Paredes brancas, corredores bem iluminados, feições tristes, barulhos de aparelhos, médicos correndo de um lado para o outro. Choro, gritos... Era com isso que eu estava convivendo nesses últimos meses. Josh, meu protegido, estava doente e nesse tempo, a doença se agravou. O câncer, que ocupava seu estômago, se alastrou e tomou outros órgãos. Sua situação era muito delicada e sua família sabia que a qualquer momento poderia ser a sua hora. Sua esposa e sua filha não saiam do seu lado por mais de cinco minutos, elas queriam passar o maior tempo possível com ele. Elas não choravam mais, não queriam que ele partisse num ambiente triste, a doença em si já era ruim o suficiente. Elas apenas aceitaram o fato de que se partisse, seu sofrimento diminuiria. Senti alguém ao meu lado, olhando a mesma cena que eu, nem precisava olhar, apenas sua presença era o bastante para mim.
- Samuel.
- .
- Por favor, poupe o de mais sofrimento.
- Eu só estou aqui para que o sofrimento acabe, eu posso parecer, mas não sou um vilão, não sou eu quem decide quem sofre ou não.
- Eu sei, Samuel, mas eu peço que você faça o que puder.
- Meu trabalho, assim como o seu, já é escrito. Eu só os levo, , assim como você só os protege. Quem decide é Aquele que você chama de Pai, ou Deus, como achar melhor.
- Não estamos aqui para discutir isso, estamos? – eu o encarei e ele negou com a cabeça. – Vou prepará-lo.
- Vá em frente. – Essa era a pior parte da minha jornada com o meu protegido, a hora de partir. Mas de certa forma, eu sentia que ele estaria bem melhor no outro plano, onde ele estaria longe da dor, da tristeza e qualquer tipo de sofrimento.
- Josh, está na hora. – eu disse perto de seu ouvido. Eu pude vê-lo sorrir fracamente, de alguma forma ele sabia quem eu era, mesmo que eu nunca tenha aparecido para ele, não em forma humana, por assim dizer. Josh respirou fundo, acariciou o rosto da filha e beijou a mão da esposa, depois olhou diretamente para mim. Quando nossos protegidos conseguem nos ver, significa que a hora deles chegou, junto com o fim de mais uma jornada para mim. Uma forte luz invadiu o quarto, e seu espírito saiu de seu corpo, passando a andar ao meu lado, em direção a mesma.
- Agora ele te acompanhará.
- Não tenha medo, seu destino foi cumprido. Aproveite o paraíso. – Samuel disse, incentivando-o a seguir em frente, através da luz. – E você cumpriu sua missão. – ele disse para mim. Fechei os olhos, voltando para o meu lar, temporariamente, é claro.
Algumas pessoas podem ter descoberto quem eu sou, mas se você ainda não percebeu, eu sou um Anjo... Um anjo da guarda, para ser mais exato. Eu acompanho meu protegido em todos os momentos de sua vida, desde o nascimento, até a morte, como foi o caso do Josh. Então a vida do meu protegido, passa a ser a minha, mas eu sempre tive a certeza de que eu não tenho uma, aparece que eu não estou verdadeiramente vivo. Mas isso não afeta a minha missão, eu sempre procuro cumpri-la com perfeição, afinal, é a única coisa que posso fazer, por mim, por ele, por todos. Minha missão é fazer com que eles tenham uma vida longa e boa, cumprindo todo o destino, sem nenhum desvio. Quem conseguir seguir todo o caminho traçado é recebido com prazer no paraíso. As pessoas devem se perguntar como é o paraíso, na verdade, elas o imaginam de diferentes formas, com anjos voando entre as nuvens, outros tocando harpas e essas coisas. Elas ficariam decepcionadas se soubessem que não é nada do pensam. Nada de anjos voando ou tocando qualquer instrumento. Cada um tem sua função e a executa ininterruptamente, como eu, por exemplo, que estou a caminho de saber quem será meu novo protegido. Miguel, meu superior, já estava a minha espera.
- , sua nova protegida já foi selecionada.
- Para onde eu vou agora?
- Londres.
- Ela já possui nome?
- Sim, . E aparentemente, ela possui um destino estranhamente traçado.
- Mas todos tem, Miguel.
- Mas o dela é, digamos, diferente. Tem algo não decidido, não confirmado. Como se dependesse da vontade de outra pessoa.
- Mas se depende da vontade de outra pessoa, isso estaria no destino dessa outra pessoa e, consequentemente, no dela, certo?
- Tecnicamente sim, mas têm pessoas que possuem o poder de ter o destino modificado de outras formas, formas que nem nós entendemos. Mas você não precisa se preocupar agora, no momento você entenderá.
- Tudo bem. Quando eu começo?
- Agora. – assim que ele disse, fechei os olhos, sentindo uma força me puxando de volta à Terra.
Quando abri os olhos, me vi na sala de parto, onde a mãe de estava dando a luz. A linda menina olhou diretamente para mim – as crianças podem nos ver, por serem puros e ingênuos. Ela não emitiu nenhum som, nenhum choro, nenhuma reação, mesmo depois da intervenção dos médicos. O pediatra que estava na sala, saiu apressado com a menina em seus braços, tentando de várias formas, que ela reagisse. Depois de várias tentativas, ela finalmente chorou, fazendo todos ficarem aliviados, porém, a expressão no rosto do pediatra, não mostrava tanto alívio. Quando ele entrou no quarto que Sophia – mãe de – estava, ele parecia bem nervoso.
- Dr. Green, está tudo bem com a minha filha? – Sophia perguntou, claramente nervosa.
- Senhora , ela nasceu prematura e sempre há riscos nesses casos. Aparentemente o sistema respiratório dela não está completamente formado e ela precisará ficar na incubadora por alguns dias. Não é nada que a senhora precise se preocupar agora, nós faremos uma bateria de exames para descobrir o que há de errado, isso se houver mesmo alguma coisa.
- Eu posso vê-la?
- A senhora não deveria se levantar agora, tem que ficar um pouco de repouso.
- Por favor.
- Que seja rápido então.
Sophia caminhou lentamente até a unidade de tratamento intensivo do hospital, onde sua filha estava no momento e pela primeira pude olhar bem para a minha protegida. Ela era muita pequenina e magra, até mesmo para uma recém-nascida; seus olhos, levemente amendoados, estavam fechados; seu tronco subia e descia rapidamente, como se estivesse com dificuldade de respirar, mesmo com a sonda presa ao seu nariz. Sua mãe de aproximou do vidro, colocando sua mão na parte interna, pela passagem existente e segurando, com extremo cuidado, a mãozinha da filha.
- , meu bem, não se preocupe, mamãe está aqui e sempre estará. Você vai bem – ela tentava conter as lágrimas – Vai sair daqui logo, logo. Vai pra casa, conhecer o lindo quartinho que nós arrumamos pra você.
- Senhora , a senhora precisa descansar. Daqui a algumas horas a senhora pode voltar.
- Tudo bem.
Sophia se retirou do aposento e fiquei, observando o pequeno bebê que já lutava pela sua vida. Coloquei minha mão no lugar que há poucos segundos, a mão de sua mãe ocupava e repeti suas palavras: Você vai ficar bem, não se preocupe, eu estarei sempre aqui. Sempre.
Horas depois...
Sophia tinha acabado de acordar, quando Nate e seu marido, Adam, entraram no quarto. Nate tinha cinco anos, e estava louco para conhecer a irmã. Sophia teve uma gravidez complicada e sempre teve o filho lhe apoiando, dizendo que seria o melhor irmão mais velho que poderia ter e lá estava agora, cumprindo seu papel. Enquanto seu pai e sua mãe conversavam no quarto, Nate seguiu escondido, para a ala restrita do hospital, para ficar perto de sua irmãzinha. Porém, as enfermeiras o encontraram e tiveram que levá-lo de volta para o quarto, mas não antes dele constatar que sua irmã era tão linda e pequena, como ele imaginava.
- Senhor e Senhora ? – o Dr. Green disse, entrando no quarto.
- Sim. – Sophia disse, ajeitando-se na cama.
- Nós realizamos alguns exames no bebê e diagnosticamos uma doença.
- Que doença? – Adam perguntou, nervoso.
- Aparentemente, ela nasceu com uma doença degenerativa no coração. Ele não funciona da forma que deveria, o transporte do sangue oxigenado é deficiente, dificultando assim a chegada de oxigênio aos pulmões. Ela terá que ter um acompanhamento de um médico especializado sempre. Às vezes ela poderá ter algumas crises, falta de ar, ou desmaios, então é de extrema importância que vocês fiquem de olho, principalmente enquanto ela dorme.
Os pais de não esboçaram nenhuma reação enquanto o médico falava, como se estivem absorvendo as informações.
- Ela pode morrer? – Sophie perguntou, com lágrimas nos olhos.
- Se ela sempre tiver o acompanhamento correto, as chances são pequenas, mas sempre há chances.
- Sempre há chances. – Adam repetiu, sussurrando.
- Vou encaminhá-los para o Dr. Simpson, ele é um especialista, saberá como proceder, ok?
- Tudo bem. – Sophia disse, segurando a mão do marido.
Um mês depois...
Finalmente receberia alta. Ela conseguiu alcançar o peso mínimo para a liberação e toda a sua família estava presente. Nate estava nervoso, seria praticamente a primeira vez que ele veria sua irmãzinha de perto. Durante todo esse período, ele não pode entrar na UTI, devido a sua idade.
- Mamãe, você deixa eu segurar a ? – ele perguntou, assim que a mãe saiu do hospital, com a filha nos braços.
- Assim que chegarmos em casa, tudo bem? – ele assentiu com a cabeça, correndo em direção ao carro. Quando o pai abriu a porta traseira, ele sentou em seu assento infantil, arrumando a cadeirinha do bebê, que foi colocado na mesma em seguida. Ele não conseguia tirar os olhos da irmã, como se ela fosse a coisa mais importante no mundo. Seus pais tinham explicado que era um bebê especial e que precisaria de cuidados especiais, isso serviu só para aumentar o amor e a preocupação que ele já sentia. Algo extremamente inesperado para uma criança de sua idade.
