FFOBS - 04. C'mon C'mon, por Andrade

10:37 p.m.
O barulho provindo do térreo é ensurdecedor.
Espalmo minhas mãos displicentemente sobre a escrivaninha de madeira, derrubando algumas canetas e fazendo com que o rascunho do meu trabalho de conclusão de curso, previamente feito, se aloje em algum lugar embaixo da minha cama. Eu deveria estar preocupado com a integridade do documento que, convenientemente, embasa o meu projeto final, no entanto, o fato de eu estar demasiadamente irritado com a audácia de Scarlett ao convidar metade da faculdade para a minha festa me impede de pensar no meu histórico acadêmico.
Após inspirar e expirar diversas vezes para controlar a minha ira, encaro-me no espelho. O cúmulo dos parabéns é o aniversariante estar atrasado para a festa que ele mesmo organizou na própria casa. Sorrio a contragosto, lembrando que esta comemoração deixou de ser obra minha depois que Scarlett enfiou seu nariz excessivamente pontudo onde não era chamada.
Escuto as batidas insistentes na porta de meu quarto e nem preciso abri-la para saber que do outro lado se encontra uma ruiva, com um provocativo vestido de oncinha, que mostra mais do que o recomendado. Minha expressão revela todo o meu desagrado, mas Scarlett a ignora declaradamente e joga seu corpo sinuoso contra o meu quando abro passagem para ela entrar. Ela cheira a cigarros e bebida destilada. E o batom vermelho que pintava sua boca no início da noite agora não passa de uma mancha rosada esquisita. Ela põe os braços em volta da minha nuca e me admira com seus olhos carregados de maquiagem e loucura. Scarlett cola nossos lábios antes que eu tenha a oportunidade de afastá-la. Não é uma sensação interessante, a propósito. Pois, apesar de ela ser abusivamente gostosa, a palavra puta paira na minha mente por tempo demais para que eu possa aproveitar o momento.
- Estão te esperando lá embaixo. – Ela faz um beicinho enquanto arranha a pele do meu antebraço, com suas unhas pintadas de um vermelho escandaloso. - Não deve decepcionar o público que te aguarda. – Ela lembra e, ao beijar-me outra vez, deixa o quarto.
Ajeito as mangas da democrática camisa jeans que estou trajando. Esgotado, passo as mãos por meu cabelo, deixando-o ainda mais desorganizado. É o meu aniversário de 24 anos, mas eu pareço não me importar.
E, ao bater a porta negligentemente ao sair, tenho certeza de que não me importo.

11:13 p.m.
Estou encostado no balcão da cozinha enquanto observo o mar de gente que invadiu minha casa. As pessoas estão insanas, dançando, bebendo e se agarrando ao som de uma música ruim que está tocando. Copos vermelhos espalhados por todo canto, fumaça plainando nos cômodos abarrotados, cacos de porcelana do que antes era o raro vaso chinês de minha mãe estão espalhados pelo corredor. A lista de irregularidades que se forma na minha cabeça é grande, mas, apesar do meu desconforto por saber que quando meus pais retornarem de viagem eu serei açoitado, estampo em minha face uma expressão relaxada, de fingido divertimento.
De repente, preciso piscar os olhos repetidamente ao vê-la destoando da aglomeração ensandecida. Ela está parada, aparentemente sozinha, colada à parede da sala de estar, visualizando, perplexa, aquele inferninho se desenrolando. O curioso foi que eu não a notei por ela estar irresistivelmente sensual, trajando um vestido brilhante e salto quinze. Porque isso apenas a tornaria mais uma na multidão. Mas ela difere justamente por não querer aparecer. Usando uma calça jeans, uma camisa lisa cujas mangas vão até o cotovelo e um All Star azul, ela é a razão para os caras ainda sóbrios estarem virando o pescoço, atordoados com o contraste de seu visual.
Levo a garrafa de cerveja mais próxima até a boca, bebericando vagarosamente o líquido, enquanto mantenho meu olhar fixo na garota desconhecida. Sorrio e percebo que não sou o único deslocado da festa. Pois, ao vê-la revirar os olhos e caminhar em direção ao cômodo vizinho, sei que ela também não se importa.

11:46 p.m.
Estou conversando com Mike, um colega de faculdade, sobre o desempenho do Knicks no último jogo quando vejo a misteriosa garota retornando para o centro da festa, vindo em minha direção. Mais precisamente vindo em direção à geladeira que está localizada ao meu lado. Ignoro o rapaz ao meu lado por alguns instantes e observo discretamente o semblante da garota, tentando reconhecê-la. Eu provavelmente me lembraria dela caso a tivesse visto antes, certo? A questão me absorve por alguns segundos e, após balançar a cabeça, derrotado por não reconhecê-la, resolvo estabelecer contato e atribuir um nome a este rosto insolentemente bonito.
Ela retira uma lata de refrigerante da geladeira e eu arqueio a sobrancelha, descrente da sua habilidade de não se render à embriaguez mesmo estando em um antro de adoração ao álcool.
- Eu não conheço você. – Afirmo e tomo mais um gole da cerveja.
Sendo assim, ela parece finalmente me notar, ao se sobressaltar com o diálogo que inicio. Ela me observa, cética, possivelmente conjecturando o meu interesse ao estabelecer uma comunicação direta.
- Eu também não sei quem você é, então, acho que estamos quites. – Ela dá de ombros e me lança um falso sorriso simpático.
- A nova geração de penetras está cada vez mais incompetente. – Assobio e ela vinca a testa, confusa. – Prazer, eu sou a razão para o evento estar ocorrendo.
Estendo a mão em sua direção, em um cumprimento cordial, e ela a analisa criticamente por alguns segundos antes de retornar com seus olhos enigmáticos para meu rosto, me encarando de uma forma desinibidamente intrigante.
- Sério? – Ela inquire, sarcástica - Achei que a razão fosse aquela ruiva gostosa se exibindo, em um strip-tease bizarro, para aquele grupo de marmanjos sortudos.
Ela diz e aponta para a cena que está se desenrolando no meio da sala de estar e que havia passado despercebida pelos meus olhos, apesar de todos os gritos delirantes vindos de lá. Scarlett é a atração do espetáculo, remexendo-se descoordenadamente, e fazendo os rapazes se agitarem com a exposição gratuita de carne feminina. Fecho os olhos lentamente ao lembrar que ela me beijou quando seu batom já estava maculado e me preocupo com o número de caras que beijei indiretamente em uma só noite.
Ao dirigir novamente o olhar para a garota com quem estava conversando anteriormente, deparo-me com um lindo sorriso cínico brincando em seus lábios.

