Capítulo Único
— Belo carro.
A risada do homem mal saíra, ficando contida em sua garganta. Por que os homens achavam mesmo que era universalmente sexy essa postura de poucos esboços emocionais? Ela jamais entenderia.
— É um Corvette C3 original de 1979 - ele explicou, recebendo acenos de cabeça tão perfeitamente desenhados à sua frente que foram capazes de fazê-lo acreditar que havia algum interesse no assunto. — Tivemos que renovar várias coisas, como os bancos de couro, e melhorar a qualidade do motor para sobreviver aos dias de hoje. Mas é uma peça rara, que merece ser tocada apenas por quem saberá valorizá-la e apreciá-la o suficiente. Como você.
O sorriso que apertava seus olhos era a única expressão possível de evitar que ela revirasse os olhos ao ouvir aquelas palavras e sentir a mão firme dele apertando de leve a sua coxa.
— Melhor prestar atenção na estrada - comentou, quase cantarolando com toda aquela doçura fajuta e minimamente programada. — Não queremos que a noite acabe mais cedo por um descuido, não é mesmo?
Ele soltou mais uma daquelas risadas soprosas e entaladas e devolveu a mão direita ao volante. Obviamente não antes de aproveitar a oportunidade de dizer:
— Isso não vai acontecer. Não se preocupe. Eu sou muito bom no que eu faço.
A malícia e a volúpia pingavam em cada uma de suas sílabas, derramando-se numa poça de segundas intenções que só aumentava. Se ela utilizasse um categorizador meteorológico, talvez conseguisse captar os seus sinais na umidade atmosférica.
Por sorte, estavam perto o suficiente para que logo estivessem estacionando o tal carro na garagem exageradamente grande da mansão - cuja descrição de tamanho se tornaria totalmente redundante e repetitiva.
Ela mal teve tempo para realizar seu relatório mental de amofinações e extravagâncias desnecessárias que todo playboy milionário parecia ter. Os lábios dele estavam pressionados contra os seus, enquanto os dedos grossos apertavam a sua nuca com uma urgência à qual ela jamais corresponderia.
Sua fisionomia poderia ser de tudo, menos de satisfação ao vê-la se afastando.
— Calma lá, lindo. Pensou mesmo que ia ser assim tão fácil? No meio da sua garagem? Não vai mesmo me levar para dentro, me oferecer uma bebida? Acho que eu valho um pouco mais do que isso.
Ele deu um sorriso de canto, absolutamente crente de que era o ser mais charmoso a pisar na face da Terra. Ela não precisava mover um dedo, sabia exatamente o que ele faria quando se colocou de pé em um movimento rápido. Eles eram todos iguais.
— Obrigada - agradeceu ao aceitar a mão que lhe fora imediatamente oferecida quando ele abriu a porta para ela.
— Você merece tudo isso e muito mais.
“Duvido que você vá continuar pensando assim quando a noite acabar.”
Ela o seguiu escadarias acima, tomando cuidado para não errar nenhum dos degraus de mármore claro e pisar em falso com aqueles saltos altos demais para a saúde de sua própria circulação venosa.
A sala em conceito aberto era pelo menos duas vezes maior do que a casa inteira de uma família de classe média. Vendo o estofado ridiculamente branco daquele sofá, ela ouviu algum cantinho ligeiramente sórdido de seu cérebro implorando-lhe que testasse derramar só algumas gotas de vinho tinto ali. Só pela curiosidade de saber como seria. E talvez de destruir algo tão obviamente caro. Existia algum nível de prazer pessoal em fazer isso.
Do outro lado dos lustres geométricos pendentes, ela viu o que reconheceria em qualquer lugar:
— Meu Deus! Você tem um bar!
Com um sorriso quase infantil, ela correu para trás do balcão, fazendo questão de ditar em voz alta todas as garrafas que encontrou por ali, adicionando comentários de “Uh! Essa é boa!”, “Nunca vi isso, deve ser caro demais para mim” e “Que nome engraçado!”.
Ele se aproximou, abraçando qualquer que fosse a oportunidade de fortalecer sua autoimagem de virilidade e seu ego ao se colocar na posição obviamente superior de quem detinha mais conhecimento e, portanto, poder. Não precisava acrescentar o papel de seu dinheiro - facilmente herdado na empresa multinacional que havia sido construída com o suor do pai e entregue a ele da mesma forma que sua certidão de nascimento.
Contou sobre os uísques caríssimos, que supostamente haviam sido cuidadosamente captados após vários anos de amadurecimento em barris que viraram praticamente lendas contadas por aí em meio às tradicionais narrativas orais da cultura daqueles que concentravam 99% da renda do mundo. Falou sobre os processos de obtenção do álcool em suas mais diversas origens, como se entendesse cada passo de seus processos de produção - menos o que incluía trabalhar, de fato.
Ela apenas concordava, completamente maravilhada com a variedade posta à sua frente. Era como um grande banquete. Só que melhor.
— Vou te fazer um drinque - avisou. — Eu já trabalhei em vários bares e restaurantes, sabia? Vai, escolhe uma bebida.
— Me surpreenda - ele falou, dando de ombros antes de piscar e seguir até a lareira elétrica, pronto para ligá-la.
Um sorriso inocente iluminou os lábios dela, em um lampejo doce e passageiro como uma brisa de fim de tarde:
— Pode deixar.
Ela puxou os copos de cristal e escolheu as garrafas. Encontrou xaropes de fruta, água tônica e uma coqueteleira. Era tudo que ela precisava.
Ou quase tudo.
Enquanto isso, ele já devia estar mexendo pela terceira vez naquele controle universal que controlava cada centímetro daquela casa. Com o fogo falso crepitando ao redor da pequena cilada construída, ele abriu as persianas mecânicas e ligou o áudio do ambiente, deixando que notas de um jazz se espalhassem pelo espaço até encontrarem a fundação das paredes e serem obrigadas a retornar.
— O que é que você está aprontando aí?
— Uma surpresa - ela respondeu. — Exatamente como você pediu.
Com mais alguns rodopios da longa colher bailarina, ela se deu por satisfeita, caminhando vagarosamente na direção dele, cujo olhar estava indevidamente preso em cada um dos movimentos de seus quadris.
— Saúde - brindou, com toda a meiguice possível de ser escondida entre o atuado interesse e a verdade nua e crua. O som dos copos tilintando antes que ele virasse um longo e delicioso gole era uma música muito mais agradável aos seus ouvidos do que qualquer que fosse aquilo que ele tinha colocado para tocar. — E então?
— Você é boa nisso - ele disse. — É forte, mas… Como eu posso dizer isso? Acolhedor, talvez?
— Acho que essa é a palavra que você usa para descrever uma sopa num dia frio, não uma bebida.
Ele riu com a brincadeira - a primeira risada de verdade de toda a noite. Com um gesto, ele indicou o sofá que ela ainda desejava manchar, convidando-a a se sentar com ele. Ela o fez, garantindo que havia espaço suficiente entre eles para que não sentisse sua respiração, mas ainda pudesse garantir que o estava mantendo colado a si em uma atenção calculada.
— Me conta mais sobre o seu trabalho - ela pediu, dando um gole no conteúdo de seu próprio copo.
A cabeça dele pendeu sobre o pescoço, enquanto ele soprava por entre os lábios, como se estivesse fazendo algum tipo de aquecimento de voz fora de hora.
— Não sei o que te dizer sem te deixar completamente entediada.
— Não vai acontecer. Eu quero mesmo saber - ela retrucou. Era hora de usar um de seus maiores talentos: se fazer de boba. — Ou você não quer me contar porque é alguma coisa super secreta e confidencial? Porque se for isso, agora é meio tarde. Já me deixou curiosa e é totalmente injusto não me tirar dessa angústia agora.
Seu copo já estava um pouco abaixo da metade quando ele respondeu:
— Quando meu pai faleceu, ele acabou deixando a empresa para mim, por ser o único filho. Eu cuido da parte administrativa, sabe? Tanto o financeiro, quanto a questão de tomada de decisões, planejamento, envolvimento com clientes e funcionários…
— Nossa, parece muita coisa. Você nunca pensou em contratar alguém para te ajudar com tudo isso?
— Ah, eu tenho funcionários para isso, sim. Várias pessoas lá dentro trabalham com essas coisas, mas ainda assim é muita coisa para mim.
Ela aquiesceu, sentindo pena daquela vida de ter responsabilidades demais para com as quais cumprir e muita gente para fazê-las. Deveria mesmo ser incrivelmente difícil sentar a bunda em uma cadeira de vários milhares de dólares por algumas horas e ouvir as pessoas dizendo tudo o que elas fizeram por você.
— Eu imagino mesmo - ela concordou. — Por isso você está tão cansado.
Ele bocejou, em meio a uma risada entrecortada.
— Eu falei que era um assunto entediante. Até me deu sono.
Ela sorriu novamente, aconchegando-se mais no sofá, como se a recíproca fosse completamente verdadeira.
— Não deveria te dar sono falar sobre como você é um homem importante. Deveria te deixar orgulhoso.
Ele esfregou os olhos, apertando-os com força, enquanto seus músculos faciais se contraíam na esforçada intenção de evitar que mais um bocejo escapasse.
— Tenho, sim, muito orgulho de todo o nosso trabalho pela empresa. Sei como fazemos uma enorme diferença na vida das pessoas.
“Sim, explorando trabalho manual mal remunerado e cotas de insalubridade.”
Antes que ela pudesse pensar em outra frase pouco comprometedora e que permanecia deixando-a relativamente longe da conversa enquanto ganhava tempo, percebeu o movimento rápido da cabeça dele caindo, antes que ele recobrasse rapidamente a consciência e a chacoalhasse, como faz uma criança que está lutando contra a iminência do sono que chega.
— Acho que é melhor a gente subir - ela sugeriu. — Você está prestes a implorar pelo conforto da própria cama.
Ele riu, virando por completo a última fração do conteúdo de seu copo. Precisou se apoiar no braço do sofá para manter o mínimo de equilíbrio suficiente para não desabar de encontro ao chão. Ela lhe ofereceu o braço, permitindo que apoiasse o corpo contra o seu enquanto subiam vagarosamente as escadas.
No quarto, ele se jogou na cama king size coberta por uma colcha off-white e lençóis de quaisquer milhares de fios de onde quer que fosse o algodão. Ela se sentou calmamente ao seu lado, passando a mão em sua testa e por seus cabelos de forma carinhosa, conforme sua respiração se tornava mais pesada.
— O que foi que você colocou naquela bebida?
Ela continuou o carinho, esboçando um sorriso inocente.
— Acho que misturei coisas demais sem olhar o teor alcoólico delas.
— Não - ele disse; a voz ficando mais enrolada a cada segundo. — Isso não é álcool. Tem alguma coisa errada.
Ela deu de ombros, aproximando-se. Ele percebeu seu corpo deixar de responder às suas ordens quando não conseguiu se mexer ao vê-la puxando a chave de seu Corvette do bolso.
— O que você está fazendo?
— Antes de você apagar de vez, qual é a senha do cofre?
A escuridão confundiu ainda mais as pupilas perdidas do homem que já não sabia direito o que via.
— Você não vai fazer isso. Não vai levar nada.
A mulher levou as mãos aos cabelos, prendendo-os em um nó no topo da cabeça.
— Bom, se você não quer colaborar, acho que vou ter que descobrir sozinha.
Ela foi até o closet, empurrando cabides de um lado para o outro; olhou atrás dos armários e prateleiras, checou se não havia um fundo falso atrás da TV.
— Você não vai fazer isso - ele repetiu, precisando reunir todas as suas forças.
— Mas não era você quem adorava fazer o bem para as pessoas? Prometo que o dinheiro vai ser revertido para uma boa causa. Pense nisso como um Hood, tirando dos ricos para dar aos pobres. - Quando conseguiu retirar o pesado quadro da parede, foi obrigada a soltar uma risada incrédula ao ver as teclas iluminadas a encarando de volta. — No lugar mais óbvio, sério? Eu esperava um pouco mais de você.
— Você nunca vai conseguir abri-lo.
— Você escondeu seu cofre atrás do único quadro do quarto. Não é lá muito inteligente, sabe? Tenho certeza de que tem as senhas anotadas em algum canto do seu celular.
Mais uma vez, as mãos delas estavam em seu bolso, encontrando o aparelho.
— Olha aqui, por favor - ela pediu, endireitando sua cabeça com pouca delicadeza para que o reconhecimento facial desbloqueasse o celular. — Prontinho, muito obrigada!
— Você não vai sair impune disso, sua vadia. Eu vou ligar para a polícia e eles vão te encontrar.
Ela não demorou a encontrar o arquivo na conversa que ele tinha consigo mesmo no aplicativo de mensagens. Várias senhas estavam ali, mas só uma tinha exatamente os quatro dígitos numéricos de que ela precisava.
— Meu amor, você não é o primeiro e nem vai ser o último a dizer isso - contou, ouvindo o som glorioso do cofre sendo destrancado. — Mas eu ainda estou aqui, não estou?
Com movimentos rápidos, ela pegou alguns bolos de dinheiro e pequenos diamantes e os enfiou na bolsa. Logo, a porta do cofre estava fechada e o quadro novamente colocado.
— Boa noite - desejou, beijando-lhe a testa. — Pode descansar agora.
E a última coisa que ele viu, antes de apagar, foi o mesmo quadril que o havia colocado em perigo no começo da noite.
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A capa de seu exemplar de ‘Um Teto Todo Seu’ estava começando a ficar desgastada e desbotada, criando pequenas orelhas pelo vício da leitura enquanto repousava em seu lugar de costume: a mesa de cabeceira ao lado de sua cama.
Ao lado dela, uma sequência de estojos de lentes de contato com soro fisiológico as mantendo umedecidas contra o ressecamento.
Ela se olhou no espelho mais uma vez, absorvendo a própria imagem. Era sempre difícil se acostumar com o próprio rosto longe das maquiagens, das lentes coloridas, dos brincos longos e pesados e das perucas que escondiam seu cabelo verdadeiro. Às vezes precisava respirar fundo algumas vezes, obrigando a si mesma a se lembrar de quem verdadeiramente era; de quem estava por baixo da máscara e dos muros de pedra grossa que havia construído ao seu redor. Às vezes precisava se lembrar de que ainda existia. Ainda era alguém.
Jogou o casaco pesado sobre os ombros e calçou suas botas surradas, seguindo até o metrô a passos largos. Ninguém deu bola para a mulher que passava, para suas roupas, seu cabelo mal preso ou para a feição de quem parecia prestes a vomitar toda a ansiedade que sentia. Era como se ela fosse totalmente invisível. Talvez, ao fim do dia, essa fosse a melhor - e, paradoxalmente, a pior - parte de viver em Nova York: a solidão.
Na entrada da estação, encontrou um homem que não deveria ser mais velho que ela, com uma placa que o apresentava como um pai solteiro que acabara de perder a esposa para uma neoplasia agressiva e, desempregado, precisava cuidar da filha de três anos que tiveram juntos. Ela não precisou de mais de dois segundos para pensar, enquanto deslizava, disfarçadamente, uma nota de cem dólares para fora do envelope de papel pardo que tinha dentro da bolsa.
Com um sorriso tímido, entregou o dinheiro para o rapaz, não desperdiçando um segundo sequer antes de prosseguir o seu caminho e ouvi-lo às suas costas:
— Moça, espera, eu acho que é a nota errada.
— Espero que ajude - ela respondeu simplesmente e voltou a descer, ouvindo a voz dele se tornar mais alta enquanto praticamente berrava um agradecimento.
Assim que o metrô passou, ela se enfiou para dentro, encontrando um assento vazio perto da janela. Enquanto as paredes e vielas subterrâneas da grande cidade corriam ao seu redor, seus dedos tamborilavam nervosamente contra as próprias coxas. Para uma pessoa que já tinha passado por tanta coisa e criado tantas situações que muitos julgariam absurdas, era quase patético ter de admitir que sua ansiedade decidia desabrochar suas pétalas primaveris em momentos tão banais quanto aquele.
Colocou-se de pé à porta instantes antes do horário que seu cálculo havia fornecido como momento de chegada. Desceu rapidamente, passando na frente da maioria dos passageiros que, como todas as outras pessoas, simplesmente não se importavam. Por mais que fosse ponto chave de seu trabalho passar despercebida, ela não podia evitar de pensar em como tantas coisas poderiam ter sido diferentes se as pessoas se importassem um pouco mais. Talvez ela nem precisasse estar ali.
Caminhou até a casa de telhado cinza e paredes brancas rachadas e com sinais de infiltração. O carro não estava ali, afinal, era a hora do rotineiro passeio no parque e ela sabia bem disso. Puxou uma caneta do bolso e escreveu “Se precisar de mais, sabe como me encontrar” no envelope, empurrando-o por baixo do vão dilatado da porta.
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O toque estridentemente melódico e repetitivo soou mais uma vez, fazendo-a revirar os olhos. Não sabia quem era pior: a pessoa que havia criado aquela porcaria aguda e irritante, quem tinha decidido aprovar a ferramenta sonora ou o idiota à sua frente que, dentre todos os toques do celular, havia escolhido exatamente aquele.
— Sério - disse. — O que você tem na cabeça para colocar esse inferno para tocar?
O homem deu de ombros - da forma mais natural possível para quem estava amarrado às barras da cabeceira da cama em uma posição facilmente enganável e confundível como postura sexual. Afinal, fora com esse pensamento que ele se permitira terminar daquele jeito.
— É irritante o suficiente para me obrigar a atender a ligação ou desligar o despertador - ele explicou, dotado de toda a calma do universo. — Deixa que eu atendo, daí ele para de te irritar.
Ela riu abertamente, aproximando-se dele apenas para passar os dedos pelos cachos irrequietos que caíam sobre seus olhos.
— Que bonitinho você pensar que eu sou tão ingênua assim.
— Pode pelo menos ver quem é? - Ele pediu. — Se for a minha namorada, ela vai ficar preocupada e depois surtar porque ela é ciumenta para caralho e toda hora fica me acusando de ser infiel.
— E você realmente não acha que ela tenha motivos para isso? Jura? Você me trouxe aqui para rezarmos um terço, né?
Ele bufou, sabendo que não tinha desculpa alguma para isso. Só estava mantendo o hábito fácil de culpar uma mulher e chamá-la de louca ou histérica em vez de ter o mínimo de dignidade e decência de admitir a própria falta de caráter.
Ela puxou o telefone celular, reconhecendo o número no visor com um sorriso de canto. Virou a tela para ele.
— Eu não sei quem é.
— Mas eu sei - ela retrucou. — É a polícia. Eles mantêm essa linha de número convencional, mas nunca trocam essa porcaria de sequência. Eles subestimam a inteligência dos outros; acham que ninguém nunca vai perceber.
— Então eles sabem onde eu estou - ele disse, rindo. — Eu sabia que iriam dar falta de mim.
— Não, eles não sabem - ela o corrigiu. — Provavelmente alguém me viu saindo do bar com você, pensou ter me reconhecido e acionou a polícia, que não faz ideia de onde você está porque você é um infiel desgraçado que me trouxe para o último lugar do universo em que descobririam suas traições. Eles estão esperando que um de nós atenda esse telefone para começarem a triangular o espaço e rastrear a ligação.
— Pelo jeito não é a primeira vez que acontece.
Ela ajeitou a peruca, garantindo que ela estivesse bem colado ao couro cabeludo.
— São anos de experiência - contou. — Dá tempo para ver de tudo.
E ela poderia deixar para lá e seguir a sua noite como se nada tivesse acontecido. Seria mais fácil e mais seguro. Mas definitivamente não seria mais divertido e não lhe daria a sensação viciante da adrenalina pulsando em suas veias com a expectativa de aproximação do fim da linha.
Ela pegou as notas de cem dólares da carteira dele, o relógio de ouro, o bolo de dinheiro que havia encontrado na gaveta de cuecas como “reserva emergencial” e a chave do carro que os levara até ali.