Ele seguia de perto seus pais, até o quarto que ele visitava todo o dia, aquele que ficava ao lado do seu, o rosa, cheio de bichinhos de pelúcia e bonecas. foi colocada gentilmente no berço e eu me sentei na poltrona que ficava logo ao lado. Seu pai saiu do quarto, indo até a garagem pegar o restante das coisas, sua mãe foi colocar a bolsa no quarto, restando apenas nós dois e Nate. Ele se aproximou do berço, ficando na ponta dos pés para enxergar. Um singelo sorriso brotou em seus lábios ao ver a irmã finalmente em casa, sentindo a família completa.
- Quem tá falando é o seu irmão, Nate. Você pode contar comigo pra qualquer coisa, tá? Eu não vou contar pra mamãe se você fizer bagunça, vou te proteger na escola, brincar com você... Ah! Todas essas coisas, mas pra isso você tem que crescer logo. – ele fez um bico. – Você tem que aprender a falar, não gosto de falar sozinho, fico parecendo um bobão. – ele se esticou para tocar em seu braço. – Você é tão pequenininha, parece que vai quebrar. – ele deu uma risadinha. – Olha você não pode fazer muita bagunça pela casa, só aqui no seu quarto, senão o papai briga. Na escola então, nem pensar, senão mamãe te deixa de castigo, sem ver desenho durante uma semana. Olha, a mamãe tá vindo, então depois eu conto mais coisas que você não pode fazer, tá. – ele se esforçou mais uma vez, colocando o dedo na mão da , que apertou muito levemente o mesmo, fazendo o irmão sorrir de orelha a orelha. - Bem vinda à família, .
Os primeiros meses foram extremamente complicados. Os cuidados que eles deveriam ter com a , não eram os mesmos que se deve ter com uma criança normal. Sua mãe praticamente não dormia, ela só conseguia descansar quando Adam ou quando a babá que contrataram estava em casa. Sendo que após a primeira crise que ela presenciou, a babá pediu demissão, ela viu o tamanho da responsabilidade que estava em suas mãos. Então todo o peso era jogado em cima da cabeça de seus pais. Perdi as contas de quantas vezes vi Sophia chorando ao lado do berço, pedindo a Deus que as coisas melhorassem, que Ele tornasse a vida de todos um pouco mais fácil, tranquila.
Seu primeiro aniversário foi marcado por uma festa de aparências. Com o passar do tempo, sua mãe aprendeu a esconder tudo o que ela passava em casa. As brigas, agressões verbais, quase físicas, e agora as traições. Ela suportava tudo calada, para o bem dos filhos, pois se não fosse o salário do marido, ela não saberia o que fazer. Eles eram como completos estranhos. Estranhos que dividiam uma cama, uma casa, uma família, uma vida. Independente disso tudo, crescia bem, graças ao zelo de sua mãe. Suas crises eram raras, ela estava grande e feliz. Como toda criança de sua idade deve ser. Já seu irmão, que consegue entender o que se passa ao seu redor, absorvia toda a aura pesada que pairava pela casa. Ele passou a criar um sentimento diferente pelo pai, uma espécie de rancor. Ele sabia o que o pai fazia a mãe dele, sabia que era errado e que ela aceitava isso por ele e pela irmã. Era no mínimo triste que uma criança da idade dele já alimentasse esse tipo de sentimento, ainda mais pelo pai, mas era uma espécie de bloqueio, de proteção. Assim ele não se magoaria, como sempre acontecia.
O acompanhamento do Dr. Simpson estava rendo bons frutos, aos cinco anos, estava pronta para o seu primeiro dia na escola. Escola essa recomendada pelo próprio Dr. Simpson, era a escola onde sua filha mais nova estudava e onde o mais velho também estudou. Claro que a sua mãe não estava contente com essa novidade, ela tinha medo do que podia acontecer com sua filha. Elas nunca tinham passado muito tempo separadas e a escola seria um ótimo teste para ambas. Porém tinha várias recomendações médicas que são difíceis de uma criança cumprir, ainda mais na companhia de outras. Não correr, não pular, não se cansar... Isso é quase um ‘não viver’ para crianças. Mas ela sabia que todas essas regras eram para o seu bem, para que ela ficasse bem. Diferentemente do irmão, não guardava rancor do pai, ele a tratava bem, não maravilhosamente bem, mas de uma forma que ela achava que era o bastante. A ideia de mandá-la para a escola foi dele, ele queria que ela se tornasse normal, coisa que não aconteceria se ela continuasse ‘debaixo da asa da mãe’, termo usado pelo próprio. Ele estava certo, pelo menos em alguns aspectos. Não deixar viver ou retirá-la do convívio de outras crianças seria prejudicial a ela e a mãe sabia disso, tanto que aceitou a ideia da escola. O primeiro dia de aula rendeu mais recomendações que o natural. Estavam as duas na porta da escola, trazia um enorme sorriso no rosto. Ela nunca havia estado no meio de tantas crianças de sua idade. Todas correndo e brincando, livre de qualquer impedimento. Mas isso não a desanimava, ela se sentia livre, a sua própria maneira.
- Filha, você sabe o que não deve fazer, certo?
- Sei, mãe. – respondeu, impaciente – Não posso correr, não posso pular, se não eu fico doente.
- A mamãe só está preocupada, meu anjo. Eu nunca passei tanto tempo longe de você. – Sophia disse, segurando o choro. olhou para a mãe, em seguida para o lado, onde a cena era o inverso, uma menininha chorava, não querendo se separar da mãe.
- Mãe... – ela disse, fazendo a mãe abaixar e ficar na sua altura – Não é porque eu não estou chorando que eu não gosto de você, tá. – ela deu um sorriso.
- Eu te amo, minha filha.
- Também te amo, mamãe.
Ela deu um último beijo em sua mãe e seguiu para sala de aula, o olhar de sua mãe era carregado de preocupação, mas não se importava com isso. Eu queria poder dizer para sua mãe que estava ali, que ela não precisava se preocupar, que estava em boas mãos. Mas eu não podia interferir tão ativamente, então lancei uma onda de tranquilidade por ela, para que conseguisse ao menos ir para casa.
olhou mais uma vez para mãe antes de entrar sala e viu de relance o sorriso encorajador da mãe. Ela estava com uma pequena mochila rosa nas costas e um coelho de pelúcia, o mesmo que a acompanhava desde quando era bebê. Ela sentou-se numa pequena cadeira de plástico, em frente a uma das seis mesas que havia na sala. Ao seu lado tinha outra menininha, loira e com os olhos claros; a sua frente estava um menino, moreno com os olhos e cabelos escuros. Pouco tempo depois, aquela mesma menina que estava chorando na porta da escola, entrou na sala, sentando-se ao lado de . Seus olhos ainda estavam molhados e vermelhos, seu rosto retorcido numa careta e os braços cruzados na altura do peito. Ela realmente não queria estar ali. achava complemente estranha a reação daquela menina, afinal, ir para a escola era o seu maior desejo e alguém não querer estar ali era completamente incompreensível. Ela estudou atentamente o rosto da menina, até que num impulso resolveu falar com ela.
- Não precisa chorar, sua mamãe vai voltar pra te buscar. – disse, dando um sorriso em seguida.
- Eu quero minha mãe agora. – a menina disse, fazendo bico. olhou para o coelho e depois para a menina, repetido depois.
- Eu te empresto o Zac. – ela disse, estendendo a mão com o coelho – Mas toma cuidado, tá. – a menina a encarou por um tempo e olhou para o coelho, pegando-o. Ela o abraçou e sorriu um pouco.
- Qual é o seu nome? – a menina disse, mais animada.
- e o seu.
- Hellen.
E assim começaram a conversar. A conversa não foi das mais interessantes, afinal, sobre que assunto duas crianças de cinco anos de idade podem falar, a não ser brinquedos, desenhos e outras brincadeiras? Elas passaram o dia todo juntas, lancharam, pintaram, desenharam juntas. Mas na hora da brincadeira que o dilema apareceu. Quando chegaram ao pátio, todas as crianças corriam, pulavam, enfim, faziam o que a mãe de pediu que ela não fizesse e ela não faria. Hellen saiu correndo junto com as outras crianças, deixando para trás. Ela pegou seu coelho e sentou-se num dos bancos do local, brincando sozinha. Após alguns minutos, Hellen se aproximou.
- Por que você tá aqui sozinha? – ela sentou-se ao lado de .
- Minha mãe pediu pra eu não correr e nem pular, eu fico doente se fizer isso.
- Por quê?
- Não sei... – deu de ombros, voltando para o seu brinquedo.
- Eu posso brincar com você? – Hellen perguntou, com um sorriso no rosto.
- Claro! – responde animada, pegando outros brinquedos na mochila que carregava.
Faltava pouco tempo para a hora da saída e as crianças ficariam brincando até seus pais chegarem. As duas novas amigas continuavam no banco, enquanto as outras crianças, inclusive as mais velhas, corriam para todos os lados. Até que Jullies – uma menina mais velha, que também brincava no pátio – avistou as duas e correu em direção a elas, com outras duas meninas em seu encalço. A que corria a frente, chegou primeiro, pegando o coelho das mãos de Hellen.
- Devolve o meu Zac. – pediu.
- Não, agora ele é meu. – Jullies disse, colocando o coelho atrás de seu corpo.
- Me devolve. – Hellen gritou, levantando do banco e tentou pegar o coelho. Mas foi impedida por Jullies, que a empurrou, fazendo com que ela caísse no chão.
- Se você quer o seu bichinho, é melhor você sabe correr bem rápido. – dizendo isso, ela começou a correr, deixando as duas meninas para trás. Antes que Hellen conseguisse levantar, saiu correndo atrás de Jullies, contrariando todas as recomendações feitas por sua mãe. Ela corria o mais rápido que podia, mas mesmo assim não conseguia se aproximar das outras meninas. Depois de correr por quase todo o pátio, ela parou abruptamente. Seu rosto estava pálido, seus lábios esbranquiçados, sua respiração pesada, parecia que ela cairia a qualquer momento. Segundos depois seu corpo foi ao chão, fazendo com todos corressem ao seu encontro, até mesmo as meninas que provocaram isso. A senhora Manson, sua professora, a pegou no colo, seguindo para a enfermaria, gritando para que alguém ligasse para a mãe da menina e para a ambulância. A preocupação em visível no rosto do todos no colégio, alguém murmurava que a ambulância estava demorando; outro murmurava que a respiração dela estava fraca demais, que ela precisava ir para o hospital imediatamente. Cinco minutos depois a ambulância chegou e os enfermeiros correram com para dentro da mesma. Com uma máscara de oxigênio em seu rosto, ela seguiu, ainda desacordada, para o hospital.
