Finalizada em: 26/01/2022

Capítulo único

A cafeteria dos Seo costumava ser um lugar de paz para Mark Lee, localizada a três quadras do apartamento que dividia com Johnny e Jaehyun se ele seguisse ao sul, e a quatro quadras da livraria onde ele trabalhava após as aulas se ele seguisse ao leste. Apesar do burburinho das conversas e do tilintar das colheres de metal contra a cerâmica das xícaras, Mark conseguia ser mais produtivo ali do que em qualquer outro lugar.
Sem falsa modéstia, Lee era um dos melhores alunos da sua turma no curso de Literatura da Universidade de Toronto. Sempre com ideias mirabolantes e uma visão de mundo bastante pessoal, o escritor iniciante contava com o respeito e a admiração dos colegas e professores, além dos incentivos acadêmicos que havia conquistado desde o início do curso e os acessos satisfatórios no blog pessoal onde compartilhava algumas crônicas e outros trabalhos.
Por esse mesmo motivo, o rapaz agora podia ser encontrado sentado à mesa da janela — a “sua” mesa —, com os olhos arregalados e completamente descabelado depois de descontar toda sua frustração nos fios de cor média que ele jurava ser natural. O computador à sua frente exibia a tela em branco do editor de textos há trinta minutos, e o tic e o tac do relógio antigo que decorava o café, normalmente partes importantes do processo de relaxamento e concentração de Mark, agora pareciam zombar dele.
Puxando os cabelos mais uma vez, Mark olhou ao redor procurando por qualquer coisa que pudesse servir como referência, mas já havia escrito sobre o casal que ficava na mesa do canto, na meia luz, como se estivessem se escondendo de alguém; já havia escrito sobre o garçom melancólico que sempre encerrava o turno quinze minutos mais cedo e sobre a mulher de meia idade que passeava todas as noites com a cadelinha que a sua cópia idêntica, como se fossem tiradas de um filme da Disney. Quando percebeu que já havia escrito até mesmo sobre as louças e recebido uma nota alta pela “excelente releitura de A Bela e a Fera, sr. Lee”, o rapaz bufou, cansado, e fechou o computador, deitando-se com a testa em cima da máquina.
— Quer mais alguma coisa, Mark? Eu vou fechar a cozinha. — Johnny, que trabalhava de barista no período da noite, perguntou, vendo o amigo sofrendo sozinho no salão vazio. Era meio patético, mas o que ele podia fazer? Gostava do garoto.
— Quero um café. Forte! — Respondeu abafado, sem se dar o trabalho de levantar a cabeça até que sentiu o cheiro do café. — Obrigado, cara.
Johnny girou a placa na porta, onde agora se lia “FECHADO” pelo lado de fora e puxou uma cadeira para se sentar junto ao amigo, jogando o pano de prato sobre o ombro por força do hábito. Sentia falta do ritmo acelerado das cozinhas da faculdade e não via a hora de Jaehyun acertar os papéis da compra da bodega caindo aos pedaços que eles pretendiam transformar num restaurante intimista.
— Sem problema. — Bebericou um gole do café quente e apontou para o computador com o queixo. — Acho que você não pode dizer o mesmo, né?
Mark soltou um grunhido do fundo da garganta, pedindo mentalmente que um buraco se abrisse no chão e o engolisse.
— É a droga da noveleta, ainda. Faltam só alguns dias para o final do prazo e eu ainda não comecei essa porcaria.
— Alguns dias? — Johnny riu soprado pelo nariz. — Mark, você tem um mês e meio para escrever essa história e eu já te vi fazendo milagre em menos tempo.
— Você está lembrado que essa história pode me garantir um intercâmbio na França por um ano completamente na faixa, né? — O escritor perguntou, meio retórico, meio exasperado com a postura relaxada do amigo.
— Você dá conta. O que eu quero saber, na verdade — Johnny cruzou os braços sobre a mesa, inclinando-se em direção ao garoto, disfarçando o sorriso provocativo que surgia em seus lábios —, é como vai a carta para a garota da sua turma de linguística.
Balançando as sobrancelhas, o chef riu, sabendo muito bem que Mark estava enterrando o rosto nas mãos para esconder o tom de vermelho que as bochechas haviam ganhado. Honestamente, Johnny também sabia que o escritor devia estar fazendo um esforço descomunal para não xingar a sua mãe e todos os outros parentes de que ele se lembrava.
— A carta não vai, não vem e provavelmente está lá na casa dela lendo uma historinha de dormir para os bilhetinhos enquanto o telegrama toma um banho bem relaxante, ocupado demais para pensar em ir para qualquer lugar.
Johnny agradeceu pelo café estar vazio quando soltou uma gargalhada alta, para o desprazer de Mark.
— É, você continua sendo um bundão. — Tomou outro gole de café, ignorando o guardanapo amassado que vinha em sua direção. — Lee, em algum momento você vai precisar falar com essa garota. Já faz quanto tempo que você choraminga sobre ela em casa? Uns dois anos?
— Eu não choramingo!
Com uma sobrancelha arqueada, Johnny encarou o amigo fundo nos olhos.
— Ok, um ano e meio. Se você conhecesse ela, eu tenho certeza de que se sentiria do mesmo jeito.
— Exatamente, se eu conhecesse. E do jeito que você é devagar, eu nunca vou conhecer. Pobre garota, vai perder a chance de ter um cunhado incrível como eu.
O chef fingiu enxugar uma lágrima antes de se levantar levando as xícaras de café vazias para a cozinha. Lavá-las seria um problema de Jaehyun, quando ele chegasse para assumir seu turno na manhã seguinte.
— Ela ia gostar mais do Jaehyun — o escritor retrucou, guardando o computador na mochila e arrumando as cadeiras no lugar enquanto Johnny apagava as luzes.
— Todo mundo gosta mais dele. É o ciclo natural da vida. — Enxotando Mark para a calçada, o rapaz terminou de trancar o café e enfiou as chaves no bolso, dando de ombros como se constatasse o óbvio. — Eu gosto mais do Jaehyun. É por isso que eu vou viajar com ele e não com você.
Mark piscou algumas vezes, parado em frente ao café, vendo Johnny se distanciar em passos lentos e relaxados.
— Você é um péssimo amigo, Seo.
— Não sou, não. Tudo o que eu faço é visando o seu bem, porque eu sou um excelente amigo. Por exemplo — Johnny tagarelou, sem deixar que o mais novo contestasse —, eu estou te dando o prazo de duas semanas para terminar e entregar essa carta. Se eu voltar da Europa e a garota ainda não souber que você fala sobre ela durante o sono, eu juro que descubro quem ela é e eu mesmo conto.
Mark abriu a boca para retrucar, mas não conseguiu dizer nada. Johnny tinha razão. Ele e Jaehyun eram mais velhos e muito mais experientes com garotas — bom, com pessoas, de modo geral — do que o escritor, então era de se esperar que os conselhos que eles davam fossem mais confiáveis do que as ideias que o garoto tirava das comédias românticas da Netflix.
Caminharam em silêncio por mais alguns minutos, cada um perdido em suas próprias reflexões. Quando chegaram ao prédio onde moravam, o chef notou o olhar perdido do amigo.
— Lee, você sabe que eu estou brincando, né?
— Vindo de você, eu nunca sei com certeza, cara. — Mark riu quase sem humor, mas sincero em cada palavra.
Johnny revirou os olhos, sorrindo.
— Eu realmente acho que você devia falar logo com ela, mas não posso te obrigar a fazer nada se você não estiver pronto. — Destrancando a porta do apartamento, os rapazes logo ouviram o som baixo da televisão e o ronco vindo do sofá. — Espero que ele saiba que a conta de luz desse mês é dele.
O escritor riu vendo o mais velho balançar a cabeça, descrente. Tirou os sapatos e seguiu para o corredor dos quartos, ouvindo Johnny chamar seu nome uma última vez.
— Sobre a sua história, talvez seja bom você sair um pouco, Mark. Se você não tirar o nariz dos livros e arejar a cabeça, sair da rotina, você nunca vai conseguir a inspiração de que precisa. Pensa nisso, Lee. Bonne nuit.


A segunda-feira chegou mais rápido do que Mark gostaria, mas ter que acordar cedo depois do final de semana para encarar quatro horas de aulas não era o que perturbava o às do curso de literatura. O problema era que segunda-feira era o dia da aula de linguística, e a mania quase patológica de Mark de sentar-se perto da garota de longos cabelos castanhos havia acabado de pareá-los no trabalho em dupla que a professora Brown passou valendo quase metade da nota do semestre.
Enquanto anotava as últimas informações sobre a evolução da língua inglesa no século XIX, pensou na reação que Johnny teria quando voltasse do mochilão e descobrisse como o universo resolveu ser engraçadinho com o escritor. Diria algo como “eu não precisei fazer nada, dessa vez, hein?”, daria uns tapas no ombro do mais novo e iria para a sala com uma cerveja para jogar videogame com Jaehyun, que estaria rindo da situação toda.
Perdido nos próprios pensamentos, Mark começou a guardar seu material na mochila assim que a professora Brown dispensou a turma. Sentiu uma onda de felicidade passando por todo o seu corpo quando vasculhou a memória e percebeu que nunca havia escrito sobre Johnny e Jaehyun, mas fechou a cara ao concluir que provavelmente seria parabenizado pela releitura não-intencional de Tom & Jerry, dessa vez.
Passou as mãos, nervoso, pelos cabelos e respirou fundo. Começava a questionar se não seria o caso de desistir do concurso. Quer dizer, fazer intercâmbio na França quando se podia passar um final de semana num Airbnb no Quebec não parecia grande coisa, não é? Não era como se aquela fosse uma oportunidade única de estudar romances clássicos na língua nativa com tudo pago pela faculdade — ou, pelo menos, era o que Mark repetia, ironicamente, para si mesmo, na tentativa de diminuir a importância do concurso e finalmente conseguir escrever sem tanta pressão.
Estava tão distraído que não sentiu a mão tocando seu ombro até que a pessoa precisou ser mais incisiva e dar uns tapinhas com as pontas dos dedos, pigarreando. Mark olhou para trás, desinteressado, certo de que era mais algum aluno querendo suas anotações sobre a aula emprestadas, e tomou um susto quando viu que não era.
! — gritou. A última pessoa que ele esperava ver ali era a garota que ocupou a maior parte do seu espaço mental nos últimos dezoito meses.
— Desculpa, eu não quis te assustar! — Ela riu baixinho, balançando as mãos. — Pode me chamar de .
— Não, não assustou — mentiu, tentando discretamente arrumar o cabelo que ele mesmo havia bagunçado alguns minutos antes. — Eu posso te ajudar com alguma coisa?
coçou a nuca, meio sem graça. Mark sabia que podia ter dito qualquer coisa melhor do que aquilo e que, pelo jeito que ela franzia o nariz, pensou estar incomodando o rapaz. Antes que ele pudesse tentar se corrigir (e, provavelmente, acabar estragando ainda mais a conversa), ela respondeu:
— Eu só queria saber se você está ocupado, agora. Eu tenho uma hora livre antes de ir para o trabalho e achei que a gente podia ir para a biblioteca dar uma olhada nesse projeto.
— O projeto!
Mark quis dar um tapa na própria cara por parecer tão patético. Por outro lado, ficou contente em saber que entrar em pânico por causa do concurso havia sido o suficiente para não o deixar entrar em pânico por causa do trabalho em dupla. Conferiu o celular e calculou o tempo que tinha disponível.
— Eu tenho por volta de uma hora livre, também. Podemos ir para a biblio...
— Sr. Lee, eu posso falar com você um minuto? — A voz da professora Brown ressoou na sala quase vazia. Mark piscou pesada e lentamente, respirando fundo e desejando, pela segunda vez em menos de uma semana, que uma cratera se abrisse aos seus pés.
— ClARO! — Limpou a garganta ao ouvir a voz falhando como a de um pré-adolescente e sentiu todo o sangue subir para as bochechas. — Claro, Sra. Brown.
Sem encarar a garota, foi até a mesa da professora, que o assistia por cima dos óculos de meia-lua. Mark tinha a impressão de que Maggie Smith poderia interpretar a docente se algum dia sua vida incrivelmente ordinária fosse parar nos cinemas.
— Alguma novidade para mim, Sr. Lee?
O silêncio do rapaz foi suficiente. A professora suspirou, tirando os óculos e se sentando.
— Mark, como sua professora e orientadora no concurso, eu preciso dizer que esperava mais empenho da sua parte. Você sabe que, agora que a primeira entrega já passou, eu não posso mais ler o seu material, não é?
Mark acenou com a cabeça, revivendo a memória mais desconcertante da sua infância, quando levou uma bronca da professora na frente de toda a turma porque não tinha conseguir fazer a lição de casa. Não saberia dizer em que momento havia começado a brincar com os polegares, mas esperava que aquilo acabasse logo.
— Certo — a professora continuou. — Como uma colega literata que já viu alguns talentos especiais ao longo da vida, Mark, eu acredito no seu potencial, mas se eu puder te dar um conselho, eu diria para você colocar uma coleira na sua criatividade. É confuso, eu sei, mas nós vivemos em um mundo prático e essa nossa alma artística não é muito adequada para ele. Você tem ideias fantásticas, mas até mesmo grandes escritores renomados precisam lidar com prazos e burocracias. Pense nisso, garoto: às vezes, fazer algo bom é melhor do que não fazer algo perfeito.
Sem saber como responder, Mark apertou a alça da mochila e virou-se para a porta.
— Srta. ? — a professora chamou mais uma vez, fazendo Mark notar que a garota estava esperando por ele do lado de foto da sala. — Ouvi bons comentários sobre suas análises dos poemas neozelandeses. Meus parabéns.
— Obrigada, professora. — Com um sorriso curto, a garota agradeceu e se despediu da mulher. Abriu mais o sorriso quando se virou para Mark, e fingindo que não havia escutado nada da conversa entre ele e a professora, o chamou novamente para ir até a biblioteca.

