempre a fazia sentir saudades de casa - e leu Emily Dickinson. Declamara em frente ao espelho um poema cujos versos ainda recordava com facilidade:
Salvar de partir-se um coração,
Se eu puder aliviar uma vida
Sofrida, ou abrandar uma dor,
Ou ajudar exangue passarinho
A subir de novo ao ninho —
Não viverei em vão.”
Antes disso, ela sinceramente não fazia nem ideia de que a palavra exangue existia. Se a visse por aí, pensaria que era um erro de digitação. Mas é bastante difícil culpar a digitação de uma pessoa que não viveu o suficiente para imaginar o que seria isso sendo realmente algo indispensável à vida dos escritores.
O rapaz digitou uma mensagem rápida, com uma resposta nada esperta à piada e foi ao banheiro verificar o estado de seu cabelo pela décima vez. Por Deus, não havia se importado tanto com a posição dos seus fios nem quando compareceu à entrevista do estágio. O problema, na verdade, era que era bem fácil arrumar o cabelo de forma que ele ficasse perfeitamente alinhado. O difícil era encontrar o ponto certeiro entre o arrumado e a bagunça despojada que passava a ideia de que aquilo com certeza não era algo com o qual ele se preocupava, mesmo quando o fazia. E muito.
Era sábado à noite e não havia outro lugar no mundo no qual ele mais desejasse estar do que sentado em sua cama, com uma almofada alta sobre o colo apenas para impedir que o fundo do notebook esquentasse suas coxas. Não precisava mesmo ficar estéril exatamente em um momento tão delicado. Ela não precisava conhecê-lo enquanto passava por aquilo.
Ele nunca recebera um sobrenome para o nome, então não pôde se aventurar pelas redes sociais. Questionava-se se ela o teria pesquisado no facebook apenas para saber quem ele era para além daquela foto de perfil - que ele usava em todas as redes sociais, afinal não era sempre que se conseguia uma foto boa - em que ele aparecia vestido de Miles Morales no Halloween do ano anterior.
Ele sabia que o código de localização do número dela era de Nevada, mas quando a questionou sobre isso ela contou que não havia trocado o chip de casa ainda. Mesmo tendo se mudado para a Califórnia há algum tempo, simplesmente tinha sentido preguiça demais para realmente se preocupar em mudar o seu número. Desde então, ele só conseguia pensar em como ela poderia estar fisicamente bem mais perto do que ele imaginava. Quem sabe, talvez, com muita sorte, passeando por Los Angeles, frequentando as mesmas lanchonetes que ele tanto adorava, indo ao mesmo banco quando precisava sacar dinheiro por algum motivo aleatório. Talvez já tivessem coexistido em uma mesma sala de cinema sem nem saber da existência um do outro. Talvez tivessem compartilhado todas as reações simultaneamente durante a pré-estreia de Harry Potter e as Relíquias da Morte - Parte 2 sem sequer pensarem sobre as outras fileiras. Talvez. Tudo para eles, desde o começo, vinha parecendo sempre um grande e grotescamente gritante talvez.
Haviam finalmente combinado a tal ‘watch party’ e ele tinha passado o dia inteiro em uma completa pilha de nervos, sem saber muito bem o que pensar ou sentir. Olhando o relógio, percebeu que a hora marcada se aproximava finalmente - depois de ter passado toda a tarde parecendo que não chegaria nunca, apenas para torturar sua ansiedade mais um pouco e empurrá-lo a um limite que ele não estava tão interessado assim em conhecer.
Quando ela finalmente ligou, ele respirou profundamente três vezes, exalando o ar com toda a calma do mundo, antes de finalmente atender e ver a imagem dela se ampliando na tela.
E, que merda. Por que ela tinha que ser muito melhor do que qualquer coisa que ele havia imaginado? Seus cabelos caíam em ondas pesadas sobre os ombros, de forma a refletir tons diferentes e brilhantes sob a luz que iluminava o seu ambiente. Os lábios grossos e a sobrancelha marcada o encaravam com curiosidade e, até mesmo, um tom de humor em resposta à sua reação. sabia fingir muito melhor que ele que não estava encantada com a imagem que via.
Ele deu um sorriso nervoso, antes de pegar a pequena garrafa de refrigerante aberta na mesa de cabeceira e virar mais um gole.
— Está se alcoolizando para me encarar, ? Não sei se me sinto honrada ou ofendida.
Ele sentiu um calafrio esquisito subindo pela nuca ao ouvir a voz que ele já conhecia tão bem, agora saindo da boca que ele desejara por dias conhecer. Era uma sensação agradável e desconfortável simultaneamente e nem seu vocabulário super refinado pela leitura dos clássicos reconhecia uma possível definição para aquilo. Era simplesmente bizarro.
— É refrigerante - respondeu, ao finalmente encontrar a sua voz. — E eu já estava tomando antes de você ligar.
Ela assentiu, concordando finalmente. Levou as mãos aos cabelos, enquanto os enrolava sobre as costas, liberando os ombros e o colo.
— Sabe, eu não te imaginava assim - comentou.
O rapaz franziu o cenho imediatamente.
— Como assim? O que você imaginava.
— Alguém com mais cara de nerd, talvez.
— Talvez eu seja a prova de que esse papo de cara de nerd não existe.
— Ou seja apenas um ponto fora da curva.
Ele riu de leve.
— Você também não é exatamente uma releitura fiel do que eu esperava.