11:59 p.m.
- Não vá embora! – seguro o braço da garota assim que ela termina de vestir seu casaco, pronta para sair. – Eu nem sequer sei o seu nome.
- Eu também não sei o seu. Estamos quites mais uma vez. – Ela replica, e abre a porta. A brisa gelada invade o ambiente e ela se encolhe desconfortavelmente.
-Está frio lá fora. – Indico e, para minha sorte, o vento parece se intensificar fornecendo ajuda - Tem uma lareira bem legal lá em cima. – Ressalto e olho para meus pés, descompromissado.
Sua risada é incrédula, mas ela fecha a porta parcialmente. Observo-a em expectativa.
- Se você responder estas três perguntas corretamente, eu fico. Caso contrário, você me acompanha até o carro e ainda se despede com um simpático aceno de adeus. Feito? – Sua sobrancelha se arqueia e eu estou curiosamente animado com o desafio.
- Feito.
- Por quê? – É a primeira pergunta.
- Porque você é notoriamente a única companhia sóbria da casa. – Respondo e ela avalia o motivo. Assente com a cabeça minimamente e prossegue com o questionário.
- Café ou chá?
Cerro os olhos e, apesar dela ter a maior cara de consumidora de grandes doses de cafeína, arrisco-me a escolher algo diferente e fora de suas sugestões.
- Chocolate quente. – Ela me lança um sorriso esperto, como se eu tivesse acertado uma questão que eu estivesse fadado a errar.
- Se você pudesse acordar amanhã com qualquer qualidade ou habilidade, qual seria? – E então ela sorri, debochada, pois acha que eu não terei uma resposta suficientemente boa para fazer com que ela fique.
- A habilidade de ter habilidade. – Comunico, vitorioso. Cruzo os braços enquanto ela verifica racionalmente a minha resposta, pirrônica.
- Essa resposta não é válida! – ela percebe, exasperada. – É como pedir ao gênio da lâmpada desejos infinitos!
- Logo, é a resposta mais inteligente. – Observo e ela está chocada por eu ter contornado seu questionário de forma tão engenhosa.
- Eu esperava que você respondesse algo como ficar invisível. – Ela admite e fecha a porta completamente, dando-se por vencida.
- E por que eu faria isso? – Questiono enquanto a ajudo a se livrar do casaco pesado.
- Bem, porque foi o que eu respondi quando me fizeram essa pergunta.
- E por que escolheu essa habilidade? Para armar pegadinhas e assombrar as crianças? – Conjecturo com o cenho franzido.
- Por favor, não sou uma santa. Gostaria de ser invisível para poder entrar no vestiário masculino sem ser notada.
Então, ela pisca maliciosamente e ri da minha ingenuidade.

12:35 a.m.
Atiço as chamas da lareira com o batedor de brasa, apesar do quarto dos meus pais já estar confortavelmente quente. A bela sem nome está sentada na beirada da cama, intercalando os olhares da arquitetura do quarto para mim. É estranho saber que estou sendo observado por olhos que, apesar de adoráveis, são incompreensíveis.
Ela coça a garganta, requerendo minha atenção, e eu paro de abrasar o fogo e me junto a ela na cama macia. Aperto minhas mãos entre as pernas, encarando-as. Um silêncio esquisito então surge entre nós. Não é exatamente incômodo, mas também não é algo que eu deseje manter pelo resto da noite. Ainda mais porque eu a fiz ficar. E isso provavelmente deve significar alguma coisa.
- Qual o seu nome? – pergunto pelo que parece ser a milésima vez. Ela solta uma risada discreta.
- Você pode ser um psicopata.
- Que tipo de psicopata ainda mora com os pais? – questiono, entre risos, e acrescento – E se eu fosse um, você certamente já estaria morta.
- Talvez seja um psicopata a longo prazo. – Ela aponta, não desistindo da teoria estapafúrdia.
- E o que exatamente eu estaria planejando? – Interrogo, encarando-a, divertido.
- Cultivar amizade para depois roubar meus órgãos? Inserir-me no tráfico de mulheres? Matar-me dolorosamente de amor?
- O que? – Surpreendo-me com a última hipótese.
- Uma garota perdidamente apaixonada pode ser um pé no saco.
Então, uma sineta parece tocar em minha cabeça. “Não pode fazer isso comigo, . Estou perdidamente apaixonada por você.” Foi o que Scarlett disse quando eu a arranquei de cima da mesa de centro da sala e dei um ultimato para que ela abandonasse minha casa trinta minutos atrás. No banheiro. No final do corredor. Aos sussurros.
- Telepatia? – Questiono, abismado por ela saber disso.
- Audição aguçada. – Ela responde e eu estou incrédulo por ela ter ouvido uma conversa particular – E talvez um pouco indiscreta. – Ela adiciona e morde o lábio inferior.
-Talvez? – Acho que a pergunta sai mais zangada do que planejo, pois ela arregala os olhos, assustada.
- Você me pede para ficar em uma festa infestada de bêbados e promiscuidade. E, no segundo seguinte, entra num banheiro com a garota mais gata e fácil do local. Não pode esperar que eu permaneça de braços cruzados. – Ela rebate e todo alarme inicial some de sua expressão – Eu posso até ter sido indelicada ao fundir meu ouvido à porta para tentar ouvir o que se passava dentro do banheiro, mas você não foi muito mais educado ao me largar por uma periguete.
E com aquele olhar astuto que ela me lança, sei que estamos quites novamente.