Mark saiu do campus dividido. Não sabia se devia ficar empolgado pelo tempo que passou e ainda passaria com por conta do trabalho, feliz pelo fato dos dois terem se entendido bem ou preocupado com a noveleta para o concurso. Quando entrou na livraria onde trabalhava e observou todos aqueles nomes que haviam chegado aonde ele queria chegar, percebeu que o aperto no peito e o autoquestionamento estavam falando mais alto do que qualquer sentimento bom.
A tarde foi se arrastando entre poucos clientes entusiasmados que pediam indicações do rapaz já conhecido na região pelo gosto abrangente para literatura e os momentos de ócio que Mark aproveitou para procurar inspiração. Resolveu sair da zona de conforto e vasculhar sinopses de livros das estantes que ele não dava muita atenção. Quem sabe os mistérios que um livro didático de química para a quinta-série poderia esconder? Infelizmente, Mark não sabia e continuou sem saber, porque nenhuma das tentativas de achar uma história para escrever foi frutífera. Talvez devesse ter olhado nos livros de botânica.
Derrotado, encerrou o expediente querendo encerrar também sua carreira. Não era possível se chamar de escritor se ele não conseguia cumprir o requisito básico: escrever. Enquanto caminhava, apertou a mochila com o computador contra o corpo, deixando que a mente vasculhasse as ideias antigas descartadas e até mesmo os textos que ele já havia publicado, mas nada parecia suficientemente bom para valer uma bolsa de estudos no exterior.
Ouviu a voz da professora repetindo na cabeça como o toca-discos velho que decorava o café dos Seo tocando a coleção cuidadosamente curada de discos riscados que Johnny e Jaehyun haviam montado em uma brincadeira, na opinião deles, engraçadíssima. Mark só riu quando eles compraram o primeiro disco, mas analisando a situação toda agora, o escritor invejava os amigos.
Mark não desejava ser uma pessoa diferente. Ele gostava de ser introvertido e de preferir a companhia de um bom livro a uma balada, mas ter crescido tão afastado de outras pessoas também teve suas consequências. Não saber lidar com a pressão externa — somada à interna, se ele fosse honesto — e pensar demais, com certeza, eram duas delas. O rapaz não saberia dizer se não via graça na piada tosca dos amigos porque ela realmente era sem graça ou se a sua cabeça perfeccionista não compreendia o sentido de colecionar discos riscados. Se ele não achasse a história divina e pintada a ouro, entregue a ele em sonho pelos anjos do Senhor, ele perderia a oportunidade de brigar pela bolsa de estudos?
Parou de andar quando se tocou que, por hábito, havia ido para o café, e não para o apartamento. Não tinha planos de aparecer por ali se Johnny estivesse fora, mas já que estava parado na porta, era melhor entrar. Inspirou o perfume dos grãos moídos e deu o braço a torcer: a mesma teimosia que os amigos tinham de rodar a cidade procurando discos, eles tinham para selecionar os melhores produtos para o estabelecimento.
A mesa sob a janela estava sempre vazia nesse horário. Na verdade, todo o café ficaria mais vazio dali a algumas horas, quando o movimento após o horário de pico diminuísse. Mark fechou os olhos por alguns segundos, se preparando para pegar, mais uma vez, o computador e tentar escrever alguma coisa.
— Eu devo entender que te encontrar aqui é uma coincidência, Sr. Lee, ou é melhor ficar preocupada com a minha segurança?
O rapaz abriu apenas um dos olhos, buscando a dona da voz, e não soube bem como reagir ao encontrar a colega da turma de linguística ali.
? Desde quando você trabalha aqui?
A garota revirou os olhos, balançando o caderninho de anotações que usava para pegar os pedidos.
— Por Deus, Mark, quem é você? Meu pai? Já te falei para me chamar de — reclamou, fingindo irritação, mas sorrindo para o colega logo em seguida. — Eu trabalho aqui durante a tarde, mas vou cobrir o cara da noite que saiu de férias por quinze dias com um funcionário da manhã. As minhas férias são de uma semana só, mas acho que você tem vantagens se for o filho do dono ou o namorado dele.
Mark precisou de todo o seu autocontrole para não dar uma bela gargalhada. Era assim que os outros funcionários viam os dois, então?
chacoalhou os ombros, resignada com a sua situação de trabalhadora assalariada, e deu um clique na caneta.
— Você quer pedir alguma coisa?
— Quero um muffin de chocolate e um suco de melancia, por favor.
— Que combinação... digo, é claro, senhor. Já trago o seu pedido.
A linguista abriu um sorriso exagerado e acenou com a cabeça, arrancando uma risada do escritor incrédulo antes de sair em direção à cozinha. Sem dar atenção ao coração acelerado, Mark resolveu deixar o computador de lado e sacou um caderno e sua lapiseira favorita de dentro da mochila. Algo no contato do grafite com o papel criava uma atmosfera propícia para o surgimento de grandes ideias.
Olhou ao redor mais uma vez, buscando novos detalhes nos personagens que ele já conhecia tão bem. Reparou que o casal da mesa do canto estava tenso, quase como se não quisessem a companhia um do outro; a mulher de meia idade andava elegante com a cadelinha recém tosada, e do outro lado da rua, um homem alto de cacharrel e blazer trazia um cão igualmente esguio cujos pelos eram da mesma cor dos cabelos do dono. No café, o garçom melancólico parecia ligeiramente menos miserável, e Mark entendeu o motivo ao virar-se para a mesma direção que o rapaz e encontrar os olhos de .
O arrepio que correu por toda a sua espinha era causado pelo castanho dos olhos amendoados da linguista, dois botões pregados com delicadeza acima do nariz e dos lábios cheios. O rosto era emoldurado pelos cabelos igualmente escuros que cascateavam em ondas largas até abaixo dos ombros, onde tinha o desenho de uma flor de hibisco. Sem conseguir evitar, Mark se pegou percorrendo as linhas da garota até o quadril largo que harmonizava com as pernas fortes.
Isso que morar com o Jaehyun, o garoto pensou, voltando a si e sentindo as bochechas queimando com os próprios pensamentos. Preferiu fingir que aquilo era pura atração física, se não, teria que admitir como ele realmente se sentia em relação à garota e ele não estava preparado para isso. Desviou o olhar de volta para o papel em branco e começou a rabiscar algumas frases aleatórias, tentando dar utilidade para a mente acelerada.

Concentrado no que parecia ser o primeiro progresso que ele fazia em meses, Mark não percebeu o tempo passar até que o som de uma cadeira sendo arrastada chamou sua atenção. O salão já estava vazio e agora estava sentada de frente para o garoto com duas xícaras de café fumegantes sobre a mesa.
— Esse é por conta da casa — ela disse, empurrando uma das xícaras até ele.
— E, por “casa”, você quer dizer que você está me pagando um café, não é?
A garota estalou a língua e cruzou os braços, sorrindo de lado.
— Eu só quis ser legal, está bem? Percebi como você ficou depois de falar com a Brown, hoje. — apontou para o caderno, curiosa. — É a história para o concurso?
Mark acenou positivamente com a cabeça.
— É só um monte de ideias sem coerência, por enquanto, que eu espero que se tornem a história do concurso.
— Sobre o que você está escrevendo?
— Não sei, ainda. — O rapaz levou as mãos aos cabelos mais uma vez num gesto já automático e suspirou.
— Mark, eu acompanho o seu blog há algum tempo e os seus textos são incríveis — incentivou, recolhendo as xícaras vazias e levando para a cozinha. — Você podia adaptar alguma coisa de lá. A história dos piratas é ótima! Ah, a da exploração espacial, também. De onde você tira essas ideias?
O escritor coçou a nuca, fechando o caderno.
— A da exploração espacial foi de um documentário que os meus colegas de apartamento estavam assistindo, e o dos piratas, bom... eu estava cansado naquele dia e não queria assistir nada que exigisse muita concentração. Aí tinha esse desenho na Discovery Kids e eu...
— Você é a vergonha da profissão, Mark. — A linguista parou ao lado da mesa, com os braços cruzados e a expressão fechada no rosto. — Todo mundo sabe que a Nickelodeon é muito superior à Discovery Kids.
— Ah! — O rapaz respirou aliviado e jogou a alça da mochila por cima do ombro, enquanto seguia para fora do café e assistia ao ritual de trancar o estabelecimento, como de costume. — Eu ia ser legal com você e dizer para colocar o café na minha conta, que é enorme e bancada pelo filho do dono e pelo namorado dele, mas acho que a minha gentileza só se estende a quem reconhece que o Doki é o melhor mascote da televisão.
— Espera aí, quem banca a sua conta? — encarou o garoto com os olhos arregalados, repensando tudo o que havia dito sobre os chefes ao longo daquele dia.
Mark riu, começando a caminhar, e deu de ombros.


— E se você escrevesse sobre uma guerra intergaláctica entre alienígenas e tubarões que comem lhamas?
, a essa altura eu estou começando a questionar a sua saúde mental.
Mark estava sentado ao balcão, onde havia se sentado todos os dias daquela semana, com o caderno em mãos e um grande copo de café gelado (que já estaria frio mesmo se tivesse sido servido quente).
— Não sou eu que assisto Discovery Kids, amigão — a garota debochou, limpando a bancada onde tinha derrubado leite.
— Pelo menos eu tirei uma boa ideia de lá.
— Ah, Marky! — apertou as bochechas do escritor, fazendo uma voz manhosa. — Uma hora você descobre sobre o que escrever, mesmo que seja sobre uma guerra intergaláctica entre alienígenas e tubarões que comem lhamas.
— O que você tem contra lhamas, por Deus?
— Elas cuspiram no meu irmão, uma vez, no zoológico.
O garoto encarou a amiga fundo nos olhos, ambos sérios como o aquecimento global.
— Me lembra de nunca te irritar, porque você é vingativa para caramba!
riu e, sem negar a acusação, se afastou para pegar o pedido de outro cliente. Mark releu as anotações no caderno e concluiu que a linguista provavelmente estava certa. Não podia esperar escrever o próximo O Senhor dos Anéis, então devia simplesmente escrever algo, mesmo que fosse uma ideia absurda como tubarões intergalácticos (Douglas Adams seguiu por aí e se deu bem)!
Imaginando a cadelinha da mulher de meia idade enfrentando o cachorro esguio do moço elegante do outro lado da rua numa missão governamental — a folha já estava completamente riscada a essa altura, tantas as vezes que ele rascunhou um esqueleto para o enredo e desistiu —, Mark estava prestes a desistir do concurso de novo. Claro, a poodle espiã poderia render uma boa história infantil, mas na aplicação Mark havia se descrito como autor de romances modernos e ele não estava certo de que o doberman seria o par ideal para a protagonista. <br>— Para você não dizer que eu nunca te fiz nada, eu vou te ajudar a achar uma história que valha a pena escrever — ofereceu, pegando os ingredientes para preparar o café elaborado do cliente.
— Se envolver lhamas, eu dispenso.
— Você é amargo por dentro, Lee.
— E por fora?
— Não sei, nunca te lambi.
— ...
— Digo — justificou, de costas para o garoto e franzindo o rosto, pensando na bobagem que tinha dito —, por fora você parece ser legal, mas é só te conhecer que...
A garota virou-se de novo para o amigo, que estava lambendo as costas da mão. Suspirou, jogando o pano por cima do ombro.
— Me diz por que eu virei sua amiga, mesmo?


Era segunda-feira de novo e esperava o escritor terminar de copiar o conteúdo da aula do caderno dela para finalmente voltarem ao projeto de linguística. Para alguém que escrevia tão devagar, a garota não entendia como Mark tinha uma letra tão feia!
— Pronto — o garoto exclamou, descansando a caneta na mesa.
— Aleluia!
— Sr. Lee, posso falar com o senhor um instante?
— É hoje — murmurou, observando a professora Brown se aproximar. Sabia que aquela conversa ocuparia alguns minutos importantes do tempo que eles tinham livre e que Mark ficaria completamente neurótico, então qualquer esperança de trabalhar no projeto acabava de ser jogada pelo ralo.
— Eu imagino que você tenha começado a sua história para o concurso, certo?
— Eu, é, sim, claro. É sobre, bom, é uma ficção científica sobre... alienígenas, e uma guerra, e... e lhamas...
— Mark — a professora interrompeu, sem sinal de humor no semblante —, eu dei meu nome como garantia de que você apresentaria um bom trabalho quando aceitei ser sua mentora e agora começo a considerar se não devia pedi-lo para assinar uma dispensa de orientação.
— Não, senhora. Eu prometo que não vou decepcionar.
Mais, você quer dizer. Não vai decepcionar mais.
Conforme a professora se afastava e Mark afundava na cadeira com o olhar perdido cheio de dor, se pegou afrouxando os punhos que estavam cerrados. Tivesse a docente ficado por perto por mais dois minutos, a garota não podia prometer que teria ficado quieta. Não quando ela sabia quanto sono o amigo vinha perdendo só na última semana, procurando uma boa história para contar e preocupado com o prazo.
— O Johnny estava certo.
— O que? — perguntou, sem ter escutado direito o que Mark resmungou.
— Johnny disse que eu nunca encontraria inspiração para uma história nova se não procurasse em outros lugares e ele estava certo. Não posso continuar fazendo as mesmas coisas e esperar resultados diferentes.
— Você fez curso de coach onde?
!
— Eu sei, eu sei. — A garota levantou as mãos num pedido silencioso de desculpa pela brincadeira fora de hora. Mark esfregou o rosto e chacoalhou a cabeça, guardando os materiais na mochila.
— Eu acho que não consigo me concentrar no projeto agora, , me desculpa.
— Claro, eu entendo. A gente pode falar sobre isso no café, se você preferir.
O rapaz acenou, sem prestar muita atenção à conversa. Ajeitou a mochila nas costas e se virou em direção à porta.
— Lee! — a linguista chamou. — Eu vou viajar no sábado. Você pode vir comigo, se quiser.
— Ah — o rapaz respondeu, as sobrancelhas arqueadas de leve —, está bem. Obrigado.
E sem que ela pudesse dizer mais nada, Mark saiu da biblioteca ouvindo o próprio coração batendo nos ouvidos.
À noite, enquanto trancava o café sozinha, a garota sentiu o peito pesado, pensando se não teria sido impulsiva demais com o convite e afastado o garoto de quem tentava se aproximar há tanto tempo.


estava entediada.
O movimento no café naquela noite de quarta-feira era mais fraco do que o comum, apesar da chuva que caía do lado de fora. Tomando mais uma xícara da bebida escura, encarou o relógio na parede e quis berrar alguns palavrões para o tic e o tac irritantes. Ainda tinha trinta longos minutos antes de poder ir para casa e já havia se despedido do garçom que parecia decidir seu próprio horário de serviço.
— Tenham uma boa noite — desejou, insincera, para o casal que saía.
Enquanto registrava o pagamento no caixa, ouviu o sino da porta soar e, ao levantar os olhos do computador, se deparou com um garoto enxarcado, com os cabelos cor de avelã escorridos pela testa e a maior cara de quem não sabia o que estava fazendo com a própria vida que já havia visto.
— Lee, você está bem?
Honestamente, ela não sabia se devia se preocupar ou se podia rir sem culpa.
— Eu preciso de valores.
— Como é?
— Valores — ele repetiu, puxando um banco alto e se sentando antes de pegar o caderno na mochila e abrir numa folha rabiscada e cheia de contas. — Preciso de valores. Passagem, estadia, alimentação, tudo isso custa dinheiro. Seguro-viagem, também. Aliás, quais exames eu preciso fazer antes de ir? Preciso de alguma vacina extra? Acho que a minha carteira está atualizada, mas nunca se sabe. Carteira de motorista! Vamos precisar disso lá?
assistia ao desenfreamento do garoto com a boca aberta num O perfeito. Ela já não sabia mais qual tinha sido a primeira pergunta feita por ele, e provavelmente não saberia dizer qual fora a última, também.
— Mark.
— Preciso de roupas, também. O que eu levo? Roupas de calor? De frio? Acho melhor me preparar para os dois, não é? Quantos dias nós vamos ficar? O que você vai fazer com as aulas?
— Mark...
— É bom o Johnny e o Jaehyun voltarem no dia certo, o gato não pode ficar sozinho muito tempo. Droga, os dois! Acho que eu preciso trazer um presente. Alguma coisa cultural, talvez? Típico? Aliás, para onde nós vamos, mesmo?
— MARK!
— O que?
O rapaz encarou a linguista como um esquilo na estrada no meio da noite. não segurou a risada dessa vez, mas o sorriso que se manteve nos lábios da garota depois era sustentado por um sentimento muito mais genuíno.