— Eu também vou precisar disso - ela avisou, balançando o celular no ar antes de colocá-lo na bolsa. — Até mais! Espero que a sua namorada te largue de uma vez por todas.
— Pelo menos me solta! - Ele berrou, aplicando toda a sua força contra os nós das cordas e conseguindo pouco mais do que escoriações e rastros de sangue pisado pela pele dos braços.
Ela arrumou a altura e a distância do banco do carro para seu próprio tamanho e regulou os retrovisores com toda a paciência do mundo enquanto os gritos dele ecoavam pelas árvores que se espalhavam a um raio de vários quilômetros pelo pequeno bosque ao redor do refúgio da família onde ninguém ouviria suas súplicas por socorro.
No meio do caminho, o maldito som voltou a preencher sua cabeça. Dessa vez, com o celular conectado ao bluetooth do carro, ela pressionou no volante o botão que atenderia a ligação. Com um sorriso já satisfeito no rosto e uma voz doce ela soltou em tom de pergunta?
— Alô?
— Alô. Quem fala?
— Acho que sou eu quem deve fazer essa pergunta, já que foi você que ligou.
— A senhorita está usando o telefone privado do senhor McIntosh, então acho que tenho o direito de perguntar com quem estou falando.
Ela sorriu, apreciando silenciosamente como o sotaque de quem havia saído há pouco da Inglaterra se misturava bem no timbre de voz dele. Tinha que admitir que gostava mais daqueles que não facilitavam o seu jogo.
— Eu não sei quem é esse. Nunca ouvi esse sobrenome antes.
— E você está com o celular dele por quê?
Ela estacionou o carro entre as árvores, pegando o celular para abrir um link que já havia se tornado um velho conhecido dela, graças à expertise de seus contatos, que a tinham ajudado a se preparar para momentos como esse. Só precisava mantê-lo falando mais um pouco enquanto realizava sua pesquisa - o que não seria difícil, já que sabia que, do outro lado, ele tinha a mesma intenção de segurá-la na linha.
— Senhor, como eu disse, eu não conheço esse homem. Não faço ideia do que está acontecendo. Esse celular é meu. E há anos porque eu estou totalmente sem condições de comprar outro no momento.
Ela sorriu para si mesma, comemorando o feito ao ampliar a imagem na tela. Tinha certeza de que seu chute era certeiro. Era ele. Ela já podia vê-lo enquanto falava. Voltou a dirigir, dessa vez sem se preocupar com a velocidade do carro ou com as curvas bruscas e fechadas demais que desenhava repentinamente, capazes de deixar uma bússola tonta.
— Se a senhorita não vai facilitar, talvez precisemos ir direto ao ponto. As denúncias que recebemos a identificam como Ivy. É esse o seu nome?
Ela riu, virando o volante por completo mais uma vez.
— Pode me chamar do que quiser. Se tiver gostado de Ivy, podemos seguir assim.
— É assim que você se apresenta para as suas vítimas? Não acha meio tosco usar o nome de uma criminosa dos quadrinhos enquanto faz seu trabalho sujo?
— Não acha meio hipócrita dizer isso para mim, detetive ? Quem é a inspiração? Dick Grayson ou Jason Todd? Deveríamos começar a chamar nossa querida cidade de Gotham?
O silêncio que veio a seguir foi reconfortante como a vitória não explicitamente declarada. Ela sabia que tinha acertado em cheio e, melhor ainda, que ele não fazia a mínima ideia de como.
— Já cansou de falar comigo? Que pena, eu estava me divertindo.
— Como você sabe quem eu sou?
— Eu talvez conheça alguém que tem acesso aos registros de todo mundo que trabalha no departamento de polícia da cidade. E talvez eu seja muito boa em associar vozes e faces. Tinha que ser você.
Uma risada leve ecoou do outro lado, soando melodiosa demais para seu próprio bem. Ele não tinha ideia do que aquele simples afago reverberando em seus poros dilatados poderia fazer.
— Quer roubar o meu emprego?
— Não - ela respondeu. — Jamais tiraria isso de você. Tenho certeza de que a paixão da sua vida é ficar triangulando e rastreando ligações.
Antes que ele pudesse retrucar, ela encerrou a chamada, arremessando o celular contra uma das árvores do caminho. Sabendo que eles não desistiriam fácil assim, abandonou o carro do lado oposto do bosque e seguiu a pé por apenas algumas ruas antes de encontrar um táxi e sumir da noite de .
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Seu Sex on The Beach tinha pêssego demais. E essa era a opinião de quem adorava pêssego e se sentia na obrigação de oferecer-lhe um lugar confortável em meio às suas frutas favoritas.
Mas aquilo não. Era doce demais. O cheiro confundia suas narinas com aqueles tons mesclados e artificiais de um adocicado exagerado. Não era agradável. Era ridículo que um bar incapaz de fazer uma bebida simples direito pudesse realmente ser o favorito de alguém.
Se ela não confiasse plenamente em seu próprio trabalho e não tivesse a certeza do quanto era boa nele, teria se permitido alguns segundos de dúvida e insegurança. Talvez não fosse ali. Talvez não fosse ele. Mas se questionar era algo que ela havia desaprendido a fazer há muito tempo.
Virou mais um longo gole, tentando não fazer uma careta com o arrepio que tanto açúcar lhe causava. Pelo horário que tinha chegado e o tempo que seu corpo já assimilava quanto à presença naquele lugar de qualidade duvidosa, ela assumia que já deveriam ser quase oito e meia da noite. Ele deveria estar a, aproximadamente, três quadras dali, parado em um dos semáforos mais irritantemente longos da cidade. Ele parecia fazer o tipo que teria as janelas completamente fechadas, confinando dentro do automóvel o som de The Who ou Journey. Talvez até a trilha sonora de algum musical.
Ela riu sozinha, imaginando-o fazendo devotos discursos sobre a magnificência de Hamilton e Lin-Manuel Miranda. Também o esperava com o mesmo ardor falando sobre causas sociais e os Jets. Os Knicks, pelo menos, ela sabia que ele já havia superado. Era difícil esperar por um playoff que provavelmente não viria.
— O de sempre? - A voz grossa do bartender com bíceps mais largos que a sua cabeça a fez desviar a sua atenção de volta para o mundo real. Precisou de dois segundos para perceber que, obviamente, ele não poderia estar falando com ela.
Foi quando o viu.
Aproximando-se com passos leves de um jeito estranho, quase como se tivesse tropeçado em nuvens pelo caminho, ele retirou a jaqueta preta, apoiando-a no banco ao lado do que acabara de ocupar. Estendeu a mão ao grandalhão, cumprimentando-o calorosamente. Era exatamente o que ela esperava de alguém que passava por lá religiosamente toda semana. Ainda mais quando essa pessoa parecia silenciosamente adepta ao movimento que buscava provar que alguns seres humanos deveriam ser golden retrievers, mas tinham nascido na espécie de mamíferos errada.
— Obrigado, mestre - ele agradeceu, arrancando uma risada exagerada do homem. Ela precisou encarar mais um gole de sua bebida para evitar a risada indiscreta de quem não poderia ousar dizer que não esperava exatamente por aquilo.
O copo alto e largo preenchido de cerveja escura foi logo colocado à sua frente e ele, é claro, agradeceu mais uma vez.
— Como vão as coisas na delegacia? - O homem atrás do bar prosseguiu com o papo.
Ela sentiu uma agulhada na base da lombar, fazendo-a se endireitar sobre o próprio cóccix. Não tinha esperado que fosse receber informações de bandeja tão facilmente.
— Caóticas - o rapaz respondeu. — Nova York adora te pregar peças em cada esquina.
— E a história da garota que andou roubando aquele bando de playboys?
Era assim que ela tinha ficado conhecida, então? Interessante. Apesar de “garota” provavelmente não ser o termo que ela escolheria.
A linguagem corporal do detetive mudou sutilmente e ela sabia que o tom de voz que viria a seguir seria bem mais baixo, em confidência. Puxou o seu celular e começou a deslizar o dedo pela tela principal do facebook em uma conta falsa que mantinha apenas para momentos como aquele - em que precisava fingir estar distraída com outras coisas para poder prestar mais atenção sem ser percebida como suspeita.
— Aquelas fotos que te falei? Encheram todo mundo de esperanças, mas estão horríveis. Ela é só um borrão. Impossível fazer qualquer reconhecimento com elas. Mas temos algumas pessoas preparadas para criar pequenos alarmes em cada movimento suspeito nos lugares mais comuns das denúncias que as vítimas fazem depois.
Então ela teria que ser mais criativa. Bom, não era muito difícil. Já estava ficando bastante entediada mesmo. Uma mudança lhe faria bem. Mantinha a faísca do jogo acesa.
— Eu até simpatizo com ela, sabia? - O barman comentou. — Eu conheço alguns desses caras e eles são completamente babacas. Sempre trataram todo mundo por aqui como merda só porque se acham superiores por terem sempre os bolsos cheios. Eles merecem se foder um pouco.
riu alto, balançando a cabeça.
— Acho melhor eu não opinar sobre isso. Preciso ser coerente com o meu papel.
A mulher mordiscou a mucosa interna da bochecha direita, evitando o sorriso que queria se formar. De alguma forma, mesmo que para um número incrivelmente reduzido de pessoas, tinha praticamente assumido a figura de um tipo de anti-herói. E o grandalhão estava certo, afinal. Tudo aquilo tinha começado exatamente porque ela também achava que algumas pessoas mereciam mesmo se foder. E, pelas poucas horas em que tinha convivido com várias delas, tinha cada vez mais certeza de que mereciam mesmo.
Ela ergueu dois dedos, acenando para o barman.
— Quer mais alguma coisa?
— Pode me trazer uma dose da sua melhor tequila - falou. — E traz uma para o meu amigo também. Ele parece estar precisando de algo mais forte que cerveja.
O grandão riu, buscando os dois copos de shot e os preenchendo com o líquido transparente prestes a incendiar suas gargantas.
O rapaz parecia ter travado no próprio lugar com um sorriso de completo choque estampado no rosto.
— Eu concordo com ela - o atendente comentou. — E agora é desfeita não beber.
A mulher ergueu o copo, com um sorriso de canto e um arquear de sobrancelhas, oferecendo um brinde silencioso antes de virar toda a tequila garganta abaixo. De repente, ele decidiu chutar o resto de senso que tinha pela janela e aproveitar a enrascada em que tinha sido tão gentilmente colocado. Ela finalmente se permitiu rir abertamente ao vê-lo sacudindo a cabeça, fazendo uma careta que escancarava aos quatro ventos que ele não estava acostumado com aquele teor alcoólico.
— Bom, acho que devo te agradecer pela bebida.
— Melhor não. Talvez você mude de ideia sobre isso mais tarde.
Ele gargalhou, movendo o copo vazio entre os dedos, avaliando as últimas evidências daquele que poderia ter sido seu maior delito.
— Isso ainda vai bater com força, né? Não que essa tenha sido a minha melhor escolha de palavras.
Ela riu de novo, sem saber se ria dele, de sua risada ou se só queria rir junto com ele porque era divertido e tinha uma sensação desconhecida no meio. Algo que não parecia falso e programado, como se estivesse apenas seguindo o roteiro recém-recebido dos bastidores da própria vida. Se aquele papo furado de que rir era o melhor remédio fosse real, talvez ela devesse mesmo saborear cada segundo de sua cura.
— Provavelmente - admitiu. — Mas dá para ver no seu rosto como você está precisando desesperadamente desestressar um pouco.
— Uau. Acho que essa foi a forma mais charmosa que alguém já usou para me chamar de feio.
— Eu não disse isso! Não foi o que eu quis dizer!
— Não, não, foi ótimo, de verdade. Nem doeu tanto assim. Achei sutil, foi uma jogada inteligente.
Ela revirou os olhos largamente, arrancando mais risadas dele.
— Mas eu preciso mesmo - falou. — Você sabe, desestressar um pouco.
Com um sinal rápido, outras duas doses foram colocadas em frente a eles. O rapaz a olhou mais uma vez, o choque menor, mas ainda presente, misturado com a graça que o momento parecia ter adquirido.
— Um brinde a isso - ela declarou e os dois viraram suas bebidas mais uma vez.
Ele sentiu os olhos lacrimejarem levemente, precisando levar as pontas dos indicadores aos focos por onde a água minava como se uma nova nascente tivesse sido espetada e agora fizesse questão de brotar na superfície.
— - ele se apresentou, estendendo a mão à mulher que tinha se enfiado à força em sua vida ao se tornar a primeira pessoa que havia conseguido, de fato, alcançar o caminho para embebedá-lo.
— - ela respondeu, devolvendo o aperto. A mão dele era firme, mas macia e ela se perguntou qual era a sensação de senti-la em sua nuca.
De repente, ele estreitou os olhos de leve e ela pôde sentir a própria frequência cardíaca elevando ligeiramente de forma instintiva.
— A gente já se conhece de algum lugar?
Ela fingiu que estava realmente parando para pensar naquilo, como se estivesse dando o seu melhor e fazendo todo o esforço do mundo para recuperar as lembranças que, infelizmente - uma lástima -, não tinha.
— Eu acho que não - disse, com a voz carregada de um certo pesar. — Mas eu já vim aqui uma vez com uma amiga. Já tem um tempinho, mas talvez seja isso?
Ele aquiesceu vagarosamente.
— É, pode ser. Eu venho aqui há bastante tempo - contou, como se estivesse compartilhando uma de suas maiores confidências. — Talvez seja isso mesmo.
— Se for o caso, você realmente se superou. Isso nunca acontece. Acho que eu tenho um rosto bem esquecível.
Talvez fosse o álcool que havia encontrado o interruptor da parte do seu cérebro em que, agora, dormiam juntos tranquilamente seu bom senso e o filtro que deveria ter antes de simplesmente fazer e falar a primeira coisa que vinha na cabeça. Talvez ele realmente só estivesse cansado de sempre ter de fazer tudo tão minimamente calculado. Talvez fosse só a forma com que, a cada longo segundo em que ele se demorava, indiscretamente observando cada mísero detalhe no rosto dela, as coisas pareciam fazer sentido. Mesmo que ele não fizesse ideia do que era.
Ele poderia ter feito uma lista extensa e cansativa, mas não. Aquele não era o que ia para um bar numa sexta-feira à noite depois de uma das semanas mais atribuladas de sua vida e, de repente, tinha uma mulher linda parecendo demonstrar flocos de interesse como se a neve tivesse acabado de chegar na cidade. Este tinha decidido ir direto ao ponto:
— Com certeza não existe absolutamente nada de esquecível sobre você, .
O jeito que cada uma daquelas palavras lhe atingiu como balas perfurantes no peito era uma sensação completamente nova. Para quem havia se acostumado a fugir por tanto tempo, escondendo-se atrás de feições que não eram suas, ouvir aquilo tinha significado mais do que ela gostaria de admitir. Mesmo que viesse de um cara que a conhecia há dez minutos e duas doses de tequila. Ao menos pelas contas dele.
— Eu deveria propor outro brinde a isso? - Ela perguntou, com os olhos e os lábios apertados em uma expressão brincalhona.
— Não - ele respondeu rápido demais, rindo de si mesmo. — Pelo amor de Deus, meu fígado não aguenta tudo isso. Eu preciso de um tempo.
— Tudo bem. Acho que eu posso te dar um descanso.
— Sem descanso - ele disse, limpando a boca. — Não preciso de um descanso, só de alguma coisa que não seja capaz de ser usada para limpar essa mesa no fim do dia.
Ele ergueu a mão para chamar o amigo que conversava com alguém do outro lado do salão.
— Se você pedir uma coca-cola, vou ser obrigada a anular seu atestado de coerência.
— Não acredito que é isso que você pensa de mim - ele reclamou, como se estivesse ofendido, de fato. — Uma água com gás, por favor. E uma porção de batatas fritas. O estômago vazio não deve ajudar.
— É para já.
— Ah, uma porção grande, por favor - ele reforçou antes de perder o colega de vista. — Nós dois vamos dividir. Quer dizer, isso se você também não tiver alguma coisa contra as coitadas das batatas.
Ela o fuzilou, arrancando mais uma das risadas dele que a aqueciam dos pés à cabeça em instantes. Se fosse fácil assim, ela faria questão de obrigá-lo a rir durante a noite toda.
não precisou pedir uma água para si; aparentemente o barman também tinha achado que era uma boa ideia hidratá-los com qualquer coisa que não tivesse álcool o mais rápido possível e duplicou o pedido. Droga, ela nem gostava de água com gás, mas por ele ela aceitaria. Era uma forcinha que ela poderia fazer.
Virou um pouco do conteúdo no copo americano que lhe havia sido entregue, logo vendo as bolhas da bebida gaseificada subindo fervorosamente para explodir na superfície. Uma vida curta e trágica, literalmente correndo em direção ao seu próprio fim. Ela não precisava nem dar o primeiro gole para já ter certeza de que ainda tinha o suficiente delas para fazer cócegas na parte interna do seu nariz. E ela teria que usar todas as suas forças para não reagir de uma forma estranha e vergonhosa a isso.
Quando a porção chegou, rapidamente se preparou com alguns guardanapos, esperando pelos dedos engordurados e pela pequena felicidade dos grãos de sal presos aos lábios de uma forma quase infantil.
Era estranho o apego silencioso que mantinha por coisas pequenas como a memória afetiva de se sentar para comer batatas fritas e jogar conversa fora. Às vezes, pensava que o abandono precoce e as dificuldades e percalços colocados em seu caminho a tinham tirado tanto que sobrava tempo para apreciar os momentos mais banais. Era uma bênção e uma maldição. Na maior parte do tempo, sentia-se mais na última.
— O que anda te deixando tão estressado? - Ela perguntou, mesmo sabendo a resposta, apenas para cumprir o pretexto de puxar qualquer assunto e reforçar a ideia de que ela estava entretida demais com publicações vazias de pessoas que ela - literalmente - sequer conhecia para prestar atenção em seus possíveis segredos de trabalho que ela tinha quase certeza de que não deveriam estar sendo compartilhados em um bar.
Ele deu de ombros, enquanto levava uma batata à boca. Ela percebeu seu olhar preso em cada frame de seus movimentos, estranhamente cativada por sua simples existência, fazendo o que qualquer outra pessoa normal faria. Talvez fosse exatamente a sua normalidade que chamasse tanto a sua atenção, prendendo-a sob suas forças eletromagnéticas.
— Eu trabalho como detetive na NYPD - ele contou. — Raramente é um trabalho que venha desacompanhado de estresse.
Ela lhe ofereceu uma pequena risada contida, equilibrando-se sobre a corda bamba que dividia o caminho entre a simpatia controlada e um quê de flerte distante sem torná-la inacessível.
— Pensei que os problemas de vocês fossem só uns batedores de carteira de praça e vários atentados ao pudor de certos “performers”.
Ele gargalhou, balançando a cabeça.
— Essa é uma boa parte do trabalho - admitiu. — Mas fica mais sob responsabilidade dos policiais e outros oficiais. Geralmente, eles guardam as coisas piores para nós.
— Os cérebros da delegacia - ela brincou.
— Algo do tipo - ele concordou. — Mas e você? Com o que trabalha?
— Eu trabalho com administração. Principalmente na parte financeira, sabe? Eu lido com o dinheiro das pessoas.
— Parece divertido.
Ela fez uma pequena careta, apertando o nariz.
— Às vezes sim. Acho que você tem que aprender a fazer com que seja divertido.
— E você aprendeu?
pensou em seus últimos pequenos crimes. Pensou em como nunca deixava de ser satisfatório ver o olhar de ódio de um homem por se ver sendo enganado e controlado, sem poder fazer nada para impedir. A fúria que corria por suas pupilas dilatadas ao se perceberem à mercê nas mãos de uma mulher era um sentimento aconchegante que ela colocava para repousar ao seu lado no travesseiro todas as noites.