01:07 a.m.
- Você não existe. – Digo em meio às gargalhadas que inundam o quarto. – Então quer dizer que aquelas perguntas são seu questionário de praxe para saber se a pessoa é suficientemente interessante? - Exatamente. A primeira pergunta serve para eu descobrir se a pessoa é logicamente racional. A segunda me diz se ela é capaz de surpreender, de se rebelar contra o sistema, de ser original. E a terceira é a minha favorita, pois demonstra o nível de criatividade do indivíduo em questão. – Ela revela os motivos, enumerando com o auxílio dos dedos – Sinceramente, você superou minhas expectativas. Imaginei que não conseguiria passar da primeira.
- Está me chamando de irracional?
- Não. – Ela alonga a palavra, enfatizando de uma maneira débil.
Reviro os olhos, pensando no tipo de companhia que eu fui arranjar. Uma mulher inconvenientemente curiosa, detentora de um caráter duvidoso, e que não faz o mínimo esforço para parecer politicamente correta. E embora saiba que manter diálogos com garotas que fazem o tipo convencional é mais fácil, por alguma razão resolvo me aventurar no desconhecido. E mesmo arriscando esfolar meu ego e dilacerar minha dignidade, acho que por ela vale a pena.

01:14 a.m.
- Você vai ir comigo. – É um ultimato.
Depois que me alertaram que a comida havia acabado e que o estoque de bebida estava comprometido, devido ao número muito maior de convidados do que eu inicialmente havia planejado, sou obrigado a ir até o supermercado 24 horas mais próximo para repor as faltas. Como obviamente não irei sozinho e recrutar qualquer colega ou até mesmo Scarlett para me acompanhar é suicídio, a única solução viável é arrastar minha parceira antissocial comigo. Principalmente porque se eu a deixasse aqui, ela iria embora, e eu seria compelido a interagir com os bêbados impudicos do andar inferior.
- Como alguém com a sua grana não consegue possuir o mínimo de educação e elegância?
- Porque é difícil demais parecer elegante e tão fácil parecer opressor.
Pisco, maroto, para a sem-nome e ela revira os olhos teatralmente, dando-se por vencida. Descemos as escadas, passando em meio à multidão ensandecida e, com medo de perdê-la, seguro sua mão instintivamente. Há uma familiaridade singular no seu toque e, de repente, eu estatizo. Uma lembrança paradoxalmente nítida e tênue transita por minha mente e, quando admiro aqueles olhos mais uma vez, que estão confusos pela parada inesperada no meio do trajeto até a saída, tenho absoluta certeza de que é ela. E, incompreensivelmente, sei que ela também tem certeza de que sou eu.