— E o que seria?
— Não sei - admitiu, sentindo-se um completo idiota. — Mas não era isso.
— E essa é a segunda vez em menos de cinco minutos de conversa que eu não sei se deveria me ofender.
Apesar de saber que ela estava brincando, ele sentiu sua bochecha queimando como se estivesse sendo atingida duramente por uma ducha de água desreguladamente quente - daquelas que queima tanto que você simplesmente para de sentir suas próprias terminações e só se dá conta ao olhar para baixo e ver o estrago na pele intensamente vermelha dos pés. Não era possível que ele realmente teria talento o suficiente para estragar tudo antes mesmo de saber o que raios esse ‘tudo’ significava.
— Não foi uma ofensa. Sinceramente, por mais que possa ter soado mal, essa foi a forma menos objetiva de dizer algo totalmente positivo. Isso eu posso garantir.
— Certo, certo. Vou escolher acreditar em você antes que você volte a falar palavras difíceis e me faça pensar muito.
Quando ela se moveu de onde estava, alcançando o carregador de notebook ao seu lado, ele finalmente viu o moletom vinho com ‘Stanford’ escrito em letras garrafais.
— Ah, você faz Stanford - comentou. — Isso é bem legal. Quer dizer, é o que todo mundo sempre diz.
— Deve ser legal mesmo, mas eu não saberia te responder. Não fiz e nem faço Stanford. Meu pai me comprou essa blusa uma semana antes de eu receber um gigantesco ‘não’ na minha inscrição. Ele disse que não precisávamos esperar porque tinha certeza de que eu passaria, mas adivinha só.
— Isso deve ter sido complicado.
Ela balançou a cabeça concordando.
— No começo foi mesmo - admitiu. — Eu queria odiá-lo por ser tão positivo e cheio de expectativas porque achava que a pressão sobre os meus ombros era culpa dele e do fato de que ele esperava demais de mim. No fim das contas, percebi que era eu quem estava me cobrando em excesso e ninguém além de mim estava realmente decepcionado ao extremo. Era a mim que eu odiava naquele momento. Eu me odiei por não ter entrado em mais um clube durante o colegial, por não ter tirado um ponto a mais no SAT, por não ter pego só mais uma disciplina extracurricular ou feito mais um trabalho de caridade para deixar o meu currículo melhor. Naquele momento, eu tive a mais absoluta certeza de que eu seria um eterno fracasso porque não havia me esforçado o suficiente. Porque me acomodei com pouco.
— Duvido que você tenha feito pouco.
— Na verdade, eu fiz muita coisa. Só demorei para perceber isso e entender que não era culpa minha. Não havia nada que eu pudesse ter feito de diferente. Algumas coisas na vida simplesmente não eram para ser e estava tudo bem. Acabei indo para São Francisco para fazer artes e design e não poderia ser mais feliz com a escolha que a vida fez por mim. E não é como se tivesse mudado muito o planejamento por conta de distância de casa e tudo mais. Deu tudo bastante certo no final.
— E o casaco?
— Ah, eu pensei em vários jeitos de destruí-lo. Pensei em pregá-lo num mastro e atear fogo. Pensei em picotar ele todinho até não conseguir mais ler essas letras ridículas. Pensei em jogar no lixo, em deixar ele completamente manchado de tintas, em dar de paninho para o cachorro. Mas, no fim das contas, ele é bem grande, bem confortável e bem quentinho. É simplesmente o melhor moletom do mundo para usar em casa, então eles que se fodam.
riu, concordando. Fazia sentido. Ou ao menos ele achava que sim. Não era exatamente a pessoa mais confiável para decidir sobre isso naquele momento. Tinha quase certeza de que acharia absolutamente tudo o que saísse da boca dela completamente correto e incrível, mesmo que fosse explicitamente um completo absurdo.
— Que refrigerante você está tomando?
— Ah, é coca-cola de cereja.
Ela fez uma careta.
— Meu Deus, essa é a pior merda do mundo depois do energético.
— Eu tenho gostos peculiares, você não entenderia.
gargalhou, entrando em uma pequena crise de tosse por ter se engasgado levemente com a própria saliva em seu acesso de risos.
— Primeiro Harry Potter e agora Cinquenta Tons de Cinza? Pensei que os estudantes de Letras tivessem preferências literárias mais refinadas.
— Bom, primeiramente, apesar de a autora ser horrível e transfóbica e sua existência precisar ser ignorada, Harry Potter é um absoluto clássico incrível e atemporal. Acredito verdadeiramente que seja uma das poucas obras da nossa geração capazes de perdurar como os livros antigos.
— Concordo.
— Em segundo lugar - ele continuou -, eu nunca li e nem vi Cinquenta Tons, mas todo mundo sabe da existência dessa cena por causa das piadinhas do facebook e você praticamente implorou para que eu usasse essa referência.
— Justo.
— E, por último, eu realmente tenho outros gostos literários duvidosos, mas isso não vem ao caso.
sorriu de canto, arqueando uma sobrancelha.
— Sabe que não deveria ter falado isso, não sabe? Porque agora eu não vou descansar enquanto não o fizer admitir cada um deles.
riu, assentindo. Não era como se fossem amigos de longa data, que sabiam de cada passo, característica e maneirismo do outro, mas ele gostava de pensar que a conhecia bem o suficiente para esperar explicitamente aquele tipo de atitude.
— Com certeza. Mas em outra hora, porque agora temos um filme para ver.
