FINALIZADA

Delírio

— Chame o meu nome, Hyuck.
A voz doce queimou a pele de Haechan. Ele fez uma pausa, absorvendo o vento gelado e as sensações que o acompanhavam como se nada daquilo existisse.
Nome? Qual era o nome que ele devia chamar? Como um nome acabaria com toda aquela escuridão morna que rodeava sua panorâmica?
Não havia nada, em lugar nenhum. Ele não se lembrava de onde havia parado pela última vez, onde havia parado para que terminasse ali, mas a voz iluminava sua mente. Tanto a mente quanto o coração. A voz. Aquela que o acompanhou, aquela que…
— Você estava aqui — disse ele, sem saber realmente a posição de sua boca — Estava aqui há semanas atrás. Estava aqui, aqui… — e ele parou de novo, pois não sabia onde era aqui. Não fazia a menor ideia dos pormenores que cercavam aquela realidade.
Ele não sabia direito o que estava procurando. Há meses atrás, o tempo mais recente que se lembrava, estava procurando seu pai, um homem com apenas o primeiro nome que havia sumido da cidade de Gwangju um pouco depois que ele nasceu. Haechan já tinha seus 22 anos, já tinha um diploma superior, já tinha experiências tranquilas e normais que garotos de 22 anos tem pra contar, mas nunca teve algo que sempre pesou seu coração pela falta esmagadora: um pai. Ou a tentativa de busca por ele.
Só seria mais interessante dizer por aí que pelo menos havia tentado.
Mas isso foi há um tempo. Ele não encontrou nada. E, se estava tão determinado assim, não desistiria facilmente. Mas então, as lembranças estavam se descascando, definhando, descendo por um triturador de pia à medida que olhava em volta e só via escuro. Escuridão total. Não sabia como estava vendo porque, teoricamente, não tinha olhos, mas estava ali. Alguma coisa. Alguma coisa que era acionada pela voz melodiosa que era familiar apenas ao seu coração, não à sua mente.
Ele a ouviu soltar uma risada fraca.
— Eu estou sempre aqui. Estou sempre com você.
— C-como? — ele tentou se mover. Não sabia o que pretendia fazer quando a encontrasse, mas permanecer no escuro seria ainda mais idiota. Não se conseguia respostas com os pés e braços plantados daquele jeito.
— Você sonha. E quanto mais sonha, mais eu permaneço.
— Estou sonhando agora?
— Você está sonhando sempre.
Haechan franziu o cenho. Se fosse um sonho, era o mais maluco que já teve, um sonho com a melhor fantasia de realidade do mundo, um que o fazia sentir as coisas em carne viva, nos mínimos detalhes.
Ele pensou em si mesmo caminhando pela rua como um espírito vivo, passando na frente de igrejas e hotéis onde perguntava a todos quem era Bror, e alguém deve ter percebido perceptivelmente sua expressão clara de um homem que buscava demais e dormia de menos.
Ele disse após um momento de silêncio:
— Então é sempre a mesma coisa? — perguntou, com um singelo ruído — Os sonhos são os mesmos? Porque sinto que já estive aqui antes.
— Geralmente não são os mesmos. Mas você está preso na dobra do tempo, então é como parece.
— O que quer dizer?
— Que suas lembranças estão sendo arrancadas de você, uma a uma, dia após dia. E enquanto não se vê livre de todas, a cada vez que fechar os olhos, vai ficar um pouco preso no lapso do tempo.
Haechan não soube o que responder. Era difícil se comunicar com uma sombra, com uma voz ecoando na escuridão, com a impressão de uma presença. Ele mesmo mal sentia a sua própria presença, e era incômodo achar que se mexeu quando na verdade não se tinha certeza. Mas o importante é que escutou, palavra por palavra, da frase entoada pelo timbre fantasma, e cada músculo de seu corpo imaginário se retraiu.
— Você disse preso?
— Bingo. Mas não se preocupe, é temporário. Um sonho do qual você irá acordar.
— Que tipo de sonho é esse? — perguntou, e novamente buscando formas de se mover e perceber — Quem é você?
— É uma pergunta difícil de responder. Qualquer coisa que eu respondesse seria uma meia-verdade. Tipo se eu dissesse que hoje é véspera de Natal quando na verdade estamos na primavera.
— Isso não é uma resposta. Por que estou preso?
— Não tenho certeza se é certo te contar a outra metade. Eu sigo ordens, Hyuck — ele quase pode jurar que ela estava sorrindo — Por mais que sejam ordens severamente enjoativas, já que todos os dias preciso repetir o mesmo discurso para você.