3 anos antes

23:35 p.m.
O vento cortante, através da densa escuridão, cruzou sua espinha deixando-a terrivelmente apreensiva. Observou o relógio mais uma vez. Era tarde. Muito tarde para uma garota estar em um ponto de ônibus, praticamente deserto, onde umas poucas almas esperavam impacientes por seus transportes. Desconhecidos. Seu terceiro mês na universidade e ainda não havia feito amizade alguma. Apenas colegas de “oi” e “tchau”, colegas de saudações educadas pelos corredores. Um suspiro penoso, então, algo estranho aconteceu. Um automóvel escuro estacionou por ali, e um homem barbado a incitou a entrar no veículo.
-Entre! – ele chamava.
A tentativa de parecer gentil fracassada, devido ao tom autoritário de sua voz. A garota olhou para os lados, tentando encontrar a quem aquele homem se dirigia, pois certamente não poderia ser ela. Ninguém a conhecia. Foi então, após a voz soar novamente, desta vez mais agressiva, que percebeu que definitivamente a vítima daquele sequestro relâmpago era ela.
Inacreditável.
Tentou raciocinar rapidamente, pensando em várias maneiras de se livrar daquela cilada. Analisou o homem dentro do carro. Havia algo escondido no casaco dele, tinha certeza. Se gritasse, seria executada imediatamente e os malfeitores fugiriam impunes. Sendo assim, o que fazer? Poucos segundos se passaram diante a essas considerações, até que ela notou aquela estampa xadrez. Já havia visto antes, sabia disso. Era um risco a se correr. Enlaçou seu braço ao do garoto que usava a camisa e deu o seu melhor na hora de falar, rezando para que as aulas de teatro, durante a infância, tivessem utilidade e funcionassem de forma eficaz.
- Obrigada pela oferta, mas eu estou com o meu namorado.
Imediatamente, sentiu o olhar do rapaz sobre si, provavelmente questionando quem era aquela louca bizarra agarrando seu braço. Torceu para que os braços que não paravam de tremer fossem resposta suficiente.
- Entre! – mais uma vez o chamado.
Foi quando ela percebeu que seria dada como refeição ao leão e que ninguém intercederia por ela. Sua voz falhou. Não podia envolver outras pessoas em seu problema. Mesmo o fato de estar caminhando para uma possível morte estar devorando-a, não seria justificável tornar outras pessoas vítimas. Respirou lentamente. Seu braço afrouxou o enlace e começou a pender. Desejou que sua mãe soubesse o quanto era amada. Era o fim. E quando deu o primeiro passo em direção ao carro, sentiu uma mão cálida e forte segurando a sua.
- Ela já está acompanhada. Quem sabe na próxima a carona não seja bem-vinda? – A voz ao seu lado era confiante, firme, e o aperto que o garoto ofereceu-lhe foi reconfortante, apesar de doloroso.
A falsa expressão acolhedora do motorista se desfez imediatamente, transformando-se em uma carranca. As pessoas ao redor começavam a se interessar pelo caso, e como seu plano não havia corrido da maneira desejada, o homem deu partida no carro e se foi.
Inacreditável.
- Você está bem?
Um aceno de cabeça, enquanto se recompunha, foi o máximo que conseguiu fazer.
- Perdão ter te envolvido nisto. Eu poderia ter feito de você mais uma vítima. – Ela pronunciou após recuperar-se do choque.
- Está tudo bem. Eu teria feito o mesmo. – O rapaz assegurou.
- Se enlaçaria em uma covarde e faria dela a sua namorada? – a menina questionou. A sobrancelha arqueada indicando que havia humor na pergunta.
- Não. Exatamente o mesmo. Encontraria o cara mais másculo daqui e faria dele meu namorado. – Brincou, um sorriso cúmplice despontando dos lábios.
- Não é como se eu tivesse tido tempo para uma seleção rigorosa. Aliás, eu não tive sequer escolha. – Provocou aquele que a salvara.
- Ora, se quiser posso chamar aquele cara de volta para lhe oferecer uma carona. Tão atencioso. – O sarcasmo transbordou da boca do herói.
- Não estou interessada.
- Mas é claro que não. – Uma piscadela marota e ela teve a absoluta confiança de que ele havia sido a escolha perfeita.
Abriu um sorriso e, ao mesmo tempo, avistou o letreiro brilhante, anunciando seu destino se aproximando. Era seu ônibus.
- Obrigada. De verdade. – Ela agradeceu e o garoto sorriu mais uma vez, antes que ela partisse.
Entrou no ônibus, apertando o casaco contra o peito, passou pela catraca após pagar a passagem e sentou-se em um banco perto da janela, avistando pela última vez, enquanto o transporte se locomovia, aquela estampa xadrez dissipando-se na escuridão.

Agora

01:49 a.m.
- E acreditar que até hoje eu não sei o seu nome. Bizarro. – Balanço a cabeça, perplexo.
O emaranhado de coincidências que propiciaram este encontro é intrigante e eu dedico-me a avaliar minha companheira enquanto ela joga dentro do carrinho de supermercado todos os pacotes de salgadinhos que vê pela frente.
- .
- Um sobrenome? – Inquiro, estupefato.
- É para te dar trabalho quando for procurar pelo meu número na lista telefônica. Quero me certificar de que terei tempo de mudá-lo. – Ela pisca, sagaz.
- Não vou ligar para você.
- Mas é claro que não. Porque, depois que discar para todos os indivíduos com como sobrenome na lista, perceberá que eu fui rápida o suficiente para não permitir esse infeliz acontecimento. – E a diferença no placar começa a ficar alarmante.
- Não vou ligar porque não quero. Você é pateticamente convencida. – Revido e espero que seja uma cortada satisfatória para fazê-la derramar lágrimas de arrependimento por desprezar um cara tão legal como eu.
- Você se esforça para acreditar nisso porque magicamente dói menos. Mas, no fundo, sabe que minha única irregularidade é ser perversamente realista. – Ela observa e se aproxima de mim, com as mãos na cintura e um ar prepotente inflando seu ser.
- Se eu começar a fazer uma lista dos seus defeitos, só irei terminá-la no meu aniversário de 25 anos.
- São qualidades disfarçadas. – Ela corrige e aproxima a boca perigosamente da minha, encarando-me de uma maneira petulante enquanto sussurra – Guarde este segredo: eu sou perfeita.
E então ela se afasta e começa a andar novamente, repetindo o processo de selecionar os pacotes de salgadinhos e jogá-los no carrinho, que eu vagarosamente empurro enquanto tento conciliar a reorganização das minhas ideias com a observação da sequência naturalmente proposital de movimentos sensuais de seu quadril.
02:13
- Eu tenho a Scarlett. – Assim que digo isso, para.
Estamos de frente para o açougue e ela se volta para mim, possivelmente tentando compreender por que eu envolvi a mulher no meio da conversa subitamente.
- Posso ajudar?
Um homem trajando um uniforme branco pergunta gentilmente, supondo que estamos na fila esperando para fazer nosso pedido. Na verdade, apenas paramos no lugar errado devido a uma constatação inadequada.
- Dois quilos de biscate, por favor. – responde, ainda olhando para mim.
O senhor franze o cenho, confuso, e eu apresso-me a atenuar a resposta indelicada.
- Dois quilos de bisteca.
- Foi o que eu disse.
Olho abismado para a mulher impassível a minha frente. Ela sorri de canto, dando de ombros, e colocando a carne dentro do carrinho, assim que o açougueiro entrega nosso pedido. Desgostoso, eu encaro o pedaço sangrento e a repulsa quer saltar pela minha garganta. Levanto o olhar mais uma vez para , que se encaminha em direção ao caixa, satisfeita com as compras. Contudo, eu não estou.
Sou vegetariano.

