Capítulo Único

China em 1800.

 

            Seu pai costumava gostar da natureza, tanto por sua beleza e originalidade quanto por sua utilidade como comparativo garboso para os olhos negros e silhueta esbelta de sua amada. Era um poeta nato, pelo menos acreditava que sim quando tinha apenas seis anos de idade. Suas palavras, na maior parte do tempo, soavam sábias e transmitiam uma calmaria infinita.

            Lembrava-se de acordar de manhã e ouvi-lo falar sobre o sentimento de esperança que o amanhecer emanava. O frio cortava seu rosto e a corrente de ar límpido e gélido enchia seus pulmões, sendo isso o suficiente para dar início ao dia com louvor. A promessa de novas oportunidades eram lidas por ele nos raios de Sol que despontavam timidamente no horizonte, por detrás dos montes. E ela nunca deixou de crer na capacidade que a claridade pioneira natural tinha de fazer seus dias mais felizes.

            Era estranho pensar que depois de tantos anos - 19, mais especificamente –, sequer via o dia nascer, mesmo depois de ter preservado aquela doutrina por longo tempo após o falecimento inopino de seu patriarca. Em razão de seu ofício atual, despertava de seu sono cotidiano após as duas da tarde, em contrapartida, mantinha-se desadormecida durante toda madrugada, era o mínimo a se exigir do bordel mais aclamado da província de Cantão ou de qualquer prostíbulo.

            Já ouvira alguns relatos de pessoas que passaram por experiências de quase morte e reviveram momentos felizes de suas vidas em seus prováveis últimos minutos. Apostava que era por esta razão que seu pai e seu legado vinham à sua mente naquele momento em que sua carne tremia com a expectativa do perigo, seus olhos não podiam conter a água que transbordava e seu coração se comprimia a cada gargalhada estúpida dos invasores que encurralavam as moças do bordel de Guangzhou.

            Naquele dia havia despertado com uma sensação estranha, sabia que algo estava para acontecer. Ela tinha essa coisa, como um sexto sentido, desde muito jovem. De certa forma, não se surpreendeu com tal evento desagradável, mesmo que não estivesse preparada para encará-lo.

            A noite mal caira, o céu ainda era colorido pelos poucos feixes que sobraram do Sol que partia, no entanto a escuridão daquele dia se adiantara. Assim como o amanhecer propagava a esperança digna de um novo começo, o crepúsculo incitou-lhe o fim daquilo que já não era bonito há algum tempo, como se a pouca luz fosse ser a última claridade que veria dali em diante. Em termos literários, certamente era.

            Os audaciosos saqueadores que as cercavam, com uma explícita ameaça e sorrisos podres, eram facilmente reconhecíveis. Os desenhos na pele, roupas negras desajustadas, porém sofisticadas - provavelmente roubadas por não serem ideais ao físico de quem as trajava –, as armas e… Partes do corpo compostas por metal ou madeira, denunciavam o que eram.

Piratas.

Enquanto tomavam para si moedas, jóias, trajes e comida, as cortesãs amedrontadas encolhiam-se nos cantos, abominando até mesmo o ato de respirar, no instante em que tudo que almejavam era não serem notadas, e então poupadas de uma morte violenta ou algo ainda pior.

– Ora, a milady não acha mesmo que passaríamos por aqui e não degustaríamos o melhor serviço que essa cidade tem a oferecer, não? – um dos homens, que há minutos se ocupava em encher um saco de palha com qualquer objeto de valor que encontrasse, largou o que segurava para dirigir-se a cafetina.

A mulher estava apavorada demasiado para sequer virar-se para quem lhe dirigia a palavra, muito menos ousaria dizer algo que contestasse o pirata. O verme alargou seu sorriso repugnante com a ausência de reação da mulher, aproximando-se do corpo dela com o braço estendido, com o qual enlaçou sua cintura.

– Não! – a cafetina berrou amedrontada ao sentir o toque do outro e de imediato tentou livrar-se do braço a sua volta. As lágrimas que escorriam por seu rosto se tornaram visíveis a todos que paravam para assistir.

O pirata, assustado com a exclamação repentina de sua vítima, paralisou-a habilmente ao sacar uma espécie de faca de sua bainha e posicioná-la firme, adjacente ao pescoço pálido da mulher.

– É melhor não gritar… Ainda. – sussurrou, sustentando com o maldito sorriso, próximo à orelha dela.

– Solte-a. – não soube certamente em que momento a súbita bravura a tomara, pois a palavra fora o primeiro sinal de sua existência. Quando deu-se conta do que sua repulsa por aqueles homens a levara a fazer já era tarde e não podia – e nem iria – voltar a esconder-se como as outras faziam, mesmo que não as julgasse por isso. Talvez, fossem mais espertas do que ela. 

Sua manifestação surpreendeu àqueles poucos que assistiam a cena do pirata e da cafetina no centro de toda a balbúrdia, contudo servira para ela como uma mola propulsora para que esticasse o corpo e alcançasse algo pontiagudo o suficiente para defender a si e suas colegas. Não era uma arma, e sim um pedaço de metal aparentemente afiado, largado junto ao saco abandonado pelo homem momentos atrás. Aproximou-se o suficiente das costas daquele que prendia Guan em seus braços com uma rapidez impressionante, estendendo o objeto em sua direção em uma ameaça que poderia concretizar-se com qualquer movimento brusco.

No entanto, o homem apenas riu, sendo acompanhado por outros que pôde notar, através da visão periférica, terem suas mãos pousadas nas bainhas, prontos para reagir caso aquilo se tornasse um motim ou algo semelhante.

            – Solte-a! – a jovem voltou a dizer, contudo sua voz soara mais alta ao usar a ira como combustível. Seu coração palpitava depressa, temia a morte mesmo que não viesse aparentar naquele momento, mas se fosse para morrer seria enfrentando porcos inescrupulosos como aqueles. Não daria a eles o gosto de vê-la obedecê-los por medo, ou de machucar sua tribo sem qualquer resistência. Não mais.

            – E o que tu irás fazer se…

            – Tu ouvires a moça, marujo. Deixe as donzelas. – a voz grave e recém-pronunciada do capitão soou leve em sua ordem, fato que incentivou seus subordinados contestarem-no.

– Não são donzelas, senhor. – murmurou outro pirata que surgia da cozinha com um pedaço de pão na boca e outro na mão que não empunhava a espada. – São um bando de meretrizes vadias. – riu e mais uma vez o ato foi imitado por outros, enquanto alguns apenas urraram em concordância.