— Tem razão. Vamos começar logo, antes que minha pipoca esfrie - ela comentou, enquanto puxava o balde de plástico amarelo para o colo.
— Eu não acredito que você fez pipoca.
— Como não? Esperava que eu fizesse o quê para ver filme? Uma lasanha à bolonhesa?
Ele a fuzilou com os olhos, como se a repreendesse por tirar uma com a cara dele com tanta facilidade.
— Não. É porque eu não tenho pipoca.
— Ué, levanta e faz.
— , não tem pipoca nesse apartamento.
— Que tipo de pessoa não tem pipoca em casa? De verdade, o que você janta?
— Comida?
— Adultos jovens morando sozinhos têm a obrigação legal de comer porcarias pouco nutritivas de vez em quando e ter a audácia de chamar isso de jantar; aprenda. Mas, no momento, apenas sofra morrendo de inveja porque essa aqui está bem salgadinha e amanteigada. Uma delícia.
Ele meneou a cabeça para os lados, em um misto de negação e descrença.
— Você é uma pessoa horrível.
— Você quis dizer incrível - ela o corrigiu. — Agora dá play nesse filme.
Assistiram ao filme, comentando sobre curiosidades aleatórias no meio dele e observações de easter eggs, como a presença do nome de Newt Scamander no Mapa do Maroto. falou sobre as tatuagens de Sirius Black e a intenção da representatividade similar russa dos desenhos, que decoravam o corpo daqueles que deviam ser respeitados e temidos dentro da prisão. admitiu que Emma Watson como Hermione Granger havia sido seu primeiro crush em personagens fictícios quando mais novo e que concordava abertamente com aqueles que falavam que ela era a verdadeira protagonista da série.
— Você acha que esse livro novo da Mackenzie vai ter uma adaptação cinematográfica tão boa quanto essa?
— Não faço ideia. Tenho um pouco de medo de adaptações de sagas distópicas. Depois do que fizeram com o último de Divergente…
— Não precisamos falar sobre aquela catástrofe - concordou. — Acho que Jogos Vorazes acabou sendo um dos poucos que realmente deu certo.
— O que mais me deixa frustrado é que o primeiro filme foi muito bom e eles conseguiram colocar as expectativas lá no alto.
— E depois todas elas se arremessaram do penhasco e explodiram de desgosto na minha cara - ela completou, assentindo. — Uma grande porcaria.
— Às vezes eu prefiro que livros muito bons não ganhem adaptações cinematográficas exatamente por isso. Até porque muito mais pessoas verão o filme do que lerão os livros e daí a opinião em massa é baseada em duas horas de surtos e desespero.
— Realmente, é um grande dilema.
se levantou rapidamente, para jogar a garrafa de refrigerante no cesto separado para reciclagem e voltou para a cama com uma garrafa de água. Nesse meio tempo, colocou a vasilha da pipoca na pia, perguntando-se se seria feio demais deixá-la lá para lavar no dia seguinte. Infelizmente, a vantagem de ser a única pessoa que poderia cobrá-la de suas tarefas incentivava o adiamento da maioria delas.
— Vai precisar de mais do que uma dessas para limpar o seu organismo daquela bomba de corante e saborizante - ela brincou, ao vê-lo com a água.
E continuaram na discussão sobre sagas e demais livros, compartilhando momentos favoritos, decepções, insatisfações com mortes de alguns personagens que, com toda a certeza do mundo, mereciam mais do que um final daqueles e as reviravoltas mais inteligentes.
A conversa fluía com tamanha naturalidade que a noite simplesmente se aprofundou sem que eles se dessem conta da progressão do horário em direção à madrugada. Que bom que haviam tomado a sensata decisão de marcar aquele protótipo de sessão de cinema em um sábado.
De repente, ele já sabia que ela nunca tinha saído do país, amava pizza de pepperoni e passava mal com o frappuccino do Starbucks. Ela havia descoberto que ele tinha realmente gostos peculiares para além daquele maldito refrigerante de cereja, tendo a coragem de adorar sorvete de menta com chocolate, mas achar pistache uma abominação completa.
Entre as risadas e as exclamações de choque, ela apenas balançou a cabeça em descrença, mas com uma sensação estranha e certeira de que ainda teria a oportunidade, ao vivo e a cores, de fazê-lo mudar de opinião para além de uma tela.
não via o pai há tanto tempo que já estava começando a desenvolver um receio aparentemente melodramático e exagerado, mas muito palpável de ter se esquecido de como era ver o seu rosto para além das fotos que mantinha no próprio rolo da câmera. O mais velho tinha simplesmente se negado a ceder às novas tecnologias, redes sociais e aplicativos de comunicação. Uma vez por semana, aproximadamente, o filho realizava uma ligação para casa, discando o número de uma das poucas pessoas que ele ainda conhecia que mantinham um telefone fixo. Ao menos da voz dele não poderia se esquecer assim.
— Pensei que só fosse te ver quando eu estivesse no meu leito de morte - o homem brincou, puxando o filho para um abraço apertado.
— Que exagero, vira essa boca para lá - reclamou. — O senhor sabe que não é por mal. Com o último ano e o estágio ficando cada vez mais intenso, é difícil de verdade ter tempo para pegar um ônibus por horas e fazer essa viagem.
— Eu sei, , só estou te enchendo. E você sabe como tenho muito orgulho do homem dedicado e trabalhador que eu te criei para ser.