02:28 p.m.
- Você me deve 20 dólares.
A verificação é súbita e eu estou surpreso por ter me lembrado disso enquanto abria a carteira para pagar a conta. resmunga um palavrão e abre a bolsa, retirando de lá a quantia determinada.
- E os juros? – Questiono, perspicaz, e ela revira os olhos, frustrada.
Estendo a mão em sua direção e ela acrescenta 5 dólares ao valor anteriormente proposto.
- Só? – Inquiro, admirado com sua sovinice.
- Preciso de dinheiro para a gasolina. – ela responde, embaraçada, sua voz muito mais baixa do que o normal.
Então eu sorrio. Divertindo-me com a memória.

Antes

04:23 p.m.
adorava crianças, portanto, trabalhar como babá para pagar as despesas que a vida de universitária lhe rendia não era uma tarefa árdua. Entretanto, ela também tinha ciência de que crianças podiam ser verdadeiras pragas caso não se usasse os agrotóxicos corretos. E a solução desta metáfora era oferecer a maior quantidade de doces possível, para que eles ficassem com a boca ocupada demais para reclamar.
- Bolinhos? Está querendo me envenenar? Tenho intolerância à lactose!
A nova trupe de crianças da qual se responsabilizara era mais difícil de subornar do que previra. Edward, um garotinho branquelo e esquelético, argumentava com palavras eruditas, que faziam o cérebro de trabalhar a todo vapor. Apesar de compreender com alguma dificuldade o que ele dizia, não achava saudável e possível que um moleque de nove anos possuísse um vocabulário tão extensamente culto. Ela odiava gírias e pessoas que falavam como se tivessem um ovo na boca, mas, na idade de Edward, ela havia integrado aquele grupo. Tentou raciocinar enquanto era engolfada por palavras como “procrastinar”, “fleumático” e “pernóstico”.
- O que vocês acham de jogarmos algum jogo de tabuleiro, então?
- Isso é antiquado. Jogos dessa categoria estão obsoletos. A tecnologia os eliminou completamente.
- Você está redondamente enganado. Eles são incríveis! E eu acho que vi alguns no sótão quando sua mãe me mostrou a casa, Ed.
- Edward. Odeio apelidos.
- Certo. – concordou, os joelhos ardiam já que se encontrava nesta posição desde que começara a conversar com os garotos.
Queria que eles se sentissem mais à vontade com sua presença, por isso resolveu que ficar do tamanho deles seria uma grande estratégia. Não foi. Ela levantou-se e resolveu sentar no sofá. Desistindo parcialmente de qualquer coisa que pudesse vingar de sua sugestão, ela respirou penosamente. O grupo de cinco crianças a encarou. O menor dos garotos se aproximou, timidamente.
- Acho que é uma grande ideia.
- Acha? – Ela se admirou.
Ele moveu a cabeça afirmativamente. Os outros, com exceção de Edward, concordaram.
- Tudo bem. Então, vou ensinar-lhes a como serem os melhores em jogos deste tipo.
- Eu não quero participar desta brincadeira estúpida.
- Vivemos em uma democracia. O que significa que a soberania é do povo. E acontece que o povo decidiu que um jogo de tabuleiro é a melhor opção. Lamento que seus desejos não tenham sido atendidos, Vossa Alteza, mas, caso mude de ideia, pode se unir a nós.
- Isso não irá acontecer.
- Isso é uma promessa? – E a menina se levantou, dirigindo-se ao sótão.

XXX

- Acho que mentiram para mim quando disseram que nunca jogaram Banco Imobiliário. – estava beirando a falência, enquanto as outras crianças se divertiam com um punhado de notas sem valor nas mãos. Risos inundavam a sala de estar e ela se sentia verdadeiramente feliz.
- .
A garota virou-se quando ouviu a voz de Edward.
- Venho me desculpar pela minha postura mais cedo. Comportei-me como um tremendo idiota. – ele diz e a garota sorri, comovida pelo esforço do menino ao selecionar palavras de compreensão universal. – Posso participar também?
- Claro! Na verdade, eu estava pensando em sair para comprar algo para lancharmos. Que tal assumir o meu lugar e tentar um milagre?
- Feito. – e um sorriso iluminou os lábios do garoto, que rapidamente se uniu aos amigos, enquanto pegava a carteira em cima do sofá e se dirigia até o mercado mais próximo.
- Não queimem a casa, por favor! Retorno em 15 minutos.
Após este último aviso, ela se foi.