– E como acha que se referem a esposas de piratas? – o capitão sorriu de canto marotamente, olhando para a jovem em posição de luta com o objeto pontiagudo na mão. – Sejam cavalheiros, e mostrem para nossas novas tripulantes a entrada do navio.

Ele deu as costas após proferir a ordem, deixando que o desespero latente voltasse a redigir os semblantes das mulheres e a confusão a domar os homens que seguiriam suas ordens.

 

***

 

            – Zarpamos pela manhã. Quero todos em seus postos antes de o Sol ameaçar surgir no horizonte. – O capitão dizia em voz alta, andando pelo convés em direção ao seu quarto.

            – Espere capitão. – um dos homens entrou em seu caminho, forçando-o a parar para ouvi-lo. – O que faremos com as vadias? Nunca trouxemos tantas para o navio…

            – Tire esse sorriso nojento da cara, inseto imundo. – o capitão fora rude em sua repreensão, gesticulando com as mãos antes de afastar o homem que lhe dirigia a palavra. – Se preocupe apenas com o teu trabalho, o resto arranjarei.

            – E quando fará isso? – o marujo fechara a cara. – Elas precisam de algum lugar para passar a noite e não temos espaço nem para um rato! – murmurou ranzinza.

– Farei quando quiser. – respondeu entredentes pausadamente, passando pelo homem e permitindo que seus ombros colidissem.

            O capitão apressou-se para chegar em seus aposentos e bater a porta que separava o lugar da parte descoberta do piso de bordo, no entanto a mesma não fechou-o dentro do cômodo. Ao virar-se para ver o que impedia o objeto de encontrar o batente, reconheceu seu imediato em meio a pouca luminosidade que originava-se da parte externa – a única pessoa naquele navio e entre todos seus piratas em quem confiava plenamente.

            – O que quer, ? – murmurou o capitão, livrando-se de sua bainha e outras armas enquanto descia as escadas, deixando os objetos largados por onde passava.

            – Pensei que hoje iria festejar as conquistas em Cantão, . – o tom de voz do imediato estava carregado de algo que não podia ser exatamente definido pelo outro, mas o capitão sabia que ele estava incomodado. – Seria bom que aproveitasse um pouco. Teremos muito com que nos preocuparmos até encontrarmos as embarcações de Lo Den¹. – levantou o lampião acima da cabeça de ambos para que pudesse enxergar aquele com quem conversava, assim que terminou de descer os degraus.

            – Está vindo aqui me pedir para encher a cara? – debochou. – Diga, honestamente, o que veio me dizer, .

            – O que pretende fazer com as mulheres que capturou?

            – Pensei que já tivesse sido claro para todos desse navio que darei uma ordem em relação a elas quando…

            – Tu quiseres. – completou, interrompendo-o. – Pude ouvir, capitão. Mas gostaria de alertá-lo sobre a dispensa. São muitas mulheres e não creio que nos ajudarão, caso entremos em combate com a frota de Lo Den. Precisaremos de comida extra e espaço para armas e pólvora, e elas… Bem, elas devem comer e não temos comida para todos.

            – Elas não entrarão em combate, . Isto é fato. – ridicularizou o outro, revirando os olhos como se ouvisse um absurdo.

            – Então o que pretende fazer com estas mulheres? Se não for transformá-las em piratas e nem deixar seus homens possuí-las, é melhor que livre-te delas o quanto antes. – sugeriu o imediato com a mansidão costumeira e contrastante com seu perfil bruto, seu ofício mal visto ou até mesmo com o peso do fim de suas palavras.

            – Estamos prestes a entrar em combate com uma frota potente que roubou nossos juncos² e nos rebaixou perante nossos inimigos. Somos mal falados, por nossa derrota, a milhas daqui. Este confronto custará vidas, imaginei que estes homens gostariam de terem um bom motivo para sobreviverem. – deu de ombros. Dito em voz alta não parecia tão boa ideia.

            – Não acho que nossos homens terão algum sentimento por estas mulheres nem nesta noite, nem em uma década. – riu após segundos de reflexão. – São piratas, . Acredito que se estão aqui, é exatamente porque não querem, ou até mesmo são incapazes, de apegarem-se a alguém.

            bufou irritado ao concluir que seu amigo tinha razão. Foi ingênuo de imaginar que algo assim fosse dar certo.

            – Ainda temos uma chance. Podemos lembrá-los de que sexo é bom e vão querer viver para fazer outra vez. – o capitão arqueou uma sobrancelha, deixando um mínimo sorriso escapar ao ver o amigo gargalhar.

            – É tua melhor chance, capitão.

            – Espero que sejam mesmo as melhores vadias desta província de fracassados.

            Com mais um suspiro, pôs-se de frente para seu imediato escorado ao lado da escada. , entendendo o que se passava na cabeça de seu capitão, seguiu na frente, abrindo a portinhola para que o capitão passasse e voltasse para o convés com a atenção da maioria dos homens sobre si. Antes que se pronunciasse, procurou por ali as mulheres de quem tanto falavam. Encolhidas, no lado contrário do timão, algumas abraçavam a si mesmas ou as outras como se assim pudessem proteger-se do mal que as rondava.

            – Companheiros – o capitão começou em voz alta, obtendo a atenção daqueles que ainda dispersavam-se, tanto dentro quanto fora do navio. – Devemos festejar por nossas históricas conquistas até aqui! – houve um urro de comemoração por parte dos piratas. – Cantão foi nossa última parada antes de tomarmos de volta aquilo que nos pertence! Mas por hora, recordaremos nossas recentes vitórias e regozijaremos por elas! Aproveitem as moças e a bebida até antes do Sol nascer e...  – mais alaridos. – Esperem! – todos calaram-se ao mando do capitão. – Nós deixaremos essas mulheres na costa – apontou para as concubinas isoladas do lado contrário em que ele estava - assim que a noite tiver seu fim. Mas aquela que aceitar ser desposada por um destes sacos de pulgas - voltou-se para os homens - poderá navegar conosco e terá proteção. – o silêncio permaneceu, até que o próprio o quebrasse com um suspiro. – Aproveitem, homens! – tirou o chapéu para jogar a eles, e ver toda a euforia reviver.

            – Por que disse aquilo? Não pensei que casar seus homens fosse o plano principal. – o imediato aguardou os outros irem em direção as cortesãs e as bebidas antes de abordar o capitão.