O rapaz sorriu, sentindo o peso daquelas palavras. Não era, nem de longe, o tipo de pessoa que tinha problemas de relacionamento familiar e negligência parental durante a infância e passava a vida sedento para receber, por mais mínimo que fosse, qualquer gesto e sinal de afeto que demonstrasse um pingo de orgulho sequer. Mesmo assim, era sempre engrandecedor e fortificador saber que aquele que fora seu exemplo enquanto crescia lhe olhava com a mesma admiração e contentamento.
Quando decidira fazer Letras e se especializar na parte editorial da literatura, sentira medo. Medo porque parecia que todas as pessoas à sua volta tinham uma opinião não solicitada a dar, com uma meia reação que oscilava entre a decepção e o desprezo, como se ele estivesse desperdiçando algum tipo de capacidade admirável com tão pouco, enquanto ele se sentia exatamente da forma oposta: como se tivesse querendo abraçar algo demais enquanto era tão pequeno.
Mas seu pai nunca pensara dessa forma e a isso ele era muito grato. Quando contou de suas intenções e perspectivas, o mais velho o abraçou com lágrimas nos olhos e disse que sabia que ele seria feliz e era apenas isso que lhe importava. Leu sua redação de aplicação às universidades em que se inscreveu de cabo a rabo mais de uma vez, apenas pelo prazer de conhecer as palavras do próprio filho, tão familiares a ele que quase ouvia sua voz enquanto seus olhos as assimilavam. sabia que grande parte da pessoa que ele se tornara dependia diretamente do apoio constante da figura paterna e esperava, um dia, descobrir uma forma de demonstrar a isso toda a sua gratidão.
Os dois carregaram as malas para dentro, deixando-as no antigo quarto do rapaz, que ainda mantinha as mesmas paredes azuis e o mesmo abajur do Batman. Era como uma cápsula do tempo com destino direto às lembranças nostálgicas de tempos em que sua maior preocupação era torcer para que não chovesse no fim da tarde, já que era o único momento em que, terminadas as lições de casa e os estudos, ele finalmente podia ir para a rua e encontrar com outras crianças. Esses momentos de imersão tendiam sempre a ser agridoces por virem acompanhados da inafastável percepção de que o tempo passava, as pessoas envelheciam e as coisas mudavam. Não que isso fosse ruim. Se as coisas não tivessem mudado, ele não teria motivos para nutrir uma nova expectativa no fim da tarde, sabendo que era costumeiramente o momento em que ela o chamava para conversar e contar sobre o seu dia, perguntando sobre o dele na sequência.
arrumou o quarto meio por cima, decidido que seu estômago era mais importante no momento. Seguiu para a área externa, onde abriu uma cerveja e foi até a churrasqueira, ajudar o pai a virar as carnes.
— Como vai o estágio?
— Cansativo, pai. Mas vai bem.
— Você acha que vai ser efetivado? Vejo você se dedicando tanto a esse trabalho, tenho certeza de que merecimento não falta.
O rapaz soltou o ar com um pouco de força extra pelo nariz, em uma risada torta e estranha.
— Tem um livro importante para sair e ficamos sem ilustrador para a capa - contou. — Meu chefe decidiu que era uma missão impossível encontrar um substituto e, por isso, entregou ela a mim, valendo minha efetivação.
— Filho da puta - o mais velho ralhou, enquanto apertava os bifes de leve para verificar o ponto e a suculência. — E você conseguiu?
— Depois de entregar minhas horas de sono e a minha sanidade, acabei conseguindo. Ela ainda não entregou o trabalho final, então não sei se o Corey vai achar bom o suficiente ou inventar uma nova regra para essa corrida maluca e me ferrar.
— Se foi você quem a escolheu, tenho certeza de que será ótima. Você sempre teve bom gosto.
— E mesmo assim você insistia em me colocar aqueles suspensórios horríveis quando eu era pequeno.
O mais velho soltou uma gargalhada alta, enquanto servia a carne nos dois pratos.
— Você ficava bem bonitinho neles, especialmente pela cara de bravo.
revirou os olhos teatralmente, dando um longo gole em sua cerveja. Puxou o celular do bolso, abrindo a conversa com para buscar em suas mídias compartilhadas a última foto que ela havia mandado da versão atual da capa em sua mesa digitalizadora.
— Aqui. - Ofereceu o aparelho ao pai. — Essa é a última foto que ela me mandou de como está ficando.
O homem ajeitou os óculos de grau ao rosto, encontrando a posição certa da lente para que enxergasse melhor. Estreitou os olhos, como se aquilo fosse ajudá-lo a prestar atenção em cada detalhe.
— Não entendi nada - disse. — Mas é muito bonita. Fica fácil julgar um livro pela capa assim.
— Não é? - O mais novo concordou. — Ela manda muito bem.
Foi a vez do pai soltar uma risadinha, enquanto o encarava.
— Conheço bem esse seu sorrisinho transbordando aos poucos de empolgação. Quantos anos ela tem?
fez uma careta.
— Que tipo de pergunta é essa? Foi você quem me ensinou que a gente não pergunta a idade dos outros a menos que seja caso de vida ou morte.
— Bom, eu tinha pensado em uma pessoa com seus trinta anos de carreira já enquanto você contava a história, mas aí vi essa sua cara de bobo e, por mais que eu seja um homem muito tolerante, não acho que uma grande diferença de idade seja tão natural assim.
— Ela é da minha idade.