— Todos… os dias? — sua voz falhou. Um pânico gelado se apoderou de todas as suas entranhas. O lapso do tempo — Por que… Por que minhas lembranças…
— Você não percebeu sozinho que não deve procurar quem não quer ser achado? — a voz disse incisiva. Haechan permanecia imóvel, sem controle do próprio corpo (ou do que achava que era seu corpo) — Além disso, ficar preso no lapso do tempo não significa morte. O seu corpo apenas não vê o tempo passar como as pessoas normais. Toda vez que se levanta, talvez tenha acumulado mais horas de vida do que as pessoas normais e chegue aos 30 anos com essa mesma carinha de 22, mas não causa nenhuma mudança significativa. Vamos terminar o trabalho quando tivermos pegado tudo.
— Por que? — ele voltou a perguntar, agora mais afoito — Por que querem minhas lembranças? Por que estão fazendo isso?
— Porque são as ordens do seu pai — respondeu ela — E ordens muito expressas. Mas não se preocupe, não pegaremos tudo. Só as que ele está presente.
As que ele estava presente?
Elas existiam?
Mas seu pai não estava presente em nenhuma lembrança. Não estava presente em nada. Exatamente por isso ele o estava procurando.
O que aquela voz dizia não parecia nem um pouco verdade.
— Não sei do que você está falando. Ele não…
— Ah, ele sim. Ele sim.
E o mundo de Haechan rebobinou uma, duas e até cinco vezes. Agora sim a coisa parecia estar parada bem ao seu lado, parecendo viva, presente, quente como outro ser humano. Ele sentiu as paredes do lugar sombrio balançarem, um ardor no peito imaginário que esquentou o ambiente como se o fogo ardente no nariz estivesse literalmente preparando-se para incendiar o universo.
— Ele morreu — Haechan conseguiu proferir, de repente apressando-se para isso quando percebeu que o tempo, aquele maldito tempo, iria recomeçar a correr a qualquer momento — Se não o encontrei, é porque ele morreu. Não pode ser, faz menos de 1 ano…
— Chame o meu nome, Hyuck.
— O quê…
— Meu nome.
— Não sei o seu nome.
— Pode descobri-lo.
— Como posso descobrir isso? Não quero essa conversa. Eu só quero a v…
— Quer o quê?
— Quero a verdade! Só quero a verdade!
A risada esmagadora da voz atravessou as 4 paredes da dimensão escura, e Haechan sentiu mais medo do que qualquer outra coisa.
— É isso. Meu nome. Sou a verdade — e então, brotando de algum buraco da atmosfera bem em frente ao seu nariz, Haechan viu os olhos bondosos e doces da coisa, sentindo ao mesmo tempo desespero e uma estranha paz — Nossa sessão acabou. Obrigada pelo seu tempo.
E então, ele tinha os pulmões sendo lotados de ar e seu corpo real, lotado de carne e ossos, sendo impulsionado para cima, o suor empapando sua camisa azul-petróleo como uma cachoeira nascida do couro cabeludo.
Ele olhou para o relógio na mesinha de cabeceira. Tinha se passado apenas 1 minuto desde a hora em que se deitou. E mesmo assim, seu corpo estava relaxado e estático, como se tivesse embarcado em um longo e tranquilo sono que durara a noite inteira.
Mesmo assim, seu coração pulsava com tanto desespero e agonia que parecia explodir a qualquer momento. Parar. Morrer. Ele parecia que ia morrer. Mesmo que parecesse impossível que alguém em uma camisa polo azul-petróleo pudesse morrer de qualquer outra coisa que não uma doença cerebral aos oitenta e seis anos. Possivelmente também em uma partida de tênis.
No entanto, ele começava a retroceder as batidas à medida que seu cérebro acalmava, mudava concepções, trazia o sono mais uma vez. Ele tentou se manter sentado, tentou encarar a noite além da janela do quarto, pensando o que tinha acontecido para que levantasse daquele jeito, mas não havia para quem perguntar. Só para a sua mente. Apenas para ela.
E ela o dizia para voltar a se deitar e dormir.
Amanhã ele iria ao mercado. Começaria as aulas da pós-graduação. Encontraria seus amigos em uma festa de aniversário de uma garota que não conhecia, mas que queria muito conhecer. E tinha mais uma coisa para fazer…
Tinha mais uma coisa…
Mas o medidor mágico de suas tarefas estava com defeito. Devia ser o sono. Outra hora ele pensaria isso. Lembraria da última coisa que precisava fazer.
Agora ele só queria dormir. Para que recuperasse o tempo. Recuperasse memórias que nem sabia que lhe foram tiradas.


Fim


Nota da autora: Sem nota.


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