            – E não era. No entanto, se puder fazê-lo também...

            – Capitão, prometeu protegê-las?

            – Sim, . Atraí esta dívida desgraçada para mim, e irei honrá-la. Irá contestar minhas palavras?

            – Apenas gostaria de ver sentido nelas.

            – Sabe, guiou o amigo para próximo do timão, onde nenhum outro homem se encontrava. – Quando meu pai morreu em alto mar e teve seu corpo largado em algum ponto desse imenso oceano para ser comido por qualquer besta que nele habite, ninguém derrubou sequer uma lágrima por ele. - gesticulava, abrindo os braços e engrandecendo o drama contado. - Nem irmãos ou primos. O sofrimento pela morte dele parecia assombrar apenas a mim enquanto os outros de preocupavam em conquistar o cargo que foi deixado para trás! - disse as últimas palavras entredentes.

            – Todavia fora tu quem conquistaste o posto de capitão. – complementou.

            – Não podia permitir que aqueles porcos miseráveis conseguissem algo com a morte de meu pai. – rangeu os dentes. – Tornei-me capitão depois de ficar de luto por ele, e então me vingar daqueles que o levaram à morte. Desde nosso último impasse com a frota de Lo Den, vi muitos de nossos homens irem de encontro às profundezas do mar aberto e ninguém lamentou por eles, muitos sequer saberiam seus nomes.

            – São piratas, . Não esperam mais que isso.

            – Eu espero. – contestou o capitão, sorrindo para o amigo, expressando algo que ele não pudera decifrar. – Quase perdi minha vida em muitos combates, e quando escapo nunca deixo de pensar o quanto estou... Sozinho. 

            – Isso não é verdade, capitão.

            – Sei que somos amigos, . Sentiria por sua perda, mas não é a mesma coisa.

            – Acho que compreendo. – o imediato afirmou com a cabeça. – Tudo, aliás. O fato de querer que teus homens tenham alguém... Mas se me permitir, os melhores homens para estar a bordo são aqueles que não temem pela vida de ninguém e nem pelas próprias. Se sente-te assim , sugiro que resolva teu problema e não tente resolvê-lo para os outros.

            – Está dizendo que o mal da solidão assola somente a mim, ? – o capitão riu descrente. – Ora, e tu? Nunca sentiu-te só?

            – A diferença entre mim e o capitão está no passado. Tu nasceste neste meio, com um pai pirata e família envolvida, sequer casou-se ou teve filhos. Contudo, já tive filhos, casamento, e hoje não tenho mais nada. Para tu, essas coisas estão no futuro e ele ainda poderá acontecer, para mim está no passado e este jamais volta. – abaixou o olhar, reflexivo. – Minha solidão é pelo que perdi, e a tua é por nunca ter tido aquilo que tantas pessoas pregam: a felicidade de um casamento e de uma família.

            – Por isso acha que para tua solidão não existe cura? – questionou apreensivo. – Isto não pode ser verdade. E meu pai nunca pregou a necessidade de uma família ou mulher! Pelos mares, !

            – Acredito que todos possam se apaixonar mais uma vez e tentar ter uma segunda família, mas – suspirou. – se for para passar pela dor de mais uma perda, é preferível sofrer apenas com a solidão. E era por isso que seu pai não era apto à cultura familiar.

            – Foi por isso que recorreu à pirataria? – andava ao redor do timão com as mãos pousadas em seu cinto frouxo.

– É por isso que a maioria dos piratas são piratas. Porque não têm nada a perder, mas alguns ainda têm a ganhar. – voltou a encarar os olhos do capitão. – Vingança. É isso que move pessoas sem esperança.

            – A morte de meu pai foi vingada com glória, mesmo que nada tenha o trago de volta. Posso compreender este sentimento – voltou-se para os homens que brindavam por todo convés. – que trás alguns destes homens para meu navio.

            – Não compreende por completo. – atraiu novamente a atenção do capitão. – É melhor que descanse, . Tu não precisas compreender seus piratas, apenas fazê-los trabalhar para ti. – bateu no ombro do amigo antes de afastar-se para beber com os outros.

 

***

 

            Aquela não era a primeira e nem seria a última algazarra que os homens de sua frota armariam para festejarem suas vitórias. Desde muito pequeno, quando seu pai ainda estava presente para reger as embarcações, era acostumado a adormecer sob os ruídos de passos, risadas e vozes altas. Na noite em questão, no entanto, fora diferente. 

Logo após ser deixado por seu imediato, recolheu-se em seu pequeno cômodo particular para repousar, e o estrépito do piso de bordo serviu-lhe como canção de ninar. No entanto, mesmo que houvesse desenvolvido a capacidade de dormitar em meio à balbúrdia, foram poucos os seus minutos de sono. Recostou o dorso à parede, aflito com os episódios premeditados por sua tripulação - a ideia de enfrentar um de seus maiores rivais tirava dele o sono, mas nunca admitiria tal para ninguém. Por este motivo, praguejou, culpando a festividade dos piratas no convés, enquanto esforçava-se para não pensar demais nos planos que teria de seguir.

Surpreendeu-se com o som da portinhola enferrujada sendo aberta para dar passagem a alguém - não era permitido que qualquer um de seus homens adentrasse seu quarto se não fosse para limpeza, e ninguém limparia àquela hora da madrugada. O negro dominava sua visão, impedindo-o de enxergar sequer a um palmo de distância - a pouca luz que adentrara com a abertura da portinhola, iluminava apenas os primeiros degraus da escada que estavam fora da visão do capitão. Por costume, sabia onde encontraria uma vela e como poderia acendê-la. Abaixo da escada de madeira que o levaria ao convés havia uma diminuta janela no alto do casco por onde feixes da luz lunar acolitariam no processo. Todavia, não era o ideal a ser feito - facilitaria para seu adversário desse modo. Optou por manter-se imóvel e ao invés de entregar-se para seu invasor, deixaria o mesmo fazê-lo primeiro.

Concentrou-se no ranger da madeira a cada passo do desconhecido até que soubesse exatamente sua posição. Preparou-se para atingi-lo de surpresa com um golpe letal, no entanto seus planos foram interrompidos ao ouvir sua vítima se pronunciar pela primeira vez desde que entrara em seus aposentos:

            – Eu não irei feri-lo.