— E como ela se chama?
— , pai. Será que a gente pode parar com o momento interrogatório? Eu estou me sentindo de volta ao meu primeiro baile da escola com essas suas perguntas sem noção.
O homem riu.
— Eu posso ser sem noção. Ganhei esse direito ao te colocar no mundo.
— Bom, teoricamente, não foi você.
— Não me vem com esse papinho. Mas eu paro com as perguntas.
— Obrigado.
— Posso ver uma foto dela?
— Pai!
— O que custa?
— Que inferno.
pegou o celular de novo, mostrando a ele uma foto que havia enviado para ele enquanto fazia cookies red velvet e deixava as mãos tão manchadas de corante que pareciam peças de uma cena de crime.
— Ela é bem bonita. Eu falei que você tinha bom gosto.
— Chega - cortou-o decidido, tomando o celular e o bloqueando novamente. — Que tal a gente falar da sua vida em vez da minha?
— E que graça tem nisso? Eu mal saio dessa casa.
— Pois deveria. Quantas vezes já conversamos sobre os eventos comunitários que acontecem naquele centro aqui perto? Você deveria ir, conhecer pessoas novas, conversar, encher mais gente que não seja eu.
— Eu estou indo.
O rapaz largou os talheres na hora, mastigando mais rápido apenas para poder falar logo.
— Sério? Pai, isso é incrível!
O mais velho fez um gesto com a mão, como se quisesse dissipar aquela animação súbita.
— Não é nada. Eu fui a duas confraternizações só. Não tenho mais energia para ficar até tão tarde fora.
— Mentiroso. Você só não quer dar o braço a torcer de que está gostando já que recusou a ideia por anos desde que eu sugeri pela primeira vez.
— Que seja.
— O senhor é cabeça dura demais.
— E você puxou isso de mim.
Terminaram o almoço com insistindo, entre uma cerveja e outra, para que o pai contasse sobre os novos amigos. No fim das contas, haviam sido mais do que apenas duas confraternizações. Ele já tinha saído para “beber uma” na casa de pelo menos dois deles e parecia estar fingindo não receber flertes de uma viúva da região que sempre dizia o quanto o seu bigode era charmoso.
— O senhor deveria dar uma chance a ela.
— Que nem você está dando uma chance à ?
bufou, fazendo o pai rir.
— Você pediu por essa.
O mais velho recusou a oferta de ajuda com a louça, insistindo que o filho deveria descansar depois de ter acordado tão cedo para pegar o ônibus até ali. não insistiu, mas lhe assegurou que a louça do jantar seria sua responsabilidade.
Acabou dormindo por mais tempo do que esperava e levantou correndo, indo ao banheiro para tomar um banho. Saiu com uma toalha amarrada no quadril, voltando até o quarto para se trocar. Enquanto tentava arrumar a bagunça que havia feito na mala, ouviu o celular tocando. Correu para cama, sorrindo largamente ao atender a chamada.
— Oi, sumido - ela disse do outro lado. — Espera aí. Que parede azul é essa? , me diz que eu não estou no seu banheiro, porque eu acho que é o único cômodo que eu ainda não conheci e prefiro continuar assim.
— Na verdade, esse é o meu quarto - respondeu. — Só que na casa do meu pai. Eu escolhi esse azul há mais de dez anos.
— Bom, isso basicamente explica tudo.
Ela riu de leve do outro lado, enquanto esfregava os olhos.
— Como assim?
— Isso explica porque a primeira coisa que eu fiz ao chegar à Trembley foi perguntar por você e ninguém sabia me dizer porque você não tinha ido hoje.
foi incapaz de esboçar qualquer tipo de reação. Era como se seu cérebro ainda não tivesse sido capaz de processar a informação.
— Você foi à Trembley?
Ela balançou a cabeça em concordância.
— Tinha uma reunião com o babaca do seu chefe, que por sinal não apareceu e mandou um assistente sem expressão nenhuma no lugar dele.
— Acho que sei quem é - ele murmurou, ainda digerindo a tal novidade. Ela estava em Los Angeles. Ela estava na editora. Mas quem não estava em Los Angeles e muito menos na editora era ele.
Se soubesse que ela iria, teria adiado suas férias sem pensar duas vezes. Cansara de pensar e verbalizar sobre como estava ansioso para finalmente conhecê-la e sabia que a recíproca era totalmente verdadeira.
— Por que você não me disse que iria?
Ela deu de ombros, com um sorriso de canto.
— Queria que fosse uma surpresa. Nem pensei que você poderia não estar lá.
— Tirei uma semana de férias. Caramba, que azar.
— Bom, acontece.
Ambos os tons de voz não poderiam deixar mais claro o quanto estavam, de fato, ambos frustrados.
— Mas como estão as coisas por aí?
— Ah, tranquilas - ele respondeu. — E aí?
— Na mesma.
se assustou com o som da porta do quarto abrindo, olhando para o lado subitamente e se deparando com a figura do pai, fazendo uma careta e pedindo desculpas por ter atrapalhado. No entanto, ele não fez menção alguma de sair.
— É ela? - Perguntou, na tentativa mais falha de toda a história de sussurrar.
segurou uma risada do outro lado.
O mais velho se aproximou, aparecendo na câmera também para observá-la.
— Oi, senhor ! Tudo bem?
Ele encarou o filho, com o cenho franzido.
— Ela está te vendo, pai.
Ele pareceu chocado.
