Capítulo Único
- Somos um só povo e uma só nação. Unidos caminharemos ao progresso! – Isaac West bradava, estendendo o seu braço como em um grande manifesto, mesmo que fosse o mesmo discurso nacionalista repetitivo de sempre. Algo que se debruçava sobre um ideal democrático libertário contraditório e um ar conservador que muitos preferiam relevar. Talvez fosse mesmo melhor viver assim, já que o crescimento econômico do país havia sido notório desde que seu mandato iniciara. Afinal, qual era o problema de um governo se o país prosperava mundialmente? Qual a reclamação a ser feita quando toda uma elite estava incrivelmente satisfeita com seus bolsos gordos cuspindo notas verdes com desenhos de pessoas supostamente importantes cujas histórias eles praticamente desconheciam? Estava tudo perfeito!
O presidente Isaac West havia sido eleito com uma parte considerável dos votos, derrotando seu oponente por uma larga margem de apoio. O antigo empresário tinha conquistado seus eleitores com um discurso sobre prosperidade e um charme irrefutável emoldurado pelos cabelos grisalhos cuidadosamente cortados e pontualmente desajeitados e acompanhado pela triste história de sua viuvez. Chegava a ser ridícula a quantidade de fotos que circulavam do governante em páginas de “homens bonitos” em redes sociais.
Seu filho Keegan não ficava atrás: já havia sido capa de revistas adolescentes inúmeras vezes – coisa que desagradava um pouco aqueles que tinham em mente a necessidade de separar as pessoas públicas daquela exposição um tanto sexualizada. Tinha algo entre vinte e trinta anos e uma faísca de juventude que o fazia ser centro das atenções de sites e veículos de fofocas com uma frequência impressionante. Garoto problema, com uma horda de fãs obcecadas pelo seu talento de sair incrivelmente bem em todas as fotos que tiravam dele.
revirou os olhos rapidamente ao ouvir os aplausos e as exclamações fervorosas dos apoiadores do governo West. Seus braços permaneciam cruzados atrás do próprio corpo, com a coluna totalmente ereta de forma impassível. Seu semblante era duro como uma pedra e frio como um iceberg prestes a afundar um gigantesco navio completamente carregado. Ela estava completamente cansada de toda aquela falsidade e aquela ideologia de construção de imagens para câmeras. Estava farta dos elogios sem fundamento e das lágrimas a cada vez que o presidente mencionava a falta que sentia de sua falecida esposa, adicionando um drama muito maior ao triste momento de sua morte. Tudo artificial. Tudo frágil. “Ah, se eles soubessem...” , pensava ela, mantendo sua posição oficial entre os seguranças particulares dos West.
Só Deus – ou qualquer que fosse a divindade real, se é que ela realmente existia – sabia as grandes blasfêmias sexistas que havia ouvido por ser uma mulher em um cargo tão importante e grande como a líder da segurança oficial do presidente da maior potência mundial. Nada de mais, além do título que a declarava uma das maiores agentes que esse planeta inteiro já vira. Mas eles inventavam qualquer porcaria sobre seu potencial. Mulheres em posições altas como aquela incomodavam uma sociedade que fora estruturada para mantê-las longe de qualquer igualdade em relações de poder e machucavam ainda mais os egos frágeis se ela atingisse um patamar de determinada superioridade. sabia bem como era enfrentar tal situação.
e os demais seguranças da equipe abriram caminho para que Isaac e Keegan descessem do púlpito e caminhassem à sua frente, acenando para o povo. A equipe tinha que se esticar às vezes na tentativa de impedir que encostassem na família West ou causassem algum transtorno maior.
Chegando à grande casa que servia de habitação para o presidente e sua família, o grupo de seguranças se desagrupou, ocupando seus respectivos postos na área externa de forma a vigiar todo o perímetro da residência. Assim, mantinham a segurança o mais eficiente possível, deixando que os empregados de extrema confiança fizessem seus serviços sob supervisão da chefe da “guarda”. A oficial era criteriosa, rígida e, principalmente, segura de si e de seu trabalho.
- Foi um grande comício, não acha, ? – Isaac West perguntou em alto e bom tom, afrouxando o nó da gravata listrada e abrindo os primeiros botões da camisa social azul clara. Sorria tendo a certeza íntima de que qualquer mulher se derreteria por aquele gesto.
- Com certeza, senhor presidente – respondeu séria. – Foi uma aparição pública de grande êxito.
- O povo não poderia estar mais satisfeito, . O aumento nas tarifas de importação de aço fez nossa indústria nacional obter um salto incrível. Os grandes exploradores de jazidas de carvão e petróleo estão lucrando dez vezes mais com a substituição das leis ambientais. Nosso governo potencializou todas as funções e capitais da nação. É o mandato mais próspero dos últimos cem anos. Nosso PIB per capita está nas nuvens.
- E nossa distribuição de renda no subsolo – adicionou a mulher, com a sobrancelha erguida em desafio.
Isaac riu alto, como se houvesse acabado de ouvir a melhor piada de sua vida. se obrigou a acompanhar o gracejo, de maneira comedida, evitando levantar intrigas ou suspeitas. Era melhor mesmo que ele pensasse que as indiretas irônicas eram simples brincadeiras.
- A voz dos pobres é muda, minha cara. A voz dos ricos, por sua vez, está gritando em multidão. Se meu eleitorado está contente, o país está contente e eu, principalmente. Será o maior legado que esse mundo já conheceu. O nome West será estudado por todos os futuros jovens ao redor do globo. Terão que saber de cor todas as hábeis medidas que me levaram ao alto reconhecimento histórico.
- Tem toda a razão, senhor presidente – ela concordou, acenando com a cabeça. – Será o homem de maior notoriedade política do último século. Talvez do último milênio.
- Só fico atrás de Jesus Cristo, . Infelizmente, ainda estou perdendo para o Senhor. Mas não por muito tempo – disse, por fim, rindo enquanto subia as escadas da mansão em direção aos seus aposentos.
I never trust a narcissist
(Eu nunca confio em um narcisista)
But they love me
(Mas eles me amam)
So I play 'em like a violin
(Então eu os manipulo como um violino)
And I make it look oh so easy
(E faço parecer tão fácil)
'Cause for every lie I tell them
(Porque para cada mentira que eu os conto)
They tell me three
(Eles me contam três)
ouvia seu subconsciente desdenhar da postura de superioridade de Isaac. Toda aquela imagem de homem bom e pai da cidadania cairia imediatamente se ouvissem aquele discurso elitista, aristocrático e ridiculamente presunçoso. Ou não. Infelizmente, ele estava certo ao dizer que a influência massiva do país estava de seu lado.
A agente recebeu um sinal em seu comunicador, anunciando a entrada autorizada de alguém na residência: o que implicava diretamente familiares, outros políticos ou parceiros diretos do governo West que já tinham permissão oficial para comparecer à mansão da presidência durante o dia. Observou o horário em seu relógio, calculando precisamente de quem se tratava a chegada: , um dos principais conselheiros de relações externas do presidente, ficando atrás somente para Friedrich – braço direito, esquerdo e, possivelmente, as duas pernas de Isaac.
- Boa tarde, agente – anunciou ao abrir a grandiosa porta frontal. Onde está o presidente?
- Subiu, provavelmente foi tomar um banho para se limpar dos germes do povo que adquiriu no comício.
O conselheiro soriu, meneando a cabeça.
- Eu assisti ao pronunciamento pela televisão. Realmente emocionante. Suponho que ele tenha achado maravilhoso o suficiente para voltar à exibição proposital a você.
esboçou uma careta de desprezo, relembrando as inúmeras iniciativas indiscretas e escancaradas que o presidente havia jogado para ela. Costumavam vir antecedidas de um longo discurso sobre o infinito amor que Isaac sentia pela antiga esposa e sobre como sua morte o afetava diariamente. A falta da companheira, no entanto, dizia ele, era apenas um sinal constante de que ela com certeza iria querer que ele seguisse em frente e fosse feliz, permitindo-se ao amor e aos prazeres novamente. A agente perdera completamente as contas de quantas vezes ouvira aquela balela sem fim. Perguntava-se a quantas tantas outras mulheres ele infernizava com aquela anedota de piedade. Tinha pena daquelas que haviam comprado a imagem.
- É um exímio mentiroso. Com certeza serve bem para o papel a que se presta.
- Pelo menos você não fica assim tão atrás – brincou, zombeteiro.
- As omissões que faço não valem por três mentiras dele. Estou cansada de todo esse ciclo interminável de narcisismo e falácias.
- Você é a protegida escolhida. Não que seja uma boa ideia. Imagine só se ele descobre que você sequer é natural daqui.
This is how the world works
(É assim que o mundo funciona)
Now all he thinks about is me
(Agora eu sou tudo o que ele pensa)
- – Keegan chamou, descendo as escadas sem camisa, com o cabelo bagunçado. Qual era a droga do problema daquela família com o uso dos próprios corpos? – Sabia que tinha escutado a sua voz. Pare de amolar a e suba para esperar meu pai no escritório.
concordou, acenando e se afastando dos dois. respirou fundo, preparando-se para a segunda rodada de insinuação gratuita da tarde.
- Sempre acho que esse cara dá em cima de você na cara dura – o jovem West comentou, bagunçando os cabelos ainda úmidos pelo banho recente. – Não gosto disso.
- Tenho certeza de que é impressão sua, senhor West – declarou, mantendo os braços firmemente cruzados.
- Espero mesmo que seja – Keegan adicionou. – Não gostaria de ter que te dividir.
- Com o perdão da palavra, mas não sou sua para me dividir, senhor West – alfinetou a agente, com um delicado sorriso na tentativa de conciliar uma singela amenização da situação com uma ironia tão densa quanto uma pedra de chumbo.
- Ainda não. Mas um dia será. não ficará no caminho do que eu quero.
- Como desejar pensar – respondeu, mantendo o sorriso frio. – Sinta-se à vontade, senhor West.
I never trust a playboy, but they love me
(Eu nunca acredito em um playboy, mas eles me amam)
So I fly 'em all around the world
(Então eu os faço viajar ao redor do mundo)
And I let them think they saved me
(E eu os deixo pensar que me salvaram)
They never see it coming what I do next
(Eles nunca conseguem saber o que eu farei depois)
This is how the world works
(É assim que o mundo funciona)
You gotta leave before you get left
(Você precisa abandonar antes de ser abandonada)
Keegan colocou as chaves de seu carro esportivo no bolso da bermuda, pegando uma camisa qualquer – que havia sido abandonada no sofá mais cedo com a certeza de que tinham empregadas que levassem a vestimenta até o seu armário – antes de sair. O West mais jovem não fazia nada em casa além de atrapalhar o trabalho dos funcionários da mansão com mais bagunça, ordens e uma falta de sossego infernal que já havia feito vários trabalhadores pedirem demissão por não suportá-lo.
Não era um rapaz fácil e realmente duvidava que ele pudesse ter sido algum dia. Cogitava sentir algum tipo de pena ou compaixão pelo jovem por saber que o pai jamais havia se importado realmente com ele. Provavelmente nunca conhecera o amor paterno devido à ausência do homem sob o pretexto da profissão – ou pela própria negligência familiar. A morte da mãe caíra como o peso de todo um universo sobre os seus ombros: a única evidência rasa de afeto que tivera estava em algum lugar totalmente distinto nesse momento. Ao menos, era assim que ele preferia pensar; era minimamente reconfortante.
No entanto, no fundo, tinha a plena certeza de que o rapaz usara de sua prepotência, arrogância e superioridade financeira e social para fazer o mal à sua própria forma. Fosse uma piada preconceituosa ou o escape fácil de situações que poderiam levá-lo diretamente ao tribunal, Keegan tirara proveito de suas condições para causar transtornos e discórdias com a desculpa de ter sua dor infinita incompreendida. E, assim, lembrava-se de que pai e filho cairiam juntos, como Titãs derrotados. E ela estaria logo na base da grande ladeira, assistindo à queda com muito gosto.
*****
A agente caminhava em círculos pelo amplo hall de entrada da mansão dos West. A madrugada tinha chegado a seu momento mais escuro, fazendo com que a fraca luz da lua, encoberta por um céu levemente nublado, refletisse minimamente nos parapeitos e rodapés de mármore claro. A mulher não poderia dizer que o silêncio e a solidão naquele lugar, por fim, não lhe agradava infinitamente.
Estaria mais calma, no entanto, se não tivesse que aguardar o comando exato para entrar no escritório doméstico principal do presidente. O homem confiava tão cegamente em seu trabalho – cego talvez por estar mais preocupado em olhar para as suas coxas cobertas pela justa calça preta – que a dava acesso livre a todos os cantos sem sequer levantar suspeitas sobre isso. Se ela precisava adentrar algum cômodo mais reservado, dizia que era por suspeita de algo e tudo era automaticamente creditado e esquecido. O resto da segurança a respeitava e a invejava por isso. Muitos dos agentes haviam entrado em ferrenhas discussões sobre a posição de uma mulher dentro daquela casa. Deveria ser um deles, afinal. O trabalho era muito mais produtivo quando feito por um homem competente, já que aparentemente era a testosterona que executava suas profissões e cargos. se irritava com os comentários, mas, de repente, percebeu que o incômodo que causava era fruto de sua própria competência. As críticas e mentiras eram como aplausos em sua face pelo trabalho esplêndido que realizava.
De repente, ouviu um baixo, mas estridente, apito em sua orelha. A hora havia chegado. A interferência no aparelho mostrava que tinha conseguido habilmente invadir o sistema de segurança. ria ironicamente ao perceber como todas aquelas tecnologias de ponta que o país fornecia ao Estado poderiam ser derrubadas em questão de segundos. Tão belas, caras e complexas e ao mesmo tempo tão abertas a falhas. Com um toque, alterou o canal do ponto, ouvindo a respiração calma e compassada de do outro lado da linha.