            O capitão não pôde conter o riso anasalado. Bem que havia desconfiado da leveza dos passos, já que agora sabia tratar-se de uma mulher.

            – Quem é? – perguntou ele, sentindo que a outra afastava-se.

            – Eu vim pedir para que libertasse aquelas mulheres.

            Desta vez, o capitão forçou uma gargalhada.

            – Elas estão sendo abusadas! Qualquer casamento produto desta noite não existirá se não for forçado! – ela exclamou indignada.

            – E o que esperava desses homens, milady? – o capitão debochara. – Flores? Joias? Um jantar romântico?

            – Não irei permitir. – a voz da mulher não era firme, mas audível.

            – Será hilário vê-la tentar. – Dito isto, moveu-se em direção à escada na intenção de contorná-la para alcançar a escrivaninha abaixo na janela, onde encontraria uma vela. Contudo, fora interrompido ao ser atingido por uma lâmina afiada no antebraço.

            A mulher o atacaria novamente e com esta previsão o capitão optou por acabar com aquela tentativa de uma vez por todas. Agachou-se, desviando assim do segundo golpe, somente para ser atingido de raspão por um terceiro no ombro direito. Com um rápido reflexo de sentidos, conseguiu segurar a lâmina que pressionava seu braço e arrancá-la do domínio de sua adversária, sentindo o metal afundar na pele de sua mão e acordando uma dor lasciva naquela região.

            – Quem é você? – urrou, jogando a arma longe do alcance dos dois.

            – Irá me matar? – a mulher questionou trêmula.

            – Responda minha pergunta! – avançou na mulher, conseguindo prender o braço fino na mão que jorrava sangue.

            – Está claro que sou uma das concubinas...

            – Muito ousada, rata invasora! Quero que me diga seu nome! – passou a segurá-la com os dois braços quando ela tentou escapar. - Agora! – sacudiu-a, após segundos sem resposta.

            . – a mulher murmurou tensa.

            – De que família, concubina?

            – Prostitutas não têm família, senhor. – ela soou irônica, apesar de quase inaudível.

            – Oh, mas é claro que têm. – ele forçou uma risada. – Me diga. Quero saber quais das famílias pomposas de Cantão vêm escondendo a desonra.

            – Mais desonrada do que uma família de piratas? No fim, todos iremos para o inferno, do quê importa? – ela cuspiu, resignada.

            – Não me amole! Eu fiz uma pergunta!

            – Tem medo do inferno, capitão?

            – Tu quem deverias ter. – murmurou entredentes, cansado daquela enrolação. – Sua insolência só pode ter um fim. – empurrou a jovem para próximo da cama e a largou ali, de forma que caísse sentada.

            – O que irá fazer comigo? – perguntou ela, tentando ao máximo mascarar seu medo.

            não tinha a habilidade ou a experiência do capitão para notar que ele se afastara. caminhou como quem conhecia de cor os pedaços de madeira que compunham aquele piso, chegando a escrivaninha sem causar qualquer ranger que denunciaria sua posição. Com maestria, acendeu a vela que já se encontrava pela metade no castiçal.

            O fogo iluminou sua face parcialmente, fazendo com que seus olhos ardessem. Mesmo assim, antes que processasse a luminosidade repentina e a distância segura do pirata em relação a ela, ele aproximou-se novamente, sem dá-la tempo para cogitar uma fuga.

            – Irei castigá-la. – o semblante do capitão era sério. – Qualquer um que me desafie não sairá impune. Nem uma mulher. – parou para mirá-la por um tempo, agora que podia enxergá-la. – Tu eres a mulher que tentou lutar com um dos meus homens. – reconheceu-a. – Com que intuito desafia a mim?

            – Engraçado, você perguntar. Eu achei que estivesse claro. – ela tinha a cabeça baixa e o encarava por entre os cílios.

            – Bom, sua resistência terá um preço. – disse, apoiando o castiçal em um dos degraus da escada enquanto recolhia seu cinto e suas armas espalhados pelo chão. Lembraria-se de ser mais cuidadoso com aqueles objetos em uma próxima vez.

            – Irá me matar? – tremia com a expectativa.

            – Não. – o pirata sorriu com maldade para ela.

            – Vai... A-abusar do meu corpo? – gaguejou.

            – Tu não pareces tão valente agora. – o capitão riu, pegando de volta o castiçal e passando a subir a escada. – E não, não quero seu corpo. O que farei será pior.

            – Onde está indo? – a mulher perguntou já se levantando para segui-lo quando fora interrompida pelas palavras ásperas do pirata.

            – É melhor que comece a acatar minhas ordens a partir de agora. Começando por esta: Não saia deste compartimento. – murmurou autoritário. – Tu não simpatizarias com o que virá a acontecer. – ele arqueou uma sobrancelha, e com sorriso carregado de más intenções, seguiu até o convés.

            ousou copiar seus passos e subir os degraus com a barra do vestido em mãos, no entanto encontrara a portinhola emperrada, provavelmente trancada. Fora deixada sozinha e no escuro, não era a primeira vez que deparava-se com tal situação, contudo o sentimento que a atormentava tinha um diferencial: a ira sobressaia em relação a qualquer dor.

 

***

 

            Após falhar em sua tentativa de fugir ou até mesmo escutar o que o capitão planejava para ela e as outras, só tinha uma coisa a ser feita: esperar.

            Horas se passaram, e ela se viu cochilando ao pé da cama por vezes incontáveis, até que abrisse os olhos e se deparasse com o compartimento iluminado pelo Sol camuflado nas nuvens cinza. A pequena janela escondida atrás da escada era o suficiente para que a claridade do dia banhasse todo o cômodo, e enfim, ela pudesse enxergar os detalhes que o compunha.

            Não se demorou muito nos objetos ao seu redor, o enjoo que a abatera tomou sua atenção, só então percebendo o leve movimento de tudo ao seu redor como se... Velejasse. Mais uma vez o temor tomava seu peito, todavia antes que passasse a clamar por ajuda em vão, ouviu o som da portinhola enferrujada sendo aberta.

            Manteve-se estática até que enxergasse o rosto de quem adentrava – um garoto que não reconhecia, esguio, que aparentava ter pouco mais de 15 anos. Ele andava pela escada com certa dificuldade, segurando um esfregão e um balde, um em cada mão. Ao notar a presença dela ali, seu semblante concentrado transformou-se em surpreso, beirando ao amedrontamento.