— Meu pai se recusou a ter um celular - ele explicou à garota. — Ele não entende muito bem como funciona.
— Não tem problema - ela assegurou, sorrindo de forma simpática.
O mais velho finalmente acenou de volta.
— Tudo bem, . E você?
— Irritada com o chefe do seu filho, mas bem também.
— Então somos dois. Já falei que aquele cara é um explorador idiota.
— E sem consideração - ela acrescentou.
— Ele faltou a reunião que marcou com ela - explicou ao pai.
— Que filho da puta!
O rapaz fez uma careta, rindo do palavrão tão inesperadamente colocado. gargalhou alto do outro lado.
— Um dos grandes - concordou. — Obrigada por me entender.
O senhor trocou mais algumas palavras com a garota, logo abandonando o cômodo para que os dois terminassem de conversar.
— Seu pai é legal.
— Ele é.
— Vocês são muito parecidos mesmo.
— Que bom que você só falou isso agora, porque ele ia ter se vangloriado por horas e te alugado para explicar todos os pontos em que ele acha que puxei a ele.
— Eu ouviria tranquilamente, só marcar. Aproveita as férias, .
E ele não disse que adoraria aproveitá-las com ela porque, por mais inclinado a romances, gestos e momentos como os dos livros, ainda sabia que a vida real era bem diferente e que aquilo era ser rápido demais e sem noção demais. Não precisava bancar o Ted Mosby emocionado. Tudo o que precisava era ter um pouco de paciência. E, por ela, ele teria.
havia passado seu perfume favorito naquela manhã e já havia conseguido questionar sua decisão ao fazer seu colega - altamente alérgico e com crises de rinite constantes - espirrar repetidamente. Nunca se perdoaria se estivesse fedendo por exagero, por mais que soubesse que havia aplicado pouco.
Também estava usando sua jaqueta predileta e o par de tênis mais novo que encontrou no armário. Havia esperado tanto por aquele momento que mal conseguira dormir à noite, mesmo sabendo abertamente como admitir algo assim era tosco em excesso até mesmo para ele.
Os últimos quinze dias haviam preparado-o para aquele momento. O prazo final da entrega da arte para impressão se aproximava e voltaria à Trembley para apresentá-la oficialmente. Ele tinha até comprado um pacote de chocolate recheado com caramelo salgado, pois sabia que era o favorito dela e ela bem merecia.
— - a voz do chefe o retirou de seus devaneios. — Mackenzie enviou uma alteração nos agradecimentos da obra. Pode repassar para o pessoal da diagramação?
Ele assentiu imediatamente.
— Posso fazer isso logo depois da reunião.
— A reunião foi cancelada, então você pode fazer isso agora mesmo.
sentiu seu coração murchar como se tivessem usado uma agulha para espetar o balão que carregava toda a sua expectativa.
— Como assim?
— A garota acabou de ligar cancelando. Está doente.
O rapaz engoliu em seco, não conseguindo pensar em mais nada além de mandar uma mensagem para ela perguntando de verdade como ela estava. Tinha certeza de que sua preocupação estava abertamente estampada em sua cara.
— Bom, pode voltar ao trabalho - Corey afirmou, antes de abandonar a sala.
puxou o celular, vendo todas as notificações de mensagens dela. Aquela era a primeira vez na vida em que se arrependera dos dias em que deixava o celular completamente silencioso, abrindo mão até do modo vibratório.
“, eu acho que não vou conseguir ir.”
“Me desculpa, eu fiz tudo o que pude. Tomei uns chás estranhos, jantei uma sopa esquisita ontem, fiquei em silêncio completo e tomei os remédios direito, mas eu mal consigo levantar da cama.”
“É uma grande droga que isso esteja acontecendo e eu não poderia estar mais decepcionada. Enviei a capa para o Corey por e-mail. Acho que ele vai repassá-la em reunião para a equipe amanhã.”
“Enfim, vou parar de abarrotar sua caixa de entrada. Desculpa. Mesmo.”
Ele percebeu imediatamente como qualquer sinal de chateação tinha ido para o espaço e dado lugar à preocupação e a uma vontade gigante de poder, de alguma forma, impedir que ela se sentisse mal.
"Não se preocupa com isso. Só se preocupa em melhorar. Quando eu sair daqui, te ligo.”
encaminhou o que Corey havia solicitado para diagramação, enviou alguns e-mails e saiu precisamente no seu horário, tendo praticamente contado os segundos para isso.
Em seu apartamento, tirou a roupa do serviço e tomou um banho rápido. Logo estava sentado em sua cama, clicando no botão que realizaria uma chamada de vídeo.
— Que coisa mais corta clima.
Ele ouviu a voz dela, ligeiramente fanha, mas só via a luz no teto.
— Cadê você?
— Eu estou péssima. Não é assim que a gente se apresenta para as pessoas com quem ainda estamos flertando.
deu uma risadinha nervosa ao ouvi-la admitindo aquilo em alto e bom tom. Ao menos agora tinha a consciência confirmada, literalmente, de que estavam ambos na mesma página.
— Para com isso. Deixa eu te ver.
Ela finalmente se deu por vencida, direcionando a câmera para o próprio rosto. Suas olheiras estavam evidentes e ela estava pelo menos dois tons mais pálida, com o nariz avermelhado em destaque.
— Linda - ele disse.