Então era esse seu destino? Morrer aos cinco anos de idade?
Nesses momentos que eu me pergunto: Por que eu existo? Por que eu devo proteger uma pessoa, se a qualquer momento ela pode partir? Eu não posso evitar essas coisas, eu não posso interferir diretamente, não posso modificar um destino já traçado, muito menos um indefinido. Passei todos esses anos esperando as informações que Miguel me prometera. Ele disse que eu as receberia no momento certo, esse seria um deles? Eu espero que sim. E se esse é realmente o destino dela, porque ele não estava traçado, definido e, agora, concretizado? Por que essa demora, essa angústia?
Os aparelhos mostravam que ela ainda estava viva, mas a situação não parecia tão favorecedora. Ela nunca tivera uma crise tão forte como esta, ela nunca estivera tão frágil, tão debilitada. Era estranho o laço afetivo que existia entre nós, eu sentia que deveria fazer algo a respeito, mas o quê? O que está ao alcance de minhas mãos? Infelizmente, nada.
- Peço que você não se envolva tanto, ela será minha em breve. – o tom de sua voz, parecia capaz de tornar todo o ambiente mais frio, sombrio, quase fúnebre. Era difícil acreditar em qualquer coisa boa com ele por perto, era como se ele sugasse os bons sentimentos. Samuel surgiu ao meu lado, com seu sorriso irônico nos lábios.
- Qual é o seu problema?
- Nenhum, estou apenas fazendo o meu trabalho, . – ele deu de ombros, encostando as costas no vidro que permitia ver dentro da UTI – Eu não tenho problemas pessoais com ninguém, até porque eu não sou de fato uma pessoa. Assim como você, por mais que você esqueça isso às vezes.
- Você estava falando a verdade quando disse que ela seria sua em breve? – ignorei seu último comentário.
- Eu não minto, às vezes eu posso omitir alguns fatos, mas eu não minto. Tem algo que impede que a leve hoje, como impediu que eu a levasse desde o dia que ela nasceu. Você não sabe o que é? – ele perguntou, levantando as sobrancelhas, como se soubesse de algo que eu não sei.
- Se eu soubesse não estaria perguntando, certo?
- Você nunca vai enxergar o que está diante do seu nariz. – ele murmurou.
- O que você quis dizer com isso?
- Olhe para frente, o que você vê? – ele voltou a posição inicial, apontando com a cabeça para frente, cruzando os braços na altura do peito.
- Eu vejo a numa cama, ligada a diversos aparelhos e...
- Não, . – ele balançou a cabeça lentamente – Afaste-se um pouco do vidro e me diga o que vê. – fiz o que ele disse, observando mais atentamente.
- Eu vejo meu reflexo. – eu disse confuso, eu não deveria ver, nem ao menos ter um reflexo. Tentei lembrar a última vez que vi meu próprio rosto, meus olhos eram lembranças anuviadas pelas sombra que parecia se formar ofuscando todo o meu passado. Levantei uma das mãos, tocando o rosto e vi o gesto ser repetido a minha frente. Estendi as mãos, quase que tocando o vidro. Era como se outra pessoa estivesse do outro lado, aquele rosto não era meu. Aquele não era eu ou não era o que um dia eu fui. – Como?
- Aprendi alguns truques. – ele disse rindo. – É boa essa sensação, não é? O simples de fato de conseguir ver a si mesmo como pessoa é sensacional. Há quanto tempo você não se sentia assim?
- Muito tempo. – disse, ainda atordoado com o que estava acontecendo.
- Infelizmente os humanos não dão tanto valor a vida, se eles soubessem o que os esperam. – ele acenou negativamente com a cabeça – Mas o que é bom... – disse, fazendo o reflexo desaparecer lentamente, deixando a minha vista mais uma vez – Dura muito pouco.
- Como... Como você pode fazer isso?
- Ser o que sou tem alguns benefícios... – ele deu de ombros – Enfim, entendeu o que eu quis dizer sobre algo que impede que ela vá, por exemplo, agora? – no momento em que ele disse isso, o coração de falhou numa batida.
- Eu tenho alguma coisa a ver com isso?
- O que você acha? Ela não resistiu durante todo esse tempo sem nenhum motivo muito forte. – ele respirou fundo, mesmo sem necessidade – Bom, eu preciso ir, é um grande hospital... Muito trabalho, se é que você me entende. Pense no que eu te falei ou nos veremos em breve, quem sabe...
Antes que eu pudesse pedir uma explicação sobre o que ele tinha falado, ele não estava mais lá. Algo estava acontecendo, ou estava para acontecer. Eu podia sentir. Algo maior do que qualquer coisa que eu já tenha visto ou vivido. De alguma forma eu impedia a morte dessa menina e alguma coisa dentro de mim esperava que isso continuasse acontecendo. Eu queria que ela vivesse, eu precisava que ela vivesse. Era como se a sua luta pela vida, fosse a minha também. Como se a vontade que ela tinha de viver, aumentasse a minha dedicação. Eu sentia que seria um trabalho árduo, mas isso não em desanimava, pelo contrário, me motivava. Eu estava mantendo-a viva e era isso que continuaria fazendo pelo maior período de tempo que eu pudesse. Se isso fosse o que estava a ser decidido em seu destino, eu acabara de aceitar minha maior e mais importante missão.
Senti uma presença no recinto, uma onda de tranquilidade e uma atmosfera de paz inundaram o ambiente. A diferença entre as duas sensações era gritante, assim como os sentimentos que elas despertavam. Sentindo minha mente mais leve, ouvi a voz de Miguel ecoando em minha cabeça: ”Não estava nos planos você ter pistas sobre isso agora, mas acho que você está no caminho certo. Você era a chave de tudo e agora aceitou traçar o destino dela.”
Espero que você seja sábio e tome as decisões corretas, . Eu espero que dê certo...
Sophia surgiu correndo através do longo corredor, esbarrou em algumas pessoas pelo caminho, inclusive com o Dr. Simpson. Ela parecia exausta, nervosa, ansiosa, estava um pouco pálida, com a respiração ofegante. Se apoiou no médico, respirando fundo antes de falar.
- Peter, o que aconteceu? Como está minha filha, onde ela está? Eu preciso saber o que aconteceu, como aconteceu, e...
- Sophia, por favor, se acalme. Ela está bem, não corre mais perigo. – Sophia pareceu relaxar um pouco com o que o médico disse, mas não o suficiente para que o nervosismo fosse embora.
- Eu... Eu preciso vê-la. – ela praticamente implorou.
- Nesse momento, só através do vidro da UTI.
- Como, UTI? Você disse que ela não corre perigo...
- Mas não corre, a UTI é só uma precaução, fica tranquila. – ela continuava preocupada, era possível ver em seus olhos. – Vamos vê-la?
- Vamos. – ela concordou e eles seguiram pelo corredor em direção ao quarto. Pararam em frente ao vidro e Sophia repetiu a posição que eu estava há pouco tempo. Ela passava cuidadosamente as mãos pelo vidro, como se estivesse fazendo carinho na filha. As lágrimas escorriam por seus olhos, por mais que ela tentasse impedir.
- Não se preocupe, ela vai ficar bem, é uma garota forte. – ela apenas assentiu fracamente com a cabeça.
- O que eu vou fazer agora? – ela murmurava.
- Você disse alguma coisa?
- Não. – ela apoiou a cabeça no vidro, respirando fundo.
- Onde está Adam? – Peter perguntou.
- Ele... – ela respirou fundo, buscando forças para responder.
- Aconteceu alguma coisa, Sophia? – o médico perguntou preocupado.
- Não. – ela forçou um sorriso – Não aconteceu nada de importante.
- Nós nos conhecemos há cinco anos e eu acho que consigo perceber que aconteceu alguma coisa.
- As coisas não andam bem lá em casa, e já tem um bom tempo que estão assim.
- E não há nada que você possa fazer? Você sempre pode fazer alguma coisa...
- É algo que eu posso simplesmente ignorar, eu venho fazendo isso há alguns anos. – ela riu sem humor – Mas chega um momento em que você fica saturada. Eu estou exausta, eu acho que não tenho uma noite tranquila de sono desde que a nasceu. Eu não estou reclamando, só acho que algumas coisas deveriam ser dividas, algumas responsabilidades deveriam ser compartilhadas.
- Problemas com o Adam? – Peter perguntou meio sem jeito.
- Problemas são apelidos carinhosos perto do que temos, mas não é nada com que eu não possa lidar. – ela respirou fundo, forçando um sorriso em seguida.
- Eu não sei o que falar. Na verdade, quando minha esposa era viva, nós não éramos o tipo de casal perfeito.
- Não existem casais perfeitos, Peter, o que existem são pessoas dispostas a levar uma relação adiante. – ela deu de ombros.
- Quer saber? Acho que vou quebrar algumas regras... Quer ver sua filha? – ele perguntou com um sorriso.
Sophia entrou no quarto lentamente, segurava o choro a cada passo que dava. Ver a filha naquelas condições a matava por dentro, ela daria qualquer coisa para trocar de lugar com ela, sofrer em seu lugar... Na verdade, ela provavelmente sofria tanto quanto , mas de outra forma. Ela pegou uma das mãos de sua filha e colocou sobre a sua, com a mão livre, ela acariciou o rosto da menina. Ela estava com uma feição tranquila e, aparentemente, parecia não sentir dor ou algo do tipo.
- Meu amorzinho... – ela passou as mãos na testa da filha, tirando alguns fios de cabelo que ali estavam. Ela não conseguia mais segurar o choro, as lágrimas escorriam de seus olhos uma após a outra. Ver tão debilitada não era novidade, mas sempre doía. De repente, as pálpebras da menina tremeram e seus olhos se abriram um pouco. Ela estranhou o ambiente e ficou confusa até enxergar sua mãe ao seu lado.
- Mamãe, o que aconteceu? – ela perguntou, tentando tirar a sonda que estava presa ao nariz.
- Não, querida, não pode tirar. – Sophia disse, dando um sorriso verdadeiro para a filha.