— Aloha!
O desembarque no aeroporto de Honolulu no final da tarde de sábado tinha sido tranquilo. Mark e devolveram os sorrisos dos funcionários que os receberam com colares de orquídeas e o rapaz tinha dificuldade em dizer se as flores amarelas que ele levava em torno do pescoço eram tão bonitas quanto as laranjas no colo da amiga.
Arrastando as malas pelo saguão, digitava no celular o mais rápido que podia com a mão livre, parando apenas para olhar ao redor.
— Meu irmão disse que já está aqui, perto da saída. — Franziu as sobrancelhas, imitada por Mark logo em seguida, que procurava qualquer pessoa que se parecesse com a garota ou carregasse uma placa com o nome dela. Abriu um sorriso largo quando avisou uma figura familiar. Abriu um sorriso largo quando avistou o rapaz alto perto de uma escada. — Haku!
A linguista correu em direção ao irmão e se jogou em um abraço apertado. Dois outros pares de braços se juntaram aos irmãos e o grupo assim ficou por alguns minutos.
— Mark, vem cá — chamou, se desvencilhando do emaranhado de braços. — Esses aqui são meus irmãos, Haku e Kai, e meu primo, Alika.
Mark observou os rapazes, pálido. O trio encarou o garoto e por muito pouco ele não voltou para o Canadá no mesmo avião. Os três eram grandes e fortes, com tatuagens lindíssimas, mas intimidadoras, nos braços musculosos tingidos pela melanina evidenciada pelo sol que estava sempre presente na ilha. Sendo realista, se alguém dissesse que eles eram príncipes saídos dos estúdios da Disney Mark acreditaria, e pensar nisso fez o garoto encolher. Se aquele era o nível de beleza com que havia crescido, o escritor mirradinho não tinha a menor chance.
— Então você é o tal do Lee? — Haku questionou, se curvando sobre Mark.
— Eu, eu acho que s-sim.
Com os narizes quase colados, Haku escaneou todo o rosto do garoto, para então abrir um sorriso brincalhão e puxá-lo para um abraço esmagador que, com certeza, tinha um pouco mais de força do que o necessário.
— Seja bem-vindo ao Havaí, Mark!
e os outros rapazes riam da cena, enquanto o canadense tentava recuperar o fôlego e sorrir de volta. Com a ajuda do trio, colocaram as malas no carro de Haku e logo estavam distraídos com a música que tocava nos autofalantes.
— Como foi a viagem, Mark? Cansado? — Kai perguntou, virando-se para o banco de trás enquanto o irmão manobrava o carro.
— Um pouco, sim. Foram doze horas no avião. Não vejo a hora de tomar um banho e cair na cama — respondeu, sorrindo de leve, ainda tentando manter toda a educação que tinha em si.
— Que pena — Alika passou o braço pelos ombros do garoto, que buscou os olhos de num pedido de ajuda, mas a linguista só riu, saindo do carro estacionado numa avenida movimentada —, porque agora a gente vai se divertir.
A avenida Kalākaua tinha a maior concentração demográfica de Honolulu naquele sábado. O Festival Aloha estava em seu terceiro dia e pessoas de todos os lugares se aproximavam para ver as celebrações. O perfume das flores se misturava com a brisa do mar e os temperos das diversas barraquinhas ao longo das calçadas. Quatro palcos recebiam as atrações principais da noite, com apresentações de música e dança que arrancavam palmas e gritos do público.
Apesar do horário, mesmo no início do outono, o ar quente tirava as pessoas de casa com roupas leves e coloridas, e era difícil encontrar alguém que não estivesse com um belo drink elaborado nas mãos. Coroas e colares de flores, tais como os que Mark e traziam do aeroporto, enfeitavam os visitantes e podiam ser comprados nos quiosques, onde artesãos os confeccionavam com agilidade e cuidado.
— Isso é um Lei — gritou para Mark, se fazendo ouvir acima da música alta que vinha das caixas de som. — Cada flor tem um significado diferente, mas é sempre um presente especial.
— Se você gostou desses, devia ver os que a fazia antes de abandonar a ilha.
— Deixa de ser dramático, Haku. Eu passo a maior parte do meu tempo livre aqui, você sabe disso.
— Você abandonou a gente, sim, e me deixou aqui para lidar com os seus irmãos sozinha! — Uma voz vinda de trás de Haku chamou a atenção da garota, e seu rosto todo se iluminou com a surpresa.
— Lani, que saudade de você! — Empurrando o irmão para o lado, a linguista abraçou a outra mulher, com cuidado para não machucar a barriga proeminente pela gravidez já avançada. — Oi, bebê! Aqui é a tia . Quando você vai sair da barriga da sua mãe para a gente fazer um luau bem grandão e chamar a cidade toda?
— Pirralha, se você puder não traumatizar o meu filho antes mesmo dele nascer, eu te agradeço.
— Seu filho? — Lani inquiriu, colocando as mãos na cintura e encarando Haku de cima a baixo. Mark podia jurar que viu o homem engolir em seco naquele momento. — E se for filha? E se a criança nem gostar de você?
— Opa, isso aqui escalou muito rápido — Kai entrou na conversa, trazendo um copo cheio em cada mão. — Toma aqui, forasteiro. , você também.
— O que é isso? Margarita havaiana?
— O que mais seria? É a nossa tradição — Alika respondeu, segurando seu próprio copo e entregando o outro para Kai. Os dois tinham a mesma idade, moravam juntos e trabalhavam juntos desde a adolescência e frequentemente confundiam as pessoas quando diziam que não eram gêmeos.
— Você bebe, Lee? — Haku olhou para o garoto que segurava o copo como uma criança perdida dos pais.
— Para de assustar o menino, amor. Você devia ser mais gentil com os amigos da . É assim que você vai tratar os namoradinhos da nossa filha? — Lani rebateu, provocando os dois rapazes ao mesmo tempo.
— Eu, é, não, não costumo beber. A menos que seja café, ou suco de melancia.
— Suco de melancia com muffin de chocolate. — colocou um dedo na boca, fazendo uma careta de nojo ao se lembrar do pedido “de sempre” do amigo.
— Ih, foi mal, cara. Eu devia ter perguntado antes de comprar. — Kai se desculpou, apontando para a barraquinha de bebidas. — Se você preferir, tem uma versão sem álcool, também. Acho que a Lani e o Haku vão tomar essa.
— Não, tudo bem. Eu posso tomar um drink. — Mark acenou e assim que o casal voltou com suas bebidas, o grupo se juntou para um brinde.
A linguista sentia as bochechas doerem, mas não conseguia parar de sorrir. Estava com saudades da família, de casa e de tudo o que só o Havaí oferecia, e estar ali com Mark Lee era algo que ela só tinha imaginado nos sonhos que tinha acordada. O canadense, por outro lado, estava nervoso com a nova experiência, mas saber que estava ali era o suficiente para que ele sentisse que podia enfrentar qualquer coisa (exceto, talvez, os irmãos dela).
— Vocês são lindos e eu amo todo mundo, mas Alika e eu temos compromissos na outra ponta da avenida. Mandem uma mensagem quando quiserem ir embora, nós precisamos da carona.
— Também amamos vocês, seus cafajestes interesseiros — Haku revirou os olhos, brincando com o irmão.
— Que compromisso pode ser mais importante do que passar o festival com a sua irmã?!
— Desculpa, , mas é você versus o grupo de turistas polonesas que passaram o dia todo fingindo que não conseguiam aprender a surfar.
— Como vocês sabem que elas estavam fingindo? — Mark perguntou, ingênuo. Kai riu soprado, dando de ombros antes de responder.
— Nós somos os melhores professores de surfe de Oahu!
— Os mais convencidos, também. — Foi a vez da linguista revirar os olhos, vendo os irmãos se afastando.
— Acho que nós vamos dar uma volta por aí, também, pirralha. Lani queria procurar alguns enfeites para o quarto do bebê. Se precisar de alguma coisa, me liga, está bem?
— Sim, senhor, capitão Haku.
— Não me chama assim fora da delegacia, por favor — pediu o irmão, fechando os olhos em desaprovação.
riu e logo estava sozinha com o canadense.
— Seu irmão é policial, é? — Mark perguntou num fio de voz.
— Acabou de ser nomeado capitão da polícia. — A garota assentiu. — Lani é bombeira. Eles se conheceram atendendo um chamado juntos e, bom, amor à primeira vista e tudo mais.
— Ah. — O escritor tentou não parecer muito amedrontado, mas pela gargalhada que soltou, sabia que não tinha conseguido. — Você quer mais um?
Apontou para o copo dela, vazio, e reparou que o seu também já havia acabado. O drink doce e suave tinha conquistado um lugarzinho em seu coração, ele tinha que admitir.
— Quero, sim.
Seguiram para a fila e, com novos drinks em mãos, decidiram assistir à apresentação de hula que estava prestes a se iniciar no palco próximo a eles. Mark nunca tinha visto uma apresentação de hula fora dos filmes e nada se comparava ao que ele estava vendo ao vivo.
O grupo de dez homens adornados com coroas, pulseiras e tornozeleiras de folhas verdes vibrantes subiu ao palco. Os troncos e pernas expostos evidenciavam a força e controle necessários para executar a dança que parecia simples, à princípio, mas que logo ganhou ritmo. As palmas e pisadas fortes no chão compunham a melodia que eles entoavam junto com os músicos ao fundo do palco, acompanhados por um instrumento de madeira que Mark não conhecia.
O canadense saiu do transe quando, num movimento mais ousado, os dançarinos arrancaram gritos e suspiros da plateia, incluindo . Ele estava adorando o Havaí, mas o Havaí não estava sendo muito gentil com a sua autoestima. Tentando girar a cintura discretamente de um lado para o outro, Mark não percebeu que a apresentação havia acabado e que o encarava, curiosa.
— Se você quiser aprender hula, minha mãe pode te ensinar.
— O que?! Mais um drink? Sim, eu também quero.
Pegando o copo da mão da garota, Mark correu para a barraca de bebidas, lembrando da tal cratera que ele tanto torcia para que o engolisse no chão.

— Você devia vir no Merrie Monarch — comentou, tomando um gole da bebida enquanto caminhavam pela avenida sem rumo. Mark lançou um olhar questionador na direção dela. — É um festival em homenagem ao rei Kalākaua. Ele ajudou a resgatar muitas tradições havaianas durante o reinado e a hula é uma delas. As apresentações são ainda mais bonitas do que aquela.
— Merrie Monarch, é? Dá tempo de eu aprender a dançar até lá? — o escritor brincou, balançando as sobrancelhas.
riu pensando em todo o molejo do garoto.
— Continua rebolando daquele jeito que você vai ficar bem.
— Eu tenho talento, não é? Pode dizer, eu seria um excelente dançarino de hula.
— Claro, claro — ela concordou, guiando o garoto até a orla da praia. A areia estava fria, mas nenhum dos dois se incomodou. — Tenho certeza de que seu segundo pé esquerdo ajudaria bastante.
Dando um empurrão de leve na linguista, Mark se defendeu.
— Tem muitas coisas sobre mim que você não sabe, ok? Eu posso ter sido treinado nas melhores escolas de dança do país.
— E você foi?
— Não — respondeu, rindo junto com a garota —, mas eu poderia ter sido.
fixou os olhos no oceano, os lábios se curvando com delicadeza no rosto que recebia a brisa salgada.
— Me conta uma coisa sobre você que eu realmente não saiba.
Pego de surpresa, Mark pensou por alguns instantes.
— Meu nome coreano é Lee Minhyung.
— Seu o que?! — virou-se para o garoto, confusa.
— Meu nome coreano. Minha família é coreana, então eu tenho um nome coreano. — O garoto deu de ombros. — O Johnny, do café, também. Seo YoungHo. O Jaehyun se chama Jaehyun, mesmo, mas também atende se você chamar de filho da puta.
não sabia se podia rir dos chefes, mas deixou um som esganiçado escapar da garganta mesmo assim. Em silêncio, deitou o corpo na areia, observando o céu que, naquela noite iluminada pelo festival, tinha poucas estrelas.
— Lee Mignon.
— Do que você me chamou? — Foi a vez de Mark segurar a risada.
— Eu não falo coreano, meu amigo. Se você me ensinou algum palavrão, a culpa é inteiramente sua.
— Meu nome não é um palavrão. O certo é Lee Min-hyung. <br>— Foi o que eu disse.
— Você me chamou de Lee Mignon.
— E como é?
— Lee Minhyung!
— E o que eu disse?
!
— Acho que não foi isso, não, hein?
Mark encarou a garota fingindo estar bravo e ela sorriu, travessa. Apoiando-se sobre o cotovelo, o escritor se deitou ao lado dela. olhava o céu, e Mark olhava .
— Sua vez de me contar alguma coisa que eu ainda não saiba.
— Você não sabia que eu tinha irmãos. Tecnicamente, eu te contei uma novidade primeiro.
— É claro que eu sabia. Uma lhama cuspiu nele no zoológico, lembra? — O garoto resmungou e cedeu, decidindo compartilhar mais uma informação com ele.
— Ok, tudo bem. Tem uma coisa que eu quero há muito tempo e acho que eu finalmente vou poder fazer.
— Eu posso ajudar?
— Ah, pode, sim. Eu não conseguiria fazer sem você.
Aproximando-se do garoto, de olhos fechados, sentiu a respiração dele se misturar com a dela. Era quente como o ar da ilha, confortável, também. Esperou que ele fizesse o próximo movimento. Devagar, Mark diminuiu a distância, puxando uma grande quantidade de ar para dentro dos pulmões quando as bocas se encostaram depois do que pareceu uma eternidade. A garota pensou, embora tenha guardado para si, que, de amargo, Lee não tinha nada. O beijo do garoto era doce como muffin de chocolate e suco de melancia.