            – D-desculpa! O capitão não avisou que teria a-alguém aqui. – ele gaguejava. – Não queria incomodá-la! – o garoto já refazia seus passos de volta ao convés quando fora interrompido pela mulher.

            – Espere! – levantou-se abruptamente, fazendo com que sentisse uma tontura súbita abatê-la, impedindo-a de sair correndo atrás do menino. – Quem é você?

            – So-sou apenas um criado de bordo, senhorita. – gaguejou novamente.

            – Você não fala como eles. – a mulher suspirou, procurando se escorar na escada para se recuperar do mal-estar. – Os piratas, quero dizer. – complementou ao olhar para cima e perceber a confusão no semblante do jovem.

            – Desculpe-me.

            – Não deve se desculpar. – ela sorriu, recolhendo a orla da saia para que pudesse subir nos degraus de madeira sem tropeçar. – Isso não é algo ruim.

            – Aqui isso é péssimo. – o menino negou com a cabeça, balançando seus cabelos longos freneticamente. – Quer que chame o capitão para a senhorita?

            – Não. – ela reconhecia que havia respondido rápido demais, desta forma fomentando a desconfiança do criado de bordo. – Eu irei até ele, não se preocupe. Não quero importuná-lo com mensagens, fazendo com que se mova até mim. – tentou transmitir calma e firmeza. Mesmo que não parecesse totalmente convincente, aparentou o suficiente.

            O garoto apenas assentiu com a cabeça antes de voltar para o convés e abrir espaço para que a mulher saísse do quarto do capitão. Assim que avistou o horizonte cinzento fora do cômodo o enjoo retornou com força - estavam em alto mar, e naquele piso seu estômago parecia reclamar ainda mais. De qualquer forma, forçou um sorriso para o criado que voltava para suas tarefas, fechando a portinhola acima de sua cabeça.

            Tentou conter o semblante de alívio ao ver-se liberta daquele cubículo. Sorrateiramente, inclinou-se para recolher a chave dourada que a destrancara e ainda se encaixava na fechadura da portinhola, escondendo-a entre seus seios antes de seguir com seu plano.

            Como já havia desconfiado que o navio se encontrava longe da costa, seu objetivo não era mais escapar pela popa³, mas encontrar suas infelizes colegas de trabalho e com elas reunir forças para saírem dali no comando do navio. Sabia se tratar de um plano arriscado, mas era sua melhor chance. Por isso, fez o máximo para passar-se despercebida pelo convés, escondendo-se até encontrar uma entrada para os níveis abaixo, onde apostava ser um local mais propício para isolar um grupo de mulheres.

            Havia prendido o ar nos pulmões durante quase todo o percurso, vasculhando saletas e níveis do navio. Perdeu-se facilmente, mesmo que não se tratasse de algo de proporções gigantescas. Nunca havia adentrado um junco, mas estava parcialmente familiarizada com sua estrutura que nada se assemelhava àquele navio.

            Seu estômago não a favorecia, pegou-se escorando nas paredes do segundo nível mais baixo do navio por diversas vezes. Estava recuperando-se, respirando fundo para reprimir a ânsia que a abalava quando o som das vozes vibrantes de alguns homens assustou-a. Enfiou-se na primeira saleta que encontrara para esconder-se do aglomerado de homens que saiam da fossa. O odor forte que os mesmos exalavam era repulsivo e quando captado pelo olfato da mulher incitava a inquietação em seu interior. Sentiu o refluxo cortar a garganta antes que pudesse domá-lo, livrando-se assim, de forma grosseira, de tudo que ainda pesava em seu estômago.

            Torceu o nariz para a sujeira que havia feito, afastando-se ao máximo do êmese para evitar que o odor despertasse mais uma vez a náusea. Reergueu-se com as mãos trêmulas, sentindo a fraqueza abraçá-la e sua visão ficar turva, contudo antes que caísse sentiu alguém segurá-la, praguejando algo ininteligível. Ao recobrar o mínimo de sua consciência, buscou livrar-se do toque desconhecido e em resposta obteve um empurrão que a fez cair sentada em uma espécie de almofada. Sua debilidade a impedia de qualquer movimento brusco, logo desistiu de tentar revidar quando reconheceu seu redentor.

            O capitão encarava a mulher com indiscrição desde que a mesma adentrara seu espécime de escritório. Tinha conhecimento de que ela vinha perambulando pela embarcação e permitia tal ato por genuína curiosidade e divertimento – tinha plena consciência que se a mulher quisesse deixar a embarcação, teria que atirar-se no mar. Contudo, estava surpreso de vê-la parar justamente no compartimento em que ele se encontrava só. Questionava-se se ela ainda acreditava que poderia fazê-lo realizar suas vontades ou se estaria desacreditada de sua própria competência de se fazer livre sem pedir clemência.

            – Tu estás horrenda, baderneira⁵. – dirigiu-se à mesa para encher um frasco de água e dá-la para beber.

            – Eu não irei beber água com essa cor. – murmurou ela, afastando a mão estendida do capitão quando o mesmo aproximou-se.

            – Ora, é melhor te acostumar. – um sorriso irônico despontou por entre a barba mal feita do homem. – É apenas o que terá a partir de hoje.

            – Irá me manter presa aqui para sempre? – arqueou uma sobrancelha, sem se preocupar em parecer debochada.

            – Aqui não. Podemos mudar de embarcação a qualquer momento. Os juncos são muito mais eficientes do que estes... Navios ocidentais. – gesticulou enojado. – Te manterei presa a mim.

            – O que você ganhará com isso? – ela começava a enraivecer-se.

            – A questão é: o que tu perderás? Este é teu castigo. – o sorriso familiar voltou ao seu rosto, provocando a ira, até então entorpecida, de . – Todas tuas irmãs se foram antes de o Sol raiar, mas tu, por tua insolência, permanecerás enclausurada... – ele dizia alto.

            – E você acha isso divertido? O que tem a ganhar? – ela gritara, mantendo o diálogo equilibrado.

– Sim, talvez seja muito divertido em minha opinião. – ele caminhava pelo compartimento, balançando o frasco cheio d’agua em uma mão. – E é isso o que ganharei. Um débil divertimento. – o capitão soara sério, reflexivo. não saberia dizer o que se passava pela cabeça dele, já que sequer podia olhar em seus olhos naquele momento, pôde apenas observar o leve cair de ombros ao mirar suas costas.

– Talvez, eu proporcione mais que isso. E dessa forma, conquiste minha liberdade.