Abriu a porta do escritório cuidadosamente, mantendo-a entreaberta para evitar que a maçaneta ameaçasse algum barulho mais alto e permitindo que escutasse mais facilmente quaisquer movimentações no corredor. O escritório era afastado o suficiente dos quartos de Isaac e Keegan para que não a ouvissem. Tudo correria bem assim que sua mão parasse de suar.
- Como vai nessa bela noite, ? – perguntou, em seu tom brincalhão e desafiador de sempre. Ele era capaz de instaurar a tensão sexual latente entre eles só ao falar daquele jeito.
- Sem joguinhos, . Não temos tempo para isso. Estou na frente do computador, coordene-me.
O conselheiro de relações externas era, por coincidência, um amante incompreendido da informática, sendo lembrado pelo presidente quando este tentava utilizar algo daquela “nova geração robótica”, como amava dizer a quem pudesse ouvir. Foi assim que Isaac, perdido com o novo computador que tinha um monitor de tela mais ampla que a maioria das televisões por aí, recorreu a seu colega para ajudá-lo na execução do aparelho e na proteção do mesmo.
- Isaac guarda todos os contatos eletrônicos e documentos nessa máquina. Seja cautelosa, – ele dizia. – Você provavelmente encontrará muito mais do que deseja. Deve ser objetiva ao acessar os documentos. Com certeza há mais podres aí do que você sequer pode imaginar. Tenha foco para ir atrás do furo que está procurando. Não se distraia. O canal de comunicação fantasma que criei pode ser prejudicado a qualquer instante. Está com o pen-drive codificado que lhe dei?
- Claro que estou. Comece.
- Certo. O computador tem três fases diferentes de identificação. São ridículas, se me permite dizer, mas seu patrão tem o QI tão avançado que pediu pelo esquema de perguntas e respostas comum em vez de um sistema realmente complexo. Eu poderia fazer essa máquina ser a mais segura do país, mas esse velho retardado prefere perguntar qual sua comida preferida.
riu, revirando os olhos. Deveria ter imaginado que Isaac faria algo desse tipo.
- Aperte qualquer tecla e ele te mostrará o primeiro comando. São perguntas pessoais e idiotas. Na ordem, comida favorita, cor preferida e nome do meio da falecida esposa.
A agente, ainda desacreditada da estupidez daquilo tudo digitou: “tacos, vermelho, Linda”. Só percebeu a ironia que era o presidente lutar tanto contra a imigração quando teve de digitar abertamente seu amor pela comida estrangeira. Um homem que queria impedir a destruição de sua própria cultura, mas adorava almoçar tacos extra picantes. Não é à toa que ele sempre pedia que ela comprasse as tortillas escondida. Mal acreditava que treinara anos para terminar se disfarçando em barracas de fast-food de rua.
- Siga, . Segunda etapa.
- Perdi duas horas tendo que ensinar esse código maldito para ele – reclamou só de se lembrar da segunda etapa. – É a substituição de letras pelo número de suas posições no alfabeto. Ele decidiu escrever o primeiro nome do filho para não se perder.
começou a contar rapidamente e preencher os campos simultaneamente: 11557114.
- Próxima, . E rápido.
- Não precisa se apressar, agente. Você está perto demais para deslizar agora – zombou, sabendo que isso a irritaria profundamente, afinal, não cometia erros. – Terceira e última etapa. Você não vai acreditar. – ria abertamente agora. – Isaac é tão obcecado por você que colocou o seu nome na última senha, justificando que era porque ninguém sabia os nomes de seus funcionários da segurança exceto por ele próprio. Talvez eu acreditasse nessa história linda se não soubesse muito bem dos assédios sem fim.
se sentiu extremamente violada ao ter de digitar o próprio nome naquele campo branco. Aquela perseguição a enojava. Os olhares daquele homem sobre o seu corpo e a intenção de posse com que o herdeiro dele a tratava já havia passado do seu controlado limite de tolerância há tempo demais. Mas aquilo acabaria logo. Com sorte, em pouco tempo estaria livre de toda aquela merda.
- Obrigada, – avisou. – Posso seguir daqui agora. – Desconectou seu ponto do canal fantasma, retornando para os ruídos do canal da segurança antes de conectar o minúsculo USB no computador.
Pela ferramenta de busca nos e-mails e documentos, procurou por “venda” e “armas” como palavras-chave e encontrou muito mais resultados do que esperava. Selecionou o máximo de coisas que podia e copiou para o pen-drive, tomando o cuidado de não alterá-las ou apagá-las sem querer.
Ao retirar o dispositivo da máquina, desligou-a de forma cautelosa, tendo certeza de que não deixara rastros. Mesmo se algo tivesse ficado para trás, era tarde demais para eles.
Retirou-se do escritório sem fazer barulho algum, tendo a certeza de que a porta se encontrava milimetricamente na mesma posição em que estava antes de abri-la. Foi quando ouviu um som alto de algo caindo e colocou o pequeno dispositivo no bolso e saiu correndo em disparada para o andar de baixo.
Ao chegar ao fim da escada, encontrou Keegan jogado no meio da sala de estar, totalmente atirado no chão como se tivesse sido arremessado daquela forma ali. O rapaz gemia baixinho, como se reclamasse de dor.
- Droga – murmurou antes de virar o corpo do garoto, que agora tinha um corte no supercílio liberando finos filetes de sangue. – Senhor West, fale comigo. O que aconteceu?
O rapaz soltou outro gemido de dor quando a mulher soltou seu corpo sobre o sofá, saindo em disparada para pegar o kit de primeiros socorros que mantinham no lavabo da entrada.
- Aonde você se meteu para voltar destruído desse jeito? – tentava fazê-lo falar algo, preocupando-se que a pancada na cabeça pudesse ser mais séria do que previra. Limpou o corte com calma, sentindo a respiração do garoto mudando conforme sentia a dor da pressão sobre o machucado e do contato da gaze diretamente contra a pele recém-aberta.
O cheiro de álcool que emanava do corpo quase inerte de Keegan era enjoativo de tão forte. O odor já volatilizara tanto que era possível pensar que ele havia sido banhado a etanol em vez de ter simplesmente o ingerido em bebidas alcóolicas. Coisa que, obviamente, ele tinha feito muito além dos supostos limites.
começou a revirar os bolsos do rapaz, percebendo a ausência de seu celular e de sua carteira. Retirou a camisa de Keegan desajeitadamente pelo pescoço ao notar marcas vermelhas em seu ombro, embrenhando-se ao redor de sua cervical.
- Quem bateu em você? Eles levaram as suas coisas. Você sabe quem te assaltou?
- N-não sei – ele respondeu a muito custo, contraindo os músculos da face pela dor de verbalizar algo. – Eu não consegui ver. Mascarados.
- O senhor bebeu demais. Tenho certeza que sabe disso.
Keegan mexeu a cabeça levemente, concordando.
- Não reagi. Muita dor.
A agente buscou alguns remédios para dor e relaxantes musculares, estendendo-os com um copo de água e torcendo para que o álcool não fosse capaz de destruir totalmente seus respectivos efeitos.
- Venha – disse, estendendo o braço para que ele se apoiasse. – Vou levá-lo ao seu quarto. O senhor precisa descansar.
Keegan subiu as escadas despejando quase todo o seu peso sobre os ombros treinados de . O percurso foi custoso e lento, demandando extremo cuidado para que os pés inebriados do rapaz não perdessem algum degrau e o deixassem ainda mais ferido do que já estava.
Chegando a seu enorme quarto, o rapaz praticamente se jogou na cama, marcando o colchão com o sangue que secava em seu rosto. o puxou de volta, arrastando-o até o banheiro para lavá-lo de toda aquela sujeira.
Keegan sentou no chão do box, resmungando como uma criança mimada – que no fundo, ele acabava realmente sendo. Fez birra por longos minutos até que a água escorresse por seu rosto, fazendo com que ele saísse minimamente daquele estágio e começasse a transformar seus resmungos em reclamações de verdade.
- Por que você se importa? – Ele esfregava o rosto, percebendo finalmente o corte.
- Porque esse é o meu trabalho, senhor West. E, apesar de você ter se ferido longe de qualquer possibilidade que eu pudesse ter de te ajudar, é parte do que faço cuidar de você quando chega nesse estado deplorável. Foi um assalto?
- Uma briga – respondeu. – Mas eles levaram os meus pertences, então você pode chamar de assalto. E se for começar a passar sermão sobre a briga, saiba que eu já ouvi vários de minha mãe enquanto ela estava aqui e não preciso que a segurança do meu pai cumpra esse papel agora.
- Como o senhor mesmo disse, esse papel não cabe a mim. Só acho que deve tomar cuidado tanto pela sua própria saúde quanto pela imagem pública que representa como filho do presidente. Infelizmente, mesmo que o cargo não seja seu, você faz parte de tudo que permeia esse universo agora e a imagem familiar do seu pai depende de você também.
- Sinceramente, ? Eu quero mais é que a imagem familiar ou presidencial do meu pai se fodam. Eu quero que esse homem desgraçado se foda. Ele não pode simplesmente ir a público e falar da importância da família se sempre agiu como se não tivesse uma. Não tem o direito de dirigir a palavra a mim em um tom mais alto depois de me negar a sua presença durante todos esses anos. Ele é um merda. Você já devia saber disso já que trabalha tão perto dele.
percebeu o rumo estranho e um tanto tenso que a conversa começava a tomar. Apesar de saber que Isaac era uma negação absoluta como pai, aquele desabafo era bem mais profundo do que os xingamentos a que ela havia se acostumado a ouvir.
- Por que diz isso? – A agente ligou o pequeno gravador acoplado a seu relógio, torcendo pra que alguma informação útil fosse dita ali.
- Porque ele é, . Ele mente, ele engana, ele rouba e faz você amá-lo mesmo assim. Ele faz você se sentir culpado por não ser bom o suficiente para ele, sendo que você só é ruim porque ele lhe tirou tudo. Até hoje eu não sei como um homem tão podre como ele conseguiu assumir a presidência de um país que se julga tão inteligente quanto o nosso. Você vive com ele. Deve saber das coisas que ele já fez em serviço. Com certeza é só mais uma cega viciada no dinheiro que aquela mente maníaca consegue produzir.
respirou fundo, engolindo em seco, tentando se manter completamente impassível, sem esboçar reação alguma.
- Não faço ideia do que esteja falando, senhor West.
Keegan soltou uma risada nasalada de uma forma tão irônica que seu desgosto poderia quase ser palpável pelo ar.
- Ele recebeu milhões em propina de vários grandes empresários, principalmente os ligados à mineração e os produtores de energia fóssil, para financiar a campanha eleitoral e para comprar alguns benefícios fiscais que ele colocou sob panos quentes sem dar satisfação a ninguém. Ele tem tanto dinheiro em contas estrangeiras que poderia ter um desses paraísos fiscais fundado com seu nome em homenagem. Além disso, comprou o silêncio dos ambientalistas. Tentou até me comprar quando eu ameacei contar tudo isso. Acredita nisso? O próprio filho.
Keegan socava os grandes e claros azulejos do banheiro, numa vã tentativa de extravasar toda a incondicional raiva que sentia por ser obrigado a lidar com aquela situação toda ao longo dos últimos anos. agarrou-o pelos pulsos, aproveitando-se de sua força debilitada pela bebedeira recente que ainda latejava por seus vasos sanguíneos.
As lágrimas começavam a rolar furiosamente pelo rosto do rapaz, acompanhada por uma risada amarga que fazia sua garganta doer. Todo o rancor e a raiva que aprisionara dentro de si parecia querer vir à tona como uma bomba relógio que havia desistido de manter aquela infindável contagem regressiva.
- Eu não sabia que você vinha enfrentando esse tipo de coisa, senhor West – os duros treinamentos para profissionalizar os melhores agentes haviam roubado de boa parte de sua sensibilidade. No entanto, aquela situação acabara por se tornar uma das raríssimas vezes em que sua piedade falava alto o suficiente para que ela fosse obrigada a lhe dar atenção mesmo que efêmera. – Eu realmente sinto muito.
Keegan fungou profundamente, esfregando o rosto ferido avidamente. Só Deus sabia o quanto ele odiava viver daquela forma. Ou talvez nem Ele, considerando que a fé fora uma das primeiras coisas das quais ele desistira completamente ao ter de lidar com o luto da mãe e presente ausência de sua suposta figura paterna. A dor o fizera cético. A falta de esperança o fizera desistir. E, por mais que não justificasse sua postura, tornara-se um produto de seu meio.
- Pensei que você soubesse – o jovem admitiu. - Ele sempre se gaba dizendo que você corre atrás dele feito uma cadela no cio. Já tirou completamente sua autoridade em algumas reuniões com outros políticos dizendo que se ele estalasse os dedos, você apareceria logo atrás no mesmo instante, pronta para atender a qualquer uma das ordens dele.
teve que se afastar do rapaz ao tentar digerir tais palavras. Sabia de todos os preconceitos ridículos do presidente ao se colocar em um pedestal de superioridade absoluta em relação a qualquer um. Mesmo assim, estaria mentindo se dissesse que não estava um pouco chocada e muitíssimo irritada.
- Tem remédios para a dor em seu criado-mudo – disse a agente, fria como um iceberg. – Se precisar de alguma coisa, pode me chamar pelo comunicador.
Keegan murmurou qualquer coisa em concordância, arrastando-se até sua enorme cama de casal king size. Ao checar que ele tinha adormecido, seguiu seu caminho mais tranquila, mas não menos revoltada.
Esperou o horário de sua troca de turno na guarda para correr para o quarto que mantinha aos fundos da mansão, próximo aos cômodos designados aos demais empregados e, por isso, extremamente próximos da cozinha e da lavanderia. Típico.