Mas, mais do que isso, a parte mais excitante dos trabalhos dos últimos tempos contava com seu protagonista essencial. não fazia ideia de como a adrenalina parecia pulsar com o dobro de voracidade em suas veias apenas para cumprir a representação fidedigna da expectativa de ter que lidar com ele novamente naquela caçada. Mesmo que ela soubesse que estava vencendo o jogo por já conhecer cada uma de suas fases e truques.
— É, acho que aprendi, sim - ela respondeu, dando um pequeno gole na borbulhante água.
— Acho que é mais ou menos assim quando você trabalha com investigações também - ele contou. — Quer dizer, existe algo de instigante e quase provocante em se colocar à prova a todo momento tentando desvendar situações. É quase como montar um quebra-cabeça enorme sendo que espalharam as peças pelo bairro todo. Mas pelo menos deixaram pistas no caminho.
“O ponto é: existem vidas envolvidas nisso e a pressão e os prazos. Tentamos ser rápidos e objetivos, mas se ficarmos muito presos a essa ideia, não só o trabalho sai mal feito, como viramos estatística de burnout em duas semanas.”
Ela aquiesceu.
— Tudo é sempre uma questão de equilíbrio, né? Pena que essa é literalmente a coisa mais difícil da vida.
— Nem me fala - ele concordou, rindo. — Imagino que você também deva sofrer. Se as pessoas já não sabem esperar ou respeitar quem trabalha para elas, imagina quando isso envolve diretamente dinheiro.
— O bolso é sempre a parte do corpo que mais dói. Mas é exatamente isso que me move a continuar com o meu trabalho.
Ele moveu a cabeça com veemência, como se estivesse encantado em poder concordar completamente com isso. Pena que ele não sabia da missa a metade. De boas intenções o inferno estava cheio, e todas as suas eram bastante pecaminosas conforme os preceitos bíblicos.
Ela precisava fazer o assunto voltar a ser sobre ele antes que seu instinto investigativo começasse a perceber as pequenas mensagens subliminares propositalmente colocadas nas entrelinhas para que sua história fosse uma verdade maquiada e não apenas uma mentira deslavada.
— De onde surgiu essa vontade de ser detetive, trabalhar para a polícia e tudo mais?
— Não sei. Não tem, tipo, um momento exato, sabe? Não tem uma inspiração familiar, um trauma ou um encanto de infância. Eu só achei que pudesse ser legal poder ajudar as pessoas e ter a oportunidade de trabalhar com investigações. Quer saber, acho que eu sei o que foi, sim. Eu pensei que eu fosse ser o Sherlock Holmes e trabalhar na Scotland Yard.
— Bom, isso explica um pouco o sotaque.
Ele riu alto, levando a mão ao peito em um gesto teatralizado de ofensa. Ela tinha certeza de que encontraria gestos como aquele nos musicais que assumia que ele deveria amar.
— Eu nem tenho sotaque!
— E eu não tenho alongamento de cílios.
— Eu nem percebi que você tinha.
— Porque algumas coisas são mais fáceis de esconder do que outras - ela disse, com uma piscadela. — E esse ar de gentleman britânico não é uma delas.
Ele riu alto, sendo obrigado a concordar.
— Pelo menos, gentleman britânico soa melhor que lorde inglês.
— Será mesmo?
estendeu o indicador para ela de forma acusatória, com os cílios longos - mesmo sem alongamento, porque o universo era uma grande merda injusta - se aproximando sobre os olhos semicerrados.
— Você está tentando entrar na minha cabeça. Não vou deixar você fazer isso. Eu sou um perfeito cidadão novaiorquino vivendo o sonho americano. Você não vai tirar isso de mim.
teve que rir da enxurrada de palavras que lhe acertaram em um só fluxo de consciência. Tinha algo de adorável na espontaneidade dele, que fazia seu peito palpitar só um pouquinho, como se o coração tivesse acabado de passar por uma arritmia transitória. Era uma pena que isso às vezes matasse. Literalmente.
— Tudo bem, senhor “I love NY” . Não vou destruir sua autoafirmação patriótica enviada diretamente do outro lado do Oceano Atlântico.
Ele levou o dorso da mão à boca, tentando, sem sucesso, esconder o ligeiro engasgo.
— Do que você está rindo agora?
— Eu comprei essa camisa na minha primeira semana aqui.
— Puta merda. Não posso dizer que eu não esperava, mas você se tornou um caso perdido cedo demais. Uma semana…
— Eu ainda estava vivendo como um turista, tirando foto de cada esquina e me perguntando como conseguir ingressos mais baratos para a Broadway. Juro que não demorei muito para voltar a me comportar como uma pessoa normal.
— Não sei se posso confiar nisso. Você não faz muito o tipo normal nem agora.
— Que absurdo! De onde você tirou isso?
Ela arqueou as sobrancelhas, deixando suas íris levemente nubladas pesarem sobre os olhos dele.
— Você está mesmo me fazendo essa pergunta? É mesmo necessário?
— Isso tudo por causa de uma camisa?
— Eu sei lá. Você é da polícia, claramente precisa ser pelo menos um pouco perturbado para isso, Sherlock.
A risada dele ficou mais alta de repente e ele se mostrou cada vez mais empenhado em provar que era o símbolo da normalidade, enquanto, meio que de propósito, soltava bolas fora apenas para engajá-la mais naquele pequeno jogo de interesses escondidos em que tinham se colocado.
Com base central naquele mesmo assunto, eles já deviam ter pulado para pelo menos cinco diferentes, arborizando em uma sequência que ao menos mantinha um pingo de coerência.
não fazia ideia de quando tinha sido a última vez em que se divertira tanto, ainda mais com tão pouco esforço. Poderia depositar toda a sua força e foco nisso e ainda não conseguiria se lembrar. Talvez o motivo fosse mais sua busca sem respostas e menos alguma falha em sua memória.
— Eu juro! - prosseguiu, rindo em meio às lembranças da própria história. — Quando meu irmão veio aqui, nós ficamos em um hotel, primeiro porque ele queria conhecer os lugares e segundo porque eu não estava nem um pouco disposto a insistir que ele ficasse no meu apartamento.
— Menos faxina para você - ela foi obrigada a concordar. — Acho justíssimo.
— Foi exatamente o que eu pensei. E tinha café da manhã incluso.
— E não tem absolutamente nada a ver com o que vocês comem na Inglaterra - ela chutou.
Ele balançou a cabeça, gargalhando.
— Algumas coisas dá para aceitar, sabe? As salsichas, o bacon, as batatas… Mas ele teve que parar para perguntar onde ele conseguia um pudim preto.
Foi inevitável a careta de confusão e um misto antecipado de quase ojeriza na face de .
— Eu tenho até medo de perguntar o que raios é um pudim preto.
— É uma salsicha de sangue de porco com aveia, cevada e essas coisas.
— Puta que o pariu. - Sua voz saiu mais esganiçada do que ela pretendia. — Por que vocês não podem comer coisas normais? Um simples pudim de chocolate não era bom o suficiente para vocês? É isso?
— Em minha defesa, eu sou uma pessoa muito mais feliz sem pudim preto - ele disse, colocando as mãos ao alto em sinal de rendição. — Mas, nossa, foi um momento de vergonha alheia tão grande. Ainda mais quando ele teve que explicar do que estava falando.
— Talvez fosse só um plano maquiavélico para esvaziar o restaurante e poder comer sozinho. Você que não entendeu.
— Bem que eu queria.
Várias pessoas já haviam saído, várias outras haviam entrado pela porta barulhenta que implorava por um pouquinho de óleo. Ela poderia facilmente estimá-las se não estivesse com toda a sua atenção voltada para o maior momento de hiperfoco de sua vida. Alguma coisa havia se quebrado em seu pequeno paraíso sombrio e o caos era simplesmente lindo em seu melhor estado de destruição.
— Nós precisamos fechar, suas faladeiras - o barman avisou, após mais duas horas. se assustou ao ver o horário em seu relógio de pulso, adornado por prata cromada e uma tira de couro marrom que ela achava um pouco texana demais para o estilo que lhe caía bem.
— Meu Deus, eu perdi completamente a noção do horário - ele contou, rindo em seguida. — Você conseguiu mesmo entrar na minha cabeça no fim das contas.
deu de ombros, com um sorriso de canto.
— Sinto muito, eu não consigo evitar.
O cambaleio na passada de cada um dos quatro pés que se dirigiam para fora só não era maior porque tinham passado tempo o suficiente ali para que a corrente sanguínea se acostumasse a lidar com a quantidade de álcool correndo por ela.
Expostos à brisa cada vez menos branda da madrugada, eles apertaram os braços em torno dos próprios corpos, rindo um para o outro pela visão duplicada de seus próprios movimentos.
— Sabe de uma coisa, ? Você tinha razão. Eu precisava mesmo me desestressar. E eu me diverti muito com você essa noite.
— Fico feliz por ser útil - ela disse, puxando a costura inferior do sobretudo como se estivesse prestando uma reverência em agradecimento. — E mais feliz de poder dizer, honestamente, que a recíproca é verdadeira.
A curva da elevação dos cantos dos lábios dele deveria ser a sua imagem favorita em toda a vida. Era impossível não sorrir de volta.
Em uma linguagem silenciosa trocada apenas entre olhares, ele tinha uma pergunta a fazer e ela soube exatamente que resposta dar. Em poucos segundos, ele assimilou a nova informação, transformando-a em estímulo para fazer o que havia desejado várias vezes durante a noite.
E não era quatro de julho, ano novo ou qualquer outra data festiva, mas os fogos de artifício que carregavam dentro de si como um barril de pólvora estouraram com mais força do que já tinham percebido alguma vez na vida.
Seus lábios se encontraram como se fossem argila fresca, moldando-se aos do outro a fim de ocupar o lugar que, de repente, parecia ter sempre sido seu. A mão de em sua nuca tinha acabado se revelando como um gesto de consequências mais intensas do que ela poderia prever. Não seria surpresa alguma se sua pele tivesse derretido em meio aos seus dedos, decidida a eles pertencer.
A separação por fôlego era uma lástima, um absurdo, uma calamidade do mais alto porte. Ela não queria respirar. Não precisava disso, quando o calor do corpo dele tão perto do seu era a única coisa lhe mantendo viva.
— Posso anotar seu número? Talvez a gente possa fazer isso de novo - ele disse, com um sorriso que se tornara quase tímido. — Ou outras coisas. Só queria te ver mais uma vez.
O canto esquerdo da boca dela foi calmamente repuxado para cima.
— Estarei aqui semana que vem, - declarou, desviando do pedido. — Nessa mesma bat-hora, nesse mesmo bat-canal.
E quando o primeiro táxi amarelo a levou para longe dele, precisou recuperar o fôlego que ela tinha roubado. Junto de qualquer resquício de sua sanidade.
🚨🕵️💵
levou outra colher generosa do ‘New York Fudge Chunk’ que tinha encontrado no congelador. Jogou os dois pés para cima da cama, pouco se importando com as solas gastas do coturno sobre o lençol branco que não era seu.
— Acabou de voltar da lavanderia - o homem murmurou, com a voz já completamente arrastada.
— Pobrezinho, não tem dinheiro para pagar outra lavagem - ela lamentou, antes de continuar com o seu sorvete. — E vê se fala menos. Sua voz é muito chata.
Com a mão livre, ela usou os dados do cartão de crédito ilimitado dele para fazer três depósitos diferentes, usando três destinatários com nomes de lojas de fachada usadas apenas para lavagem de dinheiro. Escolheu valores com centavos quebrados para dar um tom mais realista e porque gostava disso. Era quase como o prazer de colocar o celular para despertar às seis e vinte e dois só pela satisfação de se sentir indo em direção contrária ao resto das pessoas.
Ao terminar as transferências, devolveu o cartão à carteira que repousava sobre a cabeceira e foi então que percebeu o erro de principiante que acabara de cometer. O celular que deveria estar também sobre a mobília tinha sido alcançado pelo corpo temporariamente drogado ao seu lado.
Aquilo não era de seu feitio. Nem mesmo em seus primeiros golpes, cheios de falhas e planos com lacunas mal executadas, tinha permitido que deslizes tão toscos passassem despercebidos. E aquela deveria ser, basicamente, a regra número um de qualquer livro manual para ladrões. Se é que isso existia.
O pior de tudo é que ela sabia perfeitamente o porquê. Havia se tornado mais aérea, um pouco mais desleixada. Seus pensamentos, antes tão precisos e minuciosa e friamente calculados, estavam enevoados, perdidos, escapando vez ou outra para correr por outros prados, em uma busca quase árcade e bucólica de uma realidade que jamais poderia ser a sua. E a culpa era toda dele.
Se conseguisse, por um segundo sequer, deletar ou ao menos silenciar as imagens de - graciosamente acompanhadas da risada que havia se tornado sua sinfonia favorita - de seu cérebro, poderia fazer um trabalho melhor. Mas não. Seus pensamentos repetitivos e obcecados a estavam tornando medíocre. O que quer que fosse aquele aperto acelerado no peito e aquele comichão que começava na boca do estômago e parecia não saber quando parar, estavam botando tudo a perder.
Pelo menos, a qualidade e a concentração do composto usado eram características pelas quais ela prezava com maestria e, nelas, jamais erraria. O playboy na cama poderia ter conseguido apertar botões suficientes para a discagem de emergência e ligar para a polícia, mas sua língua enrolada parecia grande o suficiente para não caber mais na boca sem oferecer um obstáculo à garganta e suas pregas vocais.
— Me dá essa merda - reclamou, tomando o celular repousado em sua mão aberta, completamente rendida à hipotonia de seus músculos.
E ela deveria ter só desligado. Só precisava de um mísero movimento da falange distal de seu indicador para acabar com aquela palhaçada. Mas ela o ouvia do outro lado. Ele. Logo a pessoa que conseguia desmontar sua racionalidade em questão de segundos. Ela não conseguiu silenciar as vozes em sua cabeça que imploravam para que ela interagisse, sucumbisse ao contato pelo qual tanto desejara a cada segundo de cada um dos últimos dias.
— Você de novo? - Perguntou, tentando usar a maior naturalidade em sua voz, combinada com apenas algumas singelas gotas de sarcasmo e falso desprezo. — Gotham está em perigo?
Ela podia jurar ter ouvido um pequeno bufo do outro lado, que mais parecia um sopro cansado. Uma parte de si quase queria entrar pelo telefone, colocá-lo no colo e brincar com seus cabelos até que ele esquecesse suas preocupações.
— Boa noite, qual a sua emergência?
Ela tinha certeza de que o tédio e o cansaço em sua voz eram tantos que quase se tornavam palpáveis, como se a unidade do ar tivesse atingido o limite total de saturação.
— Você foi rebaixado ou algo assim? O que leva um detetive a ser colocado para atender o telefone a essa hora? Não deveria ter alguém menos importante na hierarquia para fazer esse tipo de plantão?
— E você não tem nada melhor para fazer além de ficar passando trote para a polícia?
Ela riu, lambendo a parte côncava da colher, ainda cheia do sorvete de chocolate que já havia derretido em sua maior parte.
— Acredite, por mais que eu adore ouvir a sua voz, eu não tinha interesse algum em ter essa conversa hoje. Talvez seja melhor perguntar para o seu amigo porque ele te ligou.
— Por que você continua fazendo isso?
— Acho que eu não entendi a sua pergunta.
— Por que esses golpes? Para quê? Porque obviamente não é só uma simples questão de buscar dinheiro.
— O que você quer? Que eu te dê um motivo nobre para isso? Vai me denunciar para o Comitê de Ética?
— Eu só não acho que as coisas sejam tão maniqueístas, tão preto no branco como as pessoas gostam de fazer parecer. Não é você que adora falar de Batman? Deveria saber que todo vilão tem a sua história de origem.
Ela duvidava muito que um dia fosse conseguir se reconhecer como vilã, mas guardou aquele pensamento para si. Se ele queria uma história, então ele a teria:
— Alguns anos atrás, minha irmã abriu o próprio negócio com o trabalho suado e cada gota do talento e da dedicação que ela tinha. Nessa mesma época, ela casou com um babaca cujo mau caráter só ela não conseguia enxergar. Acontece que entre o negócio e o casamento, obviamente só um deles deu certo.
“E não me pergunte de legislação, jurisprudência ou sei lá o quê mais. Eu não entendo e nem nunca quis tentar entender. Tudo o que eu sei é que esse filho da puta deu um jeito de enrolar a minha irmã por muito tempo, até que, em determinado momento, tudo o que ela tinha foi passado para ele. E não existe justiça ágil ou certa o suficiente nesse mundo que recupere há tempo o estrago que ele deixou. Um maldito explorador e enganador tirou tudo dela. Todos os homens que eu encontrei nos últimos tempos têm sua própria parcela de culpa em explorações com outras pessoas, grupos e, especialmente, trabalhadores. Se eu não consegui fazer com que ele pagasse, pelo menos sei que estou fazendo com que seus semelhantes paguem.”
Ela respirou fundo, antes de continuar, sentindo o peso que era verbalizar tudo aquilo que tinha carregado sobre os ombros por tanto tempo.
— A justiça falhou com a pessoa mais importante da minha vida. Então, eu dei meu próprio jeito.
A respiração do outro lado da linha se tornou mais pesada. Ela sentia um saco de cinquenta quilos de cimento parecendo cair sobre os próprios pulmões, tornando sua respiração mais difícil. De repente, a simples perspectiva de aguentar mais um segundo sequer naquele silêncio cheio de tensão tinha se tornado completamente insuportável.
— Não vai falar nada? A minha história de origem não foi boa o suficiente para você?
— Eu sinto muito que você tenha passado por isso. E também sinto muito por ela. Sinto muito por esse sistema ridículo.
Ela soprou o ar pelo nariz, em uma risada triste.
— Você é parte dele.
A decepção em sua voz tinha o atingido como garras afiadas, perfurando sua própria consciência. Ele ainda levou algum tempo antes de dizer, em um novo tom de voz distante para o qual ela não havia se preparado:
— Certo, senhorita. A ligação foi um engano, então vou desligar para reabrirmos a linha para denúncias de verdade. Por favor, só ligue para esse número de novo se for uma situação de emergência. Boa noite.
E com o bipe repetitivo da ligação encerrada, ela engoliu em seco. Ele simplesmente tinha permitido que ela passasse ilesa por mais um dia. E ela não fazia ideia do porquê.
🚨🕵️💵
não tinha certeza se realmente queria descer daquele táxi. No momento, ela definitivamente estava mais inclinada a fechar a porta, pedir para o motorista dar meia volta e simplesmente pagar o dobro. Era melhor do que continuar ali parada, sentindo cada volta de seu estômago, lembrando-a de como absolutamente tudo parecia cada vez mais perfeitamente bem articulado para dar totalmente errado.
Mas essa não era ela. Ela não dava as costas para as adversidades. E ela não era a pessoa que deixava para trás assuntos inacabados. Tinha jurado a si mesmo que aquela seria a última noite antes de tomar um novo rumo e deixar para trás várias das coisas que tinham sido colocadas pelo caminho. Ela precisava de seu próprio desfecho.
Fez um exercício de respiração básico, cujas coordenadas tinha na cabeça por algum motivo, antes de entrar no bar. Seus olhos correram uma prova de cem metros rasos em tempo recorde até o banco que havia ocupado exatamente uma semana atrás.
Nessa mesmo bat-hora, nesse mesmo bat-canal.
E ela não era a única que havia decidido se ater àquilo. Ela reconheceria aqueles fios ligeiramente enrolados na base da nuca em qualquer lugar. Se evocasse sua memória sensorial, conseguia mesmo sentir a textura deles entre seus dedos.
— Acho que você está adiantado - ela falou, sentando-se ao seu lado e finalmente chamando sua atenção.
Distraiu-se tanto com o sorriso largo e iluminado que levou alguns segundos para perceber que suas mãos não estavam vazias.
— Eu não sabia se você tinha alguma flor preferida, então só peguei as mais bonitas que encontrei. Achei que combinavam contigo.