— Ai, cala a boca - ela ralhou, enquanto ria. — Desculpa mesmo por não ter aparecido. Eu não queria contaminar vocês com os meus vírus. E tenho a impressão de que não ia conseguir chegar em Los Angeles assim mesmo se eu não tivesse o mínimo de bom senso para ficar em casa.
— O que é que você tem?
— Sei lá. Acho que é só gripe, mas ela veio de caminhão e me atropelou.
Ele meneou a cabeça.
— Entendi. E você está tomando remédios?
— Eu estava tomando dipirona só, na verdade. Por causa da dor de cabeça.
sentiu de novo aquele comichão no peito, como um sinalizador aceso queimando intensamente enquanto lhe dizia que ele preferia que fosse com ele, só para que ela não precisasse se sentir daquela forma.
— Você não tem noção de como eu estou chateada por não ter conseguido ir. Sério, que ódio. Não tinha um momento pior para ficar doente.
— Relaxa. Já falei que a única coisa com a qual você precisa se preocupar é com a sua saúde. O resto a gente ajeita.
— Mas é mais um adiamento.
— Vamos ter outras oportunidades - ele disse, enquanto abria a notificação de e-mail novo na caixa de entrada da conta que usava apenas para a empresa.
Era um convite para a festa de estreia do novo livro de Mackenzie Priest e, aparentemente, além dos figurões do ramo e dos influencers literários, a editora tivera o mínimo de respeito e consideração ao considerar os funcionários que trabalharam diretamente com o processo de publicação da obra.
Foi naquele momento que uma luzinha se acendeu em sua cabeça, como fazia nos desenhos. Provavelmente não era o único ali a receber aquele convite.
— Espera aí, eu preciso fazer uma coisa. Eu te ligo daqui a pouco.
— O quê? , espera.
Mas ele já havia desligado, fazendo uma careta por perceber que havia sido um tanto mal educado. Esperava que ela fosse capaz de perdoá-lo ao entender seus motivos.
Abriu o aplicativo de delivery que oferecia a opção de entrega de compras de mercado e farmácia e começou a adicionar ao carrinho as coisas de que precisava. Nas observações da compra, adicionou apenas uma frase, pedindo que ela fosse escrita no cartão cafona que também estava em sua lista. Digitando o endereço dela, recebeu a notificação de que a encomenda seria entregue em aproximadamente trinta minutos.
“O que aconteceu?”
“Fala comigo”
Lutou para ignorar a sensação de culpa por preocupá-la e se ocupou separando as roupas que precisava pôr para lavar. Reorganizou os potes de açúcar, farinha, cacau em pó e sal na prateleira, não se contentando com a ordem apesar de já ter tentado todas as combinações que a matemática permitia. Só descansou quando recebeu a confirmação do aplicativo de que o entregador já havia deixado o pedido.
Retornou a ligação para , torcendo para que ela o atendesse.
— Posso saber o que rolou?
— Ah, você vai - ele disse, com um sorrisinho.
Um barulho um tanto agudo e irritante soou do outro lado. A garota levantou da cama, arrastando-se até a porta.
Os trinta segundos em que ela ficou fora de seu campo de visão haviam sido os trinta segundos mais longos de toda a sua vida.
— Bom, o zelador veio me entregar isso. - Ergueu a sacola de papel reciclado. — Porque disse que sabia que eu estava doente.
— Parece um homem muito atencioso.
— O que é que você aprontou, ?
Ele deu de ombros, ignorando a pergunta e aguardando que ela abrisse.
logo deu uma risadinha.
— Um antigripal?
— É. Você já deveria estar tomando isso há uns dias pelo visto, mas vai te ajudar com esse mal estar.
Ela assentiu, puxando a próxima coisa que encontrara.
— Não acredito que você se lembrou do meu chocolate favorito.
Ele puxou a própria embalagem da bancada da cozinha.
— Eu tinha comprado uma para te dar hoje. Como você não veio até ela, ela vai até você. Quer dizer, não ela precisamente. Ah, você me entendeu.
— Acho que tem mais uma coisa aqui no fundo.
Ela sacudiu o pacote até que o cartão caísse. Virou o papel para ele, mostrando os dois bonecos desenhados dançando de forma estranha.
— O que raios é isso?
— Abre - ele pediu.
— , você aceita ir ao baile comigo?
O rapaz sentiu o próprio coração se acelerando sob o compasso de toda a tensão que havia criado.
— O que é isso, ?
— Bom, vai ter essa festa de lançamento do livro e eu tenho certeza de que você também foi convidada e isso torna tudo menos especial, mas eu sei que você não recebeu um convite decente para o baile. Também sei que este está longe de ser um substituto à altura para reparar a primeira decepção, mas eu só consegui pensar nisso.
Ela abriu um sorriso doce. não sabia se era apenas um reflexo da gripe, mas podia jurar que ela tinha algumas lágrimas nos olhos.
— É perfeito - comentou. — Eu aceito ser a sua acompanhante. Será uma honra.
“Eu juro que já estou chegando. É que tem uma fila enorme de carros e eu me recuso a descer e andar nesses paralelepípedos com esses saltos enormes até aí. Não vou cair na frente das câmeras.”
riu, tentando se obrigar a não imaginar a cena.
“Estou te esperando na entrada.”
Ele podia sentir suas mãos suando frio, enquanto tentava secá-las discretamente contra o tecido grosso do paletó. Até aquela maldita gravata, de repente, parecia apertada demais e prestes a lhe roubar o ar de que precisaria.