Pegou o notebook que havia lhe fornecido, o mais limpo e intocado possível para evitar maiores rastros. Conectou seu diminuto pen-drive à entrada USB, abrindo os arquivos copiados um por um e correndo os ágeis olhos por aquelas linhas de e-mails trocados, pelos documentos assinados e todos os acordos comerciais internacionais. Tudo que ela suspeitara havia se tornado uma realidade escancarada logo em frente aos seus olhos e parecia infinitamente pior ter de encarar os fatos agora.
Isaac passara toda a sua candidatura e seu período de mandato discursando sobre a necessidade de se evitar a guerra e como a falta de civilização e a falta de acesso à tecnologia eram as causas chave de toda a barbárie oriental que estampava os noticiários: fundamentalismos, polarizações político-religiosas, miséria, guerra, ataques terroristas, genocídios, disputas armadas por água e recursos... O presidente adorava listar sua sequência decorada de fatos de conhecimento geral totalmente desconexos só para reafirmar a superioridade intelectual de seu país. Fundamentava, às custas das catástrofes externas, o seu nacionalismo conturbado. Aproveitava para reafirmar todo o seu apoio à paz mundial.
O que via, no entanto, era uma história completamente diferente: acordos diretos com os grupos fundamentalistas do Oriente guardados a sete chaves. As finanças acesas na tela em sua frente esclareciam aquilo que ela já suspeitava: transações milionárias em compras de armas e tecnologias de guerra. Toda a barbárie que Isaac adorava criticar era financiada por sua própria produção e comércio armamentista. Tudo isso fruto de uma hipocrisia sem fim.
Além disso, acabara salvando alguns arquivos do setor financeiro que reforçavam o desabafo de Keegan: todas as contas do nomeado caixa 2, mostrando as entradas duvidosas de quantias altas demais para serem simples doações pela boa vontade de alguém. Tinham tantos zeros naqueles extratos que uma potência de dez seria incrivelmente bem-vinda se a matemática tivesse cogitado uma obviedade dessas.
se lembrava do momento de sua contratação. Tinha clara em sua mente a cena do acordo final que oficializava aquele pacto de segurança e proteção da vida do líder político mais importante para todo o cenário mundial devido à bandeira que tremulava às suas costas. Um homem tão pequeno mantendo o controle de uma nação tão grande. Era no mínimo uma piada em escala global. O presidente Isaac West acreditara totalmente no trabalho dela, de olhos fechados e com as mãos atadas às costas. Mesmo que grande parte daquela confiança fosse consequência das insinuações sexuais e da noção de superioridade masculina dele, ela ainda existia. O fato é que não se importava. Ao menos, não mais.
If a man talks shit then I owe him nothing
(Se um homem fala merda, eu não lhe devo nada)
A agente revisou os documentos, tendo a certeza de separá-los por importância e tema em pastas incrivelmente específicas no pequeno pen-drive. Seu trabalho estava completo, reafirmando tudo aquilo pelo qual ela passara anos treinando. O que viesse depois não importava de verdade, pois toda a sua vida havia sido construída para aquele momento. Uma grande missão, um grande feito e estaria realizada enfim. Era só disso que ela precisava. Era excitante e um tanto assustador sentir seu objetivo palpável entre as pontas de seus dedos.
pensava em seus pais, lembrava-se de seus familiares e se perguntava se sentiriam orgulho dela. Questionava-se sobre o orgulho de seu país e de seus professores. Talvez não tivesse os melhores métodos, mas com certeza tinha alcançado sua meta e, ao fim do dia, só isso importava.
Ela sorriu, satisfeita, antes de respirar fundo, tentando absorver tudo que fizera para chegar até ali. Segurava com força o pequeno dispositivo em suas mãos.
- Isaac West, você vai cair.
*****
Uma semana depois...
entrou rapidamente pela grande porta da mansão West, que estava completamente escancarada há bons minutos. As notícias dos grandes sites tinham causado um tumulto tão colossal que todos os conselheiros e senadores estavam ali reunidos – ou, pelo menos, aqueles que sabiam que teriam o nome prejudicado se Isaac caísse.
Artigos completos vazaram por jornais e sites de renome, liberando toda a documentação pessoal do governo, bem como as mensagens e o trânsito financeiro dos acordos. O armamento oriental e o esquema de propina já estavam espalhados por todo o mundo, não importava o quanto a corja presidencial tentasse derrubá-los agora. Era tarde demais. Não poderiam afirmar com certeza quem havia vazado aquelas informações, mas cercaram a maior suspeita. Aquela que julgavam capaz de ter fornecido abertamente as informações roubadas, necessárias para que todo aquele constrangimento fosse exposto e a farsa fosse apresentada a todo o mundo.
- Isso é um absurdo! – Isaac gritava, esmurrando repetidamente a grande mesa de pedra branca. – Eles não podem me caluniar dessa forma! Eu vou processar todos eles e destruir toda a carreira jornalística desses merdinhas. Eles não podem fazer isso com a minha imagem! Eu sou o presidente! O povo não vai acreditar em nada disso!
se segurou para não soltar uma alta risada. Só alguém muito prepotente para acreditar que ninguém seria consciente o suficiente para acreditar em provas óbvias e concretas. Era óbvio que ele ainda teria várias pessoas ao seu lado, fora isso que a era pós-verdade fizera – ou ao menos ampliara. Mas acreditar que sairia impune após tantas provas penduradas à vista de todas como em um varal de uso público? Tinha que ser realmente muito seguro de si. E com uma segurança sem consistência ou motivos reais.
Os senadores andavam de forma quase desesperada pelos aposentos da mansão. Pareciam um enxame de abelhas desesperadas atrás de sua rainha, sem saber ao certo se era realmente essa a melhor escolha a se tomar naquele momento específico. Talvez fosse melhor fugir. Talvez devessem entrar no primeiro avião para uma ilha asiática qualquer e sair da vista da população até que os ânimos se acalmassem – ao menos o suficiente para que não corressem o risco de serem linchados ou baleados no meio da rua. De quem tinha sido a brilhante ideia de legalizar o porte de armas afinal?
aproveitou a completa bagunça para abrir caminho até o suposto aposento da agente , supondo que aquela liberação conjunta de informações pudesse trazer consequências duras para ela.
Ao abrir a porta, encontrou o quarto completamente revirado. As cobertas estavam amassadas e arremessadas em um canto qualquer do quarto, sendo acompanhadas pelos lençóis puxados da cama com força. As gavetas estavam abertas de qualquer jeito e os pertences de estavam completamente espalhados pelo chão e pelos armários. tateou o bolso, sentindo seu coração pesar. Foi na busca daquele maldito dispositivo que eles destruíram tudo. Deviam ter levado ele, não ela.
- Eles a levaram – uma voz masculina anunciou da porta, chamando bruscamente a atenção do conselheiro.
- Keegan – disse, não tendo palavras melhores para expressar naquele momento.
O jovem West se aproximou, com as mãos nos bolsos da bermuda de moletom. Tinha os cabelos bagunçados e uma marca roxa no rosto, além de um corte que parecia prestes a cicatrizar. vislumbrou as feridas, um tanto atônito.
- São antigas. Foi ela quem cuidou de mim – assumiu. – Eu sei como deve ser difícil para você cogitar tudo pelo que ela está passando. Também sabia que você viria. Fiquei esperando. Eles a trancaram em uma sala com proteção acústica e luminosa completa no sótão. Posso te levar até lá enquanto eles estão ocupados demais discutindo qualquer porcaria que não vai levá-los a lugar algum. Basicamente, a mesma história de qualquer discussão política desses idiotas sobre o país. Uma vergonha conjunta. Mas venha. Tenho certeza de que ela quer vê-lo.
, ainda um tanto chocado com a súbita companhia e apoio, percebeu que Keegan era um aliado improvável, mas também especialmente útil. Seguiu-o pelas escadas escondidas atrás do grande roupeiro que guardava todas as roupas de cama da mansão. Todas as passagens extremamente minuciosas e calculadas pela própria equipe de segurança. Era um risco, mas era por ela. E nenhum risco seria maior do que aquele que ela correu – e ainda corria – ao se infiltrar naquele governo e decidir expor seus maiores podres ao mundo.
Com certa dificuldade, chegaram ao ambiente fracamente iluminado. Parecia uma construção propositalmente tenebrosa, com a intenção de aterrorizar qualquer um que tivesse visto um filme de terror qualquer. Era como nos filmes, mas doía muito saber que o fim não seria só encenação.
tinha o rosto marcado por um vergão vermelho que evidenciava sua carne, banhada por um sangue já seco, de forma que a ferida ardia como o inferno. Os cabelos presos estavam desgrenhados e sujos, colados em sua face por uma mistura de suor e resíduos do sangue que lhe escorrera pela face tão recentemente. Ela estava sentada em uma carreira metálica completamente desconfortável, com as mãos amarradas às costas. Apesar de tudo, para a surpresa de , mantinha um sorriso sádico, em tom vitorioso. Seu deboche era tão latente que parecia que uma gargalhada pairava na atmosfera, prestes a engolir todos eles.
- Não sei por que veio – ela disse. – Não é como se fizesse alguma diferença agora.
olhou para Keegan, ainda um tanto ressabiado com toda aquela situação.
- Eu já sei que vocês trabalharam juntos – o jovem West assumiu em um sopro. – Gostaria de odiar admitir que sempre soube que vocês dois estavam juntos, mas o que vocês fizeram não merece meu desprezo. O que vocês conseguiram foi exatamente o que eu sempre quis fazer: destruir aquele nojento do meu pai. Só tenho a agradecer. Já disse que deponho a favor de vocês. Não há rancor, apenas gratidão. – Keegan respirou fundo, levando as pontas dos dedos até o hematoma que começava a clarear em seu rosto.
meneou a cabeça, sinalizando um agradecimento um tanto sem jeito. Mas a comunicação havia sido compreendida e era apenas isso que ela queria.
- Anda, . – Keegan praticamente teve de empurrá-lo. – Vocês não têm muito tempo até aqueles otários lá embaixo decidirem vir aqui.
se aproximou da agente, passando a mão delicadamente por seu rosto.
- Eles te machucaram.
- E se machucaram também. Ou você achou que eu não lutaria? – riu alto. – Dois senadores estão escondendo as marcas. Acertei Isaac nas partes baixas. Seu gemido de dor foi incrivelmente satisfatório. Gostaria que fosse um gemido final. Com todo o respeito, senhor West.
- Não precisa de respeito. Ele não merece nenhum sentimento que possamos ter por ele. Passei as últimas semanas rezando para que ele descobrisse magicamente algum problema terminal ou uma doença cardíaca de consequências imediatas. Infelizmente, sem sinal de um milagre desses.
- Nós vamos dar um jeito de te tirar dessa. Você sabe disso, não sabe? – segurava o rosto dela entre as mãos, observando cada mísero detalhe daquele rosto lesionado. Tão delicado e tão forte; realmente fazia jus à mulher que o carregava por aí.
- Nunca vivi de esperanças. Eu aprendi a crer em fatos, em planos concretos. A expectativa foi feita para nos manter flutuantes em relação à realidade. Eu não vou flutuar. Eu sei quem eu sou. Sei quem essas pessoas são. Sei o que eu fiz e também sei absolutamente tudo o que elas fizeram. Eu sei as consequências de meus atos e vou lidar com elas de cabeça erguida, sabendo que o meu trabalho foi cumprido com maestria. Foi para isso que eu vivi. Não há esperança, . O trabalho está feito e eu nem sei quem eu sou fora de todo esse jogo investigativo. Não existe uma , só a agente . E a agente cumpriu com os seus deveres.
- Não é assim que acaba essa história, pode ter certeza. Não é justo – insistia.
- O mundo não é justo e você sabe muito bem disso. Justiça não é uma coisa que funciona muito bem por esses cantos. É tão raro que poderia ser uma espécie declarada em risco de extinção.
- Eu odeio atrapalhar os pombinhos, mas nós precisamos ir, . Não vai levar muito tempo para que aqueles idiotas invadam a sala.
- Mas nós precisamos fazer algo, West!
- Precisamos, mas agora não é a hora – Keegan declarou. – Não temos tempo para isso. Agiremos no momento certo. Se nos precipitarmos, provavelmente tudo acabará indo por água abaixo. Cautela, . é forte, ela vai resistir até que possamos fazer algo.
- Vai logo, – a agente insistiu. – Vai ser melhor para todos nós. Não destrua tudo. Eu demorei muito para conseguir tudo isso, não ponha tudo a perder. Mesmo que isso custe a minha vida.
O filho do presidente puxou o conselheiro pelas mangas da camisa social listrada, murmurando novamente a necessidade de que saíssem dali logo. sentiu seu peito pesar ao olhar para os ferimentos naquele rosto cansado que esnobava todos com tanta força estampada.
- Eu vou ficar bem. Sei me virar – disse, ainda sorrindo, antes de visualizar a imagem dos dois homens sumir pela porta. E então, mais uma vez, tudo que lhe restava era o vazio. O nada. E a coisa mais aterrorizante da vida era a solidão permeada pelos próprios pensamentos. O momento mais difícil da existência de alguém é exatamente aquele em que o indivíduo é obrigado a lidar consigo mesmo. E só Deus sabe quanto tempo passara fugindo de tudo que pudesse ser sentido por ela.
*****
Isaac adentrou o cômodo com alguns de seus homens o cercando. A agente riu ao perceber como ela permanecia sendo considerada uma ameaça mesmo que cordas amarrassem seus membros superiores e quadril com força. Era no mínimo ridículo.
O homem andava de um lado para o outro da sala, coçando a barba que começava a despontar em seu rosto com certa voracidade. Seus acompanhantes tentavam não transparecer qualquer reação, mas suavam frio. quase ouvia seus corações batendo fora de compasso. Aquilo era divertido demais para ela.