– Mulher espirituosa. – olhou-a por cima dos ombros, sorrindo-lhe diferente desta vez. – O que te faz pensar que a concederia, de qualquer forma?

– Aparentemente é minha única chance. – murmurou baixo desta vez, ainda assim audível o suficiente para que o capitão entendesse.

            – Tu sabes o que acontece quando algo deixa de ser divertido para o capitão? – virou-se para ela, deixando o copo na mesa e alargando o sorriso perverso ao prosseguir. – Se este for um pirata, acaba no Armário de Davy Jones⁶. – deu de ombros. – Crenças pobres de piratas ocidentais. Definitivamente, não são nada criativos.

            – Duvido que consiga criar uma mitologia mais divertida. – murmurou indiferente.

            Não sabia dizer se toda aquela afronta ao capitão era coragem ou se realmente não tinha medo de suas ameaças. sempre demonstrava ironia ou deboche como uma forma de se divertir e não como uma maneira de se defender. Mesmo assim ali estava ela, discutindo sem papas na língua com o comandante de sua captura. Talvez fosse seu sexto sentido indicando que não havia o que temer.

            – Sim, sou melhor do que estes fanfarrões do outro lado do oceano. – gargalhou ele. – Aqui todos sabem para onde irão caso percam uma briga. – ele fez uma pausa dramática, olhando-a nos olhos. – Para o fundo do mar.

            – Bem pouco religioso, na minha opinião.

            – Garanto que pensarás em algo melhor em seu tempo no poste. – estendeu a mão para que ela o permitisse guiá-la.

            – Como assim, “poste”? – questionou com semblante fechado.

            – É só onde cães desobedientes ficam presos como castigo. – Sorriu, achando graça da expressão da mulher ao ouvi-lo. – Faz bastante tempo que nenhum dos meus marujos estrela o poste.

            – Eu disse que posso ajudar. – insistiu, dispensando a mão estendida do capitão. Pela primeira vez desde que fora parar a sós com o homem naquele compartimento, temera as decisões que ele tomaria.

            Seu antigo plano estava arruinado – ela era a única mulher naquela embarcação e não tinha com quem reunir forçar para sair dali. Se antes já era difícil obter sucesso com tal estratégia, suas chances haviam praticamente zerado com aquela nova realidade. Teria que seguir outro roteiro, e seu instinto de sobrevivência e liberdade já havia a guiado para uma alternativa viável. Mas para isso precisava da confiança – ou pelo menos parte dela – do capitão e não a conquistaria se estivesse presa como um rato em ratoeira.

            – No que uma mulher ajudaria em uma batalha? – revirou os olhos, já perdendo a paciência.

            – Meu pai era corsário. – mentiu. – Sei de algumas coisas...

            – Engraçado tu dizeres isto porque nós duelamos com corsários e jogamos seus corpos para bestas do mar devorarem. – ele inclinou uma sobrancelha, com um sorriso maroto despontando em seus lábios.

            – Não o meu pai. – ela imitou a expressão do homem na tentativa de soar tão ardilosa quanto ele. – Ele nunca se rendeu a qualquer pirata. – deu de ombros demonstrando certa superioridade. – Sempre chegava em casa contando suas vitoriosas aventuras.

            – Sempre? – o capitão pareceu um pouco desconfiado, fazendo com que engolisse seco. – Certo. – balançou a cabeça como se espantasse algum pensamento. – Então venha junto a mim! Precisas... Saber de algumas coisas antes de ousar sentir-te confortável. – virou as costas para ela, dirigindo-se à porta e saindo logo em seguida.

            hesitou, mas passado um tempo, acabou por segui-lo. Quando levou seu corpo para fora daquela saleta pôde encontrar o capitão do outro lado do nível, pronto para subir as escadas que o levariam ao convés. Apressou-se para acompanhar o homem que sequer virava-se para confirmar se ela o seguia.

            Com o céu cinzento à vista e o odor salgado mais potente, seu estômago voltara a embrulhar. Precisou apoiar-se em um barril preso com cordas de trança dupla assim que deixou as escadas. Porém, antes que tivesse chance de se recompor, ouvira o capitão ordenar a alguns de seus homens, próximo ao mastro:

            – Amarrem esta víbora ao poste! – o braço e o dedo indicador estirado do homem apontavam para ela.

            – O quê? – fora a única coisa que pôde dizer antes de ser rodeada por mãos sujas que a arrastavam sem muito esforço até o centro do piso de bordo. – Você me traiu! – vociferou ela, debatendo-se em vão enquanto era amarrada.

            – Não, não. – o capitão sorria perversamente, balançando o dedo indicador de um lado para o outro. – Tu mentiste primeiro. – aproximou-se do rosto da mulher. – Sempre chegava em casa? – repetiu a frase dela em zombaria. – Corsários não voltam para casa, e se voltam é depois de anos. Décadas! – tocou-lhe a bochecha, examinando os traços de de perto.

            Ela não se moveu. Retribuía o olhar, tão inclinada a desvendá-lo quanto ele parecia curioso.

            – Mas tu falaste com um homem de palavra, senhorita. Por isso, lhe darei uma missão. E caso consiga cumpri-la, terá passe livre nesta embarcação, contanto que não coloque o pé fora dela...

            – Esse não foi o trato.

            – Tens razão. Esta é uma condição para o trato ser aceito. – abriu um sorriso divertido. - Certo?

            – Qual será a missão? – ergueu uma sobrancelha desconfiada, deixando que seu tom debochado desaparecesse em meio o mal-estar e a consequente fraqueza.

            – Encontre algo no horizonte. Terra, navios. – ele gesticulava com o braço estendido na direção do mar. – Antes que o Mestre do Navio, lá em cima – apontou para o alto do mastro com o indicador. – o ache, então estará livre.

            – É impossível. – ela zombou. – Estou fraca e ele tem muito mais visão do que...

            – Ninguém disse que seria fácil, senhorita . – inclinou os lábios, formando um bico.

            – Você mentiu. – ela rugiu.

            – Certo, certo. Presenteei-te com uma chance rara, normalmente aqui as pessoas só morrem. – deu de ombros. – A decisão de acatar é tua. – afastou-se dela para medi-la dos pés a cabeça. – E então? O que será?

            – Aceito. – reuniu o máximo da força que ainda lhe restara para soar firme.

            O capitão alargou o sorriso.