Ela sorriu, vendo a delicadeza das margaridas, com o tom de amarelo que tinha acabado de se tornar sua cor favorita no mundo.
— Então, essas meio que são as suas favoritas - ela brincou.
— Elas me lembram você, então sim.
Com um novo rubor nas bochechas, agradeceu, evitando o novo embaraço que viria se consumasse sua vontade de abraçar aquele buquê e não se soltar mais dele. Queria se agarrar a cada segundo daquelas lembranças enquanto podia. Talvez empacotar as melhores recordações e guardá-las por cima na mala antes de ir embora.
— Como foi a sua semana?
Ela parou para pensar por uns instantes, brincando com um guardanapo remanescente que provavelmente haviam esquecido de tirar da sua frente.
— Mais do mesmo - ela disse. — Acho que foi uma semana de reorganização.
— Entendi.
Ele não entendia. E era melhor que fosse assim. Ela não sabia se teria forças para fazer o que precisava fazer se colocasse mais aquela pedra em seu próprio percurso.
— Mas e a sua semana? Como vai a vida super animada e excitante do maior detetive de Nova York?
— Tem caras maiores do que eu - ele brincou. — Faltam alguns vários quilos para eu puxar na academia antes de assumir esse título.
o empurrou de leve.
— Você sabe do que eu estou falando, tonto.
Ele riu alto, apenas balançando a cabeça.
— Acho que é o peso que me cabe por ser muito bom no que eu faço. Mas, brincadeiras à parte, foi normal. Acho que também posso dizer que foi uma semana de reorganização.
— Ah, fez uma faxina no quarto? É importante.
— Acho que foi uma faxina aqui dentro - ele respondeu, encostando o indicador e o dedo médio na têmpora.
— Que profundo. E o que você encontrou de interessante dentro dessa cabecinha?
— Se quiser mesmo saber, vai ter que me pagar um jantar primeiro.
— Minha oferta se limita a uma porção de batatas fritas. Nada mais do que isso.
— Eu posso fazer uma contraproposta.
Ela estreitou os olhos, avaliando-o com atenção.
— E qual seria?
— Nós podemos ir para a minha casa e eu cozinho. Um jantar de verdade, não só batatas fritas.
E tinha se tornado uma bênção o fato de ela ainda não ter pedido nada para beber ou teria se prestado ao papel da cena mais clichê e vergonhosa da história, engasgando e cuspindo em público.
— Como é que é?
ergueu as mãos rapidamente em resposta, tentando se eximir da culpa por ter dado um passo maior do que a perna e pela possível indiscrição.
— Não foi isso o que eu quis dizer. Eu não sou um pervertido - garantiu, rindo de si mesmo por falar aquilo. — É só um jantar. Sem segundas intenções?
Ela aquiesceu, puxando a bolsa do balcão e se colocando de pé.
— Topo. Mas fale por você quando diz que não existem segundas intenções.
🕵️
O apartamento dele era um pouco maior do que ela esperava e muito menor do que aqueles em que ela costumava parar esporadicamente por volta desse horário. Tinha uma decoração minimalista em quantidade de informações, mas bastante aconchegante e acolhedora na escolha de tons quentes.
O conceito aberto, ao menos, era de orgulhar Drew, Jonathan e todos os aficcionados pelo seu programa. soltou o corpo sobre o sofá dele, sentindo o estofado firme e a textura macia da manta sobre ele colocada. Ela tinha quase certeza de que encontraria o cheiro dele perdido entre a trama se arriscasse aproximar seu nariz só um pouquinho mais.
foi direto para a cozinha, abrindo duas garrafas long neck de cerveja e lhe oferecendo uma, após um brinde rápido.
— Fica à vontade. Se quiser ligar a TV, o controle fica nessa caixinha em cima da mesa. Só não tem todos os canais liberados.
Ela sorriu com a confissão levemente envergonhada dele. Não precisava de nada daquilo.
— Não faz mal. Eu estou satisfeita observando você.
O homem deu uma voltinha de trezentos e sessenta graus no próprio lugar, flexionando os bíceps em poses exageradas como a de uma estátua grega em culto e adoração ao corpo. balançou a cabeça descrente. Droga, ela sentiria mais falta dele do que queria admitir. Como era possível ter se tornado tão dependente de alguém que não vira pessoalmente mais de duas vezes? Existia algo sobre ele. Algum resquício vicioso que a tinha colocado em adição imediata. Ainda era uma realidade agridoce de se digerir e ela preferia não remoer por tempo demais todas as implicações psicológicas de seu passado nesse processo. Não precisava fazer sua auto análise naquele momento.
— O que o chef vai cozinhar?
Ele forçou um pigarro leve, coçando a garganta antes de anunciar:
— Para o jantar de hoje teremos arroz à piamontese e filé mignon ao molho madeira.
— Isso é tão chique que eu não entendi metade das palavras que você acabou de dizer. Fala sério, para você ter tudo isso à mão é porque já tinha deixado tudo planejado.
— É claro que não.
— Eu duvido - ela insistiu. — O que você ia fazer com esse tanto de comida se eu recusasse o seu convite?
O som da cebola fritando no fio de óleo ao fundo da panela subiu imediatamente, embalado pelo cheiro que, em sua humilde opinião, deveria ter sido classificado em algum momento como um dos cinco melhores do mundo.
deu de ombros, enquanto trazia o escorredor de arroz para mais perto.
— Provavelmente comeria o equivalente a duas refeições. E já tinha deixado sorvete no congelador caso precisasse afogar as mágoas do pé na bunda mais doloroso da vida.
— Você é muito exagerado.
— Um homem não pode mais comer por dois?
— Estou falando do seu drama. Pior pé na bunda? Eu duvido que você sequer tenha tomado um na vida, quem dirá vários para começar a ranquear.
— Ah, não. Eu tomei muitos ao longo da minha adolescência. Eu era insistente demais e atraente de menos. E eu digo insistente do tipo que tinha esperanças de que a próxima fosse decidir me dizer sim e não um importunador sexual. Que fique claro.
— Obrigada por esclarecer. Fico mais tranquila - ela brincou. — Mas ainda não acredito nessa história de que você era pouco atraente. Se é confete que você está esperando, não vai receber.
— Eu posso te garantir que não é mentira. Se você aguentar até o fim da noite, quem sabe não deixo você dar uma espiada no meu álbum de infância?
— Isso vai incluir as fotos vergonhosas?
— , querida - ele chamou. — Absolutamente todas as fotos são vergonhosas.
Ela se colocou de pé tão rápido que sentiu automaticamente o efeito do álcool.
— Nesse caso, me diga o que eu posso fazer. Esse jantar precisa sair logo.
— Se você quer tanto ajudar, pode abrir a garrafa de vinho branco.
— Acho que eu vou voltar para o sofá. Não quero te atrapalhar.
riu alto, arremessando o pano de prato em direção ao rosto dela. Seu reflexo rápido foi chocante até para si mesma. Ela impediu a costura do tecido de acertá-la e de cair no chão.
— Não tinha me dito que era boa em esportes.
— Sim, fui campeã como receptora de pano de prato no ensino médio. É uma variação clássica do beisebol.
— Isso é definitivamente muito mais legal que a minha medalha de terceiro lugar no xadrez.
E enquanto ele terminava os preparos, decidiu que poderia contar aquela história. Não fazia mal se expor levemente ao ridículo por ter conquistado o pior lugar no pódio e, mesmo assim, só ter chegado a ele por vencer dois jogos por W.O. contra uma garota e um garoto que, na verdade, eram um casal e tinham conseguido uma bela intoxicação alimentar juntos na noite anterior, quando decidiram comemorar o aniversário de namoro em um restaurante de procedência bastante duvidosa na beira da estrada. Até que era uma história romântica. Na saúde e na doença; na vitória e na derrota.
Ele também admitiu que relia o manual de instruções simplificado antes de todos os jogos porque embaralhava as regras na cabeça e tinha certeza de que uma hora ou outra tentaria mover sua rainha em L. Sinceramente, ele ainda não se lembrava, anos depois, se ela poderia fazer isso.
o ajudou a arrumar a mesa enquanto ele falava sobre o fiasco do jogo que ele foi obrigado a jogar (e perder miseravelmente). Ela se preocupou em não rir, mais para não derrubar o resto do vinho branco do qual tinha se apossado e menos por pena da tragédia que era o passado atlético de .
Ele montou dois pratos bem servidos e dignos de competições de culinária. Talvez não para Gordon Ramsay, mas jurados normais e menos diabólicos provavelmente concordariam que era uma montagem bonita. E, definitivamente, atraente o suficiente para fazer o seu estômago roncar.
— Acho que essa é a comida mais incrível que eu já comi em toda a minha vida.
— Você só está dizendo isso para me agradar.
Ela negou com veemência.
— Eu não me daria ao trabalho se não fosse verdade. Acredita em mim, isso é simplesmente perfeito.
— Certo. Acho que eu posso aceitar um elogio.
— Sim, você vai sobreviver.
Durante o jantar, eles tinham contornado vários assuntos. achava bonito como as histórias de , de alguma forma, sempre conseguiam ser um pouquinho sobre o seu irmão. E ela invejava essa proximidade. Por segurança da irmã e da sobrinha, seus contatos tinham se pop tornado cada vez mais raros ao longo do tempo. E, droga, ela tinha perdido uma parte gigantesca do próprio coração ao deixá-la para trás, pelo seu próprio bem. Mas era por uma boa causa. Ela precisava se convencer disso ou a vida se tornaria simplesmente insuportável.
— Você não fala muito da sua irmã, né?
O pedaço da carne, por mais macio que fosse, desceu rasgando sua garganta, virando uma bola seca.
— A gente perdeu um pouco o contato. - Ela deu de ombros, fingindo que não doía. — Acho que é a vida adulta. Acontece.
— Ela mora longe?
Se a distância fosse literal assim, seria mais fácil.
— É, de certa forma, pode-se dizer que sim.
— Se um dia quiser falar sobre isso, eu vou estar bem aqui.
— Quem sabe - ela completou, dando o sorriso fraco de quem duvidava muito disso.
Continuaram conversando e comendo até que tivessem menos trabalho com a lavagem da louça, pois tinham decidido usar até as últimas gotas do molho. Alguns chamariam de gula; mas eles preferiam a ideia de que estavam salvando o planeta alguns pingos de água a menos por vez.
Enquanto secava os pratos, ela se viu perdida em meio aos seus próprios pensamentos. O relógio em regressiva na sua mente não parecia disposto a lhe dar trégua.
— No que você está pensando?
— Em como seria incrivelmente rude você não me oferecer aquele sorvete que contou que está no congelador.
A musculatura do rosto dele relaxou, transformando-se em um sorriso enquanto ele caminhava até o refrigerador para buscar o pote. Com duas colheres, ele se sentou ao lado dela no sofá.
— Arrependida de ter aceitado o convite?
— Só se você tiver se arrependido de me convidar.
— Nem um pouco.
— Então a resposta é não.
Ele deixou escapar uma risada leve, enquanto levava ao lixo o pote vazio e jogava as colheres usadas na pia. Elas poderiam esperar um pouco.
— Eu não faço ideia de como te dizer isso sem parecer um clichê idiota, mas você é uma pessoa muito especial - ele declarou, arriscando puxar a mão dela para tomá-la entre as suas.
Ela não recuou. Nem um maldito pelo sequer de seu corpo estava preparado para se esquivar dele.
— É clichê mesmo - ela concordou. — Mas até que é bonitinho quando sai da sua boca. Apesar de eu ter certeza de que você consegue fazer melhor uso dela.
Sem maiores avisos prévios, ela tinha rastejado até ele, livrando-se do pouco espaço que ainda os separava. Enquanto os seus lábios se encontravam com a urgência da espera e a ansiedade da expectativa, ela se encaixou sobre o seu colo.
estava em êxtase e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer. Havia muito a explorar e apenas duas mãos - que ele decidiu por encaminhar uma para a sua nuca e outra para uma de suas nádegas, apertando-a com força.
arqueou a coluna, buscando mais contato, mais entrega, mais de qualquer migalha que ele pudesse lhe oferecer. Mas ele não era um homem de fragmentos e, sim, de inteiros. E ele era inteiramente dela.
Quando ela sentiu a pressão dele contra seu baixo ventre, sua própria pulsação se acelerou. Talvez o coração fosse mesmo capaz de bater na garganta. Ou em outros lugares. Especialmente quando os seus quadris a impulsionavam ainda mais para frente e o tecido de sua roupa íntima era tão fino.
desgrudou suas bocas por um instante, recebendo um olhar desolado da mulher que tinha à sua frente.
— Essa é uma hora muito ruim para eu te apresentar o meu quarto?
não conseguiu segurar a gargalhada que se formou imediatamente. Mas não precisou de muito tempo para entrelaçar suas pernas ao quadril dele e se permitir ser levada.
🚨🕵️💵
Ela se mexeu mais uma vez contra o estofado fino.
Não era como se nunca tivesse passado por um aeroporto antes, mas definitivamente não se lembrava daquelas cadeiras serem tão desconfortáveis.
Talvez simplesmente fosse pior quando o desconforto vinha de dentro dela. Quando seu coração se recusava a deixar que ela se esquecesse, por um segundo sequer, de tudo que estava deixando para trás.
A irmã, a sobrinha, a vida como ela conhecia. E, agora, ele . Ele quem havia sido a sua primeira e mais próxima experiência do amor que se expandia do que era conhecido como fraterno e familiar. Ele quem a tinha feito sentir tudo o que escreviam nos livros: o bom e o ruim; o doce e o amargo. Ele que tinha conseguido cavar um buraco em seu peito mais rápido do que seria saudável deixar alguém fazer.
Mas era a sua melhor opção. Estar longe era melhor do que ser presa ali. Também era melhor do que viver com medo. E ela definitivamente não queria mais aquela vida. Não fazia mais parte dela. Tinha se descolado dela como um parasita pós tratamento. Um parasita que já havia lhe tomado tempo e força vital demais. Com seu objetivo primeiro atingido, ela tinha a paz de espírito para simplesmente deixar ir.
— Tem alguém sentado aqui?
Ela duvidou de sua própria sanidade mental. Não era possível que estivesse ouvindo aquela voz. Aquilo era seu cérebro lhe pregando uma peça, brincando com os seus sentimentos.
Mas não era. Não era possível que os seus olhos tivessem aceitado fazer parte naquela piada de péssimo gosto.
— O que você está fazendo aqui?
sorriu, ocupando o banco ao seu lado.
— Eu te disse - ele respondeu. — Eu sou muito, muito bom no que eu faço. Você pensou mesmo que podia simplesmente entrar em um avião e desaparecer?
Ela não tinha certeza se deveria continuar respirando. Quase parecia ser pedir demais, como se aquilo também estivesse na extensa lista de proibições que ela havia transposto.
— E honestamente? - continuou. — Eu prefiro a Ivy. É bem mais bonito.
O riso que veio de seu nariz só não era tão incômodo quanto a sensação de que havia um lacre se apertando ao redor de seu músculo cardíaco. Se era assim que a desesperança se parecia, era uma sensação bem mais dolorosa do que ela esperava ter de um dia conhecer.
Recusando-se terminantemente a sentir pena de si mesma, ela esboçou as únicas palavras que o sarcasmo, como seu mecanismo favorito de defesa, era capaz de escolher:
— Onde estão as algemas? - Perguntou, estendendo os pulsos. — Pode me levar.
simplesmente deslizou as próprias mãos pela pele desnuda e tão facilmente arrepiável da parte interior de seu antebraço. Seus dedos - cujo toque ela detestava adorar conhecer tão bem - encontraram os dela, entrelaçando-os. O toque estranho era dolorosamente familiar e bem-vindo.
— Eu topo experimentar em algum momento se esse for um desejo ou fetiche seu. Mas aqui não. Não acho que seja necessário.
— Que papo é esse agora?
respirou fundo, ajeitando-se contra o banco, mas não interrompendo, por um instante sequer, o contato entre eles.
— Não foi difícil ligar os pontos depois de te conhecer - ele explicou. — A voz parecida, as descrições que tinham algumas semelhanças, a coincidência dos horários e das situações. E eu não estou dizendo que você fez um mau trabalho se escondendo. Pelo contrário, você fez um ótimo trabalho. Só não bom o suficiente para quem tinha motivos demais para reparar em você.
— Você andou me seguindo?
— Você acha que eu não sei que você apareceu no bar da primeira vez de propósito? Eu estava só fazendo o meu trabalho.
— E eu o meu.
— Não sei se é assim que funciona. Tenho quase certeza que não.
— E se você sabia de tudo por que não me entregou? Não era esse o seu trabalho?
Ele deu de ombros, exalando o ar pesadamente.
— As coisas nem sempre são tão preto no branco. Lembro de já ter te dito exatamente isso há uns dias. Aliás, como fica a sua irmã nessa história?
— Tenho dinheiro o suficiente para manter as duas bem enquanto esperamos que as coisas comecem a se encaminhar no tribunal. E não pretendo ir para longe o suficiente para não conseguir voltar. Só longe o bastante para ter a minha paz.
— Eu fiquei sabendo - ele disse, lhe entregando a própria passagem. — Washington, não é? Achei meio dramático precisar de um avião para isso, mas não sou eu quem dita as regras.
— O que é isso?
— Uma passagem, oras. Você deve ter uma também.
— E onde você pensa que vai?
— Não é Washington que está escrito aí? - perguntou, tomando o papel de volta apenas para ler a palavra que ele já esperava encontrar. — É sim.
— E o seu trabalho?
— Bom, talvez você não seja a única a ter se cansado do sistema. Estou fora do caso e do precinto.
sentiu o peso dos ombros se suavizando, derretendo como um sorvete esquecido em plena luz do sol em um dos dias mais irremediavelmente quentes do verão.
— E daí você decidiu se demitir e se mudar logo para Washington?
— É - ele concordou. — É basicamente isso. Só que, na verdade, eu meio que já consegui um emprego lá.
— Mas que coincidência!
— Não é? Também achei incrível.
Ela meneou a cabeça, contendo o sorriso que queria se formar.
— Você é completamente louco.
— Talvez parte disso seja culpa sua.
— Minha? De que jeito?
O rapaz fez uma careta.
— Os caras chegavam com denúncias dizendo que você os tinha drogado. Vai ver você também fez isso comigo. Uma poção do amor talvez.
— Eu guardo minha amortentia para situações especiais só.
— E eu não sou especial o suficiente para ela?
— Não precisei recorrer a recursos para te conquistar. Acho que você já era bem perturbado por conta própria.
— Vai ver é por isso que deu certo - ele concordou. — Vai ver a sua loucura parece um pouco com a minha.
Ela riu, balançando o crânio para os lados, ainda descrente, relutando em acreditar que tudo aquilo era realmente verdade. Para quem tinha certeza de que tinha ido longe demais daquela vez, talvez ainda tivesse salvação para o seu pequeno caso perdido.
— Nesse caso, espero que Washington seja grande o suficiente para ambas.
E com um aperto um pouco mais forte em sua mão, ela soube que ele também esperava. E que estariam juntos para descobrir. Por mais errado que fosse.
A risada do homem mal saíra, ficando contida em sua garganta. Por que os homens achavam mesmo que era universalmente sexy essa postura de poucos esboços emocionais? Ela jamais entenderia.
— É um Corvette C3 original de 1979 - ele explicou, recebendo acenos de cabeça tão perfeitamente desenhados à sua frente que foram capazes de fazê-lo acreditar que havia algum interesse no assunto. — Tivemos que renovar várias coisas, como os bancos de couro, e melhorar a qualidade do motor para sobreviver aos dias de hoje. Mas é uma peça rara, que merece ser tocada apenas por quem saberá valorizá-la e apreciá-la o suficiente. Como você.
O sorriso que apertava seus olhos era a única expressão possível de evitar que ela revirasse os olhos ao ouvir aquelas palavras e sentir a mão firme dele apertando de leve a sua coxa.
