PARTE I
I used to be so tough
Never really gave enough…
— Richard enviou uma mensagem dizendo que não há absolutamente ninguém na praça. Está deprimente filmar lá, palavras dele. Devemos alterar a programação?
null não havia dado mais do que três passos para dentro do estúdio quando um dos estagiários correu em sua direção anunciando o problema. Naquele dia em específico, acordara com um aguçado pressentimento de caos. Levantou-se meia hora mais cedo do que o habitual, comeu uma fatia de pão a mais — para ter energia suficiente —, prendeu os cabelos em um coque alto ee saiu de casa. null chegara ao estúdio quarenta minutos antes do que deveria — e, por isso, deu graças aos céus. Carregou seu olhar em direção aos olhos do estagiário agitado em sua frente e murmurou:
— Bom dia.
Depois, a mulher respirou fundo e fechou os olhos; quase como se estivesse conferindo um cardápio mental de pautas a serem abordadas na edição daquele dia. Havia mais de dois anos que fora promovida ao cargo de editora-chefe adjunta do Bom Dia, Rio Grande — jornal matinal de seu estado —, e todos os dias ainda pareciam como o primeiro. A cada empecilho, seus dedos tamborilavam contra as pastas que sempre carregava e, em suas têmporas, veias tornavam-se aparentes. O poder não consiste em bater muito ou muitas vezes, mas em acertar em cheio, era o que null respondia a todos que tentavam insistir que a mulher cobrava-se em demasia. E ainda acrescentava: Honoré de Balzac, fundador do Realismo na literatura moderna.
— Coloque no ar Clöe, ela está em Agudo para uma reportagem sobre vacinação contra pólio e meningite C. Depois, siga para a matéria de Archie. Ele está na Biblioteca Pública e pode entrevistar a realizadora da exposição — as palavras saíram rapidamente e fizeram com que o estagiário prendesse uma das canetas entre a ponta dos dedos e tomasse nota de cada sílaba. O menino assentiu com veemência e respondeu, antes de distanciar-se:
— Sim, chefe.
— EI! — null aumentou o tom de voz, fazendo com que o menino colocasse sua atenção nela mais uma vez. — Já disse para que me chame de null — e sorriu.
Antes de seguir a caminhada, a mulher inspirou profundamente e tomou um gole do chá de oolong que trazia em sua xícara. Deu mais uns quatro ou cinco passos antes de sentir o leve pesar de uma mão em seu ombro. null virou-se para encontrar uma das cinegrafistas, que pouco precisou dizer; sua expressão estampava a mais conhecida das frases do cotidiano de null: temos um problema.
— Diga.
— Estamos completamente sem luz no setor dos camarins. Não há nada de eletricidade. Acredito que tenha sido a chuva de ontem à noite e penso que pode ser grave, não vamos encontrar um técnico a essa hora da madrugada.
null deixou com que a colega falasse. A mulher em sua frente embolava as palavras e respirava pouco. Seu rosto se contorcia em caretas e suas mãos iam de um lado a outro, gesticulando sem parar.
— Ligue para Daian — a editora respondeu sem alterar a serenidade no tom de voz. — Ligue do telefone do setor técnico, ele irá atender. Peça por um ou dois nobreaks e também por três extensões. Diga que é urgente, Fabi.
Fabi assentiu e, em dois toques, estava longe. Tão longe que null a perdeu de vista antes mesmo de piscar os olhos. Reprimiu um singelo sorriso que queria formar-se em seu rosto. Raramente errava, o dia seria mesmo caótico. As pessoas ao seu redor admiravam-se com o extremo autocontrole de null. Pouco se importava com o que lhe acontecia, era tão resistente e firme com a vida que era necessário muito para fazer com que saísse do eixo. null, como pode?, perguntavam-lhe as amigas. A mulher balança os dois ombros e em um sopro respondia: “apenas não me importo”.