O som das pranchas sendo arrastadas no corredor dizia para a garota que ela não podia mais se esconder no quarto de hóspedes. Pela janela, viu o sol que brilhava forte na manhã de domingo e pensou no mar, nas rochas e nos pais. Por mais que adorasse passar um tempo com os irmãos, em Honolulu (gostava mais de ficar com Haku, para ser sincera, mas com a reforma do quarto do bebê, era melhor passar a noite com Kai e Alika, mesmo que isso implicasse em rezar para todas as entidades que ela conhecia pedindo por uma noite segura e sem garotas desconhecidas), era hora de ir para casa.
Parou em frente à porta do banheiro e esperou que ele fosse desocupado. As memórias da noite anterior passavam como um filme na cabeça da garota, arrancando um sorrisinho bobo dela. O barulho da água caindo foi interrompido, seguido do som da chave na fechadura. Alika saiu do banheiro com o cabelo molhado pingando pelo chão, a toalha branca enrolada na cintura e as tatuagens cheias de significado estampadas pelo peito. não entendia como ele e Kai podiam ser tão parecidos.
, está tudo bem com o seu amigo?
— Bom dia para você, também, Alika. Eu estou bem, obrigada por perguntar.
— Eu estou falando sério — o rapaz soou sincero, o que prendeu a atenção de . — A gente brincou com ele, ontem, mas hoje o garoto mal conseguiu responder se queria tomar o café da manhã. Acho que eu e o Kai traumatizamos o coitado.
A garota enrolou, fingindo que não sabia por que Mark estava com medo dos irmãos dela. Quando se lembrou de que precisava ir ao banheiro, acenou com a mão, encerrando o assunto.
— Ele é meio tímido. Deve ter ficado sem jeito perto dos flamboyants que são vocês.
— Eu vou encarar isso como um elogio.
— Claro, o que te ajudar a dormir à noite — debochou, fechando a porta do banheiro antes de ver o dedo do meio que o primo balançava em sua direção.
Poucos minutos depois, saiu da casa com uma maçã nas mãos e uma mochila pendurada nos ombros. Estava feliz por poder usar de novo as roupas coloridas e estampadas que tanto amava, e um belo jasmim-manga enfeitando o lado esquerdo do cabelo. Kai e Mark já esperavam no carro, enquanto Alika terminava de se vestir. entrou no banco de trás e, imediatamente, toda a vergonha que estava sentindo quando acordou tomou conta dela de novo.
— Oi — disse baixinho, sem manter muito contato visual com o escritor.
— Oi — ele respondeu, do mesmo jeito que Harry cumprimentou Cho no Expresso de Hogwarts.
— Bom dia, marinheira — Kai gritou do banco do motorista, vendo pelo retrovisor a irmã sorrir com o apelido. — Dormiu bem? Roncou bastante? Ela ronca, viu, Mark?
E tão rápido quanto o bom humor dela apareceu, ele foi embora, substituído pela vontade familiar de massagear o rosto do irmão com os punhos.
— Deixa ela em paz, Kai. Ela fica sem jeito perto dos flamboyants que nós somos — Alika provocou, entrando no carro.
— Isso era para ser um elogio?
— Eu sei lá. — O surfista deu de ombros e olhou a dupla pelo retrovisor. — Haku e Lani já estão na estrada. Vocês estão prontas, crianças?
— Isso só funciona com o Haku, Alika — retrucou. — Além do mais, o Mark assiste Dis- disc- argh, eca, D-discovery Kids.
! — Mark se encolheu sob os olhadores julgadores dos outros três, conflitante entre entrar na brincadeira ou voltar para o Canadá a nado. — Estamos, capitão...?
O trio caiu na risada e o escritor se deixou contagiar, começando a se sentir à vontade perto da família da garota. Kai deu a partida no carro e eles seguiram a viagem de quarenta minutos rumo à cidade de Haleiwa, ao norte, numa estrada enfeitada por uma diversidade de fauna e flora que Mark não se lembrava de ter visto em lugar nenhum.

— Alika, se você disser “árvore” de novo, eu te jogo para fora do carro — Kai reclamou, irritado com as escolhas ridículas que o primo fazia no jogo de “eu estou vendo” que eles iniciaram no meio do caminho. e Mark estavam vermelhos de tanto que riam das discussões dos dois e há muito tempo já não participavam mais da brincadeira.
— Mas o que você quer que eu diga, se só o que eu estou vendo aqui é mato?!
— Inventa, droga! — O rapaz acionou a buzina sem querer, dando um soco de frustração no volante. — Aprende comigo: eu estou vendo uma coisa grande, comprida, cheia de linhas e que pode ter buracos.
— Uma árvore!
— A estrada, Alika!
Sem fôlego, dava tapas no joelho tentando se recompor. Mark respirou fundo três vezes de olhos e ouvidos tampados, sentindo a dor nas bochechas e na barriga.
— Eu quero tentar — pediu, depois de recuperar o ar.
— Vai, Mark. E vê se cala a boca, Alika. O menino é virgem no jogo, ainda.
Ignorando o péssimo fraseamento de Kai, o escritor começou a descrever algo que havia chamado sua atenção.
— Eu estou vendo algo de madeira—
— Que NÃO É UMA ÁRVORE.
— Que não é uma árvore — concordou, tentando não voltar a rir. — É quadrado, mas também é triangular, e pode ser branco, amarelo ou laranja. Na frente tem um tapete que todo mundo ama quando está do lado de fora, mas odeia que seja levado para dentro.
Kai e Alika se encararam rapidamente.
— Garoto, essa é uma releitura daquela charada do ovo, por acaso?
— Não culpe os outros pela sua falta de inteligência, Alika. Eu sei exatamente o que o Mark descreveu.
Com um brilho eufórico nos olhos, apontou em direção à casinha que se aproximava. A estrada principal dava acesso a uma estradinha de terra que chegava até a praia e às poucas casas da região que ficavam diretamente na areia. A luz do sol, agora alto no céu, refletia nas paredes e no telhado de duas folhas e Mark imaginava como o pôr do sol tingia a madeira branca no final da tarde. Na varanda, uma mulher parecida com varria a areia carregada pelos pés de volta para o seu devido lugar.
Estacionando o carro na frente da casa dos pais, Kai olhou para o garoto, pensativo.
— Eu nunca mais jogo esse negócio com um escritor.
correu pela praia, se jogando nos braços da mãe como se não a visse há anos. Mas quem podia culpá-la? Sendo a única filha, era especialmente apegada à mãe, e os dois meses separadas eram demais para suportar. Tirando as malas do carro, Mark acompanhou a amiga, parando para admirar o cenário paradisíaco onde ela tinha crescido sem querer interromper o reencontro familiar.
A garota se soltou do abraço da mãe e chamou pelo escritor, que abriu um sorriso simpático para a mulher preparada para cumprimentá-lo. O sorriso sumiu do rosto do garoto, entretanto, quando uma voz forte, seguida de passos fortes e uma silhueta forte apareceram no batente da porta.
— Aloha, !
— Pai!
Se Mark achava que os irmãos de eram assustadores, ele não sabia como descrever o pai dela. O homem de quase dois metros de altura fazia Mark se sentir um menininho esquecido na escola, os cabelos longos e escuros presos desajeitadamente no topo da cabeça deixavam à mostra as tatuagens ainda mais intrincadas do que as dos filhos, tão ricas em detalhes que o canadense quase podia vê-las se mover.
Ele se lembrava constantemente de que estava ali como amigo da garota, mas isso não deixava a situação menos tensa. Mordeu as bochechas tentando se controlar, certo de que parecia um frango indo para o abate.
— Aloha, Mark. Seja bem-vindo à nossa casa — a mulher cumprimentou, notando o nervosismo do rapaz.
— Obrigado, é...
— Iolana.
— Obrigado, Iolana — agradeceu, fazendo uma rápida reverência pela força do hábito. — Espero não incomodar vocês.
— É só se comportar que não vai ser nenhum incômodo — a voz grave ressoou, fazendo Mark dar um pulinho no lugar.
— Hahona, pode ser mais gentil com a visita, por favor?
— Não tem problema. Eu entendo — Mark interrompeu, tentando não criar atrito logo no primeiro dia.
— Você entende? — Hahona estufou o peito, olhando o garoto de cima a baixo. — Você também tem uma filha e tem que lidar moleques irresponsáveis em torno dela como moscas numa lâmpada?
— Eu, não, eu... não foi isso que... — o garoto balbuciava, incapaz de formar uma frase coerente em meio ao pânico de ter irritado o pai da linguista. Achou melhor desviar o assunto. — Eu... olha só que bonitinha a lagartixa ali na parede, não é?
Apontou para o animalzinho que chacoalhava o rabo a caminho da porta da casa. Mark realmente simpatizava com a criatura. Hahona, por outro lado, não parecia ter gostado muito da situação. Com os olhos ardentes e as narinas infladas, ele avançou sobre o garoto e Mark viu sua vida passar como um filme na sua cabeça.
— Esse mensageiro de Whiro não vai entrar na minha casa!
— Pai, calma — Haku interveio, ele e Kai se colocando entre o pai e o escritor que estava encolhido na areia. — O garoto não é daqui, calma.
assistia à cena em choque enquanto Iolana afundava o rosto nas mãos. Antes que Mark pudesse dizer mais alguma coisa, a garota puxou o amigo para longe, com a esperança de que uma caminhada pela praia pudesse ajudar a acalmar os ânimos.
— O seu pai... ele é... protetor, né?
Ainda meio sem reação, o canadense tentou compreender o que tinha feito de errado.
— Eu devia ter te avisado sobre isso — lamentou. — Meu pai e meus irmãos são protetores, mas normalmente é só de brincadeira. Você viu os meninos. Eles pegaram no seu pé, mas já estão te defendendo.
— E o seu pai estava brincando?!
— Bom, estava, até você falar da lagartixa.
Mark parou de andar, piscando duro, confuso.
— Como uma lagartixa fez todo aquele estrago?
— Meu pai é māori. Para os nativos da Nova Zelândia, lagartos e lagartixas são vistos como os mensageiros de Whiro, o senhor de tudo o que é ruim. Você literalmente chamou o anunciador do caos de “bonitinho” quando ele tentava entrar na minha casa.
— Eu não fazia ideia! — o garoto protestou. Cansado, soltou o corpo no chão, caindo sentado, sem vontade de obrigar as pernas a continuarem em pé. — Agora eu tenho mais seis dias pela frente e o seu pai me odeia.
— Deixa de drama, Mark — caçoou, estendendo uma mão para o garoto se apoiar —, vai ficar tudo bem. Mas se você quiser sobreviver nessa casa, eu te aconselho a nunca mais fazer um comentário positivo sobre um lagarto, de novo. Agora vem, tem mais uma pessoa que eu quero que você conheça.

Sentado na varanda no final da tarde, Mark esperava chegar com a pessoa misteriosa. O escritor teria acompanhado a amiga até o centro comunitário de Haleiwa, mas ela achou melhor aproveitar o momento e fazer um passeio com o pai, enquanto Lee se ajeitava no quarto de hóspedes com Kai e Alika.
— Nós não conseguimos conversar muito durante o almoço, não foi? — Iolana surpreendeu o rapaz, sentando-se ao lado dele nos degraus de madeira. — Hahona vai se acalmar, não precisa ficar com essa cara de medo. — Ela riu baixinho. — é a marinheira dele e ele pode exagerar um pouco com os amigos novos dela.
Mark sorriu de lado ouvindo o apelido pela segunda vez. Imaginava como ele teria surgido.
— Sabe, crescer numa ilha tem suas vantagens, ainda mais numa cidade pequena como a nossa — Iolana continuou. — Nós conhecemos a maior parte das pessoas aqui e Hahona sabe exatamente em quem ele pode confiar ou não, mas você é um recém-chegado. Dê um pouco de tempo a ele, está bem? Ele dá muita atenção ao que os filhos dizem e Haku, Kai e Alika apresentaram um bom caso a seu favor.
— Aqueles três... — Mark riu, seguido da mulher. — Eles me lembram um pouco meu próprio irmão, principalmente o Haku.
— Sua família está no Canadá?
Sentindo o peito apertar, Mark negou com a cabeça.
— Estão na Coreia. Nós moramos no Canadá quando eu era criança, até o meu pai receber uma proposta de trabalho mais interessante na Coreia e voltar para lá. Eu voltei para o ocidente quando fiz 18 anos e fui morar com filhos de amigos dos meus pais. A gente divide um apartamento perto do café onde a trabalha.
— Você é corajoso, Mark. também é. Viveu a vida toda aqui na ilha e quis enfrentar o continente sozinha, e eu devo admitir: ela está se saindo muito melhor do que eu, na idade dela — a mulher afirmou, contente.
— A senhora também morou fora?
— Eu agradeço a gentileza, garoto, mas se me chamar de “senhora” de novo, eu vou te dar motivo para ter mais medo de mim do que do Hahona — Iolana brigou com um sorrisinho nos lábios. — quis ir para o Canadá por culpa minha, eu acho. Sempre falei sobre o tempo que eu passei lá, sobre as pessoas e lugares que eu conheci.
— Espero que você tenha falado sobre as pessoas daqui, também. — Um garoto entrou na conversa, ganhando total atenção de Iolana.
— É claro que eu falei, seu ciumento. — A mulher deu uma piscadinha para o escritor, que riu. — Mark, esse é Keanu, o único filho decente nessa família, que não nos abandonou aqui.
estalou a língua, reclinando-se sobre a cerca da varanda de braços cruzados.
— Você diz isso como se não estivesse contando os dias para o pirralho virar adulto e ir encher o meu saco no Canadá.
— Eu? Jamais! Tudo o que eu quero é que meus filhos vivam boas experiências e se isso significar que eles precisam de um pouco de espaço, eu não posso fazer nada.
Os irmãos riram, achando graça da contradição da mãe. Keanu se sentou entre ela e Mark, se ajeitando entre os braços da mulher.
— Você estuda com a ?
— A gente tem algumas aulas juntos, mas eu curso Literatura.
— Viu, Keanu? Existe gente mais nerd e mais esquisita do que eu — a linguista provocou, mostrando a língua para o irmão. — Ele é escritor e escreve umas histórias estranhas sobre guerras intergalácticas. O cara tem algum problema com lhamas, também. Se eu fosse você, não chegava muito perto.
— Você é escritor, Mark? — o menino perguntou, curioso, ainda achando graça das brincadeiras da irmã.
— Sou, mas nunca escrevi nada sobre lhamas. Eu não ia dizer nada, mas sua irmã queria que eu escrevesse sobre tubarões que comem lhamas, então se alguém aqui tem problema com os bichinhos, garanto que não sou eu.
— Você ainda tem trauma de quanto a lhama cuspiu em você no passeio da escola, filha? — Iolana zombou, fingindo solidariedade.
— O que?! — A voz da garota saiu aguda. — Acho que você está me confundindo com o Kai, mãe. Foi nele que a lhama cuspiu, não em mim.
— Além de doida, é uma mentirosa patológica. O que mais eu preciso saber sobre você, ? — Mark questionou, uma das sobrancelhas arqueadas em desafio.
— Vocês são péssimos, todos vocês! — Mostrando a língua mais uma vez, tirou os sapatos e entrou na casa.
— O que te fez começar a escrever? — Keanu insistiu, ignorando o drama da garota. Estava na idade de começar a se interessar por diferentes coisas e encontrar algo que quisesse fazer pelo resto da vida.
— Ler, eu acho — Mark respondeu, honesto. Nunca tinha pensado muito a respeito dos motivos que o levaram a fazer o que fazia, mas também nunca duvidou do que tinha escolhido. — Existem poucos lugares mais bonitos do que o Havaí, pelo mundo, e todos os que eu conheci estavam em livros.
Iolana ficou satisfeita. Para ela, o apreço pela terra de seus ancestrais era como um elogio pessoal. Quando achou que a conversa seria mais bem aproveitada pelos garotos em privacidade, levantou-se, limpou a areia dos pés e entrou, fingindo não notar o marido observando toda a cena por detrás da cortina da sala.