— Melhor prestar atenção na estrada - comentou, quase cantarolando com toda aquela doçura fajuta e minimamente programada. — Não queremos que a noite acabe mais cedo por um descuido, não é mesmo?
Ele soltou mais uma daquelas risadas soprosas e entaladas e devolveu a mão direita ao volante. Obviamente não antes de aproveitar a oportunidade de dizer:
— Isso não vai acontecer. Não se preocupe. Eu sou muito bom no que eu faço.
A malícia e a volúpia pingavam em cada uma de suas sílabas, derramando-se numa poça de segundas intenções que só aumentava. Se ela utilizasse um categorizador meteorológico, talvez conseguisse captar os seus sinais na umidade atmosférica.
Por sorte, estavam perto o suficiente para que logo estivessem estacionando o tal carro na garagem exageradamente grande da mansão - cuja descrição de tamanho se tornaria totalmente redundante e repetitiva.
Ela mal teve tempo para realizar seu relatório mental de amofinações e extravagâncias desnecessárias que todo playboy milionário parecia ter. Os lábios dele estavam pressionados contra os seus, enquanto os dedos grossos apertavam a sua nuca com uma urgência à qual ela jamais corresponderia.
Sua fisionomia poderia ser de tudo, menos de satisfação ao vê-la se afastando.
— Calma lá, lindo. Pensou mesmo que ia ser assim tão fácil? No meio da sua garagem? Não vai mesmo me levar para dentro, me oferecer uma bebida? Acho que eu valho um pouco mais do que isso.
Ele deu um sorriso de canto, absolutamente crente de que era o ser mais charmoso a pisar na face da Terra. Ela não precisava mover um dedo, sabia exatamente o que ele faria quando se colocou de pé em um movimento rápido. Eles eram todos iguais.
— Obrigada - agradeceu ao aceitar a mão que lhe fora imediatamente oferecida quando ele abriu a porta para ela.
— Você merece tudo isso e muito mais.
“Duvido que você vá continuar pensando assim quando a noite acabar.”
Ela o seguiu escadarias acima, tomando cuidado para não errar nenhum dos degraus de mármore claro e pisar em falso com aqueles saltos altos demais para a saúde de sua própria circulação venosa.
A sala em conceito aberto era pelo menos duas vezes maior do que a casa inteira de uma família de classe média. Vendo o estofado ridiculamente branco daquele sofá, ela ouviu algum cantinho ligeiramente sórdido de seu cérebro implorando-lhe que testasse derramar só algumas gotas de vinho tinto ali. Só pela curiosidade de saber como seria. E talvez de destruir algo tão obviamente caro. Existia algum nível de prazer pessoal em fazer isso.
Do outro lado dos lustres geométricos pendentes, ela viu o que reconheceria em qualquer lugar:
— Meu Deus! Você tem um bar!
Com um sorriso quase infantil, ela correu para trás do balcão, fazendo questão de ditar em voz alta todas as garrafas que encontrou por ali, adicionando comentários de “Uh! Essa é boa!”, “Nunca vi isso, deve ser caro demais para mim” e “Que nome engraçado!”.
Ele se aproximou, abraçando qualquer que fosse a oportunidade de fortalecer sua autoimagem de virilidade e seu ego ao se colocar na posição obviamente superior de quem detinha mais conhecimento e, portanto, poder. Não precisava acrescentar o papel de seu dinheiro - facilmente herdado na empresa multinacional que havia sido construída com o suor do pai e entregue a ele da mesma forma que sua certidão de nascimento.
Contou sobre os uísques caríssimos, que supostamente haviam sido cuidadosamente captados após vários anos de amadurecimento em barris que viraram praticamente lendas contadas por aí em meio às tradicionais narrativas orais da cultura daqueles que concentravam 99% da renda do mundo. Falou sobre os processos de obtenção do álcool em suas mais diversas origens, como se entendesse cada passo de seus processos de produção - menos o que incluía trabalhar, de fato.
Ela apenas concordava, completamente maravilhada com a variedade posta à sua frente. Era como um grande banquete. Só que melhor.
— Vou te fazer um drinque - avisou. — Eu já trabalhei em vários bares e restaurantes, sabia? Vai, escolhe uma bebida.
— Me surpreenda - ele falou, dando de ombros antes de piscar e seguir até a lareira elétrica, pronto para ligá-la.
Um sorriso inocente iluminou os lábios dela, em um lampejo doce e passageiro como uma brisa de fim de tarde:
— Pode deixar.
Ela puxou os copos de cristal e escolheu as garrafas. Encontrou xaropes de fruta, água tônica e uma coqueteleira. Era tudo que ela precisava.
Ou quase tudo.
Enquanto isso, ele já devia estar mexendo pela terceira vez naquele controle universal que controlava cada centímetro daquela casa. Com o fogo falso crepitando ao redor da pequena cilada construída, ele abriu as persianas mecânicas e ligou o áudio do ambiente, deixando que notas de um jazz se espalhassem pelo espaço até encontrarem a fundação das paredes e serem obrigadas a retornar.
— O que é que você está aprontando aí?
— Uma surpresa - ela respondeu. — Exatamente como você pediu.
Com mais alguns rodopios da longa colher bailarina, ela se deu por satisfeita, caminhando vagarosamente na direção dele, cujo olhar estava indevidamente preso em cada um dos movimentos de seus quadris.
— Saúde - brindou, com toda a meiguice possível de ser escondida entre o atuado interesse e a verdade nua e crua. O som dos copos tilintando antes que ele virasse um longo e delicioso gole era uma música muito mais agradável aos seus ouvidos do que qualquer que fosse aquilo que ele tinha colocado para tocar. — E então?
— Você é boa nisso - ele disse. — É forte, mas… Como eu posso dizer isso? Acolhedor, talvez?
— Acho que essa é a palavra que você usa para descrever uma sopa num dia frio, não uma bebida.
Ele riu com a brincadeira - a primeira risada de verdade de toda a noite. Com um gesto, ele indicou o sofá que ela ainda desejava manchar, convidando-a a se sentar com ele. Ela o fez, garantindo que havia espaço suficiente entre eles para que não sentisse sua respiração, mas ainda pudesse garantir que o estava mantendo colado a si em uma atenção calculada.
— Me conta mais sobre o seu trabalho - ela pediu, dando um gole no conteúdo de seu próprio copo.
A cabeça dele pendeu sobre o pescoço, enquanto ele soprava por entre os lábios, como se estivesse fazendo algum tipo de aquecimento de voz fora de hora.
— Não sei o que te dizer sem te deixar completamente entediada.
— Não vai acontecer. Eu quero mesmo saber - ela retrucou. Era hora de usar um de seus maiores talentos: se fazer de boba. — Ou você não quer me contar porque é alguma coisa super secreta e confidencial? Porque se for isso, agora é meio tarde. Já me deixou curiosa e é totalmente injusto não me tirar dessa angústia agora.
Seu copo já estava um pouco abaixo da metade quando ele respondeu:
— Quando meu pai faleceu, ele acabou deixando a empresa para mim, por ser o único filho. Eu cuido da parte administrativa, sabe? Tanto o financeiro, quanto a questão de tomada de decisões, planejamento, envolvimento com clientes e funcionários…
— Nossa, parece muita coisa. Você nunca pensou em contratar alguém para te ajudar com tudo isso?
— Ah, eu tenho funcionários para isso, sim. Várias pessoas lá dentro trabalham com essas coisas, mas ainda assim é muita coisa para mim.
Ela aquiesceu, sentindo pena daquela vida de ter responsabilidades demais para com as quais cumprir e muita gente para fazê-las. Deveria mesmo ser incrivelmente difícil sentar a bunda em uma cadeira de vários milhares de dólares por algumas horas e ouvir as pessoas dizendo tudo o que elas fizeram por você.
— Eu imagino mesmo - ela concordou. — Por isso você está tão cansado.
Ele bocejou, em meio a uma risada entrecortada.
— Eu falei que era um assunto entediante. Até me deu sono.
Ela sorriu novamente, aconchegando-se mais no sofá, como se a recíproca fosse completamente verdadeira.
— Não deveria te dar sono falar sobre como você é um homem importante. Deveria te deixar orgulhoso.
Ele esfregou os olhos, apertando-os com força, enquanto seus músculos faciais se contraíam na esforçada intenção de evitar que mais um bocejo escapasse.
— Tenho, sim, muito orgulho de todo o nosso trabalho pela empresa. Sei como fazemos uma enorme diferença na vida das pessoas.
“Sim, explorando trabalho manual mal remunerado e cotas de insalubridade.”
Antes que ela pudesse pensar em outra frase pouco comprometedora e que permanecia deixando-a relativamente longe da conversa enquanto ganhava tempo, percebeu o movimento rápido da cabeça dele caindo, antes que ele recobrasse rapidamente a consciência e a chacoalhasse, como faz uma criança que está lutando contra a iminência do sono que chega.
— Acho que é melhor a gente subir - ela sugeriu. — Você está prestes a implorar pelo conforto da própria cama.
Ele riu, virando por completo a última fração do conteúdo de seu copo. Precisou se apoiar no braço do sofá para manter o mínimo de equilíbrio suficiente para não desabar de encontro ao chão. Ela lhe ofereceu o braço, permitindo que apoiasse o corpo contra o seu enquanto subiam vagarosamente as escadas.
No quarto, ele se jogou na cama king size coberta por uma colcha off-white e lençóis de quaisquer milhares de fios de onde quer que fosse o algodão. Ela se sentou calmamente ao seu lado, passando a mão em sua testa e por seus cabelos de forma carinhosa, conforme sua respiração se tornava mais pesada.
— O que foi que você colocou naquela bebida?
Ela continuou o carinho, esboçando um sorriso inocente.
— Acho que misturei coisas demais sem olhar o teor alcoólico delas.
— Não - ele disse; a voz ficando mais enrolada a cada segundo. — Isso não é álcool. Tem alguma coisa errada.
Ela deu de ombros, aproximando-se. Ele percebeu seu corpo deixar de responder às suas ordens quando não conseguiu se mexer ao vê-la puxando a chave de seu Corvette do bolso.
— O que você está fazendo?
— Antes de você apagar de vez, qual é a senha do cofre?
A escuridão confundiu ainda mais as pupilas perdidas do homem que já não sabia direito o que via.
— Você não vai fazer isso. Não vai levar nada.
A mulher levou as mãos aos cabelos, prendendo-os em um nó no topo da cabeça.
— Bom, se você não quer colaborar, acho que vou ter que descobrir sozinha.
Ela foi até o closet, empurrando cabides de um lado para o outro; olhou atrás dos armários e prateleiras, checou se não havia um fundo falso atrás da TV.
— Você não vai fazer isso - ele repetiu, precisando reunir todas as suas forças.
— Mas não era você quem adorava fazer o bem para as pessoas? Prometo que o dinheiro vai ser revertido para uma boa causa. Pense nisso como um Hood, tirando dos ricos para dar aos pobres. - Quando conseguiu retirar o pesado quadro da parede, foi obrigada a soltar uma risada incrédula ao ver as teclas iluminadas a encarando de volta. — No lugar mais óbvio, sério? Eu esperava um pouco mais de você.
— Você nunca vai conseguir abri-lo.
— Você escondeu seu cofre atrás do único quadro do quarto. Não é lá muito inteligente, sabe? Tenho certeza de que tem as senhas anotadas em algum canto do seu celular.
Mais uma vez, as mãos delas estavam em seu bolso, encontrando o aparelho.
— Olha aqui, por favor - ela pediu, endireitando sua cabeça com pouca delicadeza para que o reconhecimento facial desbloqueasse o celular. — Prontinho, muito obrigada!
— Você não vai sair impune disso, sua vadia. Eu vou ligar para a polícia e eles vão te encontrar.
Ela não demorou a encontrar o arquivo na conversa que ele tinha consigo mesmo no aplicativo de mensagens. Várias senhas estavam ali, mas só uma tinha exatamente os quatro dígitos numéricos de que ela precisava.
— Meu amor, você não é o primeiro e nem vai ser o último a dizer isso - contou, ouvindo o som glorioso do cofre sendo destrancado. — Mas eu ainda estou aqui, não estou?
Com movimentos rápidos, ela pegou alguns bolos de dinheiro e pequenos diamantes e os enfiou na bolsa. Logo, a porta do cofre estava fechada e o quadro novamente colocado.
— Boa noite - desejou, beijando-lhe a testa. — Pode descansar agora.
E a última coisa que ele viu, antes de apagar, foi o mesmo quadril que o havia colocado em perigo no começo da noite.
A capa de seu exemplar de ‘Um Teto Todo Seu’ estava começando a ficar desgastada e desbotada, criando pequenas orelhas pelo vício da leitura enquanto repousava em seu lugar de costume: a mesa de cabeceira ao lado de sua cama.
Ao lado dela, uma sequência de estojos de lentes de contato com soro fisiológico as mantendo umedecidas contra o ressecamento.
Ela se olhou no espelho mais uma vez, absorvendo a própria imagem. Era sempre difícil se acostumar com o próprio rosto longe das maquiagens, das lentes coloridas, dos brincos longos e pesados e das perucas que escondiam seu cabelo verdadeiro. Às vezes precisava respirar fundo algumas vezes, obrigando a si mesma a se lembrar de quem verdadeiramente era; de quem estava por baixo da máscara e dos muros de pedra grossa que havia construído ao seu redor. Às vezes precisava se lembrar de que ainda existia. Ainda era alguém.
Jogou o casaco pesado sobre os ombros e calçou suas botas surradas, seguindo até o metrô a passos largos. Ninguém deu bola para a mulher que passava, para suas roupas, seu cabelo mal preso ou para a feição de quem parecia prestes a vomitar toda a ansiedade que sentia. Era como se ela fosse totalmente invisível. Talvez, ao fim do dia, essa fosse a melhor - e, paradoxalmente, a pior - parte de viver em Nova York: a solidão.
Na entrada da estação, encontrou um homem que não deveria ser mais velho que ela, com uma placa que o apresentava como um pai solteiro que acabara de perder a esposa para uma neoplasia agressiva e, desempregado, precisava cuidar da filha de três anos que tiveram juntos. Ela não precisou de mais de dois segundos para pensar, enquanto deslizava, disfarçadamente, uma nota de cem dólares para fora do envelope de papel pardo que tinha dentro da bolsa.
Com um sorriso tímido, entregou o dinheiro para o rapaz, não desperdiçando um segundo sequer antes de prosseguir o seu caminho e ouvi-lo às suas costas:
— Moça, espera, eu acho que é a nota errada.
— Espero que ajude - ela respondeu simplesmente e voltou a descer, ouvindo a voz dele se tornar mais alta enquanto praticamente berrava um agradecimento.
Assim que o metrô passou, ela se enfiou para dentro, encontrando um assento vazio perto da janela. Enquanto as paredes e vielas subterrâneas da grande cidade corriam ao seu redor, seus dedos tamborilavam nervosamente contra as próprias coxas. Para uma pessoa que já tinha passado por tanta coisa e criado tantas situações que muitos julgariam absurdas, era quase patético ter de admitir que sua ansiedade decidia desabrochar suas pétalas primaveris em momentos tão banais quanto aquele.
Colocou-se de pé à porta instantes antes do horário que seu cálculo havia fornecido como momento de chegada. Desceu rapidamente, passando na frente da maioria dos passageiros que, como todas as outras pessoas, simplesmente não se importavam. Por mais que fosse ponto chave de seu trabalho passar despercebida, ela não podia evitar de pensar em como tantas coisas poderiam ter sido diferentes se as pessoas se importassem um pouco mais. Talvez ela nem precisasse estar ali.
Caminhou até a casa de telhado cinza e paredes brancas rachadas e com sinais de infiltração. O carro não estava ali, afinal, era a hora do rotineiro passeio no parque e ela sabia bem disso. Puxou uma caneta do bolso e escreveu “Se precisar de mais, sabe como me encontrar” no envelope, empurrando-o por baixo do vão dilatado da porta.
O toque estridentemente melódico e repetitivo soou mais uma vez, fazendo-a revirar os olhos. Não sabia quem era pior: a pessoa que havia criado aquela porcaria aguda e irritante, quem tinha decidido aprovar a ferramenta sonora ou o idiota à sua frente que, dentre todos os toques do celular, havia escolhido exatamente aquele.
— Sério - disse. — O que você tem na cabeça para colocar esse inferno para tocar?
O homem deu de ombros - da forma mais natural possível para quem estava amarrado às barras da cabeceira da cama em uma posição facilmente enganável e confundível como postura sexual. Afinal, fora com esse pensamento que ele se permitira terminar daquele jeito.
— É irritante o suficiente para me obrigar a atender a ligação ou desligar o despertador - ele explicou, dotado de toda a calma do universo. — Deixa que eu atendo, daí ele para de te irritar.
Ela riu abertamente, aproximando-se dele apenas para passar os dedos pelos cachos irrequietos que caíam sobre seus olhos.
— Que bonitinho você pensar que eu sou tão ingênua assim.
— Pode pelo menos ver quem é? - Ele pediu. — Se for a minha namorada, ela vai ficar preocupada e depois surtar porque ela é ciumenta para caralho e toda hora fica me acusando de ser infiel.
— E você realmente não acha que ela tenha motivos para isso? Jura? Você me trouxe aqui para rezarmos um terço, né?
Ele bufou, sabendo que não tinha desculpa alguma para isso. Só estava mantendo o hábito fácil de culpar uma mulher e chamá-la de louca ou histérica em vez de ter o mínimo de dignidade e decência de admitir a própria falta de caráter.
Ela puxou o telefone celular, reconhecendo o número no visor com um sorriso de canto. Virou a tela para ele.
— Eu não sei quem é.
— Mas eu sei - ela retrucou. — É a polícia. Eles mantêm essa linha de número convencional, mas nunca trocam essa porcaria de sequência. Eles subestimam a inteligência dos outros; acham que ninguém nunca vai perceber.
— Então eles sabem onde eu estou - ele disse, rindo. — Eu sabia que iriam dar falta de mim.
— Não, eles não sabem - ela o corrigiu. — Provavelmente alguém me viu saindo do bar com você, pensou ter me reconhecido e acionou a polícia, que não faz ideia de onde você está porque você é um infiel desgraçado que me trouxe para o último lugar do universo em que descobririam suas traições. Eles estão esperando que um de nós atenda esse telefone para começarem a triangular o espaço e rastrear a ligação.
— Pelo jeito não é a primeira vez que acontece.
Ela ajeitou a peruca, garantindo que ela estivesse bem colado ao couro cabeludo.
— São anos de experiência - contou. — Dá tempo para ver de tudo.
E ela poderia deixar para lá e seguir a sua noite como se nada tivesse acontecido. Seria mais fácil e mais seguro. Mas definitivamente não seria mais divertido e não lhe daria a sensação viciante da adrenalina pulsando em suas veias com a expectativa de aproximação do fim da linha.
Ela pegou as notas de cem dólares da carteira dele, o relógio de ouro, o bolo de dinheiro que havia encontrado na gaveta de cuecas como “reserva emergencial” e a chave do carro que os levara até ali.
— Eu também vou precisar disso - ela avisou, balançando o celular no ar antes de colocá-lo na bolsa. — Até mais! Espero que a sua namorada te largue de uma vez por todas.
— Pelo menos me solta! - Ele berrou, aplicando toda a sua força contra os nós das cordas e conseguindo pouco mais do que escoriações e rastros de sangue pisado pela pele dos braços.
Ela arrumou a altura e a distância do banco do carro para seu próprio tamanho e regulou os retrovisores com toda a paciência do mundo enquanto os gritos dele ecoavam pelas árvores que se espalhavam a um raio de vários quilômetros pelo pequeno bosque ao redor do refúgio da família onde ninguém ouviria suas súplicas por socorro.