XXX

O mercado que ficava perto da casa de Edward era pequeno para os padrões universais de redes alimentícias e se animou com o fato de não ter que enfrentar filas extensas. Pegou um cesto ao entrar e se encaminhou para o corredor dos doces. Conferiu todos os produtos duas vezes, para se certificar de que nenhum deles continha leite ou derivados. Apenas açúcar, muito açúcar. Estava andando despreocupadamente, quando avistou a promoção de batata Lay’s. Como se anjos tocassem alguma sinfonia, ela correu celeremente em direção ao produto, ignorando a curva a sua frente e caindo de forma catastrófica por cima do indivíduo que surgia com uma cesta de compras abarrotada na direção oposta.
Antes mesmo de visualizar quem havia atingido, suas bochechas adquiriram um tom escarlate. Estava se sentindo imensamente envergonhada.
- Desculpa, eu não tive a intenção de te envolver nisto... – a garota murmurava enquanto se levantava, desajeitada.
- Você nunca tem.
E ao ouvir aquela voz, ela percebeu quem era o rapaz que se encontrava pateticamente estendido no chão. Ironicamente, ele usava a mesma camisa xadrez de dois meses atrás. O garoto se levantou, batendo na roupa para desamassá-la. Olhava para os lados a procura de espectadores enquanto mascarava o constrangimento. Por sorte, havia apenas um ou outro perdido por aquela área.
- Foi mal. – A menina disse, enquanto se abaixava para recolher os itens que tombaram da cesta do rapaz.
- Foi mal? Você passou por cima de mim como um trator! Não creio que há uma lei que restrinja o limite de velocidade de pedestres, mas certamente é necessário criar algo para te parar.
- Olha, eu já pedi desculpas. Não tive a intenção de te atropelar. Foi um acidente.
- Imagine o que você poderia fazer se tivesse autorização para dirigir algo motorizado. – O garoto debochou e se inclinou para ajudá-la.
- E eu tenho.
- Misericórdia. – O temor em sua voz fez a garota rir.
A menina levantou-se mais uma vez. Agora com a cesta em mãos, ela se dirigiu até a pilha de batatas e pegou três pacotes. O rapaz a observava atentamente.
Apesar de fazer tanto tempo desde o incidente no ponto de ônibus, lembrava-se claramente do semblante de . Não porque ela era a personificação da beleza, na verdade, ela não fazia o seu tipo. Audaciosa demais. Elegante de menos. O modo como ela resolveu a situação no ponto de ônibus o surpreendeu. Ele poderia pensar em inúmeras formas de findar aquele episódio – gritaria, choro descontrolado, alegar que possui uma doença venérea ou simplesmente se render com medo de levar um tiro na testa -, mas ela foi astuta e se agarrou a pessoa mais próxima, buscando apenas por apoio em sua mentira. Ele era capaz de lembrar-se nitidamente da expressão decidida no rosto da garota que contradizia seu corpo trêmulo, como se ela estivesse sofrendo de um ataque epilético suave. O sequestrador provavelmente pensou que ela apenas estava com frio e por isso se aninhava nos braços do namorado.
- Por que você está me encarando?
A voz de acordou de suas recordações daquela estranha noite e ele se pôs a justificar seu comportamento esquisito.
- São as minhas favoritas. – Ele apontou para as batatas.
- Jura? – ela franziu o cenho, cética.
- Sim. Estava vindo pegá-las, antes de você trombar em mim.
- Ah.
A menina recolheu alguns pacotes e ofereceu a . Simbolizava mais do que batatas, ele sabia. Era uma oferta de paz.
- Obrigado.
- Não foi nada. Bem, eu já consegui o que queria.
olhou mais atentamente para a cesta da garota.
- Você vai ter uma overdose de glicose. – Ele alertou-a. – Acho melhor controlar o consumo de açúcar.
- Não são para mim. – Ela baixou o olhar para o relógio em seu pulso e sibilou um xingamento – Tenho que ir de verdade. Desculpa mais uma vez, prometo que isso não voltará a acontecer.
- Eu não estaria tão certo disso. – Ele resmungou, divertido.
Ao virar-se, a menina calculou mentalmente o total da compra e abriu a carteira para conferir se possuía o suficiente. Admirou-se com o que encontrou lá dentro. Analisou o leque de possibilidades que se abriam a sua frente e escolheu a mais fácil, contudo, a menos ortodoxa.
- Ahn, você troca 20 dólares? Quero deixar uns trocados na caixinha de Natal.
- Claro.
abriu a carteira e retirou duas notas de 10 dólares, entregando-a gentilmente para que entregou-lhe uma nota. Ele imediatamente guardou-a na carteira enquanto observava a expressão constrangida da garota, que suspirou aliviada após a troca.
- Obrigada.
- Está se tornando habitual te salvar de enrascadas. – Ele escarneceu e a menina sorriu, antes de se embrenhar pelos corredores do local.

XXX

Ao se dirigir ao caixa, 10 minutos depois, pode ver ao longe se locomovendo a passos rápidos. A funcionária terminou de registrar suas compras e ele entregou-lhe o dinheiro sem nem sequer olhar a nota, continuando a observar a silhueta de que desaparecia em uma esquina.
- Senhor, esta nota é falsa. – A voz nasalada da funcionária o despertou.
- O que? Como pode...
E então ele visualizou a nota em que constava um imenso carimbo onde se lia “sem valor”.