A manhã de terça-feira correu melhor do que Mark imaginava. Sem atritos ou gafes, o escritor conseguiu passar as horas iniciais do dia concentrado nos primeiros rascunhos decentes que ele produziu desde que se inscreveu para o concurso da faculdade. Pensar na própria família, inspirado pela da , o fez lembrar das histórias que inventava com o irmão e das aventuras que viviam no quintal de casa.
Depois de quase cinco páginas de ideias esboçadas, Mark ouviu o estômago reclamar ao mesmo tempo que Alika gritava seu nome de dentro da cozinha, avisando que o almoço estava pronto.
Com a barriga cheia do poke mais saboroso que ele já tinha experimentado — o que era um total de dois (02) pratos até o momento —, Mark se encarregou de levar Keanu para a aula de hula no centro comunitário naquela tarde. Não que ele soubesse como chegar lá, mas todos os outros adultos da casa estavam ocupados ou ausentes: Haku havia saído cedo para acompanhar Lani numa consulta médica, , Iolana e Hahona estavam sumidos desde o café da manhã, e Kai e Alika saíram para colher folhas pela mata próxima à praia. Mark achou melhor não questionar.
— Sabe, para um estranho, você até que tem se adaptado bem aqui — Keanu apontou, quebrando o silêncio que havia se instalado algumas quadras atrás. Mark deu de ombros.
— É fácil se adaptar a um lugar como esse. Eu cheguei no meio de uma festa, fui bem recebido, tenho comido bem e sido bem tratado. Difícil vai ser voltar para casa — brincou.
— Falando em comer bem — o garoto exclamou, exaltado, revirando a mochila em busca de algo —, é melhor você tomar isso.
— Sal de frutas? Por quê?
Keanu encarou o escritor no fundo dos olhos, com uma expressão que Mark não sabia dizer exatamente se beirava à curiosidade ou ao estarrecimento.
— Foram o Kai e o Alika que fizeram o almoço.
Ainda surpreso com a falta de perspicácia do canadense, Keanu atravessou a rua, entrando finalmente no centro comunitário de Haleiwa. Mark apressou o passo para alcançar o menino, recebendo algumas buzinas e xingamentos pelo caminho.
— Eu vou me trocar para a aula. Você pode ficar, bom, em qualquer lugar. — Balançando as mãos no ar, o caçula apontou para todas as direções, tentando ser bastante didático. — Acho que tem uma biblioteca ou sala de leitura aqui em algum lugar. Eu te encontro depois.
Acenando com a cabeça, Mark se despediu e viu o menino correr para o vestiário. Ele tinha duas horas para ocupar até que Keanu saísse da aula, então tratou de procurar logo a tal sala de leitura e aproveitar a inspiração que sobrou da manhã. Entre um corredor e outro, sem querer admitir que estava completamente perdido, Mark ouviu uma música familiar, acompanhada de passos e palmas. Curioso, seguiu o som até encontrar uma sala de dança.
Pela porta entreaberta, espiou o grupo que ensaiava. Os braços estendidos para o alto e o cântico entoado pelas dançarinas finalizavam a coreografia que Mark reconhecia, agora. Cinco meninas de aproximadamente seis ou sete anos estavam posicionadas em fila, vestindo o figurino vermelho, e cinco mulheres, de figurinos brancos, estavam logo atrás delas. No canto da sala, dois músicos tocavam o Ipu, acompanhados de perto por um cachorrinho fantasiado de Stitch.
— Gosta de hula, garoto?
— Hahona?! — Mark deu um pulo com o susto, surpreendido pelo homem que não escondia a satisfação com a reação do escritor.
— Shh, você vai atrapalhar o ensaio — ralhou, levando o indicador aos lábios. — Por aqui.
Com um movimento rápido com a cabeça, Hahona levou o garoto até a porta ao lado. Entraram em uma pequena arquibancada escondida atrás do espelho da sala de dança, onde os responsáveis pelas meninas menores assistiam ao ensaio. Sentaram-se lado a lado, o clima tenso ainda presente entre eles. Mark ainda não sabia bem como se comportar perto do neozelandês sem cometer algum tipo de atrocidade cultural, então decidiu se concentrar no grupo de dança e ficar o mais quieto possível. Não foi difícil manter sua atenção ali, entretanto, quando notou , ao centro da segunda fileira, executando cada passo à perfeição.
— Eu te devo um pedido de desculpas, garoto.
— O que?
— Por ontem — Hahona explicou, visivelmente desconfortável com a conversa. — Eu sei que você não fez por mal e a minha reação foi exagerada.
— Não, não precisa se desculpar. — Mark gesticulou, desajeitado. — Eu entendo. Eu... eu devia ter perguntado.
— Você é bonzinho demais, garoto. Vai precisar de um pouco mais de fibra se não quiser ser comido com farinha por aquela lá — o neozelandês brincou, apontando para a filha através do vidro. Mark, por outro lado, sentiu o coração errar umas três batidas e desconfigurar todo o seu sistema.
— O quE? Não, não. Não é nada disso. Nós só, digo, a e eu, a gente—
— Eu não nasci ontem, Mark, sei como você olha para a . Essa sua cara de bobo... Eu entendo. — Hahona suspirou, deixando o garoto em paz. — Sabe, quando eu fui para o Canadá, eu não esperava nada além de me divertir, fazer amigos e voltar para casa com um diploma. Por um ano, foi exatamente assim, até que eu a vi pela primeira vez.
Olhando pelo vidro mais uma vez, o homem apontou para a esposa. Iolana estava de costas para a grande parede de espelhos, à frente da turma nos ensaios. Mark não havia notado a mulher ali até o momento, mas devia admitir que estava concentrado demais na mais jovem. As duas dançavam em sincronia e era como olhar para a mesma pessoa através de um recorte no tempo.
— Iolana era caloura de antropologia, eu era veterano de enfermagem e a faculdade tinha um projeto de aproximar os cursos de estudos sociais e da área da saúde. — Mark observou, enquanto Hahona estava absorto nas próprias histórias, que o homem usava um uniforme verde claro com o símbolo do centro comunitário bordado no lado direito do peito e o seu nome do lado esquerdo. — No primeiro dia de aula, um garoto derrubou café num aluno mais velho e foi uma confusão só. Ela entrou na frente de um jogador de rugby três vezes maior que ela para defender o novato desastrado.
O escritor riu, tentando imaginar a cena se desenrolando. Tirou o caderno e uma caneta da mochila e descreveu, sem muita polidez, a personagem enfrentando um troll faminto que queria cozinhar um garotinho para o aperitivo. Ainda não sabia se usaria a cena ou mesmo se escreveria, de fato, uma fantasia tendo se inscrito como autor de romances modernos (e se arrependido amargamente de tê-lo feito), mas gostava da história que se desenrolava em torno daquela passagem e achava que caía bem no que vinha trabalhando.
Continuou observado ao redor e concluiu que Hahona era um dos homens mais impressionantes que ele já havia visto. Não só era fisicamente notável, como tudo a respeito dele parecia altivo, divino, quase. A postura firme e protetora, mas ao mesmo tempo doce e gentil com a família lembrava ao escritor dos grandes reis das histórias que ele lia para alimentar a alma à mesma medida que comia para alimentar o corpo quando era mais novo, e assim como nas histórias, apenas uma coisa tinha a capacidade de desconcertá-lo completamente: uma mulher.
Mais uma vez a música começou na sala de dança e os dois voltaram a assistir ao treino. Iolana sinalizava em gestos pequenos os passos da coreografia, mas o grupo já tinha aprendido a sequência. Apesar da seriedade com que se dedicavam à Hula, elas se divertiam, sentindo as batidas do Ipu guiando os movimentos do corpo tão naturalmente como se estivessem colocando um pé na frente do outro para andar.
— Eu não acredito nessas bobagens de amor à primeira vista que vocês gostam de colocar nos livros, sabe — o enfermeiro quebrou o silêncio, tentando disfarçar o sorriso trazido pelas lembranças entrelaçando os dedos uns nos outros —, mas naquela hora, ouvindo Iolana gritar do outro lado da cafeteria, eu soube que tinha alguma coisa nela que eu nunca esqueceria. Alguma coisa que eu não conseguia explicar, era... era um mana tão forte e tão bonito que eu simplesmente não podia me afastar.
Mana era um termo novo para o rapaz. Ele não imaginava que fosse possível se colocar no lugar do homem e recriar as sensações do momento exato em que ele ouviu pela primeira vez a voz da mulher com quem passaria o resto da vida. Ainda assim, desviando a atenção dos olhos apaixonados do neozelandês para os concentrados de e fazendo o seu melhor para ignorar o descompasso tosco de seu coração, mesmo sem saber exatamente do que Hahona falava, Mark entendeu o significado de cada palavra.

— Mark, seu estômago ficou bem?
Ao redor da mesa de jantar, naquela noite, toda a família encarava o escritor estrangeiro buscando uma resposta lógica ao comentário do caçula. Os pratos recém esvaziados ainda se encontravam sobre a mesa e a casa estava perfumada com aroma inconfundível do tempero de Iolana, muito diferente da mistura questionável usada por Kai e Alika.
— Ficou, sim. — Mark assentiu. — Mas agora eu estou com medo pelo almoço de amanhã.
— Ah, não precisa se preocupar. A comida do Alika é péssima, mas nunca matou ninguém — Keanu assegurou, confuso com os olhares de reprovação que recebeu dos pais. — O que foi? Nunca matou, mesmo.
— Sempre tem uma primeira vez.
!
— Desculpa, mãe.
Iolana suspirou, vendo Haku e a esposa segurando o riso, enquanto Hahona fingia estar interessado numa revista de pesca de dois anos atrás. Se não tivesse assumido a responsabilidade de ser a última pessoa com o juízo perfeito naquela casa, ela teria aproveitado a oportunidade para dizer tudo o que pensava dos pratos... experimentais, por assim dizer, da dupla, mas fez o esforço de proteger os sentimentos dos garotos, remoendo todos os conselhos velados que recebeu da própria mãe sobre amor materno e tudo mais.
— Eu não entendo qual o problema em falar sobre isso. Todo mundo sabe que a vovó cozinha melhor do que eles mesmo estando completamente gagá.
— Agora chega. Keanu, para o seu quarto. Isso é jeito de falar da sua família na frente das visitas? — Iolana se levantou, ameaçando ir me direção ao filho mais novo do outro lado da mesa. Keanu não contou com a sorte e correu para o quarto enquanto era tempo.
— Não se incomodem comigo, por fav-
— Lee, quieto — cochichou, também se levantando e puxando o amigo consigo pela manga da blusa. — Eu vou levar a visita lá para fora, mãe, aí você pode ficar à vontade para matar o Keanu sem peso na consciência.
!
Arrastando Mark, a linguista saiu ligeira da casa. Conhecia a mãe o suficiente para saber que nada daquilo era sério, mas também conhecia a família que tinha e entendia que Iolana tentasse manter a ordem.
— Eu não queria causar nenhuma dor de cabeça, eu juro — Mark se desculpou, meio constrangido.
— Sabe que, para um escritor, você tem o senso de interpretação de uma ervilha? — a linguista zombou, recebendo um par de olhos revirados em resposta. — Além do mais, o Keanu não está errado: Kai e Alika ainda vão mandar alguém para o hospital.
Mark riu, concordando em silêncio.
A noite no final de setembro em Haleiwa era diferente de tudo com o que ele estava acostumado. Descalços, enterravam os pés na areia molhada misturada com o cascalho teimoso que guardava os registros da formação da ilha. À direita, as ondas quebravam no mar coberto pelas estrelas que enfeitavam o céu limpo, longe do centro da cidade. A brisa fresca que bagunçava as folhas das árvores da orla denunciava o início do outono, mas o calor ainda estava presente e aquecia a água que chegava até eles.
— Eu assisti seu ensaio hoje, lá no centro comunitário — Mark confessou, depois de deixar uma trilha de passos na areia. — Eu não sabia que você dançava.
deu de ombros, fechando os olhos quando as gotículas de água salgada bateram em seu rosto.
— Todo mundo dança um pouco de hula no Havaí, eu acho. Quando Lilo & Stitch foi lançado, eu juro, não tinha uma criança nessa ilha que não soubesse aquela coreografia — explicou, rindo da lembrança de diversas apresentações na época da escola. — Eu nunca soube se gosto de hula porque a minha mãe é professora ou se eu gosto de hula e dei sorte da minha mãe ser professora. O que eu sei é que eu danço desde criança, sempre que eu posso.
— Eu sei. — Era inegável que tinha muita familiaridade com a hula e mesmo um leigo completo como Mark podia reparar. Com um jasmim ainda prendendo os cabelos escuros, a silhueta da garota sob o luar emoldurava a história que ela contava, e o escritor lia cada traço como se fosse fluente no idioma particular que as linhas dela falavam.
— Sabe? Mas você disse...
— Não! Digo, eu percebi. Tipo, deu para notar, sabe? Te vendo dançar.
Incomodado com o calor que sentiu subir pelas bochechas, Mark se abaixou, interessadíssimo numa pedrinha que encontrou na areia. Aquela pedrinha tinha presenciado vários momentos embaraçosos desde que chegou na ilha e na maioria deles os envolvidos conseguiam preservar um pouco de seu autorrespeito, o que não era o caso de Mark. Não que ele tivesse muito autorrespeito para começo de conversa, mas era espantosa a facilidade que ele tinha para se colocar em situações que lhe custavam o pouco que tinha.
Quando a garota riu, por cima dos ombros do rapaz, que ainda estava abaixado observando a pedrinha carregada de vergonha alheia, ele sentiu que tinha enfiado de vez a cabeça numa fornalha.
— Você realmente está testando a paciência dos meus pais, né?
— Como assim? O que eu fiz agora? — Mark se levantou, resmungando como uma criança birrenta.
— Nada, ainda, mas se você aparecer com essa pedra em casa, depois daquela cena com a lagartixa, eu tenho certeza de que o seu Hahona te manda a pontapés de volta para o Canadá.
O escritor encarou a pedrinha redonda que girava entre os dedos. Sentiu o coração apertar com a ideia de se desfazer dela, agora que já tinha criado um vínculo emocional com o aglomerado de minerais, mas seu senso investigativo falava mais alto naquele momento.
— Qual o problema com a pedra?
— É só uma superstição, eu acho — justificou, pegando a pedrinha das mãos de Mark e jogando no oceano —, mas dizem que pegar areia ou pedras da praia dá azar. Dizem o mesmo das rochas vulcânicas, mas acho que só é azar se o vulcão entrar em erupção enquanto você estiver pegando as rochas.
O escritor ainda estava observando o ponto onde a velha amiga havia desparecido no mar, imaginando que talvez fosse melhor assim. Se Keanu tinha tamanho suficiente para mandar Mark para casa numa caixinha de fósforos, ele realmente não queria irritar Hahona mais uma vez.
— Na sua opinião de expert, qual a porcentagem de chance que eu tenho de sobreviver aqui até o final da semana?
— Honestamente? Vendo pelo seu desempenho até agora, suas chances não são das melhores. Eu vou ter trabalho para garantir que meus pais gostem de você.
— Ah, é? — O garoto cutucou, curioso. — Por que você quer que seus pais gostem de mim?
— Porque — ela respondeu, colocando a flor no cabelo do rapaz antes de entrelaçar os braços no pescoço dele — se eles não gostarem de você, você não pode entrar para a ohana.
Subindo nas pontas dos pés até afundar os dedos na areia, assistiu os olhos angulados do escritor se fechando e gostou da sensação de estar no controle. Contornou o rosto de Mark com o indicador, do maxilar ao queixo, seguindo para a ponte do nariz e descendo até os lábios entreabertos. Não conhecia a história que ele estava escrevendo, mas imaginava que se fosse tão bonitas quanto a boca que a contava, ela estava diante do Homero moderno.
Insatisfeita com o contato escasso, a havaiana encostou os lábios nos dele, tão suavemente quanto conseguiu. Brincou com o toque, explorando os limites da paciência e autocontrole do escritor.
! — ele reclamou, puxando a garota para mais perto com as mãos firmes na cintura dela.
Ela riu e sentiu o aperto ficando mais forte conforme a sua respiração batia no rosto dele. Resistiu ao impulso de provocar mais um pouquinho e finalmente se permitiu beijá-lo como havia imaginado tantas e tantas vezes. Com mais intensidade do que no primeiro beijo, dois dias antes, mas menos intimidade do que realmente gostaria. Ainda não era o momento. Mesmo assim, quando enroscou os dedos nos fios de cabelo do garoto e puxou de leve, pensou que não poderia haver som que fizesse seu ventre dar um nó apertado como o gemido baixo que Mark soltou o fez.
Recuperando a lucidez, afastou o escritor, mantendo a testa encostada na dele.
— É melhor a gente voltar. Precisamos acordar cedo, amanhã.
— Por quê? O que é que a gente vai fazer que não pode esperar?
— Mark — a garota encarou os olhos do rapaz —, nós estamos no Havaí. O que você acha que nós vamos fazer?