No meio do caminho, o maldito som voltou a preencher sua cabeça. Dessa vez, com o celular conectado ao bluetooth do carro, ela pressionou no volante o botão que atenderia a ligação. Com um sorriso já satisfeito no rosto e uma voz doce ela soltou em tom de pergunta?
— Alô?
— Alô. Quem fala?
— Acho que sou eu quem deve fazer essa pergunta, já que foi você que ligou.
— A senhorita está usando o telefone privado do senhor McIntosh, então acho que tenho o direito de perguntar com quem estou falando.
Ela sorriu, apreciando silenciosamente como o sotaque de quem havia saído há pouco da Inglaterra se misturava bem no timbre de voz dele. Tinha que admitir que gostava mais daqueles que não facilitavam o seu jogo.
— Eu não sei quem é esse. Nunca ouvi esse sobrenome antes.
— E você está com o celular dele por quê?
Ela estacionou o carro entre as árvores, pegando o celular para abrir um link que já havia se tornado um velho conhecido dela, graças à expertise de seus contatos, que a tinham ajudado a se preparar para momentos como esse. Só precisava mantê-lo falando mais um pouco enquanto realizava sua pesquisa - o que não seria difícil, já que sabia que, do outro lado, ele tinha a mesma intenção de segurá-la na linha.
— Senhor, como eu disse, eu não conheço esse homem. Não faço ideia do que está acontecendo. Esse celular é meu. E há anos porque eu estou totalmente sem condições de comprar outro no momento.
Ela sorriu para si mesma, comemorando o feito ao ampliar a imagem na tela. Tinha certeza de que seu chute era certeiro. Era ele. Ela já podia vê-lo enquanto falava. Voltou a dirigir, dessa vez sem se preocupar com a velocidade do carro ou com as curvas bruscas e fechadas demais que desenhava repentinamente, capazes de deixar uma bússola tonta.
— Se a senhorita não vai facilitar, talvez precisemos ir direto ao ponto. As denúncias que recebemos a identificam como Ivy. É esse o seu nome?
Ela riu, virando o volante por completo mais uma vez.
— Pode me chamar do que quiser. Se tiver gostado de Ivy, podemos seguir assim.
— É assim que você se apresenta para as suas vítimas? Não acha meio tosco usar o nome de uma criminosa dos quadrinhos enquanto faz seu trabalho sujo?
— Não acha meio hipócrita dizer isso para mim, detetive ? Quem é a inspiração? Dick Grayson ou Jason Todd? Deveríamos começar a chamar nossa querida cidade de Gotham?
O silêncio que veio a seguir foi reconfortante como a vitória não explicitamente declarada. Ela sabia que tinha acertado em cheio e, melhor ainda, que ele não fazia a mínima ideia de como.
— Já cansou de falar comigo? Que pena, eu estava me divertindo.
— Como você sabe quem eu sou?
— Eu talvez conheça alguém que tem acesso aos registros de todo mundo que trabalha no departamento de polícia da cidade. E talvez eu seja muito boa em associar vozes e faces. Tinha que ser você.
Uma risada leve ecoou do outro lado, soando melodiosa demais para seu próprio bem. Ele não tinha ideia do que aquele simples afago reverberando em seus poros dilatados poderia fazer.
— Quer roubar o meu emprego?
— Não - ela respondeu. — Jamais tiraria isso de você. Tenho certeza de que a paixão da sua vida é ficar triangulando e rastreando ligações.
Antes que ele pudesse retrucar, ela encerrou a chamada, arremessando o celular contra uma das árvores do caminho. Sabendo que eles não desistiriam fácil assim, abandonou o carro do lado oposto do bosque e seguiu a pé por apenas algumas ruas antes de encontrar um táxi e sumir da noite de .
Seu Sex on The Beach tinha pêssego demais. E essa era a opinião de quem adorava pêssego e se sentia na obrigação de oferecer-lhe um lugar confortável em meio às suas frutas favoritas.
Mas aquilo não. Era doce demais. O cheiro confundia suas narinas com aqueles tons mesclados e artificiais de um adocicado exagerado. Não era agradável. Era ridículo que um bar incapaz de fazer uma bebida simples direito pudesse realmente ser o favorito de alguém.
Se ela não confiasse plenamente em seu próprio trabalho e não tivesse a certeza do quanto era boa nele, teria se permitido alguns segundos de dúvida e insegurança. Talvez não fosse ali. Talvez não fosse ele. Mas se questionar era algo que ela havia desaprendido a fazer há muito tempo.
Virou mais um longo gole, tentando não fazer uma careta com o arrepio que tanto açúcar lhe causava. Pelo horário que tinha chegado e o tempo que seu corpo já assimilava quanto à presença naquele lugar de qualidade duvidosa, ela assumia que já deveriam ser quase oito e meia da noite. Ele deveria estar a, aproximadamente, três quadras dali, parado em um dos semáforos mais irritantemente longos da cidade. Ele parecia fazer o tipo que teria as janelas completamente fechadas, confinando dentro do automóvel o som de The Who ou Journey. Talvez até a trilha sonora de algum musical.
Ela riu sozinha, imaginando-o fazendo devotos discursos sobre a magnificência de Hamilton e Lin-Manuel Miranda. Também o esperava com o mesmo ardor falando sobre causas sociais e os Jets. Os Knicks, pelo menos, ela sabia que ele já havia superado. Era difícil esperar por um playoff que provavelmente não viria.
— O de sempre? - A voz grossa do bartender com bíceps mais largos que a sua cabeça a fez desviar a sua atenção de volta para o mundo real. Precisou de dois segundos para perceber que, obviamente, ele não poderia estar falando com ela.
Foi quando o viu.
Aproximando-se com passos leves de um jeito estranho, quase como se tivesse tropeçado em nuvens pelo caminho, ele retirou a jaqueta preta, apoiando-a no banco ao lado do que acabara de ocupar. Estendeu a mão ao grandalhão, cumprimentando-o calorosamente. Era exatamente o que ela esperava de alguém que passava por lá religiosamente toda semana. Ainda mais quando essa pessoa parecia silenciosamente adepta ao movimento que buscava provar que alguns seres humanos deveriam ser golden retrievers, mas tinham nascido na espécie de mamíferos errada.
— Obrigado, mestre - ele agradeceu, arrancando uma risada exagerada do homem. Ela precisou encarar mais um gole de sua bebida para evitar a risada indiscreta de quem não poderia ousar dizer que não esperava exatamente por aquilo.
O copo alto e largo preenchido de cerveja escura foi logo colocado à sua frente e ele, é claro, agradeceu mais uma vez.
— Como vão as coisas na delegacia? - O homem atrás do bar prosseguiu com o papo.
Ela sentiu uma agulhada na base da lombar, fazendo-a se endireitar sobre o próprio cóccix. Não tinha esperado que fosse receber informações de bandeja tão facilmente.
— Caóticas - o rapaz respondeu. — Nova York adora te pregar peças em cada esquina.
— E a história da garota que andou roubando aquele bando de playboys?
Era assim que ela tinha ficado conhecida, então? Interessante. Apesar de “garota” provavelmente não ser o termo que ela escolheria.
A linguagem corporal do detetive mudou sutilmente e ela sabia que o tom de voz que viria a seguir seria bem mais baixo, em confidência. Puxou o seu celular e começou a deslizar o dedo pela tela principal do facebook em uma conta falsa que mantinha apenas para momentos como aquele - em que precisava fingir estar distraída com outras coisas para poder prestar mais atenção sem ser percebida como suspeita.
— Aquelas fotos que te falei? Encheram todo mundo de esperanças, mas estão horríveis. Ela é só um borrão. Impossível fazer qualquer reconhecimento com elas. Mas temos algumas pessoas preparadas para criar pequenos alarmes em cada movimento suspeito nos lugares mais comuns das denúncias que as vítimas fazem depois.
Então ela teria que ser mais criativa. Bom, não era muito difícil. Já estava ficando bastante entediada mesmo. Uma mudança lhe faria bem. Mantinha a faísca do jogo acesa.
— Eu até simpatizo com ela, sabia? - O barman comentou. — Eu conheço alguns desses caras e eles são completamente babacas. Sempre trataram todo mundo por aqui como merda só porque se acham superiores por terem sempre os bolsos cheios. Eles merecem se foder um pouco.
riu alto, balançando a cabeça.
— Acho melhor eu não opinar sobre isso. Preciso ser coerente com o meu papel.
A mulher mordiscou a mucosa interna da bochecha direita, evitando o sorriso que queria se formar. De alguma forma, mesmo que para um número incrivelmente reduzido de pessoas, tinha praticamente assumido a figura de um tipo de anti-herói. E o grandalhão estava certo, afinal. Tudo aquilo tinha começado exatamente porque ela também achava que algumas pessoas mereciam mesmo se foder. E, pelas poucas horas em que tinha convivido com várias delas, tinha cada vez mais certeza de que mereciam mesmo.
Ela ergueu dois dedos, acenando para o barman.
— Quer mais alguma coisa?
— Pode me trazer uma dose da sua melhor tequila - falou. — E traz uma para o meu amigo também. Ele parece estar precisando de algo mais forte que cerveja.
O grandão riu, buscando os dois copos de shot e os preenchendo com o líquido transparente prestes a incendiar suas gargantas.
O rapaz parecia ter travado no próprio lugar com um sorriso de completo choque estampado no rosto.
— Eu concordo com ela - o atendente comentou. — E agora é desfeita não beber.
A mulher ergueu o copo, com um sorriso de canto e um arquear de sobrancelhas, oferecendo um brinde silencioso antes de virar toda a tequila garganta abaixo. De repente, ele decidiu chutar o resto de senso que tinha pela janela e aproveitar a enrascada em que tinha sido tão gentilmente colocado. Ela finalmente se permitiu rir abertamente ao vê-lo sacudindo a cabeça, fazendo uma careta que escancarava aos quatro ventos que ele não estava acostumado com aquele teor alcoólico.
— Bom, acho que devo te agradecer pela bebida.
— Melhor não. Talvez você mude de ideia sobre isso mais tarde.
Ele gargalhou, movendo o copo vazio entre os dedos, avaliando as últimas evidências daquele que poderia ter sido seu maior delito.
— Isso ainda vai bater com força, né? Não que essa tenha sido a minha melhor escolha de palavras.
Ela riu de novo, sem saber se ria dele, de sua risada ou se só queria rir junto com ele porque era divertido e tinha uma sensação desconhecida no meio. Algo que não parecia falso e programado, como se estivesse apenas seguindo o roteiro recém-recebido dos bastidores da própria vida. Se aquele papo furado de que rir era o melhor remédio fosse real, talvez ela devesse mesmo saborear cada segundo de sua cura.
— Provavelmente - admitiu. — Mas dá para ver no seu rosto como você está precisando desesperadamente desestressar um pouco.
— Uau. Acho que essa foi a forma mais charmosa que alguém já usou para me chamar de feio.
— Eu não disse isso! Não foi o que eu quis dizer!
— Não, não, foi ótimo, de verdade. Nem doeu tanto assim. Achei sutil, foi uma jogada inteligente.
Ela revirou os olhos largamente, arrancando mais risadas dele.
— Mas eu preciso mesmo - falou. — Você sabe, desestressar um pouco.
Com um sinal rápido, outras duas doses foram colocadas em frente a eles. O rapaz a olhou mais uma vez, o choque menor, mas ainda presente, misturado com a graça que o momento parecia ter adquirido.
— Um brinde a isso - ela declarou e os dois viraram suas bebidas mais uma vez.
Ele sentiu os olhos lacrimejarem levemente, precisando levar as pontas dos indicadores aos focos por onde a água minava como se uma nova nascente tivesse sido espetada e agora fizesse questão de brotar na superfície.
— - ele se apresentou, estendendo a mão à mulher que tinha se enfiado à força em sua vida ao se tornar a primeira pessoa que havia conseguido, de fato, alcançar o caminho para embebedá-lo.
— - ela respondeu, devolvendo o aperto. A mão dele era firme, mas macia e ela se perguntou qual era a sensação de senti-la em sua nuca.
De repente, ele estreitou os olhos de leve e ela pôde sentir a própria frequência cardíaca elevando ligeiramente de forma instintiva.
— A gente já se conhece de algum lugar?
Ela fingiu que estava realmente parando para pensar naquilo, como se estivesse dando o seu melhor e fazendo todo o esforço do mundo para recuperar as lembranças que, infelizmente - uma lástima -, não tinha.
— Eu acho que não - disse, com a voz carregada de um certo pesar. — Mas eu já vim aqui uma vez com uma amiga. Já tem um tempinho, mas talvez seja isso?
Ele aquiesceu vagarosamente.
— É, pode ser. Eu venho aqui há bastante tempo - contou, como se estivesse compartilhando uma de suas maiores confidências. — Talvez seja isso mesmo.
— Se for o caso, você realmente se superou. Isso nunca acontece. Acho que eu tenho um rosto bem esquecível.
Talvez fosse o álcool que havia encontrado o interruptor da parte do seu cérebro em que, agora, dormiam juntos tranquilamente seu bom senso e o filtro que deveria ter antes de simplesmente fazer e falar a primeira coisa que vinha na cabeça. Talvez ele realmente só estivesse cansado de sempre ter de fazer tudo tão minimamente calculado. Talvez fosse só a forma com que, a cada longo segundo em que ele se demorava, indiscretamente observando cada mísero detalhe no rosto dela, as coisas pareciam fazer sentido. Mesmo que ele não fizesse ideia do que era.
Ele poderia ter feito uma lista extensa e cansativa, mas não. Aquele não era o que ia para um bar numa sexta-feira à noite depois de uma das semanas mais atribuladas de sua vida e, de repente, tinha uma mulher linda parecendo demonstrar flocos de interesse como se a neve tivesse acabado de chegar na cidade. Este tinha decidido ir direto ao ponto:
— Com certeza não existe absolutamente nada de esquecível sobre você, .
O jeito que cada uma daquelas palavras lhe atingiu como balas perfurantes no peito era uma sensação completamente nova. Para quem havia se acostumado a fugir por tanto tempo, escondendo-se atrás de feições que não eram suas, ouvir aquilo tinha significado mais do que ela gostaria de admitir. Mesmo que viesse de um cara que a conhecia há dez minutos e duas doses de tequila. Ao menos pelas contas dele.
— Eu deveria propor outro brinde a isso? - Ela perguntou, com os olhos e os lábios apertados em uma expressão brincalhona.
— Não - ele respondeu rápido demais, rindo de si mesmo. — Pelo amor de Deus, meu fígado não aguenta tudo isso. Eu preciso de um tempo.
— Tudo bem. Acho que eu posso te dar um descanso.
— Sem descanso - ele disse, limpando a boca. — Não preciso de um descanso, só de alguma coisa que não seja capaz de ser usada para limpar essa mesa no fim do dia.
Ele ergueu a mão para chamar o amigo que conversava com alguém do outro lado do salão.
— Se você pedir uma coca-cola, vou ser obrigada a anular seu atestado de coerência.
— Não acredito que é isso que você pensa de mim - ele reclamou, como se estivesse ofendido, de fato. — Uma água com gás, por favor. E uma porção de batatas fritas. O estômago vazio não deve ajudar.
— É para já.
— Ah, uma porção grande, por favor - ele reforçou antes de perder o colega de vista. — Nós dois vamos dividir. Quer dizer, isso se você também não tiver alguma coisa contra as coitadas das batatas.
Ela o fuzilou, arrancando mais uma das risadas dele que a aqueciam dos pés à cabeça em instantes. Se fosse fácil assim, ela faria questão de obrigá-lo a rir durante a noite toda.
não precisou pedir uma água para si; aparentemente o barman também tinha achado que era uma boa ideia hidratá-los com qualquer coisa que não tivesse álcool o mais rápido possível e duplicou o pedido. Droga, ela nem gostava de água com gás, mas por ele ela aceitaria. Era uma forcinha que ela poderia fazer.
Virou um pouco do conteúdo no copo americano que lhe havia sido entregue, logo vendo as bolhas da bebida gaseificada subindo fervorosamente para explodir na superfície. Uma vida curta e trágica, literalmente correndo em direção ao seu próprio fim. Ela não precisava nem dar o primeiro gole para já ter certeza de que ainda tinha o suficiente delas para fazer cócegas na parte interna do seu nariz. E ela teria que usar todas as suas forças para não reagir de uma forma estranha e vergonhosa a isso.
Quando a porção chegou, rapidamente se preparou com alguns guardanapos, esperando pelos dedos engordurados e pela pequena felicidade dos grãos de sal presos aos lábios de uma forma quase infantil.
Era estranho o apego silencioso que mantinha por coisas pequenas como a memória afetiva de se sentar para comer batatas fritas e jogar conversa fora. Às vezes, pensava que o abandono precoce e as dificuldades e percalços colocados em seu caminho a tinham tirado tanto que sobrava tempo para apreciar os momentos mais banais. Era uma bênção e uma maldição. Na maior parte do tempo, sentia-se mais na última.
— O que anda te deixando tão estressado? - Ela perguntou, mesmo sabendo a resposta, apenas para cumprir o pretexto de puxar qualquer assunto e reforçar a ideia de que ela estava entretida demais com publicações vazias de pessoas que ela - literalmente - sequer conhecia para prestar atenção em seus possíveis segredos de trabalho que ela tinha quase certeza de que não deveriam estar sendo compartilhados em um bar.
Ele deu de ombros, enquanto levava uma batata à boca. Ela percebeu seu olhar preso em cada frame de seus movimentos, estranhamente cativada por sua simples existência, fazendo o que qualquer outra pessoa normal faria. Talvez fosse exatamente a sua normalidade que chamasse tanto a sua atenção, prendendo-a sob suas forças eletromagnéticas.
— Eu trabalho como detetive na NYPD - ele contou. — Raramente é um trabalho que venha desacompanhado de estresse.
Ela lhe ofereceu uma pequena risada contida, equilibrando-se sobre a corda bamba que dividia o caminho entre a simpatia controlada e um quê de flerte distante sem torná-la inacessível.
— Pensei que os problemas de vocês fossem só uns batedores de carteira de praça e vários atentados ao pudor de certos “performers”.
Ele gargalhou, balançando a cabeça.
— Essa é uma boa parte do trabalho - admitiu. — Mas fica mais sob responsabilidade dos policiais e outros oficiais. Geralmente, eles guardam as coisas piores para nós.
— Os cérebros da delegacia - ela brincou.
— Algo do tipo - ele concordou. — Mas e você? Com o que trabalha?
— Eu trabalho com administração. Principalmente na parte financeira, sabe? Eu lido com o dinheiro das pessoas.
— Parece divertido.
Ela fez uma pequena careta, apertando o nariz.
— Às vezes sim. Acho que você tem que aprender a fazer com que seja divertido.
— E você aprendeu?
pensou em seus últimos pequenos crimes. Pensou em como nunca deixava de ser satisfatório ver o olhar de ódio de um homem por se ver sendo enganado e controlado, sem poder fazer nada para impedir. A fúria que corria por suas pupilas dilatadas ao se perceberem à mercê nas mãos de uma mulher era um sentimento aconchegante que ela colocava para repousar ao seu lado no travesseiro todas as noites.
Mas, mais do que isso, a parte mais excitante dos trabalhos dos últimos tempos contava com seu protagonista essencial. não fazia ideia de como a adrenalina parecia pulsar com o dobro de voracidade em suas veias apenas para cumprir a representação fidedigna da expectativa de ter que lidar com ele novamente naquela caçada. Mesmo que ela soubesse que estava vencendo o jogo por já conhecer cada uma de suas fases e truques.
— É, acho que aprendi, sim - ela respondeu, dando um pequeno gole na borbulhante água.
— Acho que é mais ou menos assim quando você trabalha com investigações também - ele contou. — Quer dizer, existe algo de instigante e quase provocante em se colocar à prova a todo momento tentando desvendar situações. É quase como montar um quebra-cabeça enorme sendo que espalharam as peças pelo bairro todo. Mas pelo menos deixaram pistas no caminho.