            – Quando achar grite por . – curvou o corpo com uma mão pousada no peito em uma espécie de reverência. – É o meu nome. – piscou divertido, virando as costas para ela sem esperar por mais respostas.

 

***

 

            A noite não tardou a chegar. Os pés e braços de estavam dormentes e formigavam, seu estômago ardia e a fome também a deixava com um gosto amargo na boca, no entanto, passara maior parte do tempo desacordada e sequer vira quando o céu deixara de ser cinza para se tornar negro.

            – Ei! – em algum momento daquela noite gélida, em que a temperatura baixa se tornava mais um de seus desafios, sentiu-se ser sacudida pelos ombros e forçada a abrir os olhos para encarar quem estava a sua frente. – Agora aceite um pouco d’água. – o capitão levou uma espécie de cantil aos lábios da mulher.

            não recusou a bebida, mesmo que o sabor não fosse o da água que era acostumada a consumir, aquilo não importava no momento.

            – Tome devagar. – ele murmurava em voz baixa, limpando a água que escorria pelo queixo e pescoço da mulher com os dedos da mão que não segurava o cantil. – Trouxe um pedaço de pão.

            – Por que está fazendo isso? – a voz soara frágil, de forma que ele precisou se aproximar para compreender. – Todos estão vendo, pensei que quisesse... Parecer mal.

            O homem riu anasalado.

            – Não vai ser engraçado se tu morreres. – afastou-se um pouco para alcançar o pedaço de pão na tigela apoiada em um barril. – Não pense que estou sendo bom por estar te dando comida. Uma morte rápida é mais misericordiosa do que te por atada a um pedaço de madeira como uma boneca, alheia as próprias vontades.

            – Desculpe, me confundi. – murmurou com um mínimo sorriso, antes de abocanhar a massa na mão do homem.

            – Tome cuidado! Meus dedos não são comestíveis! – afastou a mão enquanto falava, recebendo um olhar estupefato da mulher faminta à sua frente.

            Permitiu que voltasse a comer, levando o cantil a boca dela vez ou outra para que conseguisse engolir a massa dura e seca. Quando pareceu o suficiente por hora, molhou um lenço que arrancara do bolso e passou na testa da mulher que ainda mastigava os últimos pedaços.

            sentia-se fatigada como jamais se encontrara. Via-se partilhando espaço com a morte, e por muitas vezes naquele dia derramou lágrimas de desespero, mesmo que surpreendentemente sorrateiras. Não gritou ou soluçou alto, não daria esse prazer a eles – jamais imploraria. No entanto, naquele exato momento em que a respiração do capitão batia quente em seu rosto e que ela sentia-se ligeiramente mais forte pelo alimento recém-ingerido, algo em seu ser a incomodou... Por segundos intermináveis tentou interpretar tal sentido.

            Como uma vela que era acesa e então passava iluminar um recinto, a explicação para aquilo que florescia estranhamente em seu corpo clareou sua mente. Sexto sentido.

            – Não devia estar se preocupando comigo, capitão.

            – Chame-me de . – molhou mais uma vez o pedaço de tecido, mas a moça desviou o rosto de seu toque. – Se não quer ser limpa, senhorita , é só dizer. – ele revirou os olhos.

            – Posso ser limpa depois que nos tirar da mira dele. – apontou para frente com o queixo.

            – O quê... – o capitão fora interrompido pela voz estridente do mestre do navio.

            – Inimigo avistado a estibordo! Inimigo avistado a estibordo!

            ainda encarou surpreso antes de virar-se para o lado direito da embarcação completamente, procurando por algum outro navio.

            – Inferno! – praguejou ao deparar-se com o nevoeiro que os cercavam. – Preparem os canhões e fiquem em alerta! – esbravejou, voltando para perto de ao sacar a espada da bainha. Com um único golpe cortou metade das amarras que a prendiam ao poste e com um puxão se livrou da outra parte. - Tire ela daqui, Lian. – ordenou para um dos piratas que se aglomerava próximo a ele, aguardando por ordens.

            O tal Lian assentiu com a cabeça antes de sair puxando para a passagem que levaria aos níveis inferiores da embarcação. Estavam na metade das escadas quando puderam ouvir mais uma ordem do capitão:

            – Altear cores!

            – AAR! – murmurou Lian, parando de empurrar degraus abaixo e voltando-se para o convés. – Siga até o fim das escadas! Preciso altear as cores!

            A mulher, confusa com a rapidez com que todos falavam e agiam, sentiu-se incomodada com a ideia de se esconder. Refez seus passos pela madeira velha, tratando de se camuflar assim que voltou convés. Ajoelhada atrás de um barril com pólvora, tentou entender o que se passava, sem muito êxito. Contudo, enquanto seu olhar viajava pela movimentação do navio, encontrou o mesmo garoto que se intitulou criado de bordo mais cedo naquele dia, ele encolhia-se próximo a um esfregão, tão perdido quanto ela.

            respirou fundo ao se levantar e sair de trás da barrica com o objetivo de salvar o garoto daquele caos. Caminhou ligeiramente, quase sem ser notada pelos demais e ao alcançá-lo se surpreendeu com a resposta que recebera:

            – Não vou me esconder! Tenho que lutar! – ele livrou-se do toque dela.

            – Você não poderá fazer nada, sequer tem uma arma. – insistiu, não se deixando abalar. – Eu preciso da sua ajuda. – deu sua última cartada.

            Aquilo foi o suficiente. Com uma última olhada para o capitão eufórico a alguns metros dali, ele agarrou a mão de e saiu a puxando para longe. Acabaram atrás do mesmo barril que anteriormente a concubina se escondera.

            – Pode me dizer o que significa “altear cores”? – sussurrou para o garoto, mesmo que aquilo não parecesse necessário.

            – Ele fala isso todas as vezes que vamos atacar. – o menino deu de ombros. – Então os piratas sobem uma bandeira vermelha e isso serve como um aviso para nossos inimigos se renderem. Se eles não se rendem, subimos a bandeira negra, e isso é sinal de que uma briga feia está por vir.

            – Tomara que não subam a bandeira negra então. – estremeceu.

            – Bem, acredito que seremos atacados antes. E talvez, isso seja pior do que a bandeira negra.

            – Fala com tanta serenidade, sequer aparenta estar com medo.