O mar do Havaí não era nada como o das praias canadenses, isso Mark já tinha percebido, mas uma coisa era a conclusão passiva à qual ele tinha chegado com os pés firmes na areia; outra completamente diferente era a conclusão a que ele estava chegando naquele momento, no meio do terceiro tombo que levava dentro da lancha que Haku pilotava em alto-mar. Ok, talvez “alto-mar” fosse um termo alguns quilômetros incorreto, mas saindo de Haleiwa em direção à famosa Sunset Beach, essa era a sensação que o escritor tinha. Se perguntassem, ele juraria ter visto algumas barbatanas circulando a lancha, também.
— Tem certeza de que ele é habilitado para dirigir essa coisa? — gritou para Lani, que sorriu simpática em retorno. Mark não sabia o que aquilo queria dizer.
Quando ouviu o motor parar, achou que tinham finalmente ficado sem combustível e que morreriam à deriva, mas espiou por cima da borda da lancha, levantando a cabeça o mínimo possível do chão onde estava deitado há alguns minutos e viu que tinham chegado à praia.
— chamou, descendo do barco usando Kai e Alika de apoio —, eu acho incrível que vocês queiram me mostrar o Havaí e tudo mais, mas era mesmo necessário dar a volta na ilha?
— Dar a volta na ilha? — franziu as sobrancelhas, tanto pela confusão com a pergunta de Mark quanto pelo esforço de tirar a prancha pesada da lancha. — Mark, a gente está a vinte quilômetros de casa. Meus pais estão vindo de carro, devem chegar daqui uns dez minutos. De lancha a gente faz o trajeto em cinco.
— Cinco minutos?!
— É. Quanto tempo você achou que levou?
Vendo o sorrisinho no canto da boca de (além das marcas vermelhas em suas pernas e braços, que logo ficariam roxas), Mark achou melhor não responder.
Terminaram de descarregar os equipamentos e montaram acampamento na praia. O fim do marasmo do verão já atraía alguns surfistas mais experientes, mas ainda não era a época em que as areias de Sunset Beach ficavam enfestadas com turistas de todos os cantos do mundo para os grandes torneios de surf. Os cumprimentavam alguns conhecidos e Mark repassava na cabeça todas as regras que tinha aprendido sobre lagartixas e pedrinhas nos últimos dias, imaginando que, se em algum momento do dia precisasse ser resgatado no mar, não seria bom ter todos os surfistas da região irritados com ele.

Debaixo do guarda-sol recém-instalado, em cima das cangas e das esteiras de palha, ao lado dos coolers e caixinhas de isopor com sanduíches e bebidas, podia-se encontrar um escritor em seu habitat — quase — natural. Com um computador no colo, Mark registrava as ideias que tinha reunido desde que chegara ao Havaí, no que estava se tornando o primeiro rascunho satisfatório e coerente produzido para o concurso. Dane-se a inscrição, Mark decidiu. Escreveria uma fantasia infantojuvenil e ficaria feliz com o seu próprio trabalho, ou, pelo menos, com o fato de ter conseguido entregar alguma coisa antes do fim do prazo.
Assistindo aos irmãos na água, descreveu em detalhes a chegada do exército de bruxas em suas vassouras voadoras ao pequeno povoado perdido no meio do deserto. Quando Haku deu uma bronca em Keanu, que foi defendido pela mãe, Mark completou a cena da brava guerreira enfrentando trolls gigantescos para proteger o garotinho da vila, agora tomado sob seus cuidados. E vendo sair do oceano com a prancha sob o braço, o escritor viu, também, a bela deusa das águas que trazia vida e abundância para o deserto.
— Eu não descreveria ela assim — discordou Keanu, jogando-se nas esteiras com um sanduíche na mão, deixando respingar gotas de água salgada na tela do computador. — Talvez como um kraken ou um leviatã fugindo das profundezas do abismo, mas definitivamente não como uma deusa. Eca.
— Quem é uma deusa? — Kai sentou-se ao lado do irmão, pegando um refrigerante no cooler.
— Segundo o importado, a .
? A nossa ? Aquilo ali?! — questionou Kai, apontando para o mar, para onde havia voltado com Hahona.
— Aham.
— Olha só! — Mark interveio, fechando o computador, consciente de que não teria mais paz para escrever — Isso aqui é só um rascunho inicial, está bem? Vocês nem deviam ter lido, porque ainda não...
— Cara, ele está caidinho por ela. É patético — Keanu murmurou para o irmão, que se contentou em concordar, com pena, tomando mais um gole do refrigerante.
— Eu precisava de uma personagem, ok? E a tem um, um, é, um... ela tem um nome legal.
Mark nem tentava disfarçar, mais. Sabia que não podia culpar o sol pelas bochechas vermelhas e tampouco estava preocupado com isso. Era perda de tempo.
— Se você quer um conselho literário — Kai ofereceu, passando o braço pelos ombros do canadense.
— Eu acho que não quero.
— ... eu colocaria a como uma capitã pirata, se é para se inspirar no nome.
— E o que uma coisa tem a ver com a outra? — Mark questionou, resolvendo que talvez a ideia não fosse tão ruim, assim.
— O nome da família significa, literalmente, “marinheiro”. É de onde vem o apelido que o pai deu para ela — explicou Keanu, pegando mais um sanduíche depois de verificar que Iolana não estava olhando.
— O nome dela significa “vento” — continuou —, então, com um pouco de licença poética, acho que daria para transformar a personagem em uma pirata bem-sucedida.
Mark escutou com atenção e abriu o computador novamente, anotando as novas informações. Ainda precisaria de uma deusa da água, mas agora tentava se lembrar em que história tinha visto piratas que navegavam em dunas de areia e, mais importante, se ele poderia ser acusado de plágio culposo, se é que isso existia — com a sorte do escritor, devia existir.
— Bom, fico feliz que tudo isso tenha se resolvido. — Kai se levantou, terminando de reaplicar o protetor solar. — Agora, se o senhor não se incomoda — continuou, tirando o computador do colo do canadense e desligando-o —, nós estamos no Havaí, e você vai surfar.

Que sorte!, Mark pensou. Eles são instrutores de surfe. O que poderia ser melhor do que aprender a surfar com instrutores no Havaí?
Revivendo os momentos de tensão na lancha, o canadense tentava se recuperar da enésima rasteira que tomou das ondas naquele dia. Espanou um pouco da areia de dentro do calção e pegou a prancha, determinado a conseguir, no mínimo, subir em cima dela.
Kai e Alika eram, de fato, excelentes instrutores de surfe, mas ainda eram Kai e Alika. Esconder de Mark o detalhe quase irrelevante de que estavam na meca do surfe internacional no início de temporada — o que significava, em leiguês, ondas grandes e mais correnteza do que o normal — era algo a se esperar da dupla. Claro, ele podia ver as ondas, mas o desempenho dos no mar causava uma certa ilusão de ótica no menino da neve.
— Ué, Lee? — gritou Alika, flutuando gracioso sobre a água. — Não foi você que disse que surfe era quase igual ao seu snowboard?
— Eu disse, mas nunca disse que praticava snowboard! — o escritor gritou de volta, tentando chegar até onde a família estava.
— Você é uma vergonha, canadense.
— E vocês são cruéis — brigou com os surfistas, sem nenhum traço de humor no rosto. — Vem, Mark, eu te ensino sem colocar a sua vida em risco.
Arrastando a prancha ao lado do corpo, com os pés ainda fixos na areia molhada do fundo do mar, lá se foi o canadense aprender a surfar. Não tinha muita certeza de que queria aprender a surfar, mas aprenderia do mesmo jeito.
— Ok. Você já teve alguma experiência com surfe, antes?
— As pranchinhas de isopor e os tombos que eu tomei mais cedo eu acho que não contam, né?
suspirou. Tinha um trabalho duro pela frente.
— E de skate, você já andou?
— Um pouco, sim, quando eu era mais novo e a Avril Lavigne estava no auge.
— Ótimo! Sua fase underground vai ser útil. Sabia que o skate foi inventado por surfistas entediados? O princípio é o mesmo. — Dessa vez, ela respirou um pouco mais aliviada. — Agora, como está o seu condicionamento físico?
— Não faça perguntas para as quais você não quer uma resposta, .
— Ah, meu pai...