- Como você pôde? – Isaac perguntou, quase cuspindo suas palavras. – Eu confiei tudo a você. Dei todos os benefícios e privilégios possíveis, acreditei no seu trabalho ridículo enquanto todos os meus homens me alertaram sobre a sua falta de preparo.
- O machismo dos seus homens não é argumento para minimizar seu erro, senhor West. Meu trabalho é ridículo? Acho engraçado que o maior governo do mundo seja tão desorganizado que até mesmo uma mulher despreparada como eu foi capaz de jogar toda a merda no ventilador. Os ridículos são vocês, senhor presidente. A vergonha nisso tudo com certeza não é minha.
O velho desferiu um tapa sonoro no rosto da agente, fazendo com que ela risse ainda mais.
- Vadia – resmungou com ódio. – Você não passa de uma vadia. Uma bruxa maldita que decidiu destruir a vida alheia. Todos estavam bem e felizes até você enfiar esse seu dedo podre onde não devia e destruir absolutamente tudo. Sabe o que você fez, ? Você acabou de causar o completo desmoronamento da vida de todo o nosso povo. Todos estavam felizes.
- Todos felizes? – ria da forma mais debochada que conseguia. – O seu povo está morrendo de fome, doente e abandonado pelo seu próprio governo. O seu povo está sofrendo com o descaso porque todos os seus incríveis homens preferem se preocupar com acordos protecionistas, venda de armas e a destruição do ambiente. Vocês vivem em função de lucro e os pobres não lhes dão esse lucro. Por isso, vocês fecham os olhos e deixam que eles morram. O seu povo não é a sua preocupação. Chega de toda essa falsidade e hipocrisia, senhor West. O mundo todo está vendo o monstro que o senhor é.
- Bruxa. É isso que você é.
They're burning all the witches, even if you aren't one
(Eles estão queimando todas as bruxas mesmo se você não for uma)
They got their pitchforks and proof
(Eles têm suas forquilhas e provas)
Their receipts and reasons
(Seus recibos e razões)
- Uma bruxa? Por fazer o certo? Por me preocupar mais com o seu povo do que o seu próprio governo? – Ela já ria descontroladamente, impondo o próprio corpo para a frente naquela cadeira. – Se é isso que o senhor compreende como a definição do que é uma bruxa, então está completamente certo. Sou uma bruxa, senhor West, e sabe o que fazem com as bruxas? Colocam fogo nelas.
- É exatamente o que eu deveria fazer – o presidente respondeu, irritado com toda a suposta arrogância da agente.
- Então faça. Vá em frente e me queime.
O sorriso da mulher permanecia congelado em sua face, enquanto os seus olhos faiscavam com o ódio em desafio.
- Não, . Você vai ao tribunal. Ao contrário do que você pensa, nós conhecemos o significado de justiça e a defendemos até a última instância, mesmo por aqueles que não a merecem. Eles te culparão por tudo o que você fez para destruir o nosso país. Você se arrependerá.
- O seu país – ela frisou. – E eu não poderia estar mais satisfeita por participar da queda do seu poder.
Isaac desferiu outro golpe no rosto da agente, que revidou com um pontapé em sua canela. Os outros seguranças eram tão estúpidos que eram incapazes até mesmo de raciocinar o suficiente para se lembrarem de amarrar suas pernas. Incompetentes. E ainda tinham a audácia de dizer que a culpa era dela.
Seu trabalho nunca fora tão doce.
They say I did something bad
(Eles dizem que eu fiz algo ruim)
Then why's it feel so good?
(Então por que me sinto tão bem?)
Most fun I ever had
(A maior diversão que já tive)
And I'd do it over and over and over again if I could
(E eu faria tudo de novo se eu pudesse)
It just felt so good, good
(Foi tão bom, bom)
*****
estava sendo julgada pelo crime de traição ao seu país e a seu governo, além de divulgação de informações sigilosas e invasão de privacidade pelo acesso dos documentos e mensagens particulares do presidente West. Era, ainda, acusada por crimes contra a honra, como a calúnia e a injúria, atreladas à agressões morais. Tinha um advogado competente, a par de todos os casos e e Keegan prontos para prestar depoimento ao seu favor.
A agente havia virado notícia por todos os cantos possíveis e imagináveis, dividindo opiniões completamente polarizadas a respeito de suas ações. Havia um enorme grupo de pessoas que propagaram os documentos – em especial por todas as suas redes sociais - e saíram às ruas para pedir a destituição de Isaac West de seu cargo, alegando não ser aquele o homem em que todos votaram. Todos os desvios de verba e os casos de corrupção eram suficientes para causar o descontentamento do povo e para obrigar o presidente a abandonar o governo assim que seus crimes fiscais fossem provados.
No entanto, ainda havia uma porção que permanecia apoiando o presidente a todo custo, fechando os olhos para seus crimes, fosse por conveniência, comodidade ou mesmo por estarem tão sujos quanto ele em toda essa história. A troca de favores era uma via de mão dupla e a perda dela seria prejudicial para os grandes empresários, principalmente os exploradores de combustíveis fósseis. Muitos dos grandes ricos já haviam embarcado em aviões e jatos particulares para qualquer lugar em que não pudessem ser encontrados tão cedo. Era, de fato, a opção mais sensata para suas famílias e fortunas.
O julgamento já ocorria há certo tempo, permeado por discussões atravessadas e o sorriso satisfeito de , que não poderia estar se sentindo mais plena em um momento como aquele. Manifestações e passeatas aconteciam do lado de fora do tribunal, mais pela culpabilização de Isaac que pela inocência da agente, de fato.
- Esse homem roubou os impostos que vocês pagam com todo o seu esforço e trabalho duro – o advogado de defesa dizia em frente ao júri. – Todo o suor e sangue que vocês doaram a seu país foi usado contra as suas próprias vontades e direitos. Como podem aceitar de volta à cabeça de seu Estado um homem que os roubou descaradamente em função de seu próprio enriquecimento?
- Protesto - começou o advogado de acusação, tendo seu pedido bruscamente negado sem sequer uma cogitação maior.
- Gostaria de chamar , o conselheiro de relações externas para prestar depoimento.
sentou-se ao lado do juiz, arrumando o botão inferior de seu terno antes de se ajeitar em seu assento. Estava ansioso e seu nervosismo aumentava exponencialmente ao ver a tranquilidade estampada no rosto da pessoa que mais tinha a temer por ali. Era exatamente quem corria sérios riscos de receber uma injeção letal que se portava da maneira mais impassível e controlada. Deus, como admirava isso naquela mulher.
O conselheiro respondia às perguntas de ambos os advogados, sendo o mais honesto e sincero possível, como previa o juramento que fizera nos últimos minutos.
- O senhor participou das decisões sobre a venda de armas ao Oriente? Pode confirmar essa história?
- Posso. Estive em várias reuniões que tratavam sobre as relações comerciais com outros continentes e essas vendas eram sempre um tópico central do debate. Infelizmente, o contrabando às escondidas era lucrativo demais para o governo. Eu me opus desde o primeiro momento, mas eu era apenas um contra vários que apoiavam cegamente essa margem de lucro estrondosa. Infelizmente, esse governo foi movido pelo dinheiro desde o começo e não importava o quanto eu dissesse que não apoiava, eles dariam sequência a esse câmbio de qualquer forma. O que fez foi liberar a notícia para que outras pessoas pudessem ter a voz que sozinho eu não tive e, assim, terem a possibilidade de impedir que isso prosseguisse.
“O pior disso tudo é que precisamos de uma estrangeira para abrir os olhos de um povo gigantesco desses. Ela nem é daqui, sabiam? – ria. – Como querem culpá-la por trair o próprio país se esse não é o seu país? Se querem jogar a pena sobre alguém, que seja sobre mim. Fui eu que forneci as senhas. Eu também tenho participação direta em todo o caso e sou daqui. É o sangue dos meus ancestrais que construiu esse país, bem como o dos ancestrais de todos vocês. E é por eles que eu tomei essa decisão.”
logo foi liberado, dando lugar para o depoimento do filho do presidente. Keegan West ainda trazia marcas em seu rosto, lembrando a todos da ridícula imagem que ele queria apagar. Era difícil ir contra o seu pai, mas também era incrivelmente satisfatório. Ele merecia, afinal. Aquela rebelião era muito pouco em relação ao que ele realmente poderia e deveria ter feito.
- O meu pai recebeu propinas absurdas. Financiou todas as suas campanhas presidenciais e de apoio à aprovação de leis com dinheiro dos grandes empresários. Passou por cima de toda a legislação trabalhista e ambientalista para fornecer em troca os benefícios que esses grandes produtores queriam. Ele não se importa com os trabalhadores, como tanto ama dizer. Ele não se importa com ninguém. Ele só se importa com as dezenas de zeros que entram em sua conta bancária em uma progressão geométrica de velocidade assustadora.
“Ele tentou me comprar meses atrás quando eu ameacei expor as contas do caixa dois dele. E fez de novo minutos atrás, antes de eu entrar no tribunal. Ofereceu milhões para que eu inventasse uma história qualquer que o eximisse da culpa.”
- Isso é mentira! - Isaac West gritou, levantando-se de uma só vez de sua cadeira. O advogado de acusação teve que controlar o seu cliente, prestes a explodir por causa do filho em frente de toda a corte.
- Peço licença para apresentar a prova do momento referido pelo senhor Keegan – pediu o advogado de defesa, sendo liberado pelo juiz para exibir o vídeo do acontecimento de poucos instantes atrás. Toda a corte soltou murmúrios e exclamações de surpresa.
- Não podem expor minha privacidade dessa forma! – Isaac bradava. – Editaram esse vídeo! Isso nunca aconteceu!
Uma confusão generalizada se instalou no ambiente, levando a inúmeros pedidos de decoro até que os ânimos se acalmassem – ao menos nos parâmetros possíveis de calma para um momento de tensão latente como aquele.
- O júri já tem sua resposta – anunciaram ao juiz, que aprovou a sentença.
- está proibida de retornar ao solo desse país, de forma a ser enviada de volta à sua terra natal amanhã sem oportunidade de retorno. Lá, viverá em total liberdade da forma que sua nação bem entender. Isaac West cumprirá pena domiciliar por tempo a ser decidido posteriormente e terá todas as suas contas bancárias congeladas até segunda instância. Por consequência, é claro, está destituído de seu cargo, estando proibido de retornar à vida política do país. Os demais órgãos públicos devem convocar novas eleições imediatamente.
e Keegan sentiram um peso enorme abandonar as suas costas. permanecia com o mesmo sorriso intacto em sua face. Isaac teve de ser retirado do tribunal praticamente carregado, usando todos os piores e mais sujos termos de que tinha conhecimento em seu vocabulário. Agia descontroladamente, sequer parecendo o mesmo que abusava de seu poder de convencimento e retórica em cima dos púlpitos ao redor do país.
- Você ainda me paga – Isaac cuspiu ao passar pela agente.
- Não, senhor West – respondeu pausadamente. – É você quem vai pagar.
*****
carregava as suas malas, enquanto levava o pouco que lhe cabia debaixo do braço em uma bolsa preta. Não queria carregar consigo as coisas daquele país. Recomeçaria a sua vida de onde a tinha deixado em seu país. Fazia tanto tempo que mal se lembrava de como era sentir o aconchego de um abraço fraterno ou o amor pairando numa atmosfera familiar. Pensava se ainda reconheceria o cheiro do bolo de maçã que a mãe fazia, honrando a tradição da receita que passara por todas as gerações da família – e que ela guardara com carinho, apesar de jamais executá-la. No fim das contas, era tranquilizador saber que não estava indo rumo ao desconhecido. Pelo contrário, estava saindo de um mundo que não lhe pertencia para retornar àquele que sempre a recebera, sob qualquer circunstância. O significado de lar começava a fazer sentido dentro daquele coração preparado para não sentir absolutamente nada de bom. , após muito tempo, permitiu-se sorrir de uma forma totalmente sincera, sem ressentimentos, sem sarcasmo, sem deboche; apenas um sorriso verdadeiro.
Entraram na fila para o embarque, esperando que os passageiros preferenciais exibissem seus passaportes. Chegava a ser curiosa a quantidade de idosos naquela fila. se lembrava de seu pai dizendo que aquela era uma pátria de turismo senil. Talvez ele estivesse certo.
sentiu um corpo trombando com força ao seu, fazendo com que o casal olhasse para trás quase instantaneamente, prestes a disparar em reclamações. Acabaram desistindo quando reconheceram aquele cabelo bagunçado e o rosto amassado de sono como de costume. Tipicamente atrasado.
- Keegan? O que faz aqui? – perguntou, estendendo a mão em um cumprimento cordial.
- Decidi ir embora. Nada mais me prende a esse país. Não quero ser marcado como o filho do ex-presidente e nem viver na casa na qual o meu pai estará preso por anos. É castigo demais para mim. Queria sumir, ir para um lugar bem longe, o mais longe possível. Infelizmente, minha magnífica criatividade me arremessou para o mesmo lugar que vocês. Eu sei, poderia ter ido para outro lugar. Mas fiquem tranquilos, não pretendo ser empata foda de ninguém.
riu, enquanto deu um empurrão leve no ombro do jovem, brincando com ele. Dias atrás, jamais poderiam imaginar que estariam juntos daquela forma. Muito menos de uma forma boa como aquela. Todo o caos daqueles tempos, todos os percalços, obstáculos e problemas dificultaram o caminho, mas o entregaram àquele destino. A agente, agora, era vista de forma gloriosa entre a maioria dos habitantes do país que por fim abandonava. Alguns, por outro lado, permaneciam dizendo que ela havia cometido um erro brutal fazendo algo tão horrível. Mas, se realmente fosse horrível da maneira que diziam, como ela poderia se sentir tão bem ao embarcar de volta para casa, tendo a consciência limpa e tranquila de que havia feito a coisa certa?