“O ponto é: existem vidas envolvidas nisso e a pressão e os prazos. Tentamos ser rápidos e objetivos, mas se ficarmos muito presos a essa ideia, não só o trabalho sai mal feito, como viramos estatística de burnout em duas semanas.”
Ela aquiesceu.
— Tudo é sempre uma questão de equilíbrio, né? Pena que essa é literalmente a coisa mais difícil da vida.
— Nem me fala - ele concordou, rindo. — Imagino que você também deva sofrer. Se as pessoas já não sabem esperar ou respeitar quem trabalha para elas, imagina quando isso envolve diretamente dinheiro.
— O bolso é sempre a parte do corpo que mais dói. Mas é exatamente isso que me move a continuar com o meu trabalho.
Ele moveu a cabeça com veemência, como se estivesse encantado em poder concordar completamente com isso. Pena que ele não sabia da missa a metade. De boas intenções o inferno estava cheio, e todas as suas eram bastante pecaminosas conforme os preceitos bíblicos.
Ela precisava fazer o assunto voltar a ser sobre ele antes que seu instinto investigativo começasse a perceber as pequenas mensagens subliminares propositalmente colocadas nas entrelinhas para que sua história fosse uma verdade maquiada e não apenas uma mentira deslavada.
— De onde surgiu essa vontade de ser detetive, trabalhar para a polícia e tudo mais?
— Não sei. Não tem, tipo, um momento exato, sabe? Não tem uma inspiração familiar, um trauma ou um encanto de infância. Eu só achei que pudesse ser legal poder ajudar as pessoas e ter a oportunidade de trabalhar com investigações. Quer saber, acho que eu sei o que foi, sim. Eu pensei que eu fosse ser o Sherlock Holmes e trabalhar na Scotland Yard.
— Bom, isso explica um pouco o sotaque.
Ele riu alto, levando a mão ao peito em um gesto teatralizado de ofensa. Ela tinha certeza de que encontraria gestos como aquele nos musicais que assumia que ele deveria amar.
— Eu nem tenho sotaque!
— E eu não tenho alongamento de cílios.
— Eu nem percebi que você tinha.
— Porque algumas coisas são mais fáceis de esconder do que outras - ela disse, com uma piscadela. — E esse ar de gentleman britânico não é uma delas.
Ele riu alto, sendo obrigado a concordar.
— Pelo menos, gentleman britânico soa melhor que lorde inglês.
— Será mesmo?
estendeu o indicador para ela de forma acusatória, com os cílios longos - mesmo sem alongamento, porque o universo era uma grande merda injusta - se aproximando sobre os olhos semicerrados.
— Você está tentando entrar na minha cabeça. Não vou deixar você fazer isso. Eu sou um perfeito cidadão novaiorquino vivendo o sonho americano. Você não vai tirar isso de mim.
teve que rir da enxurrada de palavras que lhe acertaram em um só fluxo de consciência. Tinha algo de adorável na espontaneidade dele, que fazia seu peito palpitar só um pouquinho, como se o coração tivesse acabado de passar por uma arritmia transitória. Era uma pena que isso às vezes matasse. Literalmente.
— Tudo bem, senhor “I love NY” . Não vou destruir sua autoafirmação patriótica enviada diretamente do outro lado do Oceano Atlântico.
Ele levou o dorso da mão à boca, tentando, sem sucesso, esconder o ligeiro engasgo.
— Do que você está rindo agora?
— Eu comprei essa camisa na minha primeira semana aqui.
— Puta merda. Não posso dizer que eu não esperava, mas você se tornou um caso perdido cedo demais. Uma semana…
— Eu ainda estava vivendo como um turista, tirando foto de cada esquina e me perguntando como conseguir ingressos mais baratos para a Broadway. Juro que não demorei muito para voltar a me comportar como uma pessoa normal.
— Não sei se posso confiar nisso. Você não faz muito o tipo normal nem agora.
— Que absurdo! De onde você tirou isso?
Ela arqueou as sobrancelhas, deixando suas íris levemente nubladas pesarem sobre os olhos dele.
— Você está mesmo me fazendo essa pergunta? É mesmo necessário?
— Isso tudo por causa de uma camisa?
— Eu sei lá. Você é da polícia, claramente precisa ser pelo menos um pouco perturbado para isso, Sherlock.
A risada dele ficou mais alta de repente e ele se mostrou cada vez mais empenhado em provar que era o símbolo da normalidade, enquanto, meio que de propósito, soltava bolas fora apenas para engajá-la mais naquele pequeno jogo de interesses escondidos em que tinham se colocado.
Com base central naquele mesmo assunto, eles já deviam ter pulado para pelo menos cinco diferentes, arborizando em uma sequência que ao menos mantinha um pingo de coerência.
não fazia ideia de quando tinha sido a última vez em que se divertira tanto, ainda mais com tão pouco esforço. Poderia depositar toda a sua força e foco nisso e ainda não conseguiria se lembrar. Talvez o motivo fosse mais sua busca sem respostas e menos alguma falha em sua memória.
— Eu juro! - prosseguiu, rindo em meio às lembranças da própria história. — Quando meu irmão veio aqui, nós ficamos em um hotel, primeiro porque ele queria conhecer os lugares e segundo porque eu não estava nem um pouco disposto a insistir que ele ficasse no meu apartamento.
— Menos faxina para você - ela foi obrigada a concordar. — Acho justíssimo.
— Foi exatamente o que eu pensei. E tinha café da manhã incluso.
— E não tem absolutamente nada a ver com o que vocês comem na Inglaterra - ela chutou.
Ele balançou a cabeça, gargalhando.
— Algumas coisas dá para aceitar, sabe? As salsichas, o bacon, as batatas… Mas ele teve que parar para perguntar onde ele conseguia um pudim preto.
Foi inevitável a careta de confusão e um misto antecipado de quase ojeriza na face de .
— Eu tenho até medo de perguntar o que raios é um pudim preto.
— É uma salsicha de sangue de porco com aveia, cevada e essas coisas.
— Puta que o pariu. - Sua voz saiu mais esganiçada do que ela pretendia. — Por que vocês não podem comer coisas normais? Um simples pudim de chocolate não era bom o suficiente para vocês? É isso?
— Em minha defesa, eu sou uma pessoa muito mais feliz sem pudim preto - ele disse, colocando as mãos ao alto em sinal de rendição. — Mas, nossa, foi um momento de vergonha alheia tão grande. Ainda mais quando ele teve que explicar do que estava falando.
— Talvez fosse só um plano maquiavélico para esvaziar o restaurante e poder comer sozinho. Você que não entendeu.
— Bem que eu queria.
Várias pessoas já haviam saído, várias outras haviam entrado pela porta barulhenta que implorava por um pouquinho de óleo. Ela poderia facilmente estimá-las se não estivesse com toda a sua atenção voltada para o maior momento de hiperfoco de sua vida. Alguma coisa havia se quebrado em seu pequeno paraíso sombrio e o caos era simplesmente lindo em seu melhor estado de destruição.
— Nós precisamos fechar, suas faladeiras - o barman avisou, após mais duas horas. se assustou ao ver o horário em seu relógio de pulso, adornado por prata cromada e uma tira de couro marrom que ela achava um pouco texana demais para o estilo que lhe caía bem.
— Meu Deus, eu perdi completamente a noção do horário - ele contou, rindo em seguida. — Você conseguiu mesmo entrar na minha cabeça no fim das contas.
deu de ombros, com um sorriso de canto.
— Sinto muito, eu não consigo evitar.
O cambaleio na passada de cada um dos quatro pés que se dirigiam para fora só não era maior porque tinham passado tempo o suficiente ali para que a corrente sanguínea se acostumasse a lidar com a quantidade de álcool correndo por ela.
Expostos à brisa cada vez menos branda da madrugada, eles apertaram os braços em torno dos próprios corpos, rindo um para o outro pela visão duplicada de seus próprios movimentos.
— Sabe de uma coisa, ? Você tinha razão. Eu precisava mesmo me desestressar. E eu me diverti muito com você essa noite.
— Fico feliz por ser útil - ela disse, puxando a costura inferior do sobretudo como se estivesse prestando uma reverência em agradecimento. — E mais feliz de poder dizer, honestamente, que a recíproca é verdadeira.
A curva da elevação dos cantos dos lábios dele deveria ser a sua imagem favorita em toda a vida. Era impossível não sorrir de volta.
Em uma linguagem silenciosa trocada apenas entre olhares, ele tinha uma pergunta a fazer e ela soube exatamente que resposta dar. Em poucos segundos, ele assimilou a nova informação, transformando-a em estímulo para fazer o que havia desejado várias vezes durante a noite.
E não era quatro de julho, ano novo ou qualquer outra data festiva, mas os fogos de artifício que carregavam dentro de si como um barril de pólvora estouraram com mais força do que já tinham percebido alguma vez na vida.
Seus lábios se encontraram como se fossem argila fresca, moldando-se aos do outro a fim de ocupar o lugar que, de repente, parecia ter sempre sido seu. A mão de em sua nuca tinha acabado se revelando como um gesto de consequências mais intensas do que ela poderia prever. Não seria surpresa alguma se sua pele tivesse derretido em meio aos seus dedos, decidida a eles pertencer.
A separação por fôlego era uma lástima, um absurdo, uma calamidade do mais alto porte. Ela não queria respirar. Não precisava disso, quando o calor do corpo dele tão perto do seu era a única coisa lhe mantendo viva.
— Posso anotar seu número? Talvez a gente possa fazer isso de novo - ele disse, com um sorriso que se tornara quase tímido. — Ou outras coisas. Só queria te ver mais uma vez.
O canto esquerdo da boca dela foi calmamente repuxado para cima.
— Estarei aqui semana que vem, - declarou, desviando do pedido. — Nessa mesma bat-hora, nesse mesmo bat-canal.
E quando o primeiro táxi amarelo a levou para longe dele, precisou recuperar o fôlego que ela tinha roubado. Junto de qualquer resquício de sua sanidade.
levou outra colher generosa do ‘New York Fudge Chunk’ que tinha encontrado no congelador. Jogou os dois pés para cima da cama, pouco se importando com as solas gastas do coturno sobre o lençol branco que não era seu.
— Acabou de voltar da lavanderia - o homem murmurou, com a voz já completamente arrastada.
— Pobrezinho, não tem dinheiro para pagar outra lavagem - ela lamentou, antes de continuar com o seu sorvete. — E vê se fala menos. Sua voz é muito chata.
Com a mão livre, ela usou os dados do cartão de crédito ilimitado dele para fazer três depósitos diferentes, usando três destinatários com nomes de lojas de fachada usadas apenas para lavagem de dinheiro. Escolheu valores com centavos quebrados para dar um tom mais realista e porque gostava disso. Era quase como o prazer de colocar o celular para despertar às seis e vinte e dois só pela satisfação de se sentir indo em direção contrária ao resto das pessoas.
Ao terminar as transferências, devolveu o cartão à carteira que repousava sobre a cabeceira e foi então que percebeu o erro de principiante que acabara de cometer. O celular que deveria estar também sobre a mobília tinha sido alcançado pelo corpo temporariamente drogado ao seu lado.
Aquilo não era de seu feitio. Nem mesmo em seus primeiros golpes, cheios de falhas e planos com lacunas mal executadas, tinha permitido que deslizes tão toscos passassem despercebidos. E aquela deveria ser, basicamente, a regra número um de qualquer livro manual para ladrões. Se é que isso existia.
O pior de tudo é que ela sabia perfeitamente o porquê. Havia se tornado mais aérea, um pouco mais desleixada. Seus pensamentos, antes tão precisos e minuciosa e friamente calculados, estavam enevoados, perdidos, escapando vez ou outra para correr por outros prados, em uma busca quase árcade e bucólica de uma realidade que jamais poderia ser a sua. E a culpa era toda dele.
Se conseguisse, por um segundo sequer, deletar ou ao menos silenciar as imagens de - graciosamente acompanhadas da risada que havia se tornado sua sinfonia favorita - de seu cérebro, poderia fazer um trabalho melhor. Mas não. Seus pensamentos repetitivos e obcecados a estavam tornando medíocre. O que quer que fosse aquele aperto acelerado no peito e aquele comichão que começava na boca do estômago e parecia não saber quando parar, estavam botando tudo a perder.
Pelo menos, a qualidade e a concentração do composto usado eram características pelas quais ela prezava com maestria e, nelas, jamais erraria. O playboy na cama poderia ter conseguido apertar botões suficientes para a discagem de emergência e ligar para a polícia, mas sua língua enrolada parecia grande o suficiente para não caber mais na boca sem oferecer um obstáculo à garganta e suas pregas vocais.
— Me dá essa merda - reclamou, tomando o celular repousado em sua mão aberta, completamente rendida à hipotonia de seus músculos.
E ela deveria ter só desligado. Só precisava de um mísero movimento da falange distal de seu indicador para acabar com aquela palhaçada. Mas ela o ouvia do outro lado. Ele. Logo a pessoa que conseguia desmontar sua racionalidade em questão de segundos. Ela não conseguiu silenciar as vozes em sua cabeça que imploravam para que ela interagisse, sucumbisse ao contato pelo qual tanto desejara a cada segundo de cada um dos últimos dias.
— Você de novo? - Perguntou, tentando usar a maior naturalidade em sua voz, combinada com apenas algumas singelas gotas de sarcasmo e falso desprezo. — Gotham está em perigo?
Ela podia jurar ter ouvido um pequeno bufo do outro lado, que mais parecia um sopro cansado. Uma parte de si quase queria entrar pelo telefone, colocá-lo no colo e brincar com seus cabelos até que ele esquecesse suas preocupações.
— Boa noite, qual a sua emergência?
Ela tinha certeza de que o tédio e o cansaço em sua voz eram tantos que quase se tornavam palpáveis, como se a unidade do ar tivesse atingido o limite total de saturação.
— Você foi rebaixado ou algo assim? O que leva um detetive a ser colocado para atender o telefone a essa hora? Não deveria ter alguém menos importante na hierarquia para fazer esse tipo de plantão?
— E você não tem nada melhor para fazer além de ficar passando trote para a polícia?
Ela riu, lambendo a parte côncava da colher, ainda cheia do sorvete de chocolate que já havia derretido em sua maior parte.
— Acredite, por mais que eu adore ouvir a sua voz, eu não tinha interesse algum em ter essa conversa hoje. Talvez seja melhor perguntar para o seu amigo porque ele te ligou.
— Por que você continua fazendo isso?
— Acho que eu não entendi a sua pergunta.
— Por que esses golpes? Para quê? Porque obviamente não é só uma simples questão de buscar dinheiro.
— O que você quer? Que eu te dê um motivo nobre para isso? Vai me denunciar para o Comitê de Ética?
— Eu só não acho que as coisas sejam tão maniqueístas, tão preto no branco como as pessoas gostam de fazer parecer. Não é você que adora falar de Batman? Deveria saber que todo vilão tem a sua história de origem.
Ela duvidava muito que um dia fosse conseguir se reconhecer como vilã, mas guardou aquele pensamento para si. Se ele queria uma história, então ele a teria:
— Alguns anos atrás, minha irmã abriu o próprio negócio com o trabalho suado e cada gota do talento e da dedicação que ela tinha. Nessa mesma época, ela casou com um babaca cujo mau caráter só ela não conseguia enxergar. Acontece que entre o negócio e o casamento, obviamente só um deles deu certo.
“E não me pergunte de legislação, jurisprudência ou sei lá o quê mais. Eu não entendo e nem nunca quis tentar entender. Tudo o que eu sei é que esse filho da puta deu um jeito de enrolar a minha irmã por muito tempo, até que, em determinado momento, tudo o que ela tinha foi passado para ele. E não existe justiça ágil ou certa o suficiente nesse mundo que recupere há tempo o estrago que ele deixou. Um maldito explorador e enganador tirou tudo dela. Todos os homens que eu encontrei nos últimos tempos têm sua própria parcela de culpa em explorações com outras pessoas, grupos e, especialmente, trabalhadores. Se eu não consegui fazer com que ele pagasse, pelo menos sei que estou fazendo com que seus semelhantes paguem.”
Ela respirou fundo, antes de continuar, sentindo o peso que era verbalizar tudo aquilo que tinha carregado sobre os ombros por tanto tempo.
— A justiça falhou com a pessoa mais importante da minha vida. Então, eu dei meu próprio jeito.
A respiração do outro lado da linha se tornou mais pesada. Ela sentia um saco de cinquenta quilos de cimento parecendo cair sobre os próprios pulmões, tornando sua respiração mais difícil. De repente, a simples perspectiva de aguentar mais um segundo sequer naquele silêncio cheio de tensão tinha se tornado completamente insuportável.
— Não vai falar nada? A minha história de origem não foi boa o suficiente para você?
— Eu sinto muito que você tenha passado por isso. E também sinto muito por ela. Sinto muito por esse sistema ridículo.
Ela soprou o ar pelo nariz, em uma risada triste.
— Você é parte dele.
A decepção em sua voz tinha o atingido como garras afiadas, perfurando sua própria consciência. Ele ainda levou algum tempo antes de dizer, em um novo tom de voz distante para o qual ela não havia se preparado:
— Certo, senhorita. A ligação foi um engano, então vou desligar para reabrirmos a linha para denúncias de verdade. Por favor, só ligue para esse número de novo se for uma situação de emergência. Boa noite.
E com o bipe repetitivo da ligação encerrada, ela engoliu em seco. Ele simplesmente tinha permitido que ela passasse ilesa por mais um dia. E ela não fazia ideia do porquê.
não tinha certeza se realmente queria descer daquele táxi. No momento, ela definitivamente estava mais inclinada a fechar a porta, pedir para o motorista dar meia volta e simplesmente pagar o dobro. Era melhor do que continuar ali parada, sentindo cada volta de seu estômago, lembrando-a de como absolutamente tudo parecia cada vez mais perfeitamente bem articulado para dar totalmente errado.
Mas essa não era ela. Ela não dava as costas para as adversidades. E ela não era a pessoa que deixava para trás assuntos inacabados. Tinha jurado a si mesmo que aquela seria a última noite antes de tomar um novo rumo e deixar para trás várias das coisas que tinham sido colocadas pelo caminho. Ela precisava de seu próprio desfecho.
Fez um exercício de respiração básico, cujas coordenadas tinha na cabeça por algum motivo, antes de entrar no bar. Seus olhos correram uma prova de cem metros rasos em tempo recorde até o banco que havia ocupado exatamente uma semana atrás.
Nessa mesmo bat-hora, nesse mesmo bat-canal.
E ela não era a única que havia decidido se ater àquilo. Ela reconheceria aqueles fios ligeiramente enrolados na base da nuca em qualquer lugar. Se evocasse sua memória sensorial, conseguia mesmo sentir a textura deles entre seus dedos.
— Acho que você está adiantado - ela falou, sentando-se ao seu lado e finalmente chamando sua atenção.
Distraiu-se tanto com o sorriso largo e iluminado que levou alguns segundos para perceber que suas mãos não estavam vazias.
— Eu não sabia se você tinha alguma flor preferida, então só peguei as mais bonitas que encontrei. Achei que combinavam contigo.
Ela sorriu, vendo a delicadeza das margaridas, com o tom de amarelo que tinha acabado de se tornar sua cor favorita no mundo.
— Então, essas meio que são as suas favoritas - ela brincou.
— Elas me lembram você, então sim.
Com um novo rubor nas bochechas, agradeceu, evitando o novo embaraço que viria se consumasse sua vontade de abraçar aquele buquê e não se soltar mais dele. Queria se agarrar a cada segundo daquelas lembranças enquanto podia. Talvez empacotar as melhores recordações e guardá-las por cima na mala antes de ir embora.
— Como foi a sua semana?
Ela parou para pensar por uns instantes, brincando com um guardanapo remanescente que provavelmente haviam esquecido de tirar da sua frente.
— Mais do mesmo - ela disse. — Acho que foi uma semana de reorganização.