Havia esperado por aquele momento por semanas e mal conseguia conter o seu nervosismo. Não acreditava que, depois de tantos desencontros, finalmente aquilo iria acontecer. Tentou se lembrar de inspirar profundamente e expirar de forma lenta até liberar a maior parte do gás carbônico de seus pulmões. Estava tentando sorrir de forma simpática para os convidados que chegavam, mas queria mesmo era tomar o posto do segurança contratado e começar a sinalizar para que os motoristas agilizassem.
Em meio a tantas pessoas parando para as fotos e para cumprimentar seus conhecidos, ele finalmente a viu. Linda. Deslumbrante. Fascinante. Exatamente da forma que ele já esperava que ela estaria.
Os cabelos caíam em ondas, da forma pela qual ele se encantara desde a primeira vez. A maquiagem leve permitia que o vestido dourado se consolidasse como ponto de atração visual, fazendo-a brilhar com ainda mais facilidade no meio daquele salão.
Já era difícil o suficiente evitar que o queixo caísse enquanto a observava tão perfeita e tão presente, em carne e osso, logo ali na sua frente. Quando ela sorriu para ele, então, seu coração despencou junto com a sua mandíbula.
Ele não sabia o que fazer ou o que dizer, além de sorrir de volta. Por sorte, parecia mais sã do que ele e correu para ele, aproveitando-se da altura extra conferida pelos saltos para passar os braços por volta de seu pescoço, abraçando-o apertado.
— Finalmente - sussurrou, ainda ali. tinha sentido cada uma daquelas letras ressonando pelo seu próprio corpo por estar em contato tão próximo quanto o dela.
Parecia até mentira. Depois de tanto esperar, de alguma forma, mesmo com toda a paciência e esperança do universo, a perspectiva de que aquele momento realmente acontecesse por vezes se tornava algo mais parecido com um sonho distante carregado de desejos ilusórios do que algo que realmente poderia acontecer.
Mas era verdade. Ele sentia a realidade daquilo pesando sobre seu tato, conforme cada um de seus dedos se ajustava à sua cintura e seu pescoço parecia se encaixar no vão entre o ombro e o colo dela. Finalmente.
Quando, por fim, decidiram se separar, entrelaçaram os dedos e caminharam em direção ao salão. estava contando sobre o episódio da escolha do vestido e de como a vendedora parecia prestes a chutá-la da loja quando percebeu que ela continuava desinteressada pelas peças após provar mais de dez delas. estava tão atento a cada uma de suas palavras que mal percebeu o chefe se aproximando.
— , - Corey os cumprimentou. — Essa é Mackenzie Priest, nossa admirável autora.
O rapaz se segurou para não fazer uma reverência vergonhosa, limitando-se a sorrir abertamente.
— É um prazer conhecê-la - assegurou, sendo seguido por uma confirmação de .
— Mackenzie, esse é o meu estagiário estrela. Foi ele quem encontrou a garota que fez as suas ilustrações.
— Acredito que deva lhe agradecer, então, . Fez um ótimo trabalho me dando a oportunidade de ter essas artes maravilhosas passando exatamente tudo o que eu esperava da minha obra.
sorriu, sem jeito. Não estava acostumada a receber elogios sem seu pseudônimo como muralha de proteção.
— E é por isso que ele mereceu essa efetivação - Corey prosseguiu. — Segunda de manhã assinamos seu novo contrato.
A garota apertou a mão dele um pouco mais, tentando demonstrar toda a animação que sentia por ele.
— Isso é sério?
— Ora, claro que sim! Não foi o que combinamos? Te dei uma tarefa e você a cumpriu maravilhosamente. Temos um acordo?
— Sim, sim, é claro - respondeu, engasgando um pouco nas próprias palavras.
— E, , com certeza iremos querer trabalhar com você novamente em obras futuras.
Ela assentiu, concordando.
— Será um prazer.
Corey e Mackenzie se afastaram, deixando os dois jovens pulando animadamente em seus lugares, ignorando o que poderiam pensar todos os outros convidados ao seu redor. Afinal, depois de tudo pelo que tinham passado, mereciam ter aquele momento só para eles.
— Precisamos beber para comemorar - ela disse.
— Pelo que ouvi, tem várias bebidas caras sendo servidas no bar.
— Então vamos precisar experimentar cada uma delas.
gargalhou, concordando.
— Já tem onde passar a noite depois daqui?
Ela deu de ombros.
— Depois eu vejo.
— Bom, sempre tem espaço no meu apartamento.
— Um brinde a isso - ela respondeu, erguendo sua bebida antes de tomá-la.
Com um sorriso de canto, ele assentiu, erguendo o próprio copo em um brinde àquilo. A eles.
FIM
Nota da autora: Eu amo tanto essa música e, desde a primeira vez que ouvi, só consegui pensar em um relacionamento que se consolida virtualmente e na paciência até que ele possa sair de uma tela. Não sei se conseguir passar isso para vocês, mas espero que tenham gostado de mais esse ficstape.
Por favor, deixem comentários aí, no grupo do face, no do whatsapp, no meu privado, MAS VAMOS CONVERSAR, EU SOU CARENTE.
Sem mais delongas, espero que tenham gostado e, se você chegou até aqui, eu agradeço profundamente por me dar uma chance. Espero te receber aqui mais vezes.
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
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03. Take A Chance On Me
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04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Robot
11. Nós
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12. Wild Hearts Can't Be Broken
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14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
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MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallflower
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