A editora respirou profundamente pela segunda vez e tomou mais um gole do chá. Caminhou, dessa vez sem interrupções, em direção à sua sala e começou a organizar suas folhas-guias, antes de seguir para a reunião de pauta.
null vivia bem. Regradamente bem. Morava em um apartamento amplo, bem localizado, no bairro Floresta, na capital Porto Alegre. Amava suas janelas grandes e amava os primeiros raios de sol que, sorrateiros, sempre a encontravam acordada antes mesmo de o despertador tocar. null ia ao supermercado duas vezes por mês e organizava as contas com um aplicativo pelo telefone. Frequentava a academia três vezes na semana, lia regularmente e escovava os dentes apenas com cremes dentais com sabor hortelã. Não comia arroz e evitava frutas cítricas, café, farináceos, chocolates ao leite, cerveja e glúten. null gostava de dois sabores de chá: oolong e camomila, e tomava-os diariamente, um ao acordar e o outro antes de dormir. Durante as refeições, assistia a noticiários e tomava notas mentais — que eram transpostas a uma série de planilhas em seu Macbook. Sabia de cor cada detalhe do Bom Dia, Rio Grande e conhecia seu público como a palma de sua mão, sem jamais precisar recuar em alguma decisão tomada. null era impenetrável, vivia para o trabalho, porque amava o que fazia. Raramente fora vista estressada ou perdendo a paciência, estava sempre com a mesma expressão neutra que delineava seu rosto.
— Estou indo — murmurou para Karen, recepcionista e secretária geral do Jornal.
— Boa viagem, null — a menina sorriu, mas a editora permaneceu com o semblante inexpressivo; seus olhos buscavam alguma coisa.
— Não esqueça, por favor: estarei fora por dois dias, mas meu número está à disposição. As folhas para a reunião de pauta de amanhã estão em cima da minha mesa. E também deixei uma lista-sugestão para cobrir furos.
Karen apertou as bochechas contra os dentes para segurar a risada que queria fugir-lhe por entre os lábios.
— Certo, null, boa viagem. E veja se vai mesmo, hein? Não fique com a cabeça aqui.
null escorreu o lábio inferior e ofereceu um sorriso singelo à colega. Caminhou em direção à saída do estúdio e procurou sentir a brisa leve que lhe tocava a pele do rosto. Há anos, a mulher percorria o mesmo caminho do trabalho para casa; conhecia cada detalhe das ruas nas quais caminhava. Não era natural de Porto Alegre, mas sentia-se em casa na capital. null costumava dizer que nada no mundo conseguiria fazer mudar-se de lá. Gostava do agito e dos escondidos cantos de silêncio; da manifestação irrefreável de todos os espíritos. Da cidade natal — um canto difícil de achar no mapa com pouco mais de dez mil habitantes —, null trazia as recordações de uma infância tranquila e quase rural. Seus pais plantavam milho, morangos e algumas folhas verdes; eram pequenos agricultores e cuidavam de alguns cavalos. Ainda que se divertisse muito quando menor e que soubesse de cor como encilhar um cavalo, null havia abandonado as botas de borracha e o chapéu quando decidira que cursaria jornalismo na faculdade. Dedicava-se, então, em tempo quase que integral aos estudos e aos sonhos de morar cidade grande.
Quando fez a mudança, null levou consigo a melhor amiga de infância, null, que estudou Agronomia na Federal e retornou à Três de Maio para aprimorar a produção local. Depois de despedir-se da amiga, null deixara aos poucos de sair para compromissos que não fossem do trabalho. Amava trabalhar e trabalhava por prazer, que essa era sua própria fonte de motivação; não acompanhava as colegas em bares ou karaokês. Raramente — em regra, uma vez por mês, na primeira terça-feira —, saía para tomar um ou dois copos de chopp artesanal com Richard, um dos âncoras do jornal.
E, naquele exato instante, enquanto segurava sua mala de mão e apertava o botão do elevador, abria mão de todas as regras ao quebrar sua tão preciosa rotina: estaria fora pelos próximos dois dias; viajaria até o interior para o aniversário de casamento de seus pais. null suspirou fundo e apertou os olhos, já estruturando mentalmente as respostas que daria. “Sim, faz tempo!”, “Pois é, eu cortei o cabelo”, “Não, eu e Richard não estamos saindo”… Deus, aquele fim de semana seria longo!