O presidente Isaac West havia sido eleito com uma parte considerável dos votos, derrotando seu oponente por uma larga margem de apoio. O antigo empresário tinha conquistado seus eleitores com um discurso sobre prosperidade e um charme irrefutável emoldurado pelos cabelos grisalhos cuidadosamente cortados e pontualmente desajeitados e acompanhado pela triste história de sua viuvez. Chegava a ser ridícula a quantidade de fotos que circulavam do governante em páginas de “homens bonitos” em redes sociais.
Seu filho Keegan não ficava atrás: já havia sido capa de revistas adolescentes inúmeras vezes – coisa que desagradava um pouco aqueles que tinham em mente a necessidade de separar as pessoas públicas daquela exposição um tanto sexualizada. Tinha algo entre vinte e trinta anos e uma faísca de juventude que o fazia ser centro das atenções de sites e veículos de fofocas com uma frequência impressionante. Garoto problema, com uma horda de fãs obcecadas pelo seu talento de sair incrivelmente bem em todas as fotos que tiravam dele.
revirou os olhos rapidamente ao ouvir os aplausos e as exclamações fervorosas dos apoiadores do governo West. Seus braços permaneciam cruzados atrás do próprio corpo, com a coluna totalmente ereta de forma impassível. Seu semblante era duro como uma pedra e frio como um iceberg prestes a afundar um gigantesco navio completamente carregado. Ela estava completamente cansada de toda aquela falsidade e aquela ideologia de construção de imagens para câmeras. Estava farta dos elogios sem fundamento e das lágrimas a cada vez que o presidente mencionava a falta que sentia de sua falecida esposa, adicionando um drama muito maior ao triste momento de sua morte. Tudo artificial. Tudo frágil. “Ah, se eles soubessem...” , pensava ela, mantendo sua posição oficial entre os seguranças particulares dos West.
Só Deus – ou qualquer que fosse a divindade real, se é que ela realmente existia – sabia as grandes blasfêmias sexistas que havia ouvido por ser uma mulher em um cargo tão importante e grande como a líder da segurança oficial do presidente da maior potência mundial. Nada de mais, além do título que a declarava uma das maiores agentes que esse planeta inteiro já vira. Mas eles inventavam qualquer porcaria sobre seu potencial. Mulheres em posições altas como aquela incomodavam uma sociedade que fora estruturada para mantê-las longe de qualquer igualdade em relações de poder e machucavam ainda mais os egos frágeis se ela atingisse um patamar de determinada superioridade. sabia bem como era enfrentar tal situação.
e os demais seguranças da equipe abriram caminho para que Isaac e Keegan descessem do púlpito e caminhassem à sua frente, acenando para o povo. A equipe tinha que se esticar às vezes na tentativa de impedir que encostassem na família West ou causassem algum transtorno maior.
Chegando à grande casa que servia de habitação para o presidente e sua família, o grupo de seguranças se desagrupou, ocupando seus respectivos postos na área externa de forma a vigiar todo o perímetro da residência. Assim, mantinham a segurança o mais eficiente possível, deixando que os empregados de extrema confiança fizessem seus serviços sob supervisão da chefe da “guarda”. A oficial era criteriosa, rígida e, principalmente, segura de si e de seu trabalho.
- Foi um grande comício, não acha, ? – Isaac West perguntou em alto e bom tom, afrouxando o nó da gravata listrada e abrindo os primeiros botões da camisa social azul clara. Sorria tendo a certeza íntima de que qualquer mulher se derreteria por aquele gesto.
- Com certeza, senhor presidente – respondeu séria. – Foi uma aparição pública de grande êxito.
- O povo não poderia estar mais satisfeito, . O aumento nas tarifas de importação de aço fez nossa indústria nacional obter um salto incrível. Os grandes exploradores de jazidas de carvão e petróleo estão lucrando dez vezes mais com a substituição das leis ambientais. Nosso governo potencializou todas as funções e capitais da nação. É o mandato mais próspero dos últimos cem anos. Nosso PIB per capita está nas nuvens.
- E nossa distribuição de renda no subsolo – adicionou a mulher, com a sobrancelha erguida em desafio.
Isaac riu alto, como se houvesse acabado de ouvir a melhor piada de sua vida. se obrigou a acompanhar o gracejo, de maneira comedida, evitando levantar intrigas ou suspeitas. Era melhor mesmo que ele pensasse que as indiretas irônicas eram simples brincadeiras.
- A voz dos pobres é muda, minha cara. A voz dos ricos, por sua vez, está gritando em multidão. Se meu eleitorado está contente, o país está contente e eu, principalmente. Será o maior legado que esse mundo já conheceu. O nome West será estudado por todos os futuros jovens ao redor do globo. Terão que saber de cor todas as hábeis medidas que me levaram ao alto reconhecimento histórico.
- Tem toda a razão, senhor presidente – ela concordou, acenando com a cabeça. – Será o homem de maior notoriedade política do último século. Talvez do último milênio.
- Só fico atrás de Jesus Cristo, . Infelizmente, ainda estou perdendo para o Senhor. Mas não por muito tempo – disse, por fim, rindo enquanto subia as escadas da mansão em direção aos seus aposentos.
I never trust a narcissist
(Eu nunca confio em um narcisista)
But they love me
(Mas eles me amam)
So I play 'em like a violin
(Então eu os manipulo como um violino)
And I make it look oh so easy
(E faço parecer tão fácil)
'Cause for every lie I tell them
(Porque para cada mentira que eu os conto)
They tell me three
(Eles me contam três)
ouvia seu subconsciente desdenhar da postura de superioridade de Isaac. Toda aquela imagem de homem bom e pai da cidadania cairia imediatamente se ouvissem aquele discurso elitista, aristocrático e ridiculamente presunçoso. Ou não. Infelizmente, ele estava certo ao dizer que a influência massiva do país estava de seu lado.
A agente recebeu um sinal em seu comunicador, anunciando a entrada autorizada de alguém na residência: o que implicava diretamente familiares, outros políticos ou parceiros diretos do governo West que já tinham permissão oficial para comparecer à mansão da presidência durante o dia. Observou o horário em seu relógio, calculando precisamente de quem se tratava a chegada: , um dos principais conselheiros de relações externas do presidente, ficando atrás somente para Friedrich – braço direito, esquerdo e, possivelmente, as duas pernas de Isaac.
- Boa tarde, agente – anunciou ao abrir a grandiosa porta frontal. Onde está o presidente?
- Subiu, provavelmente foi tomar um banho para se limpar dos germes do povo que adquiriu no comício.
O conselheiro soriu, meneando a cabeça.
- Eu assisti ao pronunciamento pela televisão. Realmente emocionante. Suponho que ele tenha achado maravilhoso o suficiente para voltar à exibição proposital a você.
esboçou uma careta de desprezo, relembrando as inúmeras iniciativas indiscretas e escancaradas que o presidente havia jogado para ela. Costumavam vir antecedidas de um longo discurso sobre o infinito amor que Isaac sentia pela antiga esposa e sobre como sua morte o afetava diariamente. A falta da companheira, no entanto, dizia ele, era apenas um sinal constante de que ela com certeza iria querer que ele seguisse em frente e fosse feliz, permitindo-se ao amor e aos prazeres novamente. A agente perdera completamente as contas de quantas vezes ouvira aquela balela sem fim. Perguntava-se a quantas tantas outras mulheres ele infernizava com aquela anedota de piedade. Tinha pena daquelas que haviam comprado a imagem.
- É um exímio mentiroso. Com certeza serve bem para o papel a que se presta.
- Pelo menos você não fica assim tão atrás – brincou, zombeteiro.
- As omissões que faço não valem por três mentiras dele. Estou cansada de todo esse ciclo interminável de narcisismo e falácias.
- Você é a protegida escolhida. Não que seja uma boa ideia. Imagine só se ele descobre que você sequer é natural daqui.
This is how the world works
(É assim que o mundo funciona)
Now all he thinks about is me
(Agora eu sou tudo o que ele pensa)
- – Keegan chamou, descendo as escadas sem camisa, com o cabelo bagunçado. Qual era a droga do problema daquela família com o uso dos próprios corpos? – Sabia que tinha escutado a sua voz. Pare de amolar a e suba para esperar meu pai no escritório.
concordou, acenando e se afastando dos dois. respirou fundo, preparando-se para a segunda rodada de insinuação gratuita da tarde.
- Sempre acho que esse cara dá em cima de você na cara dura – o jovem West comentou, bagunçando os cabelos ainda úmidos pelo banho recente. – Não gosto disso.
- Tenho certeza de que é impressão sua, senhor West – declarou, mantendo os braços firmemente cruzados.
- Espero mesmo que seja – Keegan adicionou. – Não gostaria de ter que te dividir.
- Com o perdão da palavra, mas não sou sua para me dividir, senhor West – alfinetou a agente, com um delicado sorriso na tentativa de conciliar uma singela amenização da situação com uma ironia tão densa quanto uma pedra de chumbo.
- Ainda não. Mas um dia será. não ficará no caminho do que eu quero.
- Como desejar pensar – respondeu, mantendo o sorriso frio. – Sinta-se à vontade, senhor West.
I never trust a playboy, but they love me
(Eu nunca acredito em um playboy, mas eles me amam)
So I fly 'em all around the world
(Então eu os faço viajar ao redor do mundo)
And I let them think they saved me
(E eu os deixo pensar que me salvaram)
They never see it coming what I do next
(Eles nunca conseguem saber o que eu farei depois)
This is how the world works
(É assim que o mundo funciona)
You gotta leave before you get left
(Você precisa abandonar antes de ser abandonada)
Keegan colocou as chaves de seu carro esportivo no bolso da bermuda, pegando uma camisa qualquer – que havia sido abandonada no sofá mais cedo com a certeza de que tinham empregadas que levassem a vestimenta até o seu armário – antes de sair. O West mais jovem não fazia nada em casa além de atrapalhar o trabalho dos funcionários da mansão com mais bagunça, ordens e uma falta de sossego infernal que já havia feito vários trabalhadores pedirem demissão por não suportá-lo.
Não era um rapaz fácil e realmente duvidava que ele pudesse ter sido algum dia. Cogitava sentir algum tipo de pena ou compaixão pelo jovem por saber que o pai jamais havia se importado realmente com ele. Provavelmente nunca conhecera o amor paterno devido à ausência do homem sob o pretexto da profissão – ou pela própria negligência familiar. A morte da mãe caíra como o peso de todo um universo sobre os seus ombros: a única evidência rasa de afeto que tivera estava em algum lugar totalmente distinto nesse momento. Ao menos, era assim que ele preferia pensar; era minimamente reconfortante.
No entanto, no fundo, tinha a plena certeza de que o rapaz usara de sua prepotência, arrogância e superioridade financeira e social para fazer o mal à sua própria forma. Fosse uma piada preconceituosa ou o escape fácil de situações que poderiam levá-lo diretamente ao tribunal, Keegan tirara proveito de suas condições para causar transtornos e discórdias com a desculpa de ter sua dor infinita incompreendida. E, assim, lembrava-se de que pai e filho cairiam juntos, como Titãs derrotados. E ela estaria logo na base da grande ladeira, assistindo à queda com muito gosto.
A agente caminhava em círculos pelo amplo hall de entrada da mansão dos West. A madrugada tinha chegado a seu momento mais escuro, fazendo com que a fraca luz da lua, encoberta por um céu levemente nublado, refletisse minimamente nos parapeitos e rodapés de mármore claro. A mulher não poderia dizer que o silêncio e a solidão naquele lugar, por fim, não lhe agradava infinitamente.
Estaria mais calma, no entanto, se não tivesse que aguardar o comando exato para entrar no escritório doméstico principal do presidente. O homem confiava tão cegamente em seu trabalho – cego talvez por estar mais preocupado em olhar para as suas coxas cobertas pela justa calça preta – que a dava acesso livre a todos os cantos sem sequer levantar suspeitas sobre isso. Se ela precisava adentrar algum cômodo mais reservado, dizia que era por suspeita de algo e tudo era automaticamente creditado e esquecido. O resto da segurança a respeitava e a invejava por isso. Muitos dos agentes haviam entrado em ferrenhas discussões sobre a posição de uma mulher dentro daquela casa. Deveria ser um deles, afinal. O trabalho era muito mais produtivo quando feito por um homem competente, já que aparentemente era a testosterona que executava suas profissões e cargos. se irritava com os comentários, mas, de repente, percebeu que o incômodo que causava era fruto de sua própria competência. As críticas e mentiras eram como aplausos em sua face pelo trabalho esplêndido que realizava.
De repente, ouviu um baixo, mas estridente, apito em sua orelha. A hora havia chegado. A interferência no aparelho mostrava que tinha conseguido habilmente invadir o sistema de segurança. ria ironicamente ao perceber como todas aquelas tecnologias de ponta que o país fornecia ao Estado poderiam ser derrubadas em questão de segundos. Tão belas, caras e complexas e ao mesmo tempo tão abertas a falhas. Com um toque, alterou o canal do ponto, ouvindo a respiração calma e compassada de do outro lado da linha.
Abriu a porta do escritório cuidadosamente, mantendo-a entreaberta para evitar que a maçaneta ameaçasse algum barulho mais alto e permitindo que escutasse mais facilmente quaisquer movimentações no corredor. O escritório era afastado o suficiente dos quartos de Isaac e Keegan para que não a ouvissem. Tudo correria bem assim que sua mão parasse de suar.
- Como vai nessa bela noite, ? – perguntou, em seu tom brincalhão e desafiador de sempre. Ele era capaz de instaurar a tensão sexual latente entre eles só ao falar daquele jeito.
- Sem joguinhos, . Não temos tempo para isso. Estou na frente do computador, coordene-me.
