Capítulo único
Todos os dias olho pela janela esperando ver seu carro virar a esquina. Você virá me buscar e tudo voltará a ser como antes.
Todos os dias essa ideia me aterroriza.
As manhãs são agitadas por aqui e eu permaneço em silêncio. Nos primeiros raios de sol, ouço a casa acordar, os vizinhos abrirem suas portas e as ovelhas balirem pedindo por alimento. Sinto o chão tremer levemente quando as outras descem de seus quartos em passos ritmados para cumprir suas atividades. O cheiro de pão fresco invade cada canto da casa e faz minha boca salivar.
Estou aqui, estou viva. Não queria estar.
Emilia bate à porta e aguarda em silêncio a autorização para entrar. Os dias são iguais, sei que virá aferir minha temperatura e me dar os remédios que me ajudarão a suportar o vazio por mais algumas horas. Nas primeiras vezes fui ríspida na esperança de afastá-la, porém o senso de responsabilidade dela foi superior à minha força de vontade. Aos poucos, a permiti se aproximar e adentrar a frágil fortaleza que ergui dentro deste cômodo que se tornou o resumo da minha vida e, ironicamente, tudo que me restou. Hoje combinamos que eu a deixaria cortar meu cabelo.
— null? — a voz suave espera por um retorno do outro lado da porta.
— Entre.
Me sento na cadeira de frente para a velha penteadeira de carvalho, evitando meus próprios olhos no espelho. A pessoa que me encara tímida do outro lado do reflexo é pálida, parece feita de papel. Seus ossos saltam para fora nos ombros caídos; ela mal parece respirar. Os lábios rachados ensaiam o movimento de um leve sorriso para tentar me enganar, mas o repuxar da pele ao redor da boca entrega o incômodo em tentar fazê-lo.
Esta não sou eu. Esta é quem eu me tornei.
Me sinto dormente, como se um longo inverno tivesse passado levando toda a vida que um dia habitou em mim.
Emilia me entrega os três comprimidos diários e eu os engulo a seco. Não vou levantar antes que tudo esteja terminado sob o risco de, mais uma vez, desistir antes mesmo de começar.
— Está pronta? — me questiona gentilmente enquanto saca a tesoura do bolso traseiro.
Aceno silenciosamente em concordância, receosa de que minha voz entregue a dor latente em meu peito.
As mãos pequenas de Emilia acariciam os ralos fios de cabelo que me restaram, opacos, finos e sofridamente sem vida. Um dia, em uma realidade que parece ter acontecido décadas atrás, joias adornavam-me a cabeça; diamantes, rubis, esmeraldas em peças de ouro marcavam a nobreza em meu sangue. Agora, tudo que restou foi o medo de sair desta casa isolada entre as montanhas, pois sei que é impossível fazê-lo com vida.
Fecho os olhos. Não quero lembrar das vezes que você elogiou minha aparência, a elegância com que me portava, o quão graciosa eu parecia ao seu lado. Isso para que, ao ficarmos sozinhos, você me chamasse de imunda e me privasse de alimento caso minha representação pública não estivesse ao seu nível.
Ouço o som metálico da tesoura fazendo seu trabalho e sinto o cabelo roçar em meus braços nus conforme vai de encontro ao chão.
É difícil me desprender da imagem moldada por você que criei de mim mesma Quando, no silêncio da noite, imagino que você aparecerá na manhã seguinte com um buquê de flores silvestres e um colar de pérolas para se desculpar por ter passado um pouco dos limites em uma reação a algo que, obviamente, foi culpa minha. Se eu me comportasse melhor, fosse mais esforçada, cuidasse mais de minha aparência e reprimisse veementemente meus maus hábitos, certamente tal excesso seu não aconteceria de novo. Não até a próxima vez em que eu não correspondesse às suas expectativas, ou que um de seus amigos me elogiasse deliberadamente, ou que meu riso soasse mais alto que o tom da sua voz.
Não tem mais volta. Assim como a pilha de fios no chão não retornarão para minha cabeça, eu também não retornarei para você, tampouco para mim mesma. Só eu sei o quanto arrisquei para me permitir sobreviver. Apenas sobreviver. Porque viver é algo que não me é mais possível. Sua sombra está em todos os lugares, como se não bastasse sua voz assombrando meus sonhos.
— Está pronto, querida. — Emilia repousa as mãos sobre meus ombros.
Abro os olhos e me deparo com o vazio. Os fios estão à altura das orelhas e eu estou vazia. Estou morta em vida e não me assusto com a impressão de que não há sentido em nenhuma dessas tentativas falhas de me ressignificar além do brinquedo quebrado que você deixou para trás.
Não há futuro. Não há esperança. Nada, somente o vazio.
Fim.
Nota da autora: Olá, obrigada por ter chegado ao fim da história.
Caso tenha se identificado com alguma das situações expostas nesta obra de ficção, busque ajuda. Relacionamentos abusivos não devem ser normalizados sob hipótese alguma.
Novamente, obrigada.
Carinhosamente,
Nimuë
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