PARTE II
And then you caught my eyeGiving me the feeling of a lighting strike
Deveria existir um limite para a capacidade de um corpo de ser chacoalhado de um lado para o outro — deveria existir, pensava null. Estava há exatas duas horas percorrendo em um ônibus meia-boca uma estrada de chão esburacada. O trajeto para a antiga casa, o sítio da família null, nunca fora tranquilo, mas parecia ter piorado com o tempo.
A mulher segurava em seu colo o computador aberto e redigia um email em resposta a uma solicitação de um sindicato da capital por espaço no jornal. Digitava as letras com calma, porque o tremelico da tela a fazia ficar com a visão turva e estava lhe rendendo uma bela dor de cabeça. null insistia, ainda assim, em trabalhar. Era isso que gostava de fazer.
Ao seu lado, sentado no banco próximo ao corredor, um senhor dormia tranquilamente, como se estivesse deitado em um confortável colchão, escorado em um travesseiro de plumas. No geral, o ônibus era silencioso e andava o mais rápido possível, ainda que isso representasse uma velocidade de sessenta quilômetros por hora. De qualquer maneira, pressa era algo que null não tinha — isso porque jamais se atrasava, coordenava sua agenda com vinte minutos de antecedência para tudo. Você se adianta para estar adiantada, era o que null dizia e que a fazia sentir orgulhosa. Nesse sentido, tinha menos pressa ainda quando se tratava em retornar ao interior de Três de Maio para rever os parentes distantes e as vizinhas encrenqueiras.
Como se não possuísse qualquer tipo de tecnologia automotiva, o ônibus freou em um solavanco, fazendo com que o Macbook de null escorregasse por suas pernas, quase mesmo caindo em direção aos seus pés. O rápido reflexo de seus dedos fez com que null respirasse aliviada ao perceber que havia protegido a peça de um possível fim trágico.
Estranhou a parada brusca e a abertura de portas; null achou mesmo mais estranha ainda a movimentação de pessoas que se iniciou para fora do ônibus. Por isso, cutucou o senhor ao seu lado, que, com um ronco alto, acordou-se:
— Sim?
— Com licença, o senhor sabe por que o ônibus parou aqui?
Foram necessários alguns segundos justos para que o homem recobrasse a consciência. Olhou ao redor, por entre os bancos e para fora da janela e, com um aceno de cabeça, respondeu:
— É o fim da linha.
— Como?
null não visitava os pais há algum tempo; não percorria mais aquelas estradas há anos. Mas se havia uma coisa que ficara gravada em sua memória, fora o trajeto que fazia com null para irem à cidade. Àquela pequena aventura, tudo era afruveitável: as pedras, os buracos, as plantas; null conhecia par cœur cada canto da estrada até o sítio. Portanto, o susto ao ouvir as palavras do senhor fora grande. Aquela não poderia ser, de fato, a última parada.
— O ônibus não vai mais às linhas rurais, minha jovem. Há quanto tempo não vem para casa?
As palavras duras, quase ocas, ameaçaram o bem-estar de null. Havia muito, realmente, que não voltava. Estava tão acostumada a viver como se fosse apenas ela que nem mesmo pensava em familiares ou em épocas longínquas em que seus dias não fossem regrados pela agenda minuciosa que tinha.
null engoliu em seco e agradeceu, já pensando em poupar as palavras para economizar a energia que gastaria para caminhar até a casa dos pais. Guardou o computador em sua bolsa, arrumou os fios de cabelo mais rebeldes e desceu do ônibus junto a todos os outros. null encontrou sua pequena mala lilás de rodinhas e iniciou a peregrinação. Não estava distante, não tão distante. Seria uma jornada interessante — respirar o ar puro e aproveitar a companhia dos próprios pensamentos.