- Por que eu tô aqui?
- Você passou mal e teve que vir para o hospital, não se lembra de nada?
- Eu lembro um pouco. Estava brincando com o Zac... Onde está o Zac, mamãe? – a menina perguntou assustada, olhando por todo o quarto.
- Ele deve ter ficado na escola, vão cuidar bem dele. – Sophia passou a mão pelo cabelo da filha.
- Deve ter ficado com a , ela sim vai cuidar bem dele.
- Quem é , ?
- Minha amiguinha, mamãe. Ela ficou brincando comigo o dia todo. Comigo e com o Zac. Até que a menina grande pegou o Zac e saiu correndo. – ela disse fazendo bico – Ela é muito chata, mãe.
- Então essa menina pegou o Zac e saiu correndo? – afirmou com a cabeça – E você foi atrás dela, correndo também. – ela afirmou novamente, negando em seguida. Ela sabia que não devia ter feito aquilo.
- Foi sem querer, a menina grande pegou o Zac e empurrou a , o que eu podia fazer?
- Não correr? – Sophia perguntou, rindo – Você sabe que é por isso que está aqui, não sabe? – afirmou – Você vai fazer novamente? – ela negou – Então vamos esquecer isso.
- Onde está o papai e o Nate?
- Papai está no trabalho, e o seu irmão na escola.
- Quando eu vou pra casa? – ela perguntou fazendo bico e tentando tirar a sonda mais uma vez.
- Não sei, meu bem, só o Dr. Simpson sabe. Eu vou lá fora falar com ele, você vai ficar bem sozinha?
- Vou, só não demora, por favor.
- Não demorarei. – a mãe deu um beijo na testa da filha, que se ajeitou no travesseiro e fechou os olhos.
se recuperou bem e passou a seguir as recomendações da mãe. Durante os cinco anos seguintes, ela quase não sofreu nenhuma crise e fazia apenas o acompanhamento com o Dr. Simpson. Ele dizia que a doença não tinha sinais de melhora e nem de avanço, ela encontrava-se estagnada, controlada. Porém, a sua vida ‘fora’ doença não estava sob controle. Sua família estava cada vez mais despedaçada. Seu pai agora mal parava em casa e sua mãe se desdobrava para dar conta de tudo que deveria fazer, a única coisa que Adam ainda fazia, era pagar as contas e o tratamento da filha. Mas num dia, que parecia ser um como qualquer outro, tudo mudou. Sophia foi levar a na escola e quando voltou, estranhou algumas coisas fora do lugar em seu quarto e outras coisas não estavam onde deveriam. Abriu o armário e chocou-se ao perceber que tudo o que era de Adam tinha sumido. Procurou por todos os lugares, até encontrar um bilhete em cima da bancada da cozinha. Sophia abriu o bilhete com as mãos tremendo, ela sabia o que provavelmente estava escrito no papel, mas lê-lo só tornaria tudo mais real. Contudo, não estava escrito o que ela esperava. O bilhete só continha uma frase: ”Eu sinto muito.
Não havia explicações ou nada do tipo. Para Adam, aquele casamento não precisava de motivações para acabar, ele havia acabado sozinho. Ele tinha se desgastado até deixar de existir. Sophia também sabia disso, mas esperava uma atitude, pelo menos, madura do, agora, ex-marido. Não havia telefone ou um novo endereço no papel. Talvez ela tivesse visto Adam pela última vez naquela manhã, antes de sair de casa. Será que se ela soubesse que isso aconteceria, teria dito alguma coisa ou tudo terminaria como foi? Sem nada a ser dito? Sophia ficou sentada em silêncio em sua cozinha pelo resto da manhã, ela não tinha noção do que fazer de sua vida. Tinha dois filhos para sustentar e nenhum emprego. Quando voltou a si, estava na hora de buscar na escola e levá-la para a consulta com o Dr. Simpson. Pegou a bolsa e as chaves do carro, seguindo para a escola. Tentou disfarçar o nervosismo perto da menina, não queria que ela se preocupasse com isso agora. Talvez isso não fizesse tão bem a ela. Sophia não queria imaginar a reação de Nate quando ele descobrisse. O menino estava numa fase meio revolta de sua vida e isso com certeza agravaria a situação. Nesse momento ela soube que os problemas financeiros seriam os menores, ela teria problemas maiores para lidar.
Quando chegou ao hospital, mãe e filha seguiram ao encontro do Dr. Simpson, que recebeu as duas com um sorriso acolhedor, mas ao olhar nos olhos de Sophia, Peter soube que tinha acontecido alguma coisa.
- , querida, vá até a Bernadette e diga que eu falei pra ela te dar o chocolate que está na minha sala. – ele disse se abaixando, para ficar na altura da menina.
- Chocolate? – ela disse com os olhos brilhando – Posso, mãe?
- Claro. – Sophia forçou um sorriso, encorajando a filha a seguir em frente.
- O que aconteceu? – o médico perguntou preocupado.
- O Adam saiu de casa. Eu fui levar a na escola e quando cheguei, ele não estava, pensei que tivesse ido para o trabalho, mas quando abri o armário, não tinha nada dele. – Peter a levou até as cadeiras que estavam próximas, sentando ao seu lado.
- Como isso aconteceu? Eu pensei que o casamento de vocês ia bem...
- Nós não éramos casados há muito tempo, Peter, éramos estranhos que dividiam uma casa. Só que eu precisava dele por causa da , nunca pude trabalhar e era dele o único dinheiro da casa. Agora eu não posso mais pagar o tratamento dela, eu não sei como eu vou fazer com duas crianças, Peter, eu não sei...
- Sophia, calma, nós daremos um jeito. – ele disse, colocando a mão por cima da mão de Sophia.
- Nós? – ela levantou a cabeça, olhando para as suas mãos juntas e em seguida para os seus olhos e assim ficaram por alguns segundos.
- Desculpe. – ele disse sem jeito, retirando sua mão – E eu disse nós, porque queria ajudar. Meus filhos perderam a mãe muito cedo, principalmente a minha filha, e ela não tem um terço dos problemas que a tem, então eu sinto que preciso ajudar.
- Mas ajudar como, Peter?
- Eu posso bancar o tratamento da , eu me pago, não tem problema nenhum. – ele riu.
- Não posso aceitar, eu estaria tomando o tempo de outro paciente que paga a consulta.
- Então o que você vai fazer, vai deixar a sem acompanhamento médico?
- Não, eu darei um jeito de pagar. Vou arrumar um emprego ou algo do tipo...
- Emprego? É claro. – ele parecia falar sozinho – Tenho a solução perfeita, isso é, se você aceitar.
- O que é? – ela perguntou curiosa.
- Eu estava precisando de alguém que cuidasse dos meus filhos e da casa, alguém que pudesse ficar lá durante o dia. Se você aceitar, eu posso oferecer os dois quartos do primeiro andar, você se acomoda com os seus filhos. Estará trabalhando e me pagando pelos meus serviços como médico.
- Peter, eu não sei... – Sophia disse sem jeito.
- Você vai aceitar, porque eu não quero um não como resposta. – Ele abaixou o olhar, encarando o chão por alguns segundos – Eu sinto que preciso te ajudar, Sophia, por favor, aceite. Além do mais, eu estou com medo de não fazer um bom trabalho como pai. O Joe já está grande, ele já entende bem as coisas, mas eu sei que sente falta de um pai mais presente. E a Gabbie só tem doze anos, ela reclama que eu não passo muito tempo com ela. – ele voltou a olhar para Sophia, só que agora bem dentro de seus olhos – Eu também preciso de ajuda, acho que tanto quanto você. – dessa vez foi Sophia que colocou sua mão sobre as dele e lhe deu um sorriso encorajador.
- Eu acho que podemos passar por isso juntos. Não juntos nesse sentido, mas...
- Eu entendi. – ele também sorriu.
Dias depois...
- Mãe, por que nós temos que nos mudar para a casa de um desconhecido? – Nate perguntou, jogando suas roupas de qualquer jeito na mala. Sophia respirou fundo, tirando as roupas emboladas e começando a dobrar uma por uma.
- Nate, eu não tenho dinheiro suficiente para pagar o aluguel dessa casa e o tratamento da sua irmã, também não é a casa de um desconhecido, nós vamos para a casa do Peter, eu vou trabalhar lá.
- Desde quando a senhora chama o Dr. Simpson de Peter? – Nate perguntou, arqueando as sobrancelhas. Sophia ficou meio sem jeito e encarou o filho por alguns segundos.
- Chega de perguntas, termine de colocar as suas coisas nas caixas, o caminhão da mudança chegará a qualquer momento. – ela deu um beijo na testa do menino e seguiu para o quarto da filha, para empacotar as coisas dela.
Nate encarou o seu, agora antigo, quarto com as feições sérias, sérias demais para um menino de quinze anos. Ele sabia que tinha acontecido, sabia que o pai tinha abandonado a família e isso só fez com que todo o respeito que ele ainda tinha pelo pai, se acabasse. Ele pegou um portarretrato que estava na cômoda, na foto a família estava reunida e quem olhasse, pensaria que seria impossível que aquela felicidade acabasse um dia. Mas acabou. Na cabeça dele ele não tinha mais pai, a família dele se resumia a sua mãe e sua irmã mais nova. Mas algo parecia não se encaixar para ele, ele não entendia como alguém podia agir como o pai, como alguém podia ter sangue frio, a indecência, ser covarde ao ponto de abandonar a família, abandonar uma filha doente. Aquilo o deixava revoltado. Enquanto a maioria dos meninos de sua idade tem o pai como heroi, Nate via na figura de Adam tudo que ele mais repudiava. Ele sentia vergonha, sentia nojo, sentia pena... Pena de Adam ser como ele é. Ele abriu o portarretrato, pegou a foto e a encarou com repulsa, não conseguia encarar aquele homem. Com muito cuidado, ele rasgou a mesma, retirando Adam do retrato da família, família que ele não pertencia mais. Com quinze anos de idade, ele sentia que deveria ser o homem da casa, que deveria ajudar sua mãe e cuidar da sua irmã, que só tinha dez anos, ela iria precisar muito dele. E é isso que ele faria. Ele não chorava, muito menos ficava se perguntando por que aquilo estava acontecendo. Era como se ele tivesse crescido, amadurecido em poucos dias... Era como se ele não fosse mais uma criança. Tudo que ele já havia presenciado: as brigas, os gritos, tudo só ajudava a aumentar a raiva que crescia em seu peito. O que não é nada bom. Uma criança não pode nutrir sentimentos assim por ninguém, muito menos pelo seu pai. Ele colocou a última coisa que faltava na caixa, a fechou e colocou no corredor. Olhou uma última vez para o cômodo dando adeus a ele, dando adeus ao que ele representava... Dando adeus a sua antiga vida.