O conselheiro de relações externas era, por coincidência, um amante incompreendido da informática, sendo lembrado pelo presidente quando este tentava utilizar algo daquela “nova geração robótica”, como amava dizer a quem pudesse ouvir. Foi assim que Isaac, perdido com o novo computador que tinha um monitor de tela mais ampla que a maioria das televisões por aí, recorreu a seu colega para ajudá-lo na execução do aparelho e na proteção do mesmo.
- Isaac guarda todos os contatos eletrônicos e documentos nessa máquina. Seja cautelosa, – ele dizia. – Você provavelmente encontrará muito mais do que deseja. Deve ser objetiva ao acessar os documentos. Com certeza há mais podres aí do que você sequer pode imaginar. Tenha foco para ir atrás do furo que está procurando. Não se distraia. O canal de comunicação fantasma que criei pode ser prejudicado a qualquer instante. Está com o pen-drive codificado que lhe dei?
- Claro que estou. Comece.
- Certo. O computador tem três fases diferentes de identificação. São ridículas, se me permite dizer, mas seu patrão tem o QI tão avançado que pediu pelo esquema de perguntas e respostas comum em vez de um sistema realmente complexo. Eu poderia fazer essa máquina ser a mais segura do país, mas esse velho retardado prefere perguntar qual sua comida preferida.
riu, revirando os olhos. Deveria ter imaginado que Isaac faria algo desse tipo.
- Aperte qualquer tecla e ele te mostrará o primeiro comando. São perguntas pessoais e idiotas. Na ordem, comida favorita, cor preferida e nome do meio da falecida esposa.
A agente, ainda desacreditada da estupidez daquilo tudo digitou: “tacos, vermelho, Linda”. Só percebeu a ironia que era o presidente lutar tanto contra a imigração quando teve de digitar abertamente seu amor pela comida estrangeira. Um homem que queria impedir a destruição de sua própria cultura, mas adorava almoçar tacos extra picantes. Não é à toa que ele sempre pedia que ela comprasse as tortillas escondida. Mal acreditava que treinara anos para terminar se disfarçando em barracas de fast-food de rua.
- Siga, . Segunda etapa.
- Perdi duas horas tendo que ensinar esse código maldito para ele – reclamou só de se lembrar da segunda etapa. – É a substituição de letras pelo número de suas posições no alfabeto. Ele decidiu escrever o primeiro nome do filho para não se perder.
começou a contar rapidamente e preencher os campos simultaneamente: 11557114.
- Próxima, . E rápido.
- Não precisa se apressar, agente. Você está perto demais para deslizar agora – zombou, sabendo que isso a irritaria profundamente, afinal, não cometia erros. – Terceira e última etapa. Você não vai acreditar. – ria abertamente agora. – Isaac é tão obcecado por você que colocou o seu nome na última senha, justificando que era porque ninguém sabia os nomes de seus funcionários da segurança exceto por ele próprio. Talvez eu acreditasse nessa história linda se não soubesse muito bem dos assédios sem fim.
se sentiu extremamente violada ao ter de digitar o próprio nome naquele campo branco. Aquela perseguição a enojava. Os olhares daquele homem sobre o seu corpo e a intenção de posse com que o herdeiro dele a tratava já havia passado do seu controlado limite de tolerância há tempo demais. Mas aquilo acabaria logo. Com sorte, em pouco tempo estaria livre de toda aquela merda.
- Obrigada, – avisou. – Posso seguir daqui agora. – Desconectou seu ponto do canal fantasma, retornando para os ruídos do canal da segurança antes de conectar o minúsculo USB no computador.
Pela ferramenta de busca nos e-mails e documentos, procurou por “venda” e “armas” como palavras-chave e encontrou muito mais resultados do que esperava. Selecionou o máximo de coisas que podia e copiou para o pen-drive, tomando o cuidado de não alterá-las ou apagá-las sem querer.
Ao retirar o dispositivo da máquina, desligou-a de forma cautelosa, tendo certeza de que não deixara rastros. Mesmo se algo tivesse ficado para trás, era tarde demais para eles.
Retirou-se do escritório sem fazer barulho algum, tendo a certeza de que a porta se encontrava milimetricamente na mesma posição em que estava antes de abri-la. Foi quando ouviu um som alto de algo caindo e colocou o pequeno dispositivo no bolso e saiu correndo em disparada para o andar de baixo.
Ao chegar ao fim da escada, encontrou Keegan jogado no meio da sala de estar, totalmente atirado no chão como se tivesse sido arremessado daquela forma ali. O rapaz gemia baixinho, como se reclamasse de dor.
- Droga – murmurou antes de virar o corpo do garoto, que agora tinha um corte no supercílio liberando finos filetes de sangue. – Senhor West, fale comigo. O que aconteceu?
O rapaz soltou outro gemido de dor quando a mulher soltou seu corpo sobre o sofá, saindo em disparada para pegar o kit de primeiros socorros que mantinham no lavabo da entrada.
- Aonde você se meteu para voltar destruído desse jeito? – tentava fazê-lo falar algo, preocupando-se que a pancada na cabeça pudesse ser mais séria do que previra. Limpou o corte com calma, sentindo a respiração do garoto mudando conforme sentia a dor da pressão sobre o machucado e do contato da gaze diretamente contra a pele recém-aberta.
O cheiro de álcool que emanava do corpo quase inerte de Keegan era enjoativo de tão forte. O odor já volatilizara tanto que era possível pensar que ele havia sido banhado a etanol em vez de ter simplesmente o ingerido em bebidas alcóolicas. Coisa que, obviamente, ele tinha feito muito além dos supostos limites.
começou a revirar os bolsos do rapaz, percebendo a ausência de seu celular e de sua carteira. Retirou a camisa de Keegan desajeitadamente pelo pescoço ao notar marcas vermelhas em seu ombro, embrenhando-se ao redor de sua cervical.
- Quem bateu em você? Eles levaram as suas coisas. Você sabe quem te assaltou?
- N-não sei – ele respondeu a muito custo, contraindo os músculos da face pela dor de verbalizar algo. – Eu não consegui ver. Mascarados.
- O senhor bebeu demais. Tenho certeza que sabe disso.
Keegan mexeu a cabeça levemente, concordando.
- Não reagi. Muita dor.
A agente buscou alguns remédios para dor e relaxantes musculares, estendendo-os com um copo de água e torcendo para que o álcool não fosse capaz de destruir totalmente seus respectivos efeitos.
- Venha – disse, estendendo o braço para que ele se apoiasse. – Vou levá-lo ao seu quarto. O senhor precisa descansar.
Keegan subiu as escadas despejando quase todo o seu peso sobre os ombros treinados de . O percurso foi custoso e lento, demandando extremo cuidado para que os pés inebriados do rapaz não perdessem algum degrau e o deixassem ainda mais ferido do que já estava.
Chegando a seu enorme quarto, o rapaz praticamente se jogou na cama, marcando o colchão com o sangue que secava em seu rosto. o puxou de volta, arrastando-o até o banheiro para lavá-lo de toda aquela sujeira.
Keegan sentou no chão do box, resmungando como uma criança mimada – que no fundo, ele acabava realmente sendo. Fez birra por longos minutos até que a água escorresse por seu rosto, fazendo com que ele saísse minimamente daquele estágio e começasse a transformar seus resmungos em reclamações de verdade.
- Por que você se importa? – Ele esfregava o rosto, percebendo finalmente o corte.
- Porque esse é o meu trabalho, senhor West. E, apesar de você ter se ferido longe de qualquer possibilidade que eu pudesse ter de te ajudar, é parte do que faço cuidar de você quando chega nesse estado deplorável. Foi um assalto?
- Uma briga – respondeu. – Mas eles levaram os meus pertences, então você pode chamar de assalto. E se for começar a passar sermão sobre a briga, saiba que eu já ouvi vários de minha mãe enquanto ela estava aqui e não preciso que a segurança do meu pai cumpra esse papel agora.
- Como o senhor mesmo disse, esse papel não cabe a mim. Só acho que deve tomar cuidado tanto pela sua própria saúde quanto pela imagem pública que representa como filho do presidente. Infelizmente, mesmo que o cargo não seja seu, você faz parte de tudo que permeia esse universo agora e a imagem familiar do seu pai depende de você também.
- Sinceramente, ? Eu quero mais é que a imagem familiar ou presidencial do meu pai se fodam. Eu quero que esse homem desgraçado se foda. Ele não pode simplesmente ir a público e falar da importância da família se sempre agiu como se não tivesse uma. Não tem o direito de dirigir a palavra a mim em um tom mais alto depois de me negar a sua presença durante todos esses anos. Ele é um merda. Você já devia saber disso já que trabalha tão perto dele.
percebeu o rumo estranho e um tanto tenso que a conversa começava a tomar. Apesar de saber que Isaac era uma negação absoluta como pai, aquele desabafo era bem mais profundo do que os xingamentos a que ela havia se acostumado a ouvir.
- Por que diz isso? – A agente ligou o pequeno gravador acoplado a seu relógio, torcendo pra que alguma informação útil fosse dita ali.
- Porque ele é, . Ele mente, ele engana, ele rouba e faz você amá-lo mesmo assim. Ele faz você se sentir culpado por não ser bom o suficiente para ele, sendo que você só é ruim porque ele lhe tirou tudo. Até hoje eu não sei como um homem tão podre como ele conseguiu assumir a presidência de um país que se julga tão inteligente quanto o nosso. Você vive com ele. Deve saber das coisas que ele já fez em serviço. Com certeza é só mais uma cega viciada no dinheiro que aquela mente maníaca consegue produzir.
respirou fundo, engolindo em seco, tentando se manter completamente impassível, sem esboçar reação alguma.
- Não faço ideia do que esteja falando, senhor West.
Keegan soltou uma risada nasalada de uma forma tão irônica que seu desgosto poderia quase ser palpável pelo ar.
- Ele recebeu milhões em propina de vários grandes empresários, principalmente os ligados à mineração e os produtores de energia fóssil, para financiar a campanha eleitoral e para comprar alguns benefícios fiscais que ele colocou sob panos quentes sem dar satisfação a ninguém. Ele tem tanto dinheiro em contas estrangeiras que poderia ter um desses paraísos fiscais fundado com seu nome em homenagem. Além disso, comprou o silêncio dos ambientalistas. Tentou até me comprar quando eu ameacei contar tudo isso. Acredita nisso? O próprio filho.
Keegan socava os grandes e claros azulejos do banheiro, numa vã tentativa de extravasar toda a incondicional raiva que sentia por ser obrigado a lidar com aquela situação toda ao longo dos últimos anos. agarrou-o pelos pulsos, aproveitando-se de sua força debilitada pela bebedeira recente que ainda latejava por seus vasos sanguíneos.
As lágrimas começavam a rolar furiosamente pelo rosto do rapaz, acompanhada por uma risada amarga que fazia sua garganta doer. Todo o rancor e a raiva que aprisionara dentro de si parecia querer vir à tona como uma bomba relógio que havia desistido de manter aquela infindável contagem regressiva.
- Eu não sabia que você vinha enfrentando esse tipo de coisa, senhor West – os duros treinamentos para profissionalizar os melhores agentes haviam roubado de boa parte de sua sensibilidade. No entanto, aquela situação acabara por se tornar uma das raríssimas vezes em que sua piedade falava alto o suficiente para que ela fosse obrigada a lhe dar atenção mesmo que efêmera. – Eu realmente sinto muito.
Keegan fungou profundamente, esfregando o rosto ferido avidamente. Só Deus sabia o quanto ele odiava viver daquela forma. Ou talvez nem Ele, considerando que a fé fora uma das primeiras coisas das quais ele desistira completamente ao ter de lidar com o luto da mãe e presente ausência de sua suposta figura paterna. A dor o fizera cético. A falta de esperança o fizera desistir. E, por mais que não justificasse sua postura, tornara-se um produto de seu meio.
- Pensei que você soubesse – o jovem admitiu. - Ele sempre se gaba dizendo que você corre atrás dele feito uma cadela no cio. Já tirou completamente sua autoridade em algumas reuniões com outros políticos dizendo que se ele estalasse os dedos, você apareceria logo atrás no mesmo instante, pronta para atender a qualquer uma das ordens dele.
teve que se afastar do rapaz ao tentar digerir tais palavras. Sabia de todos os preconceitos ridículos do presidente ao se colocar em um pedestal de superioridade absoluta em relação a qualquer um. Mesmo assim, estaria mentindo se dissesse que não estava um pouco chocada e muitíssimo irritada.
- Tem remédios para a dor em seu criado-mudo – disse a agente, fria como um iceberg. – Se precisar de alguma coisa, pode me chamar pelo comunicador.
Keegan murmurou qualquer coisa em concordância, arrastando-se até sua enorme cama de casal king size. Ao checar que ele tinha adormecido, seguiu seu caminho mais tranquila, mas não menos revoltada.
Esperou o horário de sua troca de turno na guarda para correr para o quarto que mantinha aos fundos da mansão, próximo aos cômodos designados aos demais empregados e, por isso, extremamente próximos da cozinha e da lavanderia. Típico.
Pegou o notebook que havia lhe fornecido, o mais limpo e intocado possível para evitar maiores rastros. Conectou seu diminuto pen-drive à entrada USB, abrindo os arquivos copiados um por um e correndo os ágeis olhos por aquelas linhas de e-mails trocados, pelos documentos assinados e todos os acordos comerciais internacionais. Tudo que ela suspeitara havia se tornado uma realidade escancarada logo em frente aos seus olhos e parecia infinitamente pior ter de encarar os fatos agora.