Ouviu o toque do próprio telefone quando estava a metros de distância da parada. Caminhava sozinha, todas as outras pessoas, que uma vez estiveram em sua companhia, haviam se dispersado por entre as estradas laterais e estreitas. null caminhava a passos curtos em um ritmo contado: um, dois, três, quatro; um, dois, três, quatro; um, dois… O sol tímido encontrava sua pele desprotegida e a agraciava com indícios de calor, que logo eram refrescados pela brisa suave permanente.
O dia estava bonito e o silêncio realmente era uma proposta interessante, null estava imersa em recordações em meio ao grande esforço que fazia para carregar a bolsa, a mala e as próprias emoções contidas. Por isso, quando ouviu o toque distante, por um segundo, null assustou-se.
— Richard?
— Ei, oi! — o homem do outro lado da linha parecia sorridente. Sua voz era tranquila. — Eu apenas gostaria de saber como foi de viagem. Já chegou ao local em que Judas perdeu as botas?
— Basicamente, o calcanhar do mundo. Acredita que estou tendo que ir caminhando? — null murmurou e apertou os olhos, como fazia de costume. — O ônibus não alcança o fim da linha.
— Putz! É sério? É seguro?
— Rich, eu conheço isso daqui como conheço a escala de humores de Débora na segunda de manhã. Tu sabes que eu sei direitinho quando ela está feliz.
— Isso é inegável, tu sempre acertas.
Um dos típicos acordos silenciosos aconteceu — naqueles momentos, nem null nem Rich falavam coisa alguma. Era como se a expiração de um conversasse com a inspiração do outro e, por incrível que pareça, entendiam-se. Ambos poderiam passar longos minutos naquela conversa silenciosa que nem mesmo entediavam-se. Exatamente por isso que, no momento em que a respiração de null entrecortou-se, Richard soube que havia algo errado.
— O que foi, null?
A mulher, que prendia o telefone entre a orelha esquerda e o ombro, agora segurava a pequena mala em frente ao corpo e estava parada no lugar. Sussurrando, respondeu ao colega:
— Não se assuste, mas tem um boi me encarando.
— Um boi?
— Por favor, não ria. Ele está vindo até mim. Richard, socorro!
null sentia o coração acelerado e mantinha os olhos presos no animal em sua frente. Nem mesmo atreveu-se em olhar ao redor para pedir ajuda — tornou-se insensível a qualquer uma de suas sensações; não ouvia, não sentia. Com a boca seca e as mãos molhadas, null direcionou um passo estreito para a margem da estrada. Deu mais um e mais um. Não entendia as palavras de Richard e provavelmente as respondera no modo automático. Pensava apenas em sair da linha de mira dos olhos do boi furioso.
Como se estivesse jogando com a editora, o animal deu um passo a frente e, então, mais um. Caminhava com calma, mas a mirava com intensidade. Seguia na direção de null, fazendo-a recuar cada vez mais, de maneira mais ligeira. null não se importou com os seus sapatos, que afundaram no barro da grama que havia. Não se importou com as rodinhas da mala e quase esqueceu-se até mesmo de fazer força para prender o telefone contra a orelha. Por estar tão concentrada, nem mesmo percebeu a característica lamacenta que o barro adquiriu e o singelo desnível que seus pés alcançaram. Desequilibrou-se e teve tempo apenas de, por puro reflexo, soltar as mãos da bolsa e da mala, o resto mergulhara com ela açude abaixo.
null viva bem, regradamente bem. Na cidade, em seu apartamento, com a sua rotina. Naquele exato segundo, com o corpo submerso no açude alheio e com o seu telefone em pane, null sentiu que não conseguiria recobrar a razão. Submergiu com calma, limpou os olhos e procurou, fora da água, o maldito boi que a havia encurralado. O encontrou distante, quase como uma lembrança, caminhando na direção oposta. A mulher tinha mesmo vontade de rir. Rir com vontade, como não fazia há tempos. Quando fora a última vez que aventurara-se em um açude sujo como aquele?
null recuperou-se do susto com uma explosão de gargalhadas enquanto saía da água lamacenta em que havia se colocado. Seu cabelo estava embarrado; suas roupas, completamente molhadas e seu telefone não apresentava mais sinais de vida. A editora suspirou aliviada quando olhou na direção da bolsa e assimilou que seu computador e seus arquivos estavam a salvo.
null teria rido mais se não fosse pelo pigarreio tímido que surgiu em seu campo de audição. A mulher virou o corpo e encontrou um homem parado próximo ao próprio carro, que estava estacionado na beira da estrada.