— Entendi.
Ele não entendia. E era melhor que fosse assim. Ela não sabia se teria forças para fazer o que precisava fazer se colocasse mais aquela pedra em seu próprio percurso.
— Mas e a sua semana? Como vai a vida super animada e excitante do maior detetive de Nova York?
— Tem caras maiores do que eu - ele brincou. — Faltam alguns vários quilos para eu puxar na academia antes de assumir esse título.
o empurrou de leve.
— Você sabe do que eu estou falando, tonto.
Ele riu alto, apenas balançando a cabeça.
— Acho que é o peso que me cabe por ser muito bom no que eu faço. Mas, brincadeiras à parte, foi normal. Acho que também posso dizer que foi uma semana de reorganização.
— Ah, fez uma faxina no quarto? É importante.
— Acho que foi uma faxina aqui dentro - ele respondeu, encostando o indicador e o dedo médio na têmpora.
— Que profundo. E o que você encontrou de interessante dentro dessa cabecinha?
— Se quiser mesmo saber, vai ter que me pagar um jantar primeiro.
— Minha oferta se limita a uma porção de batatas fritas. Nada mais do que isso.
— Eu posso fazer uma contraproposta.
Ela estreitou os olhos, avaliando-o com atenção.
— E qual seria?
— Nós podemos ir para a minha casa e eu cozinho. Um jantar de verdade, não só batatas fritas.
E tinha se tornado uma bênção o fato de ela ainda não ter pedido nada para beber ou teria se prestado ao papel da cena mais clichê e vergonhosa da história, engasgando e cuspindo em público.
— Como é que é?
ergueu as mãos rapidamente em resposta, tentando se eximir da culpa por ter dado um passo maior do que a perna e pela possível indiscrição.
— Não foi isso o que eu quis dizer. Eu não sou um pervertido - garantiu, rindo de si mesmo por falar aquilo. — É só um jantar. Sem segundas intenções?
Ela aquiesceu, puxando a bolsa do balcão e se colocando de pé.
— Topo. Mas fale por você quando diz que não existem segundas intenções.
O apartamento dele era um pouco maior do que ela esperava e muito menor do que aqueles em que ela costumava parar esporadicamente por volta desse horário. Tinha uma decoração minimalista em quantidade de informações, mas bastante aconchegante e acolhedora na escolha de tons quentes.
O conceito aberto, ao menos, era de orgulhar Drew, Jonathan e todos os aficcionados pelo seu programa. soltou o corpo sobre o sofá dele, sentindo o estofado firme e a textura macia da manta sobre ele colocada. Ela tinha quase certeza de que encontraria o cheiro dele perdido entre a trama se arriscasse aproximar seu nariz só um pouquinho mais.
foi direto para a cozinha, abrindo duas garrafas long neck de cerveja e lhe oferecendo uma, após um brinde rápido.
— Fica à vontade. Se quiser ligar a TV, o controle fica nessa caixinha em cima da mesa. Só não tem todos os canais liberados.
Ela sorriu com a confissão levemente envergonhada dele. Não precisava de nada daquilo.
— Não faz mal. Eu estou satisfeita observando você.
O homem deu uma voltinha de trezentos e sessenta graus no próprio lugar, flexionando os bíceps em poses exageradas como a de uma estátua grega em culto e adoração ao corpo. balançou a cabeça descrente. Droga, ela sentiria mais falta dele do que queria admitir. Como era possível ter se tornado tão dependente de alguém que não vira pessoalmente mais de duas vezes? Existia algo sobre ele. Algum resquício vicioso que a tinha colocado em adição imediata. Ainda era uma realidade agridoce de se digerir e ela preferia não remoer por tempo demais todas as implicações psicológicas de seu passado nesse processo. Não precisava fazer sua auto análise naquele momento.
— O que o chef vai cozinhar?
Ele forçou um pigarro leve, coçando a garganta antes de anunciar:
— Para o jantar de hoje teremos arroz à piamontese e filé mignon ao molho madeira.
— Isso é tão chique que eu não entendi metade das palavras que você acabou de dizer. Fala sério, para você ter tudo isso à mão é porque já tinha deixado tudo planejado.
— É claro que não.
— Eu duvido - ela insistiu. — O que você ia fazer com esse tanto de comida se eu recusasse o seu convite?
O som da cebola fritando no fio de óleo ao fundo da panela subiu imediatamente, embalado pelo cheiro que, em sua humilde opinião, deveria ter sido classificado em algum momento como um dos cinco melhores do mundo.
deu de ombros, enquanto trazia o escorredor de arroz para mais perto.
— Provavelmente comeria o equivalente a duas refeições. E já tinha deixado sorvete no congelador caso precisasse afogar as mágoas do pé na bunda mais doloroso da vida.
— Você é muito exagerado.
— Um homem não pode mais comer por dois?
— Estou falando do seu drama. Pior pé na bunda? Eu duvido que você sequer tenha tomado um na vida, quem dirá vários para começar a ranquear.
— Ah, não. Eu tomei muitos ao longo da minha adolescência. Eu era insistente demais e atraente de menos. E eu digo insistente do tipo que tinha esperanças de que a próxima fosse decidir me dizer sim e não um importunador sexual. Que fique claro.
— Obrigada por esclarecer. Fico mais tranquila - ela brincou. — Mas ainda não acredito nessa história de que você era pouco atraente. Se é confete que você está esperando, não vai receber.
— Eu posso te garantir que não é mentira. Se você aguentar até o fim da noite, quem sabe não deixo você dar uma espiada no meu álbum de infância?
— Isso vai incluir as fotos vergonhosas?
— , querida - ele chamou. — Absolutamente todas as fotos são vergonhosas.
Ela se colocou de pé tão rápido que sentiu automaticamente o efeito do álcool.
— Nesse caso, me diga o que eu posso fazer. Esse jantar precisa sair logo.
— Se você quer tanto ajudar, pode abrir a garrafa de vinho branco.
— Acho que eu vou voltar para o sofá. Não quero te atrapalhar.
riu alto, arremessando o pano de prato em direção ao rosto dela. Seu reflexo rápido foi chocante até para si mesma. Ela impediu a costura do tecido de acertá-la e de cair no chão.
— Não tinha me dito que era boa em esportes.
— Sim, fui campeã como receptora de pano de prato no ensino médio. É uma variação clássica do beisebol.
— Isso é definitivamente muito mais legal que a minha medalha de terceiro lugar no xadrez.
E enquanto ele terminava os preparos, decidiu que poderia contar aquela história. Não fazia mal se expor levemente ao ridículo por ter conquistado o pior lugar no pódio e, mesmo assim, só ter chegado a ele por vencer dois jogos por W.O. contra uma garota e um garoto que, na verdade, eram um casal e tinham conseguido uma bela intoxicação alimentar juntos na noite anterior, quando decidiram comemorar o aniversário de namoro em um restaurante de procedência bastante duvidosa na beira da estrada. Até que era uma história romântica. Na saúde e na doença; na vitória e na derrota.
Ele também admitiu que relia o manual de instruções simplificado antes de todos os jogos porque embaralhava as regras na cabeça e tinha certeza de que uma hora ou outra tentaria mover sua rainha em L. Sinceramente, ele ainda não se lembrava, anos depois, se ela poderia fazer isso.
o ajudou a arrumar a mesa enquanto ele falava sobre o fiasco do jogo que ele foi obrigado a jogar (e perder miseravelmente). Ela se preocupou em não rir, mais para não derrubar o resto do vinho branco do qual tinha se apossado e menos por pena da tragédia que era o passado atlético de .
Ele montou dois pratos bem servidos e dignos de competições de culinária. Talvez não para Gordon Ramsay, mas jurados normais e menos diabólicos provavelmente concordariam que era uma montagem bonita. E, definitivamente, atraente o suficiente para fazer o seu estômago roncar.
— Acho que essa é a comida mais incrível que eu já comi em toda a minha vida.
— Você só está dizendo isso para me agradar.
Ela negou com veemência.
— Eu não me daria ao trabalho se não fosse verdade. Acredita em mim, isso é simplesmente perfeito.
— Certo. Acho que eu posso aceitar um elogio.
— Sim, você vai sobreviver.
Durante o jantar, eles tinham contornado vários assuntos. achava bonito como as histórias de , de alguma forma, sempre conseguiam ser um pouquinho sobre o seu irmão. E ela invejava essa proximidade. Por segurança da irmã e da sobrinha, seus contatos tinham se pop tornado cada vez mais raros ao longo do tempo. E, droga, ela tinha perdido uma parte gigantesca do próprio coração ao deixá-la para trás, pelo seu próprio bem. Mas era por uma boa causa. Ela precisava se convencer disso ou a vida se tornaria simplesmente insuportável.
— Você não fala muito da sua irmã, né?
O pedaço da carne, por mais macio que fosse, desceu rasgando sua garganta, virando uma bola seca.
— A gente perdeu um pouco o contato. - Ela deu de ombros, fingindo que não doía. — Acho que é a vida adulta. Acontece.
— Ela mora longe?
Se a distância fosse literal assim, seria mais fácil.
— É, de certa forma, pode-se dizer que sim.
— Se um dia quiser falar sobre isso, eu vou estar bem aqui.
— Quem sabe - ela completou, dando o sorriso fraco de quem duvidava muito disso.
Continuaram conversando e comendo até que tivessem menos trabalho com a lavagem da louça, pois tinham decidido usar até as últimas gotas do molho. Alguns chamariam de gula; mas eles preferiam a ideia de que estavam salvando o planeta alguns pingos de água a menos por vez.
Enquanto secava os pratos, ela se viu perdida em meio aos seus próprios pensamentos. O relógio em regressiva na sua mente não parecia disposto a lhe dar trégua.
— No que você está pensando?
— Em como seria incrivelmente rude você não me oferecer aquele sorvete que contou que está no congelador.
A musculatura do rosto dele relaxou, transformando-se em um sorriso enquanto ele caminhava até o refrigerador para buscar o pote. Com duas colheres, ele se sentou ao lado dela no sofá.
— Arrependida de ter aceitado o convite?
— Só se você tiver se arrependido de me convidar.
— Nem um pouco.
— Então a resposta é não.
Ele deixou escapar uma risada leve, enquanto levava ao lixo o pote vazio e jogava as colheres usadas na pia. Elas poderiam esperar um pouco.
— Eu não faço ideia de como te dizer isso sem parecer um clichê idiota, mas você é uma pessoa muito especial - ele declarou, arriscando puxar a mão dela para tomá-la entre as suas.
Ela não recuou. Nem um maldito pelo sequer de seu corpo estava preparado para se esquivar dele.
— É clichê mesmo - ela concordou. — Mas até que é bonitinho quando sai da sua boca. Apesar de eu ter certeza de que você consegue fazer melhor uso dela.
Sem maiores avisos prévios, ela tinha rastejado até ele, livrando-se do pouco espaço que ainda os separava. Enquanto os seus lábios se encontravam com a urgência da espera e a ansiedade da expectativa, ela se encaixou sobre o seu colo.
estava em êxtase e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer. Havia muito a explorar e apenas duas mãos - que ele decidiu por encaminhar uma para a sua nuca e outra para uma de suas nádegas, apertando-a com força.
arqueou a coluna, buscando mais contato, mais entrega, mais de qualquer migalha que ele pudesse lhe oferecer. Mas ele não era um homem de fragmentos e, sim, de inteiros. E ele era inteiramente dela.
Quando ela sentiu a pressão dele contra seu baixo ventre, sua própria pulsação se acelerou. Talvez o coração fosse mesmo capaz de bater na garganta. Ou em outros lugares. Especialmente quando os seus quadris a impulsionavam ainda mais para frente e o tecido de sua roupa íntima era tão fino.
desgrudou suas bocas por um instante, recebendo um olhar desolado da mulher que tinha à sua frente.
— Essa é uma hora muito ruim para eu te apresentar o meu quarto?
não conseguiu segurar a gargalhada que se formou imediatamente. Mas não precisou de muito tempo para entrelaçar suas pernas ao quadril dele e se permitir ser levada.
Ela se mexeu mais uma vez contra o estofado fino.
Não era como se nunca tivesse passado por um aeroporto antes, mas definitivamente não se lembrava daquelas cadeiras serem tão desconfortáveis.
Talvez simplesmente fosse pior quando o desconforto vinha de dentro dela. Quando seu coração se recusava a deixar que ela se esquecesse, por um segundo sequer, de tudo que estava deixando para trás.
A irmã, a sobrinha, a vida como ela conhecia. E, agora, ele . Ele quem havia sido a sua primeira e mais próxima experiência do amor que se expandia do que era conhecido como fraterno e familiar. Ele quem a tinha feito sentir tudo o que escreviam nos livros: o bom e o ruim; o doce e o amargo. Ele que tinha conseguido cavar um buraco em seu peito mais rápido do que seria saudável deixar alguém fazer.
Mas era a sua melhor opção. Estar longe era melhor do que ser presa ali. Também era melhor do que viver com medo. E ela definitivamente não queria mais aquela vida. Não fazia mais parte dela. Tinha se descolado dela como um parasita pós tratamento. Um parasita que já havia lhe tomado tempo e força vital demais. Com seu objetivo primeiro atingido, ela tinha a paz de espírito para simplesmente deixar ir.
— Tem alguém sentado aqui?
Ela duvidou de sua própria sanidade mental. Não era possível que estivesse ouvindo aquela voz. Aquilo era seu cérebro lhe pregando uma peça, brincando com os seus sentimentos.
Mas não era. Não era possível que os seus olhos tivessem aceitado fazer parte naquela piada de péssimo gosto.
— O que você está fazendo aqui?
sorriu, ocupando o banco ao seu lado.
— Eu te disse - ele respondeu. — Eu sou muito, muito bom no que eu faço. Você pensou mesmo que podia simplesmente entrar em um avião e desaparecer?
Ela não tinha certeza se deveria continuar respirando. Quase parecia ser pedir demais, como se aquilo também estivesse na extensa lista de proibições que ela havia transposto.
— E honestamente? - continuou. — Eu prefiro a Ivy. É bem mais bonito.
O riso que veio de seu nariz só não era tão incômodo quanto a sensação de que havia um lacre se apertando ao redor de seu músculo cardíaco. Se era assim que a desesperança se parecia, era uma sensação bem mais dolorosa do que ela esperava ter de um dia conhecer.
Recusando-se terminantemente a sentir pena de si mesma, ela esboçou as únicas palavras que o sarcasmo, como seu mecanismo favorito de defesa, era capaz de escolher:
— Onde estão as algemas? - Perguntou, estendendo os pulsos. — Pode me levar.
simplesmente deslizou as próprias mãos pela pele desnuda e tão facilmente arrepiável da parte interior de seu antebraço. Seus dedos - cujo toque ela detestava adorar conhecer tão bem - encontraram os dela, entrelaçando-os. O toque estranho era dolorosamente familiar e bem-vindo.
— Eu topo experimentar em algum momento se esse for um desejo ou fetiche seu. Mas aqui não. Não acho que seja necessário.
— Que papo é esse agora?
respirou fundo, ajeitando-se contra o banco, mas não interrompendo, por um instante sequer, o contato entre eles.
— Não foi difícil ligar os pontos depois de te conhecer - ele explicou. — A voz parecida, as descrições que tinham algumas semelhanças, a coincidência dos horários e das situações. E eu não estou dizendo que você fez um mau trabalho se escondendo. Pelo contrário, você fez um ótimo trabalho. Só não bom o suficiente para quem tinha motivos demais para reparar em você.
— Você andou me seguindo?
— Você acha que eu não sei que você apareceu no bar da primeira vez de propósito? Eu estava só fazendo o meu trabalho.
— E eu o meu.
— Não sei se é assim que funciona. Tenho quase certeza que não.
— E se você sabia de tudo por que não me entregou? Não era esse o seu trabalho?
Ele deu de ombros, exalando o ar pesadamente.
— As coisas nem sempre são tão preto no branco. Lembro de já ter te dito exatamente isso há uns dias. Aliás, como fica a sua irmã nessa história?
— Tenho dinheiro o suficiente para manter as duas bem enquanto esperamos que as coisas comecem a se encaminhar no tribunal. E não pretendo ir para longe o suficiente para não conseguir voltar. Só longe o bastante para ter a minha paz.
— Eu fiquei sabendo - ele disse, lhe entregando a própria passagem. — Washington, não é? Achei meio dramático precisar de um avião para isso, mas não sou eu quem dita as regras.
— O que é isso?
— Uma passagem, oras. Você deve ter uma também.
— E onde você pensa que vai?
— Não é Washington que está escrito aí? - perguntou, tomando o papel de volta apenas para ler a palavra que ele já esperava encontrar. — É sim.
— E o seu trabalho?
— Bom, talvez você não seja a única a ter se cansado do sistema. Estou fora do caso e do precinto.
sentiu o peso dos ombros se suavizando, derretendo como um sorvete esquecido em plena luz do sol em um dos dias mais irremediavelmente quentes do verão.
— E daí você decidiu se demitir e se mudar logo para Washington?
— É - ele concordou. — É basicamente isso. Só que, na verdade, eu meio que já consegui um emprego lá.
— Mas que coincidência!
— Não é? Também achei incrível.
Ela meneou a cabeça, contendo o sorriso que queria se formar.
— Você é completamente louco.
— Talvez parte disso seja culpa sua.
— Minha? De que jeito?
O rapaz fez uma careta.
— Os caras chegavam com denúncias dizendo que você os tinha drogado. Vai ver você também fez isso comigo. Uma poção do amor talvez.
— Eu guardo minha amortentia para situações especiais só.
— E eu não sou especial o suficiente para ela?
— Não precisei recorrer a recursos para te conquistar. Acho que você já era bem perturbado por conta própria.
— Vai ver é por isso que deu certo - ele concordou. — Vai ver a sua loucura parece um pouco com a minha.
Ela riu, balançando o crânio para os lados, ainda descrente, relutando em acreditar que tudo aquilo era realmente verdade. Para quem tinha certeza de que tinha ido longe demais daquela vez, talvez ainda tivesse salvação para o seu pequeno caso perdido.
— Nesse caso, espero que Washington seja grande o suficiente para ambas.
E com um aperto um pouco mais forte em sua mão, ela soube que ele também esperava. E que estariam juntos para descobrir. Por mais errado que fosse.
FIM
Nota da autora: DON'T BLAME ME LOVE MADE ME CRAZY and so did taylor swift
Se você nunca assitiu à performance de DBM na reputation world tour, você é um grande herege e não aceita a deusa em sua vida. Haverá consequências. Para evitá-las, ASSISTA À REP TOUR, TEM NA NETFLIX, TEM NO STREMIO, TEM EM TODO LUGAR PORQUE É SIMPLESMENTE O MAIOR EVENTO DA HUMANIDADE DESDE A FORMAÇÃO DO UNIVERSO. Bom, essa historinha foi escrita com muito carinho, mas também com muita ficção, pois O NOME É FIC MESMO. Não existe compromisso com a realidade ou a verossimilhança dos fatos. Mas espero que você tenha gostado mesmo assim!
Existe muito carinho no meu coração para essas duas personagens (e para seu respectivo dream cast) e eu precisava compartilhar um pedacinho deles com vocês. Eles precisavam sair da minha cachola e conhecer um pouco o mundo.
Sem mais delongas, espero que tenham gostado e, se você chegou até aqui, eu agradeço profundamente por me dar uma chance. Espero te receber aqui mais vezes.
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
UM BEIJO E UM QUEIJO!
Caixinha de comentários: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
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01. Mine
02. Blow Me (One Last Kiss)
02. Boyfriend
02. cardigan
02. Don't Let It Break Your Heart
02. Stitches
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03. Take A Chance On Me
03. Try Hard
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
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05. You In Me
06. All of Me
06. Billy
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
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11. Nós
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12. Be Alright
12. They Don't Know About Us
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13. False God
13. Kiss The Girl
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15. Overboard
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Señorita
Wallflower
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