Agora

02:49 a.m.
Estou encarando o relógio do painel do carro enquanto me pergunto quanto tempo me deixará esperando até retornar do mercado. Ao chegarmos até o estacionamento, ela recordou-se de que deveria ter comprado algo e retornou para dentro do estabelecimento. Inicialmente, eu fiquei esperando por ela, encostado ao capô do carro enquanto me divertia brincando com um gato que estava passeando por ali. Depois de o bichano arranhar minha perna, suplicando por colo, eu atendi seu pedido. Acariciei-o ao mesmo tempo em que o via ronronar e lamber distraidamente uma das patas. Até que percebi que se me encontrasse naquela situação, eu seria alvo de uma enxurrada de piadas maldosas e eu sinceramente não estava a fim de passar por isso mais uma vez.
Então eu abandonei relutantemente o felino e entrei no carro para esperá-la. E estou fazendo isso há 13 minutos. Suspiro pesado, cansado da loucura desta madrugada. E quando finalmente fecho os olhos, tentando relaxar, sou acordado por batidas na janela do automóvel e me observa, curiosa. Abro a porta para que ela entre e logo em seguida faço uma constatação.
- É o nosso terceiro encontro. – E há certa esperança na minha voz – Obviamente, nenhum deles foi previamente planejado, mas foram singulares de uma maneira surpreendente.
- E o que isso significa? – Ela pergunta, pois foi capaz de captar o tom sugestivo de minha voz.
- Bem, você sabe o que dizem sobre o terceiro encontro... – relembro, descompromissado, vendo-a retirar da sacola em seu colo uma pequena caixa.
- Você tem mais com o que se preocupar.
Então ela abre a caixa cujo conteúdo é um cupcake decorado com bastante chantilly e granulado colorido. Retira uma vela de festa da sacola e coloca sobre o bolo. Pega um isqueiro na bolsa e acende agilmente o pavio. Eu observo o ato, impressionado com a demonstração de humanidade. Encaro seus olhos profundamente e questiono audivelmente:
- Com o que tenho que me preocupar?
- Bom, você está fazendo 24 anos. – Ela pausa propositalmente para que eu seja capaz de realizar alguma conexão com o fato – Sabe o que dizem sobre esse número...
E a sentença fica no ar, mas eu não estou irritado.
Porque sei que ela se importa.

03:26 a.m.
- Achei você! – um grito estridente surge do meio da multidão e, de repente, eu observo sendo sugada para dentro de uma roda de pessoas. – Você sumiu! Deixou-me aqui sozinha. – A morena faz um bico, magoada.
- Desculpe-me, mas você estava se divertindo tanto que eu resolvi não atrapalhar. – tenta explicar para a amiga que está embriagada demais para perceber o sarcasmo em sua fala.
Então percebo que a morena é Celine. Uma garota que estudou uns dois períodos comigo, antes de abandonar a área de exatas para fazer psicologia. Mesmo depois da mudança de curso, mantemos contato porque ela é o que chamamos de uma ótima companhia para festas.
- , eu tenho que te apresentar o cara que está fazendo aniversário. – A morena fala enrolado, mas cheia de entusiasmo – Acho que vocês vão se amarrar um no outro.
- ? – surpreendo-me com o nome. – Não combina muito com você.
Então as duas olham para mim. emburrada e Celine espantada com minha aparição repentina.
- , você está aí! – Ela verbaliza seu choque, rindo sem razão alguma.
- É mesmo? E o que você esperava? – pergunta, ignorando a amiga grogue ao seu lado.
- Não sei. – Dou de ombros – Algo que soasse mais parecido com Lúcifer, talvez.
E então, após uns segundos de silêncio excruciante, Celine começa a rir, pois finalmente entende a piada.
- Ele te acha demoníaca. – Ela diz e cerra os olhos, desafiadora.
- Não acredito que disse isso. – Ela balança cabeça em negação – Eu te comprei um cupcake de aniversário.
- Com o meu dinheiro – ressalvo, pois não quero sair como vilão por ter sido cruel acima da conta.
- Droga, você está ficando bom nisso.
Então eu pisco, malicioso, e percebo que estamos muito perto de um empate.

03:51 a.m.

- Vamos, , vamos! Dance comigo!
está me chamando para juntar-me a ela e Celine na pista de dança. Há 20 minutos elas estão se movimentando ao som das músicas selecionadas pelo DJ enquanto eu as observava. Previsivelmente, eu acabei dando mais atenção à . A verdade é que eu estive a observando a noite toda. Há algo nos olhos dela que me prendem de uma maneira sobrenatural e ela havia soltado o cabelo, que esteve preso em um rabo de cavalo, ficando curiosamente mais linda.
Então meu coração começa a acelerar a cada passo que dou. E eu sinto mais e mais. Ela está se virando para mim, o sorriso expandindo-se no seu rosto. Eu busco por sua mão e ela não em impede de segurá-la na frente de toda essa gente. Provavelmente porque sabe que eles não se lembrarão de nada do que aconteceu nesta noite. Durante toda a madrugada, eu achei que ela fosse uma garota de sorte. Mas eu estive enganado porque eu sou o cara de sorte. Contudo, quando estou prestes a revelar isso a ela, a voz que escuto não é a minha, mas sim a de Mike, me alertando de que devo ir até meu quarto porque ele foi invadido por um casal com pretensão de se dar bem esta noite.

04:02 a.m.