— Olá — o rapaz murmurou. — Me desculpe, a vi ao longe, mas não cheguei a tempo de ajudá-la.
null suspirou, envergonhada ao se perceber analisada pelos olhos verdes do desconhecido. Era um homem bonito, aquilo era fácil de constatar. A mulher teria adorado conhecê-lo, contanto que fosse em outra ocasião. Uma em que estivesse, pelo menos, seca e sem lama em sua pele.
— Oi — respondeu, ainda sem se mexer. — Claro, sem problemas. Foi… Uma aventura.
— Você não é daqui, certo? Me chamo null.
null sorriu — de maneira muito atraente, null era obrigada a constatar — e caminhou na direção da mulher, que ainda permanecia parada próxima ao açude.
— Não, de fato. Eu vim visitar meus pais, me chamo…
— null — o homem completou e, ao mesmo tempo, chegou próximo o suficiente para olhá-la nos olhos.
null era mesmo uma mulher bonita. Seus traços eram harmônicos, graciosos. Seus olhos destacavam a seriedade de sua personalidade, tão evidente ao olhar curioso de null, que analisava-a com atenção.
— Devo me preocupar? — null brincou, com o coração levemente acelerado.
— Eu devo estar parecendo um completo louco — null balançou a cabeça, em rendição. — Desculpe mais uma vez. Me chamo null, sou o veterinário de Três de Maio; atendo toda a região aqui do interior. Seus pais… Eu atendo muito sua família, null. Seus pais falam muito em ti.
A mesma pontinha de culpa apareceu, ainda que discreta, no peito da mulher. Quando percebeu que null lhe estendia a mão para um cumprimento, entretanto, a culpa deu lugar à timidez.
— Muito prazer — o homem lhe soprou.
Para null, não haveria momento menos oportuno para conhecer alguém. Seus olhos ardiam e seu cabelo com textura lamacenta a deixava levemente enjoada. Se recompôs rapidamente, a tempo de estender a mão e cumprimentar o até então estranho.
null ajudou a editora com a bagagem e também com a carona. Afirmou que pouco lhe importava o tecido do banco do carro e que o mais importante era chegar em segurança. Estavam os dois em silêncio. O veterinário dirigia com calma e, a null, restara o eco de seu pequeno tombo. Prendeu a respiração quando um pensamento subitamente tomou espaço:
— Tu gravou?
null demorou para compreender. Apertou os lábios em uma fina linha e intercalou o olhar entre null e a estrada.
— Não…
— Graças! Senhor! Por Deus!
— Jesus? — o homem arriscou, recebendo em resposta um riso singelo. A mulher desarmada e confusa que encontrara na beira do açude já dava espaço à personalidade natural de null: contida.
— Eu só pensei que viraria um belo meme na internet — null confessou, apoiando a cabeça sobre a mão, que estava escorada na janela do carro. — Iria parar naquele canal de furos de jornais.
null riu e assentiu. Não precisou lhe perguntar sobre jornal nenhum, a conhecia de tempos. Acompanhava seu trabalho e também ficava sabendo das peripécias da infância de null por seus pais, que sempre acabavam tocando no assunto. O homem, entretanto, apenas não esperava que fosse se sentir tão íntimo de null ao vê-la. null sabia que não a conhecia, de fato, mas sentia em seu peito como se o fizesse.
O coração de null comportava-se de maneira diferente, curiosa. Observava o motorista e sentia uma pontinha de excitação crescente em seu peito. O sorriso fácil do homem contrastava com seus movimentos sempre tão calculados e isso a fazia sentir vontade. Enquanto aproveitava a carona, sentia vontade de fazer perguntas, apenas para fazê-lo falar. null até mesmo esquecera-se da lama; lembrava-se do ocorrido apenas para soltar uma gargalhada curta.