Sophia parou o carro em frente ao seu novo lar. Não era realmente dela, mas seria a coisa mais próxima que ela teria disso. Ela saiu do carro com um sorriso, tentando encorajar os filhos a fazer a mesma coisa. saiu meio desconfiada e triste, ainda sentia saudade do pai, ela não conseguia entender por que ele foi embora. Já Nate continuava enfurnado dentro do carro, essa mudança não estava o agradando.
- Nate, sai desse carro, a mamãe já está de cara feia. – disse, colocando a cabeça na janela ao lado do irmão. Ele apenas ignorou o que a irmã disse e colocou o fone de volta ao ouvido. A irmã puxou o fone e o encarou, ele bufou, tirando o outro fone e saindo do carro.
- Eu tenho que parar com essa mania de fazer tudo o que você pede. – ele disse e ela sorriu.
- Nossa, que casa grande. – disse boquiaberta. A casa tinha dois andares e era num estilo vitoriano: as paredes eram brancas e as molduras das janelas eram azuis, que contrastavam com o telhado acinzentado; na frente, e rodeando boa parte da casa, tinha uma varanda a qual um lance de escadas dava acesso; e tudo isso era bem moldurado por um belo jardim e grandes árvores em frente a casa.
- Ser médico realmente dá dinheiro. – Nate disse, concordando com a irmã.
- Vocês podem, por favor, me ajudar? – Sophia disse, pegando uma grande mala no carro.
- Eu ajudo. – um menino, que parecia ter a idade de Nate apareceu – Eu sou Joe, o filho mais velho do Peter.
- Ah, muito obrigada. Eu sou Sophia e esses são meus filhos: Nate e . – o menino sorriu e cumprimentou a todos, antes de pegar a mala das mãos de Sophia.
- Eu te ajudo, onde é pra colocar? – Nate disse, pegando outra mala.
- Eu te mostro. – Joe respondeu e eles seguiram para dentro da casa.
Alguns minutos depois, todas as coisas já estavam nos quartos e a pior parte começaria: arrumar tudo. Sophia resolveu fazer o almoço antes de começar a arrumação, já Nate seguiu para o quintal, pois Joe o convidara para jogar futebol. ficou sozinha no quarto que dividiria com o irmão. Sentada em sua cama, ela começou a lembrar de seu pai e algumas lágrimas brotaram em seus olhos. Era uma cena difícil de se ver, ainda mais quando não se pode fazer nada a respeito. Mas era como se eu precisasse fazer alguma coisa, ao menos dar apoio a ela. Talvez ela precisasse de companhia, talvez ela precisasse de um amigo. Talvez...
- Se eu fosse você, eu não faria nada contra as normas. – Samuel surgiu ao meu lado, com a mesma fisionomia superior.
- Mas você não é, e eu não pretendia quebrar nenhuma regra.
- Você sabe que se aparecer pra ela, pode complicar as coisas...
- E eu por acaso perguntei a sua opinião? – eu disse seco, tentando fazer com que ele desaparecesse logo. Ele balançou a cabeça lentamente.
- Só não diga que eu não avisei... – e assim como surgiu, de repente, ele se foi. Tentei pensar duas vezes antes de fazer qualquer coisa, ajudar meu protegido é a minha função e isso engloba qualquer tipo de ajuda, certo? Era nisso que eu estava me apoiando.
‘s POV
Eu me sentia estranha, como se alguma coisa faltasse. Tá, não é apenas qualquer coisa, eu sentia falta do meu pai. Ele foi embora sem se despedir, sem dizer se eu o veria novamente e isso me magoou. Eu ouvi Nate dizer à mamãe que ele não tem mais pai, mas eu não consigo pensar dessa forma. Minha família está incompleta e assim não funciona. Nós éramos como um mecanismo que precisava de todas as peças para funcionar perfeitamente e agora estaríamos quebrados para sempre. Talvez essa sensação de vazio se amenizasse com o tempo, provavelmente ela nunca me abandonaria, mas ficaria suportável. Talvez algo possa preencher esse espaço, mas o que? Ou melhor, quem?
De repente senti como se tivesse mais uma pessoa no cômodo, parecia que alguém me observava. Senti o colchão afundar ao meu lado e ao olhar, encontrei um rapaz que nunca tinha visto na vida, mas pela forma que ele me olhava, era como se eu o conhecesse da vida toda. Seu sorriso era como um calmante, aliviava toda a dor que eu sentia, eu me sentia bem novamente.
- Quem... Quem é você? – perguntei cautelosa. Eu sabia que não havia motivos para ter medo, mas ele é um estranho... Ou nem tanto. Ele não me respondia, continuava apenas me olhando e sorrindo, como se estivesse feliz porque eu estava lhe vendo.
- Meu nome é . – quando sua voz suave soou, senti um alívio imediato, mas continuava com medo de quem ele poderia ser. Será que ninguém viu quando ele entrou na casa? Talvez eu devesse gritar... – Não precisa ficar com medo, eu não farei nada com você, . Eu estou aqui pra te ajudar.
- Me ajudar, em quê? – perguntei curiosa. Nesse momento ouvi um barulho do lado de fora e em seguida minha mãe surgiu na porta.
- Tá falando sozinha, minha filha? – ela indagou. Imediatamente eu olhei para o lado, não encontrando meu antigo companheiro. Vasculhei todo o quarto com os olhos, procurando-o, mas não o encontrei.
- Não, eu estava, como se diz mesmo? Pensando alto. – forcei um sorriso. Ela balançou a cabeça e voltou para a cozinha.
- Aonde ele foi? – sussurrei para mim mesma.
- Eu ainda estou aqui – ele surgiu novamente a minha frente – E ficarei pelo tempo que você quiser.
/‘s POV
E então as coisas saíram do controle.
Depois que eu apareci para a pela primeira vez, eu não conseguia mais ficar longe. Eu sentia que algo dentro dela mudava quando eu estava perto, talvez eu conseguisse deixá-la mais feliz ou que ela tirasse um pouco o pai da cabeça. Mas foi justamente esse o meu erro. Ela substituiu a figura paterna por esse ‘amigo imaginário’ que estava sempre por perto. Sua mãe achou estranho no começo, sempre via a filha falando sozinha pelos cantos, servindo café na xícara de brinquedo para uma pessoa que estava ao seu lado e que ela não conseguia ver. Mas depois ela entendeu, ou pelo menos achou uma desculpa para si mesma. Na sua concepção, a filha tinha criado esse amigo para suprir uma falta específica e se isso não a prejudicasse, ela não interferiria.
Seis anos depois
- Você continua vendo seu ‘amigo imaginário’? – Gabbie perguntou, sentando em sua cama.
- Bem, ele aparece algumas vezes... – disse, tentando acabar com o assunto.
- Eu acho isso tão estranho, . Tipo, você não tem mais idade para ter um amigo imaginário.
- Não tem idade pra essas coisas, Gab. Eu já vi um filme que a menina crescia com o amigo e quando ela se tornava adulta, ele era como um namorado pra ela.
- Sim, até ela conhecer um cara de verdade. – Gabbie completou. suspirou, olhando para a lua pela janela. Eu sabia que esse assunto era delicado e que ela não gostava de falar sobre isso. Era algo extremamente particular, ainda mais pelos motivos que só ela sabia. Talvez fosse hora de colocar pra fora, fazer com que a amiga a ajudasse de alguma maneira, ou que pelo menos parasse de repreendê-la. – Você acha que ele será como um namorado pra você também?
- Não! – negou veementemente – De maneira nenhuma, eu não o vejo dessa forma.
- Então você precisa conhecer um cara de verdade, . De carne e osso, que você possa tocar, abraçar, beijar...
- Pare com isso, Gab. Eu não gosto de falar sobre isso.
- Mas eu gosto. – a amiga forçou, abrindo um sorriso – Sabe, o Andrew quer me convidar para sair e eu disse que só aceitaria se ele levasse um amigo, assim eu poderia te levar.
- E quem disse que eu iria? Ou melhor, quem aceitaria sair comigo, Gabbie? Você precisa entender que eu não sou como você, não posso ter uma vida normal. Namorados e festas não fazem parte no meu mundo. Eu não sou como você.
- Claro que é! – Gabbie levantou da cama, quase que revoltada – Eu não consigo ouvir você dizer uma besteira dessa e ficar calada. – ela puxou a amiga, fazendo com que ela ficasse parada ao seu lado em frente ao espelho – Olhe para nós duas e diga o que eu tenho que você não tem ou ao contrário. Por algum acaso você tem cinco olhos, três narizes e duas bocas? Não. Claro que não! Você é normal, . Mais do que isso, você é linda e nunca deixem que te digam o contrário, ou melhor, nunca diga o contrário. Você tem dezesseis anos e você deve começar a viver, claro, respeitando seus limites, mas deve começar a viver. – a encarou por alguns segundos, antes de desabar na cama, segurando o choro.
- Por mais que você diga que eu sou normal, eu não sou. Eu nunca vou poder sair, me divertir ou namorar como todo mundo. Quer dizer, como se alguém fosse se interessar pela estranha aqui. Ao contrário de você, eu já aceitei a minha condição. – ela levantou, secando as lágrimas que teimavam em rolar – Eu vou pro meu quarto e, por favor, me deixa sozinha.
Vê-la naquele estado me deixava estranho. Eu queria ajudá-la de alguma forma, ser o que ela precisava, mas eu no podia. Já havia quebrado demais as regras e as coisas fugiriam mais ainda do meu controle. Não é aconselhável que os protetores se envolvam tanto com seus protegidos, porque isso faz com que eles se tornem dependentes, vulneráveis. E já era vulnerável demais para o seu próprio bem.