Isaac passara toda a sua candidatura e seu período de mandato discursando sobre a necessidade de se evitar a guerra e como a falta de civilização e a falta de acesso à tecnologia eram as causas chave de toda a barbárie oriental que estampava os noticiários: fundamentalismos, polarizações político-religiosas, miséria, guerra, ataques terroristas, genocídios, disputas armadas por água e recursos... O presidente adorava listar sua sequência decorada de fatos de conhecimento geral totalmente desconexos só para reafirmar a superioridade intelectual de seu país. Fundamentava, às custas das catástrofes externas, o seu nacionalismo conturbado. Aproveitava para reafirmar todo o seu apoio à paz mundial.
O que via, no entanto, era uma história completamente diferente: acordos diretos com os grupos fundamentalistas do Oriente guardados a sete chaves. As finanças acesas na tela em sua frente esclareciam aquilo que ela já suspeitava: transações milionárias em compras de armas e tecnologias de guerra. Toda a barbárie que Isaac adorava criticar era financiada por sua própria produção e comércio armamentista. Tudo isso fruto de uma hipocrisia sem fim.
Além disso, acabara salvando alguns arquivos do setor financeiro que reforçavam o desabafo de Keegan: todas as contas do nomeado caixa 2, mostrando as entradas duvidosas de quantias altas demais para serem simples doações pela boa vontade de alguém. Tinham tantos zeros naqueles extratos que uma potência de dez seria incrivelmente bem-vinda se a matemática tivesse cogitado uma obviedade dessas.
se lembrava do momento de sua contratação. Tinha clara em sua mente a cena do acordo final que oficializava aquele pacto de segurança e proteção da vida do líder político mais importante para todo o cenário mundial devido à bandeira que tremulava às suas costas. Um homem tão pequeno mantendo o controle de uma nação tão grande. Era no mínimo uma piada em escala global. O presidente Isaac West acreditara totalmente no trabalho dela, de olhos fechados e com as mãos atadas às costas. Mesmo que grande parte daquela confiança fosse consequência das insinuações sexuais e da noção de superioridade masculina dele, ela ainda existia. O fato é que não se importava. Ao menos, não mais.
If a man talks shit then I owe him nothing
(Se um homem fala merda, eu não lhe devo nada)
A agente revisou os documentos, tendo a certeza de separá-los por importância e tema em pastas incrivelmente específicas no pequeno pen-drive. Seu trabalho estava completo, reafirmando tudo aquilo pelo qual ela passara anos treinando. O que viesse depois não importava de verdade, pois toda a sua vida havia sido construída para aquele momento. Uma grande missão, um grande feito e estaria realizada enfim. Era só disso que ela precisava. Era excitante e um tanto assustador sentir seu objetivo palpável entre as pontas de seus dedos.
pensava em seus pais, lembrava-se de seus familiares e se perguntava se sentiriam orgulho dela. Questionava-se sobre o orgulho de seu país e de seus professores. Talvez não tivesse os melhores métodos, mas com certeza tinha alcançado sua meta e, ao fim do dia, só isso importava.
Ela sorriu, satisfeita, antes de respirar fundo, tentando absorver tudo que fizera para chegar até ali. Segurava com força o pequeno dispositivo em suas mãos.
- Isaac West, você vai cair.
Uma semana depois...
entrou rapidamente pela grande porta da mansão West, que estava completamente escancarada há bons minutos. As notícias dos grandes sites tinham causado um tumulto tão colossal que todos os conselheiros e senadores estavam ali reunidos – ou, pelo menos, aqueles que sabiam que teriam o nome prejudicado se Isaac caísse.
Artigos completos vazaram por jornais e sites de renome, liberando toda a documentação pessoal do governo, bem como as mensagens e o trânsito financeiro dos acordos. O armamento oriental e o esquema de propina já estavam espalhados por todo o mundo, não importava o quanto a corja presidencial tentasse derrubá-los agora. Era tarde demais. Não poderiam afirmar com certeza quem havia vazado aquelas informações, mas cercaram a maior suspeita. Aquela que julgavam capaz de ter fornecido abertamente as informações roubadas, necessárias para que todo aquele constrangimento fosse exposto e a farsa fosse apresentada a todo o mundo.
- Isso é um absurdo! – Isaac gritava, esmurrando repetidamente a grande mesa de pedra branca. – Eles não podem me caluniar dessa forma! Eu vou processar todos eles e destruir toda a carreira jornalística desses merdinhas. Eles não podem fazer isso com a minha imagem! Eu sou o presidente! O povo não vai acreditar em nada disso!
se segurou para não soltar uma alta risada. Só alguém muito prepotente para acreditar que ninguém seria consciente o suficiente para acreditar em provas óbvias e concretas. Era óbvio que ele ainda teria várias pessoas ao seu lado, fora isso que a era pós-verdade fizera – ou ao menos ampliara. Mas acreditar que sairia impune após tantas provas penduradas à vista de todas como em um varal de uso público? Tinha que ser realmente muito seguro de si. E com uma segurança sem consistência ou motivos reais.
Os senadores andavam de forma quase desesperada pelos aposentos da mansão. Pareciam um enxame de abelhas desesperadas atrás de sua rainha, sem saber ao certo se era realmente essa a melhor escolha a se tomar naquele momento específico. Talvez fosse melhor fugir. Talvez devessem entrar no primeiro avião para uma ilha asiática qualquer e sair da vista da população até que os ânimos se acalmassem – ao menos o suficiente para que não corressem o risco de serem linchados ou baleados no meio da rua. De quem tinha sido a brilhante ideia de legalizar o porte de armas afinal?
aproveitou a completa bagunça para abrir caminho até o suposto aposento da agente , supondo que aquela liberação conjunta de informações pudesse trazer consequências duras para ela.
Ao abrir a porta, encontrou o quarto completamente revirado. As cobertas estavam amassadas e arremessadas em um canto qualquer do quarto, sendo acompanhadas pelos lençóis puxados da cama com força. As gavetas estavam abertas de qualquer jeito e os pertences de estavam completamente espalhados pelo chão e pelos armários. tateou o bolso, sentindo seu coração pesar. Foi na busca daquele maldito dispositivo que eles destruíram tudo. Deviam ter levado ele, não ela.
- Eles a levaram – uma voz masculina anunciou da porta, chamando bruscamente a atenção do conselheiro.
- Keegan – disse, não tendo palavras melhores para expressar naquele momento.
O jovem West se aproximou, com as mãos nos bolsos da bermuda de moletom. Tinha os cabelos bagunçados e uma marca roxa no rosto, além de um corte que parecia prestes a cicatrizar. vislumbrou as feridas, um tanto atônito.
- São antigas. Foi ela quem cuidou de mim – assumiu. – Eu sei como deve ser difícil para você cogitar tudo pelo que ela está passando. Também sabia que você viria. Fiquei esperando. Eles a trancaram em uma sala com proteção acústica e luminosa completa no sótão. Posso te levar até lá enquanto eles estão ocupados demais discutindo qualquer porcaria que não vai levá-los a lugar algum. Basicamente, a mesma história de qualquer discussão política desses idiotas sobre o país. Uma vergonha conjunta. Mas venha. Tenho certeza de que ela quer vê-lo.
, ainda um tanto chocado com a súbita companhia e apoio, percebeu que Keegan era um aliado improvável, mas também especialmente útil. Seguiu-o pelas escadas escondidas atrás do grande roupeiro que guardava todas as roupas de cama da mansão. Todas as passagens extremamente minuciosas e calculadas pela própria equipe de segurança. Era um risco, mas era por ela. E nenhum risco seria maior do que aquele que ela correu – e ainda corria – ao se infiltrar naquele governo e decidir expor seus maiores podres ao mundo.
Com certa dificuldade, chegaram ao ambiente fracamente iluminado. Parecia uma construção propositalmente tenebrosa, com a intenção de aterrorizar qualquer um que tivesse visto um filme de terror qualquer. Era como nos filmes, mas doía muito saber que o fim não seria só encenação.
tinha o rosto marcado por um vergão vermelho que evidenciava sua carne, banhada por um sangue já seco, de forma que a ferida ardia como o inferno. Os cabelos presos estavam desgrenhados e sujos, colados em sua face por uma mistura de suor e resíduos do sangue que lhe escorrera pela face tão recentemente. Ela estava sentada em uma carreira metálica completamente desconfortável, com as mãos amarradas às costas. Apesar de tudo, para a surpresa de , mantinha um sorriso sádico, em tom vitorioso. Seu deboche era tão latente que parecia que uma gargalhada pairava na atmosfera, prestes a engolir todos eles.
- Não sei por que veio – ela disse. – Não é como se fizesse alguma diferença agora.
olhou para Keegan, ainda um tanto ressabiado com toda aquela situação.
- Eu já sei que vocês trabalharam juntos – o jovem West assumiu em um sopro. – Gostaria de odiar admitir que sempre soube que vocês dois estavam juntos, mas o que vocês fizeram não merece meu desprezo. O que vocês conseguiram foi exatamente o que eu sempre quis fazer: destruir aquele nojento do meu pai. Só tenho a agradecer. Já disse que deponho a favor de vocês. Não há rancor, apenas gratidão. – Keegan respirou fundo, levando as pontas dos dedos até o hematoma que começava a clarear em seu rosto.
meneou a cabeça, sinalizando um agradecimento um tanto sem jeito. Mas a comunicação havia sido compreendida e era apenas isso que ela queria.
- Anda, . – Keegan praticamente teve de empurrá-lo. – Vocês não têm muito tempo até aqueles otários lá embaixo decidirem vir aqui.
se aproximou da agente, passando a mão delicadamente por seu rosto.
- Eles te machucaram.
- E se machucaram também. Ou você achou que eu não lutaria? – riu alto. – Dois senadores estão escondendo as marcas. Acertei Isaac nas partes baixas. Seu gemido de dor foi incrivelmente satisfatório. Gostaria que fosse um gemido final. Com todo o respeito, senhor West.
- Não precisa de respeito. Ele não merece nenhum sentimento que possamos ter por ele. Passei as últimas semanas rezando para que ele descobrisse magicamente algum problema terminal ou uma doença cardíaca de consequências imediatas. Infelizmente, sem sinal de um milagre desses.
- Nós vamos dar um jeito de te tirar dessa. Você sabe disso, não sabe? – segurava o rosto dela entre as mãos, observando cada mísero detalhe daquele rosto lesionado. Tão delicado e tão forte; realmente fazia jus à mulher que o carregava por aí.
- Nunca vivi de esperanças. Eu aprendi a crer em fatos, em planos concretos. A expectativa foi feita para nos manter flutuantes em relação à realidade. Eu não vou flutuar. Eu sei quem eu sou. Sei quem essas pessoas são. Sei o que eu fiz e também sei absolutamente tudo o que elas fizeram. Eu sei as consequências de meus atos e vou lidar com elas de cabeça erguida, sabendo que o meu trabalho foi cumprido com maestria. Foi para isso que eu vivi. Não há esperança, . O trabalho está feito e eu nem sei quem eu sou fora de todo esse jogo investigativo. Não existe uma , só a agente . E a agente cumpriu com os seus deveres.
- Não é assim que acaba essa história, pode ter certeza. Não é justo – insistia.
- O mundo não é justo e você sabe muito bem disso. Justiça não é uma coisa que funciona muito bem por esses cantos. É tão raro que poderia ser uma espécie declarada em risco de extinção.
- Eu odeio atrapalhar os pombinhos, mas nós precisamos ir, . Não vai levar muito tempo para que aqueles idiotas invadam a sala.
- Mas nós precisamos fazer algo, West!
- Precisamos, mas agora não é a hora – Keegan declarou. – Não temos tempo para isso. Agiremos no momento certo. Se nos precipitarmos, provavelmente tudo acabará indo por água abaixo. Cautela, . é forte, ela vai resistir até que possamos fazer algo.
- Vai logo, – a agente insistiu. – Vai ser melhor para todos nós. Não destrua tudo. Eu demorei muito para conseguir tudo isso, não ponha tudo a perder. Mesmo que isso custe a minha vida.
O filho do presidente puxou o conselheiro pelas mangas da camisa social listrada, murmurando novamente a necessidade de que saíssem dali logo. sentiu seu peito pesar ao olhar para os ferimentos naquele rosto cansado que esnobava todos com tanta força estampada.
- Eu vou ficar bem. Sei me virar – disse, ainda sorrindo, antes de visualizar a imagem dos dois homens sumir pela porta. E então, mais uma vez, tudo que lhe restava era o vazio. O nada. E a coisa mais aterrorizante da vida era a solidão permeada pelos próprios pensamentos. O momento mais difícil da existência de alguém é exatamente aquele em que o indivíduo é obrigado a lidar consigo mesmo. E só Deus sabe quanto tempo passara fugindo de tudo que pudesse ser sentido por ela.
Isaac adentrou o cômodo com alguns de seus homens o cercando. A agente riu ao perceber como ela permanecia sendo considerada uma ameaça mesmo que cordas amarrassem seus membros superiores e quadril com força. Era no mínimo ridículo.
O homem andava de um lado para o outro da sala, coçando a barba que começava a despontar em seu rosto com certa voracidade. Seus acompanhantes tentavam não transparecer qualquer reação, mas suavam frio. quase ouvia seus corações batendo fora de compasso. Aquilo era divertido demais para ela.
- Como você pôde? – Isaac perguntou, quase cuspindo suas palavras. – Eu confiei tudo a você. Dei todos os benefícios e privilégios possíveis, acreditei no seu trabalho ridículo enquanto todos os meus homens me alertaram sobre a sua falta de preparo.
- O machismo dos seus homens não é argumento para minimizar seu erro, senhor West. Meu trabalho é ridículo? Acho engraçado que o maior governo do mundo seja tão desorganizado que até mesmo uma mulher despreparada como eu foi capaz de jogar toda a merda no ventilador. Os ridículos são vocês, senhor presidente. A vergonha nisso tudo com certeza não é minha.
O velho desferiu um tapa sonoro no rosto da agente, fazendo com que ela risse ainda mais.