Mark não sabia quantas vezes pensou que ia morrer afogado, no dia anterior, até que finalmente conseguiu subir na prancha. Caiu, menos de um minuto depois, mas tinha conseguido subir! E era nessa ideia que ele se agarrava durante a chamada de vídeo com Johnny e Jaehyun naquela manhã.
— Eu estou falando sério. Os surfistas locais estavam dizendo que a minha performance na prancha era inacreditável.
E, de fato, eles disseram. Sem nenhuma conotação positiva, mas disseram.
— E hoje o Medina está curtindo sombra e água fresca? — Johnny provocou, do outro lado da tela, apontando para a rede onde Mark estava deitado.
— É claro — respondeu o escritor, espreguiçando o braço livre e colocando-o atrás da cabeça, com muito esforço para disfarçar o rosto contorcido o melhor que pode. — Preciso estar com o corpinho descansado se eles quiserem que eu surfe de novo, sabe como é.
Na verdade, a história era um pouco diferente, mas Mark jamais admitiria que tinha se sentado na rede apenas para conferir a redes sociais e não tinha conseguido mais se levantar de tanta dor que sentia no corpo. Achou melhor ficar por ali, mesmo, e aproveitar que o computador estava ao alcance do braço.
— Agora deixa de enrolação e conta logo como estão as coisas com a garota — pediu Jaehyun, lembrando qual era o assunto daquela chamada, para começo de conversa.
— É verdade, Mark! Quando você vai mostrar ela para a gente?
— Bom, sobre isso...
— Eu ouvi a voz do Johnny? — O escritor foi abruptamente interrompido pela linguista, que, ele até já tinha se esquecido, também era barista na cafeteria da dupla na videochamada. A garota se aproximou e se sentou na rede ao lado do canadense. — Ih, é. Fala aí, chefe, tudo na paz?
?! — Johnny encarou Jaehyun, que encarou Johnny de volta. — Mark?!
— Keanu! — gritou o caçula, saindo da casa com uma cesta de vime vazia nos braços. Passou pelo grupo e seguiu seu rumo em direção às árvores que contornavam a praia, assobiando alguma melodia que só ele conhecia.
— Eu acho que esqueci de contar, né? — Mark soltou uma risadinha frouxa, que logo se transformou numa careta quando sentiu o abdômen se contrair. — Eu não sabia que a trabalhava no café até vocês saírem de férias e ela ficar no turno da noite.
— Isso foi quase um mês atrás — brigou Johnny, visivelmente machucado pela falta de consideração do amigo.
— Vocês estavam viajando! E eu estava, bom, distraído com a faculdade, sabe? — retrucou o escritor, entredentes, apontando para a garota com a cabeça.
— Nem me lembra da faculdade — reclamou, esticando os pés na rede por cima do colo do garoto, agora vermelho como a folha de bordo na bandeira. — Vocês já conheceram a professora Brown? A mulher é terrível! Ela, sim, precisava de férias prolongadas aqui no Havaí.
— Não, nós não conhecemos a professora Brown. Aparentemente, nós não conhecemos muitas pessoas da vida do Lee, o que é engraçado, porque nós somos os amigos mais antigos dele, e...
— E como vai a história, Mark? — Jaehyun interveio mais uma vez, decidindo que lidaria com a crise existencial de Johnny mais tarde.
— Vai bem, e a sua? — o canadense respondeu num impulso. Percebeu o que havia dito quando notou os olhares confusos em sua direção e pigarreou antes de tentar consertar. — Digo, está indo bem. Agora só preciso escrever.
— Espera. — Johnny não se aguentou quieto. — Como assim, “agora” é “só” escrever? Não era isso que você estava fazendo desde o começo?
Mark coçou a nuca, pensando se queria mesmo explicar todo o processo de pesquisa, e planejamento, e outline, e personagens, e construção de mundo, e primeira versão, e...
— Fala sério, chefe. Esse é o nerd mais sistemático que eu já conheci, e olha que a minha família joga D&D. — se intrometeu. — Ele passou metade do mês decidindo se mudaria ou não o gênero da história.
— Eu preenchi um formulário de inscrição...
— Você joga D&D? — perguntou Jaehyun.
— Jogo há anos. Você também? A gente precisa montar uma campanha quando eu voltar.
— ... não posso falar que vou fazer uma coisa e acabar fazendo outra. — Mark terminou, ignorando a conversa paralela entre e o amigo coreano.
— Mas é exatamente isso o que você vai fazer. — A garota respondeu, sorrindo com os olhos fechados.
— Exatamente. — O escritor apertou a ponte do nariz com os dedos, frustrado.
— Olha só, eu acho melhor a gente ir. O Jaehyun precisa resolver algumas coisas do café e eu tenho que, é, dar apoio emocional — Johnny disse, claramente incomodado por presenciar a demonstração de afeto dos mais novos. — Aproveitem o resto das férias. Quando você voltar, a gente negocia um aumento, .
Com um último aceno, a tela se escureceu e um apito suave indicou que a chamada havia se encerrado.
— O que aconteceu com você, hum?
Mark olhou para a garota, que ainda sorria, mas um daqueles sorrisos delicados, carregados de carinho e cuidado. O fato dos dedos dela estarem correndo pelos cabelos loiros do rapaz foi um incentivo para que ele se ajeitasse na rede, deitando a cabeça no colo da garota.
— Acho que eu fiquei assustado. Conversar com eles me lembrou que a vida real existe e que uma hora esse sonho vai ter que acabar.
— Mark — disse a linguista, segurando o rosto do escritor e fazendo com que ele olhasse para ela —, essa é a vida real.


A praia de Hale’iwa acordou agitada na quinta-feira. Dezenas de homens de idades variadas carregavam móveis pela areia e as mulheres, sentadas na mesa de madeira instalada na frente da casa dos , produziam enfeites e adereços com folhas, sementes e flores armazenadas em cestas como a que Keanu carregava no dia anterior. conversava animada com algumas delas, todas com alguma semelhança física, e Mark achou que nunca se acostumaria com a beleza proeminente daquela família. O escritor tentou passar despercebido pela mesa, carregando algumas caixas e seguindo ordens, mas teve que fazer um desvio de percurso quando viu a garota acenando para ele.
— Bom dia, bela adormecida. Acordou melhor, hoje?
Mark fingiu um alongamento sem vergonha e riu.
— Acho que sim, mas essas caixas vão me quebrar de novo. — Deu uma boa olhada ao redor e se surpreendeu com o tanto que o cenário já havia mudado em poucas horas. — Um luau, hum? Agora, sim, a minha experiência havaiana está completa.
— Ah, isso é coisa da minha mãe. — deu de ombros, ajeitando a camisa estampada toda abarrotada que o garoto usava. — Eu disse que não precisava, mas ela adora uma festa.
— Caramba! Você vem para casa e ganha um luau. Quando eu visito meus pais, ganho, no máximo, uma caixa de vitaminas.
— Mas é claro que ela vai ganhar um luau. — Uma voz meio engasgada, um pouco trêmula e bastante indignada interrompeu a conversa dos dois. Um par de folhas de coqueiro-de-vênus acompanhava a figura, balançando no ar com agressividade. — Que porcaria de namorado é esse que não sabe do seu luau de aniversário, ?
— Vó, ele não é meu namorado.
— Não é?! — A velha deu um gritinho, com os olhos arregalados. — Então por que você está com essa flor no cabelo, minha filha? Que desperdício de um belo jasmim. E você — ralhou, batendo com as folhas na cabeça de Mark repetidas vezes — fique longe da minha neta, seu degenerado.
Chacoalhando os quadris com vigor, a senhora entrou na casa de madeira. Com as mãos grudadas no rosto e as sobrancelhas arqueadas, encarava o canadense, esperando por uma reação mais significativa do que os ombros encolhidos e os braços levantados acima da cabeça.
— Já é seguro? — ele perguntou.
— Eu acho que sim. Me desculpa por isso. — Tirou uma folhinha da cabeça do rapaz e ajeitou os fios. — A dona Kokani já está meio, bom, idosa.
— Não tem problema. Pelo menos ela não estava segurando um pedaço de madeira.
— Pois é! — a garota riu, com um sorriso amarelo no rosto. Mexia nas pontas dos cabelos e olhava para qualquer coisa que não fosse o escritor, procurando um assunto novo para preencher o espaço estranho que as acusações da avó tinham deixado.
— chamou Mark, dando uma pausa longa entre as palavras —, qual é a da flor? Sua avó não gostou muito de mim e você colocou a flor no meu cabelo, no outro dia, então se tiver alguma outra crença ou tradição que eu precise saber, é melhor me contar, já.
De vermelha, a havaiana ficou branca. Estava usando o jasmim-manga no cabelo desde que chegaram a Haleiwa e era surpreendente que nenhum de seus irmãos tivesse comentado nada a respeito. Ela achou que tinha escapado dessa conversa, até agora.
— Flor? Não tem nada com a flor. É uma flor. A gente estava fazendo Leis. Quer fazer um Lei? Minha tia pode te ensinar a fazer Lei.
Arrastando o garoto pela mão sem olhar para trás — ou parar para pensar, porque, se pensasse, abriria um buraco na areia para enfiar a cabeça, conectada ou não ao corpo —, deu a volta na mesa e se sentou ao lado de uma mulher que Mark confundiria facilmente com Iolana.
— Tia, esse é o Mark. Mark, essa é a tia Mele, mãe do Alika e da Lilo. Ele quer aprender a fazer Lei, tia.
O canadense cumprimentou a mulher fazendo uma reverência e Mele retribuiu com um aceno delicado com a cabeça.
— Quer aprender a fazer Lei, é? Senta aí, garoto.
Dez minutos depois, era consenso geral que Mark ajudava mais oferecendo apoio moral às duas. Enquanto separava folhas e flores para a garota, pensava no que a avó dela havia dito.
, posso te fazer uma pergunta?
— Tecnicamente, já fez. — A garota desviou os olhos das folhas que trançava e se concentrou no rapaz. — Pode fazer mais uma, se quiser.
— Me diz por que eu virei seu amigo, mesmo?
— Porque eu deixei.
Mele tentou segurar uma risada e fingir que não estava prestando atenção na conversa dos garotos.
— Eu só queria saber se hoje é seu aniversário, sua grossa. — O canadense rebateu falando alto, cruzando os braços e fazendo biquinho. nunca tinha notado o lado coreano dele tão presente como agora. — Agora vai ficar sem presente, também.
— A culpa é minha se você não perguntou o motivo da viagem? Eu podia estar te sequestrando, garoto. Seu instinto de sobrevivência é péssimo.
— O meu? Você podia ter trazido um psicopata para a casa da sua família, já pensou nisso?
— Por Deus, Mark, que psicopata come muffin de chocolate com suco de melancia?
Foi a vez de cruzar os braços, mas com as sobrancelhas arqueadas num deboche bem diferente da postura do rapaz. Mark, em contrapartida, sentiu os ombros se curvando e voltou a brincar com as sementes sobre a mesa.
— Eu só queria saber — resmungou, num fio de voz.
— Tudo bem, tudo bem. — A linguista colocou os materiais de lado e se virou para o rapaz, mantendo a pose de durona sem deixar transparecer o quanto a carinha de cachorro perdido de Mark mexia com ela. — Eu não queria que você se sentisse pressionado a vir ou a participar das coisas por causa disso, então não te contei, mas hoje é meu aniversário.
Finalizou jogando algumas pétalas de flor para o alto e fazendo uma dancinha com as mãos.
— Eu apanhei da sua avó por omissão de informação da sua parte, !
— E eu lamento muito por isso.
Ela não lamentava. Não fosse o constrangimento pelo status de relacionamento que a velha tinha inventado de última hora, teria se sentado para rir de Mark levando folhadas na cabeça.
— Que seja. — Mark voltou a separar as flores, agora espalhadas na areia pela gracinha da garota. — Eu ainda quero te dar um presente.
— Você vai dar um anel para ela? — Uma vozinha animada perguntou, se intrometendo na conversa sem nenhum pingo de vergonha na cara.
— Lilo, eu já falei para deixar de ser fofoqueira! — Mele ralhou com a garotinha encharcada de água do mar.
— Mas mãe, ele vai dar um anel para a .
Mark riu da menina, reconhecendo a dançarina principal dos ensaios do centro comunitário. Era meio desajustada das ideias, claro (era irmã de Alika, afinal de contas), mas o escritor já estava se acostumando com esse traço de personalidade dos .