Ela deitou na cama, agradecendo pelo fato de que seu irmão não estava no quarto. Jogou-se na cama, cobrindo a cabeça com o travesseiro, fechou fortemente os olhos, como se aquela ação afastasse algum pensamento ou algo do tipo. Tentei forçar-me a ficar longe, deixar com que ela tivesse um tempo só para ela, mas era praticamente impossível vê-la naquela situação e não fazer algo a respeito. Aproximei-me dela, tentando passar-lhe força, segurança, ou apenas acolhe-la. Com o ambiente um pouco mais leve, ela conseguiu se acalmar, caindo levemente no sono. Suas feições relaxaram e leve sorriso em seus lábios me dizia que ela estava sonhando. Algo me atraía, praticamente me chamava. Era como se eu precisasse saber o que ela estava vivendo em sua mente, como se eu precisasse participar.
Sem pensar mais uma vez, me atirei em minha própria loucura, quebrei mais uma regra. Mas naquele momento, isso era o que menos me preocupava.
Aquele foi o primeiro dia em que eu resolvi visitar em seu sonho.
Ela estava sentada na areia de uma praia, observando as ondas baterem furiosamente contra as pedras da encosta. A noite era escura e fria, e seu fino casaco estava longe de ser o suficiente para protegê-la do frio. Sentei-me ao seu lado, um pouco incomodado pelo fato dela não ter sentido a minha presença, mas antes que eu pudesse me segurar a esse pensamento, virou lentamente sua cabeça em minha direção e sorriu.
- Eu sabia que um dia isso ia acontecer. Eu esperei bastante por isso, na verdade. - ela disse e a mim e eu apenas a olhei confuso.
- Pelo que?
- Pelo dia em que você me visitaria.
- Você sabe que isso é um sonho, não sabe?
- Mas eu sei que é real. Eu sei que você está realmente aqui. Não me pergunte como, mas eu só sei. E eu sei que ainda vou saber disso quando eu acordar.
- Existe uma linha tênue entre sonho e a fantasia. Nunca se deixe levar por nenhuma das duas. A realidade pode ser dura, mas é nela que devemos nos manter sempre. – ela suspirou, voltando a encarar o horizonte.
- Eu preciso de algumas respostas, .
- Eu também, . Mas não podemos ter tudo o que queremos.
- Eu nunca posso ter nada do que eu quero, então eu meio que já estou acostumada. – ela riu sem humor – Eu me pergunto por que não me levam embora? Por que eu tenho esse sentimento de que eu já passei da minha hora?
- Não é a sua hora ainda. Você tem que pensar também na sua família. Você já parou pra pensar em como eles se sentiriam se você se fosse?
- Às vezes eu acho que seria melhor se eu morresse de vez. Estou cansada de ver todo mundo vivendo os meus problemas todos os dias comigo, sofrendo por minha causa.
- Não pense assim, . Só eu sei o quanto a sua mãe e o seu irmão agradecem no final de todas as noites por você ter conseguido sobreviver mais um dia.
- Eu acho que eles não entendem como eu me sinto. Talvez eles também desejariam que eu fosse de vez.
- Eu sou a melhor pessoa nesse universo para te entender, . E eu sei o quanto você quer viver. Você só está tendo um momento de dúvidas.
- Ninguém que eu conheça é a melhor pessoa pra me entender. Eu passei a minha vida inteira morrendo, . E eu quero viver. E se eu tiver que morrer pra que isso aconteça, então talvez é isso que eu deva fazer.
E quando ela disse isso foi quase como se algo dentro de mim quebrasse. Por que por mais que ela tivesse certa, tinha aquela pequena e poderosa parte de mim que não queria isso acontecesse. Primeiro porque a minha missão falharia. Segundo porque, incrivelmente, eu estava considerando o fato de que eu nunca mais a veria se deixasse isso acontecer.
Peguei na mão de e a levantei, vendo seu olhar assustado.
- Eu posso te tocar!
- Esse é o seu sonho. Você pode tudo... - ela sorriu animada, entendo o meu recado e me puxou pela mão, correndo em direção ao mar.
- Vamos nadar. - e assim que ela terminou de falar, o céu se tornou claro e aquecido, o mar pairava tranquilo sobre o horizonte. A água estava aquecida quando entramos e soltou a minha mão pra nadar como se tivesse feito isso a vida toda. Ela parou por um momento, me encarando maravilhada.
- Eu nunca tive tanto controle sobre os meus sonhos antes.
- Eu posso estar ajudando nisso... - eu disse casualmente, dando de ombros.
- Obrigada! - ela sorriu, me pegando de surpresa em seu abraço. Algo dentro de mim se aqueceu com essa atitude. Eu não estava acostumado com demonstrações físicas de afeto. Era como se eu tivesse esquecido como era a sensação de ser abraçado, de ter alguém tão próximo. De repente parou seu abraço bruscamente e me olhou assustada, me apavorando instantaneamente.
- O que está acontecendo? - ela alternava seu olhar entre meu rosto e suas mãos, que ficavam cada vez mais translúcidas.
- Você está acordando.
- Droga. Nos veremos de novo? - eu hesitei em responder. Eu sabia que o que eu estava fazendo era errado em todos os sentidos e que aquilo não podia voltar acontecer, mas eu queria que parasse? Antes que eu pudesse responder, desapareceu completamente.
Quando eu voltei ao quarto para ver sendo despertada pela sua mãe com um gigante sorriso no rosto, eu soube que ela ainda se lembrava de tudo e então eu não pude deixar de sorrir também. Só demorou um segundo pra perceber o quarto gelado e sombrio por alguns instantes. Então eu soube que Samuel esteve aqui enquanto eu visitava os sonhos de e então o nervosismo alcançou minhas terminações nervosas. O que eu achava que tinha sido apenas um sonho bom, poderia ter se tornado um terrível pesadelo. E eu logo vi que pensar em seu nome, era como chamar-lhe em voz alta. Ele apareceu em minha frente, com a expressão tensa, como se soubesse de algo e não pudesse falar.
- Eu sei que quebrei mais uma regra, não precisa me lembrar.
- Ainda bem que você reconhece seus próprios erros. – ele disse, da forma irônica e superior de sempre.
- Não é um erro, nada que beneficia meu protegido pode ser considerado um erro.
- Blá, blá, blá... – ele disse, com uma careta – Você sabe que contatos diretos são proibidos e já não basta aparecer para ela, você tem que ir até seus sonhos, tocá-la, abraçá-la? Pelo amor de Deus, . – ele disse, olhando para cima e dando um sorriso – Não é a sua primeira vez, você sabe o que pode e o que não pode.
- É que você não entende, Samuel... Eu sinto uma necessidade de ficar perto dela, eu não consigo entender o porquê. É algo mais forte do que eu posso aguentar ou resistir.
- Eu entendo perfeitamente. – ele suspirou, olhando para como se visse outra pessoa no lugar.
- Como assim?
- Eu não sou isso desde sempre, . Eu já fui um anjo protetor e só fui deposto do meu cargo porque eu violei uma série de regras, assim como você. Eu sentia essa necessidade de fazer parte da vida da Alane, te estar perto, de ser quem e o que ela precisar. Só que isso fez com que o seu destino mudasse completamente de rumo e...
- E? O que aconteceu com ela? – perguntei interessado. Nunca tinha o visto falar com tanto sentimento sobre alguém, ela deve ter sido alguém extremamente importante em sua vida.
- O que acontece com as pessoas que tem o seu destino não concretizado? – ele perguntou, com um sorriso sem humor nos lábios – Ela morreu por minha causa, pelos meus erros, meus deslizes. Não pense que eu sou de todo ruim, , eu já fui bom, já fui exatamente como você, e é por isso que eu me dou ao trabalho de me intrometer. Eu vejo você cometendo os meus erros e não quero que você carregue esse fardo que eu tenho que carregar. Eu me culpo pela morte dela todos os dias. – ele respirou fundo, encarando meus olhos por alguns segundos e eu pude sentir a sinceridade de suas palavras – Ela é pra você, o que Alane era para mim... Ela é o seu afecto.
- Como assim meu afecto? – perguntei confuso. Nunca tinha ouvido esse termo antes e me perguntava o que poderia significar, o que poderia ser.
- Quando Alane entrou na minha vida, ou melhor, quando eu entrei na dela, algo mudou em mim. Ela despertou sentimentos estranhos. Anseios, necessidades que não me eram comuns. Era como se eu passasse a sentir falta de coisas que eu nunca tive, que nunca vivi. Então eu praticamente vivia pela vida dela, pelos seus sentimentos, suas experiências. Ela era a minha realidade. – ele deu um sorriso de lado, como se lembrasse de algo bom.
- Por que você nunca me disse isso?
- Porque não é nem um pouco reconfortante ficar falando sobre o seu fracasso, ainda mais com o que ele motivou.
- Samuel, não foi culpa sua, afinal todos morrem um dia... – tentei contornar, fazer com que ele se sentisse um pouco melhor, que esquecesse.
- Eu fui estúpido, egoísta... – ele balançou a cabeça lentamente – Eu estava apaixonado.
- Apaixonado? – perguntei, com milhões de perguntas surgindo em minha cabeça. Como um anjo poderia se apaixonar, nós não temos esse tipo de poder, não somos capazes disso, é algo característico e próprio dos humanos – Como apaixonado? Você era um anjo e ela uma humana, sua protegida. Não há como ter esse tipo de envolvimento, ter esse tipo de sentimento...
- Tecnicamente nós somos iguais aos humanos, apenas temos o privilégio da ‘vida eterna’. Nós somos capazes de sentir qualquer coisa, contanto que achamos algo ou alguém para despertá-los. Alane despertou o amor em mim, a pode ter despertado outra coisa em você, talvez um forte sentimento de amizade ou carinho... – ele deu de ombros, antes de respirar fundo, tentando se recompor – Acho que te dei muita coisa pra se pensar, não é? – deu um sorriso sem humor.
- Você nem imagina o quanto. – disse impressionado. E de fato, Samuel havia me dado muito no que pensar.