            – Ninguém aqui aparenta, mas isso não quer dizer que não temam.

            ponderou aquela frase. Em muitos momentos durante sua curta, porém dolorosa, estada no navio de , se viu guiada pelo temor. E podia comprovar a veracidade do que o criado de bordo dizia com sua própria vivência. No entanto, não imaginara que o mal que a assolava, não era unicamente seu... E isso explicava muita coisa.

            – Qual seu nome? – cutucou a barriga do garoto.

            – Jian.

            – O meu é . – ela sorriu sem mostrar os dentes. – E quantos anos...

            Sua fala fora interrompida por um estrondo acompanhado de um solavanco que levou os dois a se desequilibrarem e caírem no chão. exclamou assustada, embora o som tenha sido abafado pelas vozes retumbantes dos marujos, agora mais agitados.

            – O que foi isso, Jian?
            – E-eu não sei. Nunca aconteceu isso antes. – O menino tinha os olhos sobressaltados e a palidez tomava seu rosto. O medo agora passava a ser evidente em seus olhos e isso afetou – ao mesmo tempo em que se desesperou, tentou manter a calma, por ela e pelo jovem Jian.

            – Espere aqui. – tocou no ombro do menino que estremecia, lhe lançando um sorriso acolhedor, antes de se levantar e sair de trás do barril.

Segurou a saia longa nas mãos para que pudesse andar mais rápido até o capitão. Vários homens desnorteados esbarraram nela e complicaram seu objetivo, alguns corriam para os níveis mais baixos da embarcação enquanto muitos outros pareciam aguardar em posição de luta. A presença dela era um tanto quanto inesperada e beirava a inconveniência, podia ver no olhar de repulsa daqueles homens. Entretanto não se abateu, tentou alcançar a todo custo.

– Não temos tempo. – o homem que, graças o seu tempo no poste, sabia se chamar , murmurava aflito, baixo o suficiente para que só o capitão ouvisse. – O casco está muito danificado, o carpinteiro nos deu poucos minutos. Não podemos esperar que eles nos ataquem, assim morreremos todos.

– Não podemos fugir. – o capitão respondera, mas seu tom oscilava entre firmeza e hesitação.

– Iremos morrer? – intrometeu-se na conversa, surpreendendo ambos os homens com sua aparição repentina. Apesar das circunstâncias, sua voz soou austera e viva.

– O que faz aqui? – rugiu em completo mau-humor.

– Do que não podemos fugir? – insistiu ela. – Estamos em perigo? O que está acontecendo?

– Basta! – o capitão agarrou o braço de com fúria, arrastando-a pelo convés enquanto a mesma se debatia.

– Não pode arriscar a vida de todos nós! Há pessoas inocentes aqui! Eu sou e o Jian é, não pode nos sacrificar por seus interesses egocêntricos!

– Este é o lado bom de ser capitão, minha lady, meus interesses egocêntricos são as únicas coisas relevantes aqui. – pegou uma corda para começar a amarrá-la novamente ao poste.

– Do que adianta se todos morrermos? Não existe vitória debaixo da terra ou no fundo do mar. É isso o que quer? Prefere morrer em sua falsa honra ao invés de recuar para obter vitória de forma inteligente? – perguntou com certo escárnio, ira exalava de cada pedaço de seu corpo. – Ora, agora entendo porque mulheres não são bem-vindas nesse tipo de ramo. Ou já teriam o dominado ou sequer aguentariam lidar com tanta burrice!

afrouxou seu aperto no braço da mulher e ambos se encararam com semblantes duros, ódio fluía de seus olhares e as respirações eram pesadas. Ficaram assim por tempo suficiente para atrair a atenção do resto da tripulação que ocupava o convés.

– Capitão? – foi quem o chamou.

– Está livre para fazer o que quiser. – murmurou entredentes, baixo o suficiente para que apenas pudesse ouvi-lo. – Se acha tão esperta, então salve a si mesma. – largou a corda aos pés da mulher e virou as costas sem dizer mais nada, voltando ao seu posto ao lado do imediato.

 

***

O frio fazia seus ossos rangerem e sua carne tremer, já era incapaz de continuar a remar naquela imensidão negra. Seus dentes trincavam e sua respiração era dificultada por seus pulmões que doíam.

Quando sentiu um tecido cobrir seus ombros e suas costas repentinamente, virou levemente a cabeça para trás para ver do que se tratava: O capitão , levemente constrangido, era quem deixava a peça que aparentava ser um tipo de capa.

– O que está fazendo? – indagou com a voz quase inaudível.

– Irá morrer de frio se não se aquecer. – ele voltava para o lugar onde anteriormente remava.

– Estou remando. Isso me aquece mesmo que meus músculos gritem. – retrucou ela.

– Irá morrer se insistir nisso. Mal se alimentou...

– E desde quando você se importa, capitão? – tentou rir, mas aquilo não soava bem devido as circunstâncias.

– Mesmo que eu não entenda muito bem o motivo pelo qual me salvou do naufrágio de meu próprio navio, estou grato. Devo-lhe por isso, senhorita . – ele desvio o olhar do dela, se dedicando somente aos remos em suas mãos. Ainda tinha que sobreviver aos lobos enquanto corria com eles.

Ainda tinham que sobreviver à imensidão negra e gélida e os desafios que ela guardava.

Ainda tinha que sobreviver aos lobos enquanto corria com eles.



¹: “Lo Den”, significa “Buraco Negro” em vietnamita (sem as acentuações, pois estas não existem nos caracteres ocidentais).

²: O termo junco refere-se a uma embarcação tradicional chinesa, utilizada para a cabotagem.

³:  A popa ou ré é a seção traseira de uma embarcação.

⁴: A fossa é o menor nível do navio. Ela é carregada com água pegajosa e suja.

⁵: Baderneira é um adjetivo para mulheres no vocabulário pirata. Não é educado, mas também não é rude.

⁶: Armário de Davy Jones é onde as almas de piratas afogados terminam.





Fim?



Nota da autora: Como sempre, estou fazendo a nota correndo! Bem, só queria agradecer a quem leu até aqui, a toda equipe envolvida nesse ficstape maravilhosoooo e principalmente àquelas pessoas que eu enchi tanto o saco para lerem antes de entrar no site hahahaha – obrigadaaa, Lau Ambar, Tifany, Gabbes e Igor por me aguentarem! ESTE NÃO É O FINAL DA HISTÓRIA, mas mesmo que não esteja completa eu amei escrever esse ficstape. Até agora o meu favorito! Espero que tenham gostado tanto quanto eu! ATÉ A PARTE 2, galera!





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