A luz do sol foi substituída pelas tochas e pela grande fogueira acesa na praia. Ao longo da orla, ocupando uma extensão de quase cem metros, estavam espalhadas pranchas, lanternas e muitas flores e folhas para decorar a festa que movimentava a família toda.
Mark começava a se arrepender de ter se deixado levar pelo otimismo de Haku e decidido usar somente uma coroa de folhas de coqueiro-de-vênus e uma bermuda florida. Era uma coisinha magricela e desbotada perto dos tios e primos de , mas achava que estaria bem, contanto que se mantivesse longe dos cuspidores de fogo.
Prostrado ao lado da mesa de frutas, devorando o terceiro pedaço de melancia, assistiu à garota distribuir colares para os parentes. Os mais coloridos e elaborados iam para as tias, primas, mãe e avó, que reclamava dos modos brutos dos primos da aniversariante, que haviam recebido colares cheios de folhagens e sementes, tal como os tios, irmãos e o pai de . Ela tinha um último colar nas mãos quando andou em direção ao rapaz, determinada.
— Você está linda — elogiou o escritor, notando o esforço extra da havaiana para se arrumar para festa.
Ela usava um colar de hibiscos amarelos, combinando com o desenho estampado em seu ombro, com um top branco drapeado com pequenas pérolas e uma saia vermelha longa. Acima da orelha esquerda estava a flor que ela vinha usando desde o início da semana, mais ou menos no mesmo tom de rosa que as bochechas dela passaram a ter com o elogio do rapaz.
— Você também — respondeu, tentando não gastar tempo demais analisando o torso descoberto do escritor. Até que, para um nerd preguiçoso, Mark era... interessante de se observar. recuperou o foco e esticou a mão para o amigo, que aceitou. — Vem. Quero te mostrar uma coisa.
A dupla seguiu para dentro da casa, longe da agitação e da música alta da festa. sentia as palmas suadas e preferiu acreditar que era pelo contato com as mãos sempre quentes do garoto. Respirando fundo, se sentou no sofá e apontou para o lugar ao lado, sendo imitada por Mark.
— Eu tenho um presente para você. — Ele se lembrou e correu até o quarto. Voltou com um embrulhinho amassado meio mal feito, mas que claramente tinha exigido muito esforço. — Não deu tempo de ir na cidade para arranjar um presente decente, com todos os preparativos da festa e o Keanu e a Lilo correndo atrás de mim o dia todo para perguntar sobre a história das lhamas — reclamou e riu, fazendo um pedido silencioso de desculpas ao rapaz —, mas eu tinha isso aqui. Eu comprei numa viagem com a minha família, então ele é especial.
engoliu o nó que quis se formar em sua garganta e pegou o pacote. Era um envelopinho de papel pardo dobrado de uma maneira que teria sido elegante, se tivesse dado certo. Com cuidado, rasgou o papel e encontrou um anel de coquinho preso a uma corrente prateada.
— Eu imaginei que pudesse ficar grande para você, então coloquei na corrente. — Mark justificou, trocando o peso de uma perna para a outra mais vezes do que o necessário. Viu a linguista testar o anel em todos os dedos e ficou feliz por tê-lo transformado num colar.
— Obrigada, Mark. Eu vou usar com carinho, mesmo que você já tivesse me dado um presente, hoje, sem nem saber.
O escritor colocou as mãos na cintura, rindo de lado.
— Olha só, eu fico feliz de poder te fazer rir, mas acho meio insensível você chamar de presente o perrengue que eu passei com a sua avó.
— Deixa de ser bobo — retrucou e jogou uma almofada pequena no rapaz. — Eu estava falando do luau. No Havaí, ajudar a organizar uma celebração é uma forma de presentear as pessoas. Aliás, isso aqui também é. — Buscou o colar de flores e entregou ao canadense. — Esse é seu.
Aquele Lei era diferente dos outros que havia distribuído. No lugar dos hibiscos e das sementes de nogueira-de-Iguape, o de Mark tinha folhas de coqueiro-de-vênus e duas espécies de flores em tons de rosa, amarelo e branco. Com os olhos brilhantes e a boca ainda aberta, o garoto colocou o colar no pescoço e sorriu para a havaiana.
— Que tal?
— Ficou ótimo — respondeu ela, sorrindo um sorriso do mesmo tamanho do dele.
Pegou o colar nas mãos e apontou para as folhas verdes trançadas.
— Cada coisa tem um significado — explicou. — As folhas de coqueiro-de-vênus simbolizam respeito e admiração. Os cravos, bom...
Com um pouquinho de atenção, Mark podia ver as engrenagens girando na cabeça da garota. Ela abriu e fechou a boca várias vezes, até que uma voz veio da direção do banheiro.
— É amor, meu filho. Cravo simboliza amor, igual a esse jasmim que ela usou o dia todo no cabelo sem motivo nenhum, se vocês não estão namorando.
Dona Kokani saiu resmungando porta afora, deixando dois seres mais ou menos humanos, mais ou menos funcionais, no sofá. suspirou, ignorando as bochechas ferventes, e tentou recuperar o controle da situação.
— Acho melhor a gente voltar lá para fora — disse, se levantando e alisando as roupas. — A sua melancia não vai se comer sozinha.
Sem olhar para trás, ela marchou para a varanda. Mark a seguiu, ainda com uma certa cara de peixe morto, enquanto processava todas as informações dos últimos dez minutos. Assim que pisou para fora da casa, no entanto, o canadense ouviu um grito alto e viu um dos primos de gritando de volta para o homem mais velho, batendo no peito com uma expressão enraivecida.
Não demorou muito para que outros cinco primos e tios estivessem envolvidos e o barulho só aumentava. Não se ouvia mais a música da festa e nem burburinho de conversa, só a gritaria e o som ritmado dos tapas que eles davam nos próprios corpos.
, a gente devia entrar. Isso aqui vai ficar feio — sugeriu o garoto, pegando a havaiana pelo cotovelo e tentou puxá-la de volta para a segurança da casa.
A garota não se moveu. Ficou parada, assistindo ao desenrolar daquela cena com o olhar vidrado. Mark, com a respiração acelerada, viu a coisa escalar rapidamente.
, por favor, vem...
— AAAAAAH!!
O escritor deu um pulo quando ela gritou. O barulho parou e Haku, do meio da multidão, entoou algo numa língua que Mark não entendia. Todos os familiares e amigos da garota acompanharam enquanto respondia gritando com tanta intensidade quanto os outros, as caretas e os tapas igualmente assustadores. Hahona se aproximou da escadinha e uma lâmpada se acendeu em cima da cabeça do canadense.
Apoiando as mãos trêmulas na cerca da varanda, Mark se sentiu o maior idiota do planeta. Hahona era māori! A “briga” que ele estava testemunhando ali era um haka, uma das mais bonitas manifestações culturais que ele conhecia. E pensar que ele havia tentado proteger da homenagem que a família estava fazendo para ela...
Mais calmo, o canadense assistiu ao final da dança e permitiu que os pelos do corpo todo se arrepiassem com a energia da família da garota. O silêncio se instalou de repente na praia, indicando que o haka havia chegado ao fim, e o ar foi preenchido pelos aplausos do escritor e alguns outros convidados. exibia um sorriso aberto e cheio de emoção, diferente de Keanu, que se aproximava com os irmãos, ostentando um sorriso cheio de malícia.
— Vocês tinham que ver a cara de pânico do Mark quando a gente começou. Parecia que ele estava vendo uma lagartixa gigante, ou uma onda — o garoto debochou, com as mãos na barriga de tanto rir.
— Você ri como se não tivesse feito xixi nas calças de medo dos hakas de aniversário até seus seis anos — devolveu Kai, bagunçando os cabelos do irmão, que já não sorria, mais.
— Eu devia ter te avisado. — se virou para o escritor, sem graça. — Meu pai é o único māori por aqui, então a família meio que se juntou para aprender os costumes e ajudar ele a repassar para a gente.
— Existe uma versão havaiana do haka — completou Haku —, mas parece que a nossa família adora subverter as tradições, não é, ?
— Haku, deixa ela em paz. — Com um empurrão de leve no ombro, Lani fingiu ficar brava com o marido. — Não é porque ela não namora que ela não pode usar uma flor no lado esquerdo do cabelo. Ela pode só estar apaixonada. Você adora constranger a sua irmã, que horror.
— Eu tenho dó da criança que vai nascer de vocês dois — resmungou a linguista, se perguntando mentalmente se era muito tarde para pegar a lancha e ir se esconder do outro lado da ilha.
Mark, por outro lado, juntava as pecinhas do quebra-cabeças que aquela semana tinha se tornado. Era por isso que todo mundo falava da tal da flor, então? Talvez ele tivesse que fazer algo a respeito.
, a gente pode conversar? — pediu, sério.
Percebendo que o tiro pudesse ter saído pela culatra, os irmãos da havaiana se afastaram, dando privacidade aos dois. , afastando um arrepio que desceu da cabeça aos pés, preferia que eles tivessem ficado, pela primeira vez.
— Sabe — o garoto começou, brincando com os dedos, depois de se sentar na rede com a amiga —, eu acho que fiquei distraído demais com tudo o que eu tinha para ver e descobrir aqui, que não dei tanta atenção para o mais importante.
— Mas você conseguiu começar a história, não conseguiu?
Mark deu uma risadinha soprada e olhou para a garota.
— Não estou falando da história, . Estou falando de você. Você e tudo o que eu sinto por você desde que a gente começou a estudar junto. Eu passei meses tentando achar o jeito certo de me aproximar, enchendo o saco do Johnny e do Jaehyun por causa disso, até aquele trabalho da Sra. Brown surgir.
sentiu um sobressalto no peito. Ela e Mark estudavam juntos há quase dois anos e nada da atração inicial que ela desenvolveu pelo colega nerd e desajeitado havia desaparecido. A ideia da reciprocidade era algo com que não estava acostumada a lidar.
— Eu quis falar com você, antes — declarou, olhando para os próprios pés —, mas você sempre estava envolvido com algum projeto complexo ou tentando conseguir um intercâmbio para a França e eu ficava com medo de tomar o seu tempo.
— E eu tinha medo de ser inconveniente. — Mark riu, percebendo quanto tempo eles haviam perdido para um medo infundado. — Mas, se o que os seus irmãos estavam falando for verdade...
— É — interrompeu ela, cansada de se esconder. — É verdade. Eu gosto de você, Mark Lee.
Mark nunca imaginou que ouviria aquelas palavras sendo ditas a ele por aquela garota, e mesmo que tivesse imaginado, nada o teria preparado para o mar revolto que criava dentro dele.
— Então acho que só me resta te dar um motivo concreto para usar essa flor no cabelo sem quebrar nenhuma tradição. O anel eu já te dei, mesmo...
O escritor foi interrompido mais uma vez, mas agora pelos lábios da havaiana. Sentados ali na varanda, embalados pelas vozes animadas dos amigos e familiares da aniversariante, eles firmavam um acordo silencioso que há muito tempo esperava para ser firmado.

A maior parte dos convidados já havia ido embora quando a família se reuniu na grande mesa de madeira na praia para comer e conversar. Mark explicava animado para Keanu e Lilo sobre os cavaleiros e dragões das histórias que cresceu lendo e a dupla, apesar da diferença de idade, reagia com a mesma empolgação.
— Quem diria que tudo o que eu precisava para fazer a Lilo largar aquele celular e se interessar por um livro era arranjar um canadense — Mele ponderou, arrancando uma risada da irmã.
— Posso dizer o mesmo do Keanu. Até de faculdade ele começou a falar. Diz que quer ir para o Canadá junto com a , mas agora não é só para ficar longe da gente.
— Se todos os amigos canadenses dela forem como o Mark, eu despacho o Keanu já nesse sábado — brincou o neozelandês, mas antes que Iolana pudesse concordar, Kokani deu uma folhada na cabeça do genro com força.
passou a semana inteira, Hahona...
— Vó! — A garota tentou interromper.
— ... a semana inteira colhendo flores e folhas sozinha...
— Vó, por favor, eu nã—
— ... para fazer o Lei mais romântico dessa ilha para o garoto e você ainda me diz que eles são amigos, Hahona?
desistiu de tentar evitar que a avó a expusesse daquela forma, o que não passou despercebido pelos irmãos e primos que caíram na gargalhada. Mark, por outro lado, estava da cor das melancias que ele tanto amava.
— Tenha dó, homem, eles são namorados — Kokani afirmou com um sorriso orgulhoso no rosto, fosse pela neta ou pelo fato de ter sido muito mais esperta que o genro, e encarou os pombinhos sentados em frente a ela. Com os dedos entrelaçados sob a mesa, nem e nem Mark negaram a informação.

A sexta-feira passou rápido, ou foi o que Mark pensou, imerso nas páginas da história que construía para o concurso enquanto , Lilo e Iolana finalizavam os ensaios para o último dia do Festival Aloha. Mele e Kokani se encarregaram de preparar os peixes e outros frutos do mar que Hahona e os meninos trouxeram para o jantar e o canadense aproveitou a alta da maré no final da tarde para treinar surfe com Kai e Alika nas águas de Hale’iwa.
Mal teve tempo de se recuperar dos semiafogamentos da noite anterior quando chegaram de novo à avenida Kalākaua na tarde de sábado, depois de mais um longo jogo de “eu estou vendo”. A Floral Parade estava a todo vapor, com as bandas e carros enfeitados desfilando pela avenida enquanto o público se deliciava nas barraquinhas de comidas locais. Atrás do palco principal, a turma de hula do centro comunitário de Haleiwa estava reunida, esperando o momento de apresentar a coreografia que encerraria o festival.
— Cinco minutos, pessoal — anunciou um organizador.
— Você está bem? — Vendo andar de um lado para o outro arrumando o figurino, Mark foi até a garota e a segurou pelas mãos.
— Faz muito tempo que eu não subo em um palco. — Riu, nervosa.
— Se você fizer metade do que fez nos ensaios, ainda vai ser incrível.
A havaiana assentiu, tranquilizada pelo apoio do — nem ela acreditava — namorado. Se despediram com um beijo rápido e Mark foi enxotado para fora dali. Juntou-se à família das meninas, bem ao pé do palco. Os músicos se posicionaram, as dançarinas foram chamadas ao tablado e a música começou. Lilo estava escondida na coxia com os cabelos molhados, esperando sua deixa. O espaço deixado pela pequena evidenciava a prima, que estava mais hipnotizante do que nunca.
— Sabe, garoto — cochichou Hahona, sem desgrudar os olhos da apresentação —, eu chegaria no Canadá em dez minutos se eu ouvisse que você machucou a minha filha.
Mark parou de se mexer imediatamente, ouvindo a voz forte do sogro em suas costas. Tinha certeza de que, se alguém tivesse fotografado a sua cara naquele momento, ele teria virado um meme na internet.
— Mas por enquanto — continuou o neozelandês, colocando uma mão no ombro do escritor —, bem-vindo à ohana.
O canadense se virou para trás e encontrou o pai de sorrindo sincero para ele, apenas por um segundo antes de voltar a assistir à filha no palco, mas foi o suficiente para que Mark sentisse a importância do que ele havia dito.
A coreografia chegou ao fim e toda a multidão que se encontrava naquela área da avenida aplaudiu. O grupo saiu do tablado e, em alguns minutos, as dançarinas se reencontraram com seus amigos e familiares, já sem os figurinos. foi recebida por Alika com uma margarita havaiana, assim como Mark, e eles se juntaram para um brinde.
— Que a hula continue passando de geração em geração para que os do futuro se lembrem dos do passado — desejou Kokani, levando sua taça decorada ao centro da roda que eles haviam formado, seguida pelos demais.
— Opa! — Lani deu um gritinho, colocando a mão na barriga. — Alguém ficou animada com a ideia de dançar hula, aqui dentro.
— Espera. Você disse “animada”? — Iolana rapidamente ignorou o brinde e questionou a nora.
— Bom, nós fomos checar o resultado da ultrassom no meio da semana — respondeu Haku, olhando de lado para a esposa, que assentiu, dando permissão para que ele continuasse. — A gente queria manter segredo até o chá de bebê, mas a Lani ganhou a aposta e eu devo um dia de spa para ela.
— Nós estamos esperando uma menina — exclamou a bombeira, sorrindo tanto que quase era possível ver seus molares traseiros.
Iolana e Mele ficaram em festa. Hahona nunca admitiria, mas tinha medo do que poderia acontecer se Kai e Alika fossem tios de um menino. Tinha Keanu como referência. Levantaram as taças de novo, com mais um motivo para comemorar, agora. Por um minuto, foram tomados pela alegria, mas o tempo não fez a gentileza de parar.
As malas no carro de Haku começavam a pesar conforme a despedida se aproximava, e os olhos cheios de lágrimas entregavam o estado de espírito de cada um. A contragosto, seguiram para o aeroporto de Waikiki, aproveitando um último pôr-do-sol em família até que o voo para o Canadá fosse anunciado na área de embarque. Os abraços se apertaram e os sorrisos ficaram menores.
— Eu não entendo o motivo desse chororô todo sempre que a vai embora. Daqui dois meses ela volta e, agora, com companhia.
— Você vai entender quando tiver filhos, eu acho — Alika respondeu, desinteressado.
— O que eu espero que ainda demore bastante. Para todos vocês — brigou Iolana, apontando para os filhos, os sobrinhos e Mark.
Atenção passageiros do voo AC590 com destino a Toronto: última chamada para o embarque. <br> Com o aviso nos autofalantes, e Mark deram um último abraço apertado na família e seguiram para a aeronave.
— E então — começou a garota, com a voz embargada, tentando se manter distraída para não ceder à saudade tão cedo —, o que você achou da apresentação?
— Nada surpreendente. — O canadense respondeu, provocando. — Eu sabia que seria incrível e foi. Você tem mana.
não segurou a gargalhada.
— E você sabe o que é isso, por acaso?
— Claro que eu sei! — O escritor retrucou, com uma mão no peito e a maior cara de indignação que ele conseguiu interpretar. — Se eu não soubesse, seu pai não teria me dado as boas-vindas à ohana.
— Meu pai fez o quê?! — cuspiu, os olhos arregalados e a voz elevada, recebendo alguns olhares mau humorados de outros passageiros.
— Isso mesmo. — Mark passou o braço pelos ombros da garota, sorrindo satisfeito. — Agora você vai ter que me aguentar para sempre, porque a sua família me ama.
— Ai, droga!
Rindo da gracinha da namorada, Mark checou o celular antes de decolar. Encontrou algumas mensagens de Johnny.
E aí, Lee? Que horas vocês chegam?
Quer que busque vcs no aeroporto ou vcs vêm de táxi?
Mark?
Mark, seu imbecil, você tá bem?
Espero que você esteja aproveitando muito com a minha melhor barista pra ignorar as minhas mensagens desse jeito.
Amanhã é seu dia de tirar o lixo.”

Com poucas palavras, respondeu que chegariam pela manhã e iriam de táxi até o café. Desligou o celular e olhou para a garota, que tinha se ajeitado em seu ombro e estava de olhos fechados. Johnny que o perdoasse, mas Mark esperava que tivesse muitos motivos para ignorá-lo dali em diante.



Fim!



Nota da autora: Ok, eu admito: a história é um pouquinho diferente do que a gente imagina ouvindo esse hino, mas eu juro que foi inspirada hahahaha
Mark é uma das criaturinhas mais preciosas que o kpop já conheceu e eu achei que ele merecia um romance gostosinho de ler.
Obrigada por ler até aqui, e espero que tenha gostado ♥




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