Amor era algo muito distante pra mim, muito distante do meu mundo. Não conseguia imaginar uma pessoa como eu podendo se envolver amorosamente com alguém. Provavelmente em minha vida eu tenha passado por essa experiência, mas não é algo que eu lembre ou deva lembrar. Não conseguimos manter nossos vínculos passados, é como se não tivéssemos existido, como se fossemos anjos por toda a nossa existência. Talvez seja isso que nos afete tanto, se soubéssemos como vivemos ou se ao menos vivemos de verdade, nós não teríamos tantos assuntos não resolvidos ou problemas internos. Eu mesmo sofro muito com essa dúvida. Não saber, não ter lembranças... não ter vivido. Eu nunca tinha tido um envolvimento tão grande com um protegido. Eu realmente estou vivendo muitas coisas pela vida da . Suas experiências são as minhas, seus sentimentos são os meus. Isso explica porque eu não consigo ficar longe e interferir o mínimo possível ou deixar que ela viva a sua vida. Talvez seja por isso que eu tenha o poder de decidir seu futuro. O futuro dela é o meu futuro. Será que um dia eu serei egoísta como Samuel disse que foi? Será que serei capaz de fazer algo mal a ela, algo que possa ter consequências drásticas? Espero que ela desperte algo bom em mim, algo que seja proveitoso para nós dois. Algo que faça a nossa vida melhor.
‘s POV
Depois de ter sonhado com o eu me senti um pouco diferente, mais confiante talvez. Acho que foi por isso que, depois de muita insistência, eu aceitei sair com a Gabbie e os meninos. Só de pensar eu já conseguia sentir meu coração bater mais forte, imagina na hora? Eu me arrependi de ter aceitado um segundo depois, já que ela começou a bolar vários planos mirabolantes para que tudo saísse da forma que ela esperava. Entendam, Gabbie tem dezoito anos, sair com meninos é normal pra ela, que já teve até alguns namorados mais sérios. Mas eu nunca sai com nenhum garoto, eu sempre me policiei a ficar longe, não sei o que pode acontecer comigo. E já que nunca sai com nenhum garoto, vocês podem imaginar o meu grau de inexperiência com o sexo oposto. Esse pensamento me fazia suar frio. Mas eu já tinha falado que ia e eu cumpro minhas promessas.
- ? – ouvi Gabbie chamar do lado de fora do quarto – Você vai assim? – ela perguntou chocada, quando abri a porta. Ela vestia uma saia preta de cintura alta e bem solta nas pernas, uma blusa laranja, que deixava um ombro amostra e uma sandália preta não muito alta. Olhei minha roupa e vi o que estava errado nela. Os problemas eram uma calça jeans, uma blusa branca e um all star.
- Qual é o problema com a minha roupa? – perguntei, sabendo que ouviria por, no mínimo, cinco minutos.
- Não sei nem por onde começar... E não é só a roupa, qual é o problema de soltar os cabelos, ? – ela disse, entrando no quarto e fechando a porta. Sem me dar muita confiança, seguiu até o meu armário e o abriu em cerimônias. Revirou o mesmo por alguns segundo até puxar uma peça. Olhei atentamente para o que estava em suas mãos e comecei a temer o pior.
- Nem pense nisso! – eu disse séria. Gabbie segurava um vestido preto que ela mesma tinha me dado no último Natal. Ele era lindo, mas completamente desnecessário pra mim, ele estava jogado num canto do armário até hoje. Para que uma menina que não sai de casa precisa de um vestido preto tomara que caia com brilho por todos os lados? – A gente vai comer uma pizza, certo? – perguntei e ela concordou – Então por que eu vou vestida como se fosse pra uma festa? – ela revirou os olhos.
- Mas também não precisa ir vestida como se fosse na esquina comprar pão. , o Andrew vai levar o Taylor. Você tem noção da quantidade de meninas que se matariam para estar no seu lugar? – ela perguntou. O Taylor é realmente lindo, um dos caras mais bonitos da escola, mas não é um dois mais difíceis. Grande parte das meninas que queriam estar no meu lugar, poderiam mesmo estar e ele não veria nenhuma diferença nisso.
- E qualquer uma delas poderia estar no meu lugar, aposto que ele não se importaria. Talvez ele vá embora assim que souber que sou eu.
- Não seja idiota. – ela me empurrou, fazendo com que eu caísse sentada na cama – Tá, talvez esse vestido seja exagerado mesmo. – ela disse, voltando a mexer no armário – Ah! Achei um perfeito. – ela disse sorrindo. Ela desenrolou um vestido branco de alças bem fininhas, o tecido era leve e fazia com que ele modelasse o corpo de uma forma bonita – Esse você vai usar e não vai reclamar!
- Claro, Gab. Tudo pela sua felicidade. – coloquei o vestido, voltei para o quarto e vi um sorriso iluminar seu rosto.
- Ficou perfeito. – ela disse me puxando pela mão e me fazendo sentar novamente – Agora vamos dar um jeito no resto.
- Resto... – resmunguei, enquanto sentia cada parte do meu rosto ser coberta por alguma coisa.
Nós estávamos prontas e sentadas no sofá, sob os olhares atentos de Nate e Joe. Eles não gostaram muito dessa história de encontro, talvez seja apenas ciúme de irmão. E então ouvimos um barulho vindo da porta e em seguida algumas batidas. Senti meu coração acelerar. Gabbie levantou tranquilamente e esperou que a seguisse, mas eu me mantive sentada.
- Eu acho melhor você ir sozinha, não estou me sentindo bem. – eu disse baixo.
- Sem inventar histórias, , levante já desse sofá. – ela disse sem paciência. Respirei fundo antes de acompanhá-la. Ela trocou sua impaciência por um belo sorriso e abriu a porta, encontrando os dois meninos com os lábios repuxados numa expressão de expectativa.
- Oi, Gabbie. – Andrew disse, lhe dando dois beijos no rosto. Ela corou um pouco e me puxou para fora, gritando um ‘tchau’ para quem escutasse. Andrew era um rapaz muito bonito, seu cabelo loiro caia levemente sobre seus olhos verdes e seu corpo era um pouco malhado, mas nada exagerado. Com muita timidez, olhei Taylor pelo canto dos olhos e encontrei-o me encarando de volta.
- Tudo bem? – ele perguntou, com sua voz rouca.
- Tudo. – respondi, tentando manter minha voz firme. Ele era mais bonito ainda de perto. Era um pouco mais alto e forte que o Andrew, seu cabelo escuro estava propositalmente despenteado e seus olhos quase negros me fitavam estranhamente.
- Fiquei surpreso quando o Andrew disse que você tinha aceitado sair com a gente. – ele disse com um sorriso sacana nos lábios.
- A Gabbie quase me obrigou. – respondi, mantendo meus olhos longe dos dele.
- Por um momento eu pensei que o problema fosse comigo.
- Não! – eu disse rápido – Não pense isso.
- Não se preocupe, você já mudou minha opinião. – ele disse calmamente – Na verdade, você mudou minha opinião sobre duas coisas.
- E qual é a outra? – perguntei, me virando para ele, quando paramos no sinal para atravessar.
- Eu sempre soube que você era linda, até porque não sou cego. Mas assim tão perto – ele se aproximou perigosamente – Você é mais linda ainda. – precisei de vários segundos pra lembrar de como respirar. Não é todo dia que eu tenho um dos meninos mais lindos da escola assim tão... próximo.
Com o passar do tempo as aproximações do Taylor ficavam cada vez mais descaradas e isso começou a me assustar. Não que eu estivesse com medo do que ele poderia fazer comigo, nós estávamos num local público e ele não seria tão louco assim. O que me assustava era como tudo era completamente novo pra mim. Enquanto Gabbie e Andrew estavam aos beijos, eu continuava olhando para qualquer lugar, menos para Taylor, tentava o ignorar o máximo. Mas ele parecia ser bem persistente.
- Você tá nervosa? – ele perguntou, pegando minha mão, que tremia um pouco por sinal.
- Talvez. – respondi, com um sorriso nervoso.
- Eu acho que sei como te acalmar ou, pelo menos, te fazer relaxar um pouco. – ele colocou uma das mãos no meu queixo e o levantou um pouco, olhando nos meus olhos.
Eu posso ser inexperiente, mas não sou burra, eu sabia muito bem o que estava por vir. Era como se fosse coordenado, a cada centímetro que ele se aproximava, mais rápido meu coração batia e mais descompassada minha respiração ficava. Eu já tinha ouvido falar de ‘beijos de tirar o fôlego’, mas eu deveria esperar nossos lábios se tocarem pelo menos, certo? Tentei me concentrar e entender o que estava acontecendo. Tudo parecia meio quieto e lento demais, talvez o mundo tivesse desacelerado, enquanto eu tentava me localizar nele. Eu estava tendo a minha chance de ser normal e aproveitaria de qualquer maneira. Tudo isso passou por minha cabeça no intervalo de um segundo. Ele ainda estava diminuindo a distância entre nós e eu parecia já sentir seus efeitos. Quando ele já estava próximo o suficiente para que eu sentisse uma respiração contra o meu rosto, a minha respiração começou a ficar difícil. Era sentia algo estranho, um incomodo que não sentia há anos e eu sabia que não tinha nenhuma relação com o beijo, ou futuro beijo. Quando seus lábios finalmente alcançaram os meus, minha atenção estava em outra coisa. Percebendo a minha falta de atenção em relação ao seu beijo, Taylor se afastou lentamente e me encarou.
- Você tá bem? – ele perguntou, mas sua voz parecia mais distante do que deveria estar. Minha visão começou a ficar turva e eu não conseguia mais sustentar o peso do meu corpo da forma correta – ? – ele disse um pouco mais alto, chamando a atenção de todos ao redor, principalmente de Gabbie.
- O que ela tem? – ela perguntou preocupada.
- Não sei, ela estava bem alguns minutos atrás. – ele disse, enquanto eu me esforçava em me manter acordada. Respire fundo, respire bem fundo... eu dizia a mim mesma, mas não estava funcionando.
- Ela está muito pálida, Taylor. – Gabbie disse, mas eu não consegui ouvir a resposta dele. Cansada de lutar contra o inevitável, deixei que meus olhos se fechassem.