— Tu nasceu aqui? — perguntou null. Sabia que estavam chegando, que estavam quase na beira do sítio de seus pais, mas por algum motivo não queria verdadeiramente descer do carro. null sentia-se como na época da escola, quando caminhava quatro quadras a mais apenas para acompanhar as amigas por um pouco mais de tempo.
— Sim — null respondeu e guardou um sorriso. — Mas me mudei ainda criança. Voltei depois de adulto.
— O bom filho à casa torna — null respondeu e suspirou, sentindo o peso de tais palavras.
O CTG estava todo decorado em tons dourados, uma banda gaudéria animava a festa de cima do palco e as crianças corriam rapidamente de um lado para o outro. null estava parada próxima à copa. Vestia uma blusa de mangas compridas e gola branca e uma longa saia vermelha. Seu cabelo pendia para um lado e entregava-lhe a suavidade de um anjo.
— Então aqui está você.
A voz que pegou a de surpresa pertencia a null, que aproximou-se devagar. Parou em seu lado, com o corpo igualmente virado para frente. O homem limitou-se em olhá-la três vezes — tinha planejado o fazer apenas uma, mas null estava realmente deslumbrante.
— Achei que tu nem me reconheceria — a editora brincou, sentindo seu sangue circular mais rapidamente pela presença charmosa de null.
— Eu perceberia seus olhos em qualquer lugar, null. São únicos.
null virou o rosto rapidamente, assustada com a declaração repentina. Temeu entregar-se tão facilmente, as bochechas coradas indicavam que null realmente a fazia sentir. Seus olhos escancarados encontraram um sorriso calmo e sincero.
null pensou em responder, considerou três ou quatro frases oportunas e calculou mentalmente seus possíveis desfechos. Não conseguiu, entretanto, escolher entre uma delas, porque sentiu a mão quente de null tomar-lhe os dedos.
— Dance essa comigo.
— Eu…
Os cálculos de null foram por água a baixo. null inserira uma variável não prevista e bagunçara seus caminhos já conhecidos. A editora aceitou a mão do homem e, juntos, caminharam até o meio da pista de dança. Sua mão se posicionou no ombro de null e null sentiu quando sua cintura fora agraciada pelo toque do veterinário. Tão delicado e firme, tratando-a como se fosse uma espécie de preciosidade.
null conduzia a dança com uma maestria de quem dançava a vida inteira. null respondia à altura, fizera por anos parte do grupo de danças tradicionalistas da escola. Os dois dançavam como se se conhecessem.
— Sua mãe comentou sobre as aulas de dança — null pronunciou em tom baixo, quase no ouvido de null, enquanto seguia guiando-a.
— Isso não é justo, entende? Tu sabes demais a meu respeito e eu de ti não sei nada.
— Sabes que gosto de oferecer caronas — o homem brincou.
— E que gosta de The Kooks— null respondeu, fazendo null olhá-la nos olhos. — Eu reparei.
Um ou dois segundos de silêncio se passaram.
— Cresci em Pantano — o homem murmurou. — Me graduei em Porto Alegre e voltei para cá.
— Por quê?
Ao mesmo tempo em que a rodopiou e a recebeu em seus braços, null respondeu-lhe:
— Amor. À terra.
— Tu voltoui> por amor?
— E tu, null, partiu pelo quê?
null sentia como se seus lábios estivessem mais secos do que o costume. Seu coração acelerava em uma batida a cada vez que inalava o aroma fresco do perfume de null. null não estava acostumada a este tipo de situação; a estar exposta a tantas mudanças e a alguém tão interessante. No dia-a-dia, nutria pouco interesse pelos outros — não por maldade, mas por veracidade. Simplesmente não lhe importava quem eram, o que faziam e por que motivo viviam daquela forma. Entretanto, naquele momento, sentia como se tudo estivesse rápido demais, um time-lapse de sentimentos com os quais null não estava acostumada a conviver. null havia lhe prendido a atenção e nada ao redor parecia capaz de desconcentrá-la.
— Me chame de null — a editora pediu, buscando com seus olhos a receptividade do olhar de null.