- Vadia – resmungou com ódio. – Você não passa de uma vadia. Uma bruxa maldita que decidiu destruir a vida alheia. Todos estavam bem e felizes até você enfiar esse seu dedo podre onde não devia e destruir absolutamente tudo. Sabe o que você fez, ? Você acabou de causar o completo desmoronamento da vida de todo o nosso povo. Todos estavam felizes.
- Todos felizes? – ria da forma mais debochada que conseguia. – O seu povo está morrendo de fome, doente e abandonado pelo seu próprio governo. O seu povo está sofrendo com o descaso porque todos os seus incríveis homens preferem se preocupar com acordos protecionistas, venda de armas e a destruição do ambiente. Vocês vivem em função de lucro e os pobres não lhes dão esse lucro. Por isso, vocês fecham os olhos e deixam que eles morram. O seu povo não é a sua preocupação. Chega de toda essa falsidade e hipocrisia, senhor West. O mundo todo está vendo o monstro que o senhor é.
- Bruxa. É isso que você é.
They're burning all the witches, even if you aren't one
(Eles estão queimando todas as bruxas mesmo se você não for uma)
They got their pitchforks and proof
(Eles têm suas forquilhas e provas)
Their receipts and reasons
(Seus recibos e razões)
- Uma bruxa? Por fazer o certo? Por me preocupar mais com o seu povo do que o seu próprio governo? – Ela já ria descontroladamente, impondo o próprio corpo para a frente naquela cadeira. – Se é isso que o senhor compreende como a definição do que é uma bruxa, então está completamente certo. Sou uma bruxa, senhor West, e sabe o que fazem com as bruxas? Colocam fogo nelas.
- É exatamente o que eu deveria fazer – o presidente respondeu, irritado com toda a suposta arrogância da agente.
- Então faça. Vá em frente e me queime.
O sorriso da mulher permanecia congelado em sua face, enquanto os seus olhos faiscavam com o ódio em desafio.
- Não, . Você vai ao tribunal. Ao contrário do que você pensa, nós conhecemos o significado de justiça e a defendemos até a última instância, mesmo por aqueles que não a merecem. Eles te culparão por tudo o que você fez para destruir o nosso país. Você se arrependerá.
- O seu país – ela frisou. – E eu não poderia estar mais satisfeita por participar da queda do seu poder.
Isaac desferiu outro golpe no rosto da agente, que revidou com um pontapé em sua canela. Os outros seguranças eram tão estúpidos que eram incapazes até mesmo de raciocinar o suficiente para se lembrarem de amarrar suas pernas. Incompetentes. E ainda tinham a audácia de dizer que a culpa era dela.
Seu trabalho nunca fora tão doce.
They say I did something bad
(Eles dizem que eu fiz algo ruim)
Then why's it feel so good?
(Então por que me sinto tão bem?)
Most fun I ever had
(A maior diversão que já tive)
And I'd do it over and over and over again if I could
(E eu faria tudo de novo se eu pudesse)
It just felt so good, good
(Foi tão bom, bom)
estava sendo julgada pelo crime de traição ao seu país e a seu governo, além de divulgação de informações sigilosas e invasão de privacidade pelo acesso dos documentos e mensagens particulares do presidente West. Era, ainda, acusada por crimes contra a honra, como a calúnia e a injúria, atreladas à agressões morais. Tinha um advogado competente, a par de todos os casos e e Keegan prontos para prestar depoimento ao seu favor.
A agente havia virado notícia por todos os cantos possíveis e imagináveis, dividindo opiniões completamente polarizadas a respeito de suas ações. Havia um enorme grupo de pessoas que propagaram os documentos – em especial por todas as suas redes sociais - e saíram às ruas para pedir a destituição de Isaac West de seu cargo, alegando não ser aquele o homem em que todos votaram. Todos os desvios de verba e os casos de corrupção eram suficientes para causar o descontentamento do povo e para obrigar o presidente a abandonar o governo assim que seus crimes fiscais fossem provados.
No entanto, ainda havia uma porção que permanecia apoiando o presidente a todo custo, fechando os olhos para seus crimes, fosse por conveniência, comodidade ou mesmo por estarem tão sujos quanto ele em toda essa história. A troca de favores era uma via de mão dupla e a perda dela seria prejudicial para os grandes empresários, principalmente os exploradores de combustíveis fósseis. Muitos dos grandes ricos já haviam embarcado em aviões e jatos particulares para qualquer lugar em que não pudessem ser encontrados tão cedo. Era, de fato, a opção mais sensata para suas famílias e fortunas.
O julgamento já ocorria há certo tempo, permeado por discussões atravessadas e o sorriso satisfeito de , que não poderia estar se sentindo mais plena em um momento como aquele. Manifestações e passeatas aconteciam do lado de fora do tribunal, mais pela culpabilização de Isaac que pela inocência da agente, de fato.
- Esse homem roubou os impostos que vocês pagam com todo o seu esforço e trabalho duro – o advogado de defesa dizia em frente ao júri. – Todo o suor e sangue que vocês doaram a seu país foi usado contra as suas próprias vontades e direitos. Como podem aceitar de volta à cabeça de seu Estado um homem que os roubou descaradamente em função de seu próprio enriquecimento?
- Protesto - começou o advogado de acusação, tendo seu pedido bruscamente negado sem sequer uma cogitação maior.
- Gostaria de chamar , o conselheiro de relações externas para prestar depoimento.
sentou-se ao lado do juiz, arrumando o botão inferior de seu terno antes de se ajeitar em seu assento. Estava ansioso e seu nervosismo aumentava exponencialmente ao ver a tranquilidade estampada no rosto da pessoa que mais tinha a temer por ali. Era exatamente quem corria sérios riscos de receber uma injeção letal que se portava da maneira mais impassível e controlada. Deus, como admirava isso naquela mulher.
O conselheiro respondia às perguntas de ambos os advogados, sendo o mais honesto e sincero possível, como previa o juramento que fizera nos últimos minutos.
- O senhor participou das decisões sobre a venda de armas ao Oriente? Pode confirmar essa história?
- Posso. Estive em várias reuniões que tratavam sobre as relações comerciais com outros continentes e essas vendas eram sempre um tópico central do debate. Infelizmente, o contrabando às escondidas era lucrativo demais para o governo. Eu me opus desde o primeiro momento, mas eu era apenas um contra vários que apoiavam cegamente essa margem de lucro estrondosa. Infelizmente, esse governo foi movido pelo dinheiro desde o começo e não importava o quanto eu dissesse que não apoiava, eles dariam sequência a esse câmbio de qualquer forma. O que fez foi liberar a notícia para que outras pessoas pudessem ter a voz que sozinho eu não tive e, assim, terem a possibilidade de impedir que isso prosseguisse.
“O pior disso tudo é que precisamos de uma estrangeira para abrir os olhos de um povo gigantesco desses. Ela nem é daqui, sabiam? – ria. – Como querem culpá-la por trair o próprio país se esse não é o seu país? Se querem jogar a pena sobre alguém, que seja sobre mim. Fui eu que forneci as senhas. Eu também tenho participação direta em todo o caso e sou daqui. É o sangue dos meus ancestrais que construiu esse país, bem como o dos ancestrais de todos vocês. E é por eles que eu tomei essa decisão.”
logo foi liberado, dando lugar para o depoimento do filho do presidente. Keegan West ainda trazia marcas em seu rosto, lembrando a todos da ridícula imagem que ele queria apagar. Era difícil ir contra o seu pai, mas também era incrivelmente satisfatório. Ele merecia, afinal. Aquela rebelião era muito pouco em relação ao que ele realmente poderia e deveria ter feito.
- O meu pai recebeu propinas absurdas. Financiou todas as suas campanhas presidenciais e de apoio à aprovação de leis com dinheiro dos grandes empresários. Passou por cima de toda a legislação trabalhista e ambientalista para fornecer em troca os benefícios que esses grandes produtores queriam. Ele não se importa com os trabalhadores, como tanto ama dizer. Ele não se importa com ninguém. Ele só se importa com as dezenas de zeros que entram em sua conta bancária em uma progressão geométrica de velocidade assustadora.
“Ele tentou me comprar meses atrás quando eu ameacei expor as contas do caixa dois dele. E fez de novo minutos atrás, antes de eu entrar no tribunal. Ofereceu milhões para que eu inventasse uma história qualquer que o eximisse da culpa.”
- Isso é mentira! - Isaac West gritou, levantando-se de uma só vez de sua cadeira. O advogado de acusação teve que controlar o seu cliente, prestes a explodir por causa do filho em frente de toda a corte.
- Peço licença para apresentar a prova do momento referido pelo senhor Keegan – pediu o advogado de defesa, sendo liberado pelo juiz para exibir o vídeo do acontecimento de poucos instantes atrás. Toda a corte soltou murmúrios e exclamações de surpresa.
- Não podem expor minha privacidade dessa forma! – Isaac bradava. – Editaram esse vídeo! Isso nunca aconteceu!
Uma confusão generalizada se instalou no ambiente, levando a inúmeros pedidos de decoro até que os ânimos se acalmassem – ao menos nos parâmetros possíveis de calma para um momento de tensão latente como aquele.
- O júri já tem sua resposta – anunciaram ao juiz, que aprovou a sentença.
- está proibida de retornar ao solo desse país, de forma a ser enviada de volta à sua terra natal amanhã sem oportunidade de retorno. Lá, viverá em total liberdade da forma que sua nação bem entender. Isaac West cumprirá pena domiciliar por tempo a ser decidido posteriormente e terá todas as suas contas bancárias congeladas até segunda instância. Por consequência, é claro, está destituído de seu cargo, estando proibido de retornar à vida política do país. Os demais órgãos públicos devem convocar novas eleições imediatamente.
e Keegan sentiram um peso enorme abandonar as suas costas. permanecia com o mesmo sorriso intacto em sua face. Isaac teve de ser retirado do tribunal praticamente carregado, usando todos os piores e mais sujos termos de que tinha conhecimento em seu vocabulário. Agia descontroladamente, sequer parecendo o mesmo que abusava de seu poder de convencimento e retórica em cima dos púlpitos ao redor do país.
- Você ainda me paga – Isaac cuspiu ao passar pela agente.
- Não, senhor West – respondeu pausadamente. – É você quem vai pagar.
carregava as suas malas, enquanto levava o pouco que lhe cabia debaixo do braço em uma bolsa preta. Não queria carregar consigo as coisas daquele país. Recomeçaria a sua vida de onde a tinha deixado em seu país. Fazia tanto tempo que mal se lembrava de como era sentir o aconchego de um abraço fraterno ou o amor pairando numa atmosfera familiar. Pensava se ainda reconheceria o cheiro do bolo de maçã que a mãe fazia, honrando a tradição da receita que passara por todas as gerações da família – e que ela guardara com carinho, apesar de jamais executá-la. No fim das contas, era tranquilizador saber que não estava indo rumo ao desconhecido. Pelo contrário, estava saindo de um mundo que não lhe pertencia para retornar àquele que sempre a recebera, sob qualquer circunstância. O significado de lar começava a fazer sentido dentro daquele coração preparado para não sentir absolutamente nada de bom. , após muito tempo, permitiu-se sorrir de uma forma totalmente sincera, sem ressentimentos, sem sarcasmo, sem deboche; apenas um sorriso verdadeiro.
Entraram na fila para o embarque, esperando que os passageiros preferenciais exibissem seus passaportes. Chegava a ser curiosa a quantidade de idosos naquela fila. se lembrava de seu pai dizendo que aquela era uma pátria de turismo senil. Talvez ele estivesse certo.
sentiu um corpo trombando com força ao seu, fazendo com que o casal olhasse para trás quase instantaneamente, prestes a disparar em reclamações. Acabaram desistindo quando reconheceram aquele cabelo bagunçado e o rosto amassado de sono como de costume. Tipicamente atrasado.
- Keegan? O que faz aqui? – perguntou, estendendo a mão em um cumprimento cordial.
- Decidi ir embora. Nada mais me prende a esse país. Não quero ser marcado como o filho do ex-presidente e nem viver na casa na qual o meu pai estará preso por anos. É castigo demais para mim. Queria sumir, ir para um lugar bem longe, o mais longe possível. Infelizmente, minha magnífica criatividade me arremessou para o mesmo lugar que vocês. Eu sei, poderia ter ido para outro lugar. Mas fiquem tranquilos, não pretendo ser empata foda de ninguém.
riu, enquanto deu um empurrão leve no ombro do jovem, brincando com ele. Dias atrás, jamais poderiam imaginar que estariam juntos daquela forma. Muito menos de uma forma boa como aquela. Todo o caos daqueles tempos, todos os percalços, obstáculos e problemas dificultaram o caminho, mas o entregaram àquele destino. A agente, agora, era vista de forma gloriosa entre a maioria dos habitantes do país que por fim abandonava. Alguns, por outro lado, permaneciam dizendo que ela havia cometido um erro brutal fazendo algo tão horrível. Mas, se realmente fosse horrível da maneira que diziam, como ela poderia se sentir tão bem ao embarcar de volta para casa, tendo a consciência limpa e tranquila de que havia feito a coisa certa?
FIM
Nota da autora: Essa com certeza é a história que mais me tirou da zona de conforto. No caso, ela não só tirou, ela me arremessou a quilômetros de distância mesmo, hahaha. Provavelmente, é por isso que estou tão insegura com ela, querendo jogar tudo pela janela e fingir que nunca aconteceu. Também ficou bem menor do que eu queria e esperava por motivos de tempo. Uma tristeza só. Enfim, espero que não esteja tão ruim assim, HAHA.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo.
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Stitches
04. Someone New
04. Warning
06. If I Could Fly
08. No Goodbyes
10. Is it Me
13. See Me Now
4th of the July
Side by Side
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