Assim que abro a porta, sou pego desprevenido por um par de pernas se enlaçando na minha cintura. Beijos molhados são distribuídos por todo meu rosto e pescoço e sei que é Scarlett que está realizando essa ação devido a sua fragrância enjoativa de almíscar.
- Scarlett, eu mandei você ir embora. - Recordo, tentando afastá-la a todo custo, mas ela se agarra em mim feito chiclete e eu sou incapaz de me desfazer de seu amplexo mortífero sem machucá-la.
- Você estava bêbado, então eu decidi ignorar. Este é seu presentinho de aniversário, aproveite. – Então novamente ela me beija.
- Eu não estava bêbado. – Rapidamente corrijo - Eu não estou bêbado. Eu não quero sexo para fazer as pazes. – Alerto e ela faz um beicinho, deitando sua cabeça em meu ombro e fungando repetidas vezes.
Solta o aperto e eu finalmente sou capaz de livrar-me dela. Ponho-a sobre a cama o mais gentilmente que consigo e tento não observá-la com o minúsculo conjunto de lingerie vermelho que usa.
- Eu... – ela começa a falar, mas não termina.
Então, desconcertado por ela não dizer nada, a olho novamente e reparo que seus olhos estão lacrimejados, vermelhos. O nariz está rosado e ela aparenta estar com dificuldade para respirar. Tinha ciência de que minha reação inesperada impactaria o emocional de Scarlett, mas aquilo era surpreendente até para o meu ego não muito moderado. Não muito depois, longas lágrimas estão percorrendo seu rosto e eu aproximo-me mais, vendo-a respirar penosamente. Algo definitivamente está errado.
- Scarlett, está tudo bem?
- Eu não consigo respirar. – Murmura e coloca a mão sobre a garganta.
- Você tem asma? – Questiono, levantando-me em alerta.
- Não. – Ela tosse. – Mas... , o que estava fazendo antes de subir?
- Estava lá embaixo. – respondo roendo as unhas, em desespero.
Scarlett senta-se na beira da cama, vendo-me ziguezaguear pelo quarto, e tenta raciocinar.
- Venha cá. – Ela chama e eu me aproximo cautelosamente. Ela observa minuciosamente minha roupa e, de repente, arfa, como se tivesse encontrado algo desagradável. - Tire a roupa. – Ordena impaciente.
- Mas o que? - Estou incrédulo e chocado com a ordem proferida.
- Tire a maldita roupa e a queime! – e então uma onda de espirros toma conta dela. Tento acudi-la, mas sou afastado.
Faço então o que me foi ordenado, arrancando as peças que me cobrem o corpo e ficando quase nu, já que me recuso a retirar a cueca.
- O que está havendo, Scarlett? – pergunto, enquanto recolho a roupa caída no chão e levo o mais distante possível da garota.
- Gato.
É a única palavra que ela consegue murmurar. Uma mão cobrindo a garganta, a outra sobre a perna. Está tentando controlar a respiração, mas não está funcionando. Ela precisa de um médico.
- ... - ela chama e eu vou ao seu encontro, parando de frente para ela. Seguro os seus ombros de forma a estabilizá-la e estimulá-la a prosseguir tentando respirar.
- Tudo bem, você não é gay. – Diante dessa frase espantada, eu ergo as mãos como se já estivesse me justificando e viro-me para a dona da voz.
Então, uma cena comprometedora se desenvolve. Ali, parada perto da porta, está , segurando em uma das mãos uma latinha de Coca-Cola, enquanto observa, estática, o cenário mais sórdido que já vira.
- Eu posso explicar. – Começo, mas não é necessário terminar as desculpas, pois Scarlett desmorona no chão.

04:34 a.m.

- Alergia a pelo de gato? pergunta depois que a ambulância se encaminha com Scarlett para o hospital mais próximo. As pessoas estão deixando minha casa por conta do incidente e por causa da viatura de polícia que apareceu devido às reclamações dos vizinhos por conta do barulho. Agora, sem a multidão para tampar os estragos, minha casa parece um cenário de guerra ou uma pintura abstrata de um artista mal-humorado.
- O que foi fazer lá?
- Antes de eu pensar estar vendo você recebendo um prazeroso você-sabe-o-quê da ruivinha? – ela oculta a palavra que considera indecente e eu rolo os olhos. – Fui me despedir.
- Já vai?
- , eu tenho uma aula importante às seis. E possivelmente vou dormir durante a maior parte dela.
- Não pode ficar nem mais um pouco? – Pergunto, esperançoso. Não quero deixá-la ir. Não posso deixá-la ir.
- Não. Ainda tenho que deixar Celine em casa. – Ela se levanta do sofá e me observa durante alguns instantes. – Foi bom te conhecer. De novo. E de novo. – Ela ri e estende a mão para um aperto cordial.
Então, invertendo os papéis, agora sou eu que estou avaliando criteriosamente sua mão. Várias frases passam pela minha cabeça. Coisas como “Chegue mais perto.” e “eu quero ser seu agora”, mas não parece certo dizer nenhuma delas. Na verdade, eu estou com medo de dizer qualquer coisa. Então apenas aceito sua mão, cumprimentando-a como se estivesse fechando um negócio. Uma formalidade imbecil. E então ela sai de casa e eu fico sozinho, encarando toda a bagunça não só do exterior, como do meu interior. Sinto que fui revirado de uma forma agradavelmente dolorosa.
E sei que estou doente. Ou talvez esteja somente me apaixonando.
Tristemente percebo que é tudo a mesma coisa.

05:05 a.m.
Ouço batidas na porta e ergo-me, letárgico, para atendê-la. Lentamente eu a abro e me espanto quando vejo do outro lado, respirando apressadamente como se seu coração estivesse batendo em uma velocidade absurda. Encaro-a, sem entender o que ela está fazendo novamente ali e quando estou prestes a perguntar se ela esqueceu algo, uma aproximação repentina ocorre.
Ela põe as mãos em minha nuca e seus olhos sagazes estão me desvendando. Enlaço a sua cintura, correspondendo instintivamente. E antes de nos beijarmos, ela profere a frase sugestivamente:
-Sabe o que dizem sobre o terceiro encontro...

Capítulo Único

FIM.