Abri os olhos e me vi num lugar estranho. Olhei em volta, procurando por algo familiar ou, pelo menos, confortador, mas não encontrei nada. Era tudo tão branco, tão claro que mal parecia um lugar real. Forcei-me a levantar e estranhei a sensação de parecer estar flutuando. Talvez eu estivesse em outro dos meus sonhos e não tinha me dado conta ainda. Olhei meu corpo e eu ainda estava com a roupa que usei para sair com a Gabbie e os meninos. Estranho, talvez eu tenha ficado impressionada com o que tenha acontecido, que me forcei a sonhar com isso. Tentei lembrar de alguma coisa, mas era tudo tão indefinido, tão confuso. Alguns flashes surgiam: Nós quatro andando pelas ruas, a primeira aproximação de Taylor e ele dizendo o quanto eu estava bonita, Gabbie aos beijos com Andrew e a última coisa que eu me lembro é de sentir a mão de Taylor em meu queixo e sua respiração perto do meu rosto e depois... Nada! Voltei a olhar ao redor. Esse sonho estava estranho demais.
- Talvez isso não seja um sonho. – uma voz me sobressaltou. Era uma voz firme, grave, poderosa. Uma voz que você sentia vontade de obedecer. Virei-me para encarar meu acompanhante e me deparei com um rapaz estranho me olhando de forma curiosa. Ele avançava lentamente, mas o curioso era que não parecia que era ele que se movia e sim as coisas ao seu redor. Uma força estranha emanava dele, como se fosse uma aura poderosa. Mas não era um bom poder. Só de sentir sua presença, algo como medo, passou a me dominar. Mas ao mesmo tempo em que o medo me rondava, passei a sentir algo estranho. Era como se eu soubesse que deveria sentir medo dele, mas também deveria ansiar por ele, por mais proximidade. Ele tinha um ar misterioso que me seduzia de alguma forma. Ele estava distante, então ainda não conseguia ver seu rosto perfeitamente. Mas era algo sombrio, indescritível e, provavelmente, belíssimo. Seus traços me lembravam de alguma coisa ou alguém, mas eu não conseguia lembrar. A única coisa em que eu conseguia pensar e manter a minha atenção era no rapaz misterioso. E então pude ver seus olhos. Seus olhos castanhos e calorosos. Seu sorriso, longe de ser acolhedor, era inquietante. – Estou contente de finalmente te conhecer, .
- Quem é você? – perguntei baixo, encarando seus lábios levemente repuxados – Como você sabe o meu nome?
- Eu sei muitas coisas sobre você, mais do que você imagina. – ele parou em minha frente, com sua postura superior – Mas isso não é tão importante no momento, não nas circunstâncias que estamos.
- Que circunstâncias? – perguntei confusa. Pra mim isso era apenas um sonho. Um sonho muito estranho, mas ainda apenas um sonho.
- Ah! Vejo que a névoa ainda encobre seus olhos. – ele riu baixo e fez um leve momento com as mãos, como se afastasse alguma coisa – Consegue ver agora? – olhei novamente o ambiente e dessa vez o local era outro. O ambiente claro desapareceu, dando lugar a outro conhecido. Era como se eu visse tudo de um ângulo diferente, como se eu sobrevoasse a cena enquanto observava. Do alto eu conseguia ver Gabbie, Andrew e Taylor perto de uma menina que parecia comigo. Ela estava caída no chão, enquanto Taylor fazia algumas manobras de ressuscitamento, Andrew conversava com alguém no telefone e Gabbie gritava, meio desesperada.
- Aquela sou eu? – perguntei, colocando a mão em meu peito e vendo que, pra mim, eu estava ali de carne e osso. Tentei forçar-me para baixo, voltar ao meu corpo para que eu pudesse levantar e continuar minha vida normalmente. Mas eu não conseguia me mexer, era como se tivesse uma barreira invisível que me impedisse de voltar.
- Sim, aquele é o seu corpo. Apenas as almas têm acesso a esse lugar em que você está. – ele disse tranquilamente.
- Almas? – eu perguntei nervosa – Eu morri? – ele riu com vontade e balançou a cabeça lentamente.
- Ainda não.
Ainda não.
Então eu estava tendo uma experiência de quase morte? Para que eu estou aqui exatamente? Para que possam repensar a minha morte ou decidir o lugar onde passarei a eternidade? Várias perguntas passavam pela minha cabeça, mas eu não conseguia focar em apenas uma. Eu me sentia tão viva para estar morrendo. Eu penso que é até meio injusto. Logo no momento em que eu começo a viver, consigo um garoto que queria sair comigo, desfruto um pouco da minha adolescência... Isso acontece. É como se alguém conspirasse contra mim, fizesse tudo dar errado de propósito.
- Juro que não sou eu. – o rapaz respondeu. Eu o encarei com os olhos arregalados. Eu estava falando isso em voz alta? – Desculpe minha intromissão. É como se os seus pensamentos fossem gritos, é quase impossível não respondê-los.
- Você pode ler meus pensamentos?
- Eu posso quase tudo. – ele disse com o rosto próximo ao meu. E então, como mágica, estávamos em outro lugar. Nós estávamos no alto e quando eu digo alto, é bem alto. Era como se estivéssemos numa nuvem, flutuando sobre a cidade. Era mais como uma cabine transparente acima de tudo. A visão era perfeita, mas era como uma prisão. Mas eu não conseguia me ater a detalhes como a paisagem, eu precisava entender o que aconteceu comigo.
- O que tá acontecendo?
- Você está fazendo a passagem. – ele deu de ombros.
- E isso significa que...? – forcei.
- Que você está tecnicamente morta, mas que ainda há salvação. Senão você teria ido direto para onde deve ir.
- Tecnicamente morta? Como assim? Quem é você? – perguntei, me desesperando.
- Eu? Eu sou a morte. – ele deu mais um de seus sorrisos inquietantes. Eu recuei no mesmo instante, temendo o que ele poderia fazer. Ele revirou os olhos – Se eu quisesse mesmo te levar, teria feito isso no dia em que você nasceu ou em qualquer uma de suas outras crises. Você não precisa ter medo de mim, nem me temer. Afinal, eu sou inevitável.
- Mas se você não quer me levar, o que eu ainda estou fazendo aqui? Por que eu não posso voltar?
- Porque isso não depende de você. – ele passou a mão em meu rosto lentamente e eu senti todos os pelos do meu corpo de arrepiarem.
- E depende de quem? – eu disse, tentando controlar a minha voz.
- Dele. – ele disse apontando para frente – Mas se apresse, seu tempo está acabando. – Eu me virei, mas não consegui enxergar nada.
- Mas eu não consigo ver nada. – eu disse olhando para o rapaz, mas ele deu de ombros, como se o problema não fosse dele. Voltei minha atenção para o lugar que ele tinha apontado e dessa vez eu consegui enxergar uma forma entre as nuvens. Mantive meu olhar fixo, até a forma se transformar numa pessoa. Conhecida por sinal. Seus olhos se destacavam no horizonte e eu me prendi neles. Era como se eu nunca tivesse o visto. Ele estava diferente, estava mais nítido, sua presença era mais forte, quase palpável. – ?
- Me desculpe por isso. – ele disse calmamente. Até a sua voz era diferente do que eu lembrava. Era como se eu nunca tivesse visto, ele era novo. Era um novo .
- O que você tem a ver com isso? Como você pode me ajudar?
- Eu não sou o que você pensa, . E eu me sinto mal por ter escondido isso por tanto tempo, mas era necessário.
- Quem é você? Ou melhor, o que é você, ? – perguntei no momento em que ele parou a minha frente. A distância era tão curta, que eu podia tocá-lo se levantasse a mão.
- Eu sou um anjo. – ele disse com um pequeno sorriso – Eu sou o seu anjo.
- Tipo um anjo da guarda? – perguntei confusa.
- Exatamente.
- Então foi por isso que o... que ele falou que eu dependia de você? – apontei para o rapaz atrás de mim.
- Samuel geralmente fala demais, mas sim, é por isso que você depende de mim agora.
- Você pode realmente me salvar?
- Eu não sei. – ele respondeu e eu vi a dor da sinceridade em seu olhar – Eu não sei exatamente o que fazer.
- Você precisa tentar, tentar o que puder. Por favor. – eu disse, começando a me desesperar – Eu não quero morrer.
- Você tem certeza disso? O que aconteceu com aquele pensamento de ‘seria melhor se me levassem de uma vez’? – ele indagou, pegando meu ponto fraco.
- Eu não penso mais assim, eu juro. Eu vi que posso levar uma vida normal, ou ao menos tentar. Por mais que tenha sido isso que tenha me trazido aqui, eu não me arrependo.
- Eu juro que não sei o que fazer. – ele disse em voz baixa, olhando nos meus olhos. Era como o infinito. Seu olhar era tão penetrante, que parecia que ele podia olhar dentro da minha alma, enxergar meus pensamentos, ver todos os meus segredos, desejos e anseios. Era como se naquele momento, a minha dor fosse a sua dor. Então eu entendi, ou pensei entender. Sendo meu anjo, deveria entender e sentir tudo que se passava comigo, como se fosse com ele. Era como um espelho, meus sentimentos eram refletidos nele. Talvez isso ajudasse em alguma coisa.
- Eu confio em você. É como se te conhecesse de toda a vida e provavelmente é. – ele deu um pequeno sorriso – Eu quero viver, quero ser capaz de passar por tudo isso mais uma vez.
Vi trocar olhares significativos com o outro rapaz que ele chamou de Samuel. Era como se eles conversassem apenas com o olhar e isso era meio assustador.
- Eu não posso fazer nada, isso é com vocês. – Samuel disse, como se pedisse desculpas.
- Mas você disse que dependia de mim, então você sabe de alguma coisa.
- Eu disse isso porque qualquer coisa relacionada ao destino dela depende de você. E eu não quero me responsabilizar se algo sair errado.
Enquanto eles conversavam, eu comecei a me sentir estranha, como se eu estivesse me desmaterializando. Uma força estranha me puxava para baixo e não era a gravidade. Por mais que o meu corpo estivesse no mesmo lugar, eu sentia como se estivesse caindo em queda livre diretamente para o chão. Eu não estava sentindo coisas muito boas ao longo de todo esse tempo, mas esse era, sem dúvida, a pior sensação de todas.
- ... – eu sussurrei e o seu olhar em resposta foi arrasador. Era como se ele tivesse me perdido, como se não existisse mais volta. Estendi a mão em sua direção e senti levemente o seu contato. Era reconfortante. Sorri com a sensação que seu toque me trouxe e olhei mais uma vez em seus olhos – Por favor, me salve. – Então senti meu corpo pesar e seguir em direção ao solo, completamente vulnerável ao poder daquela força. Durante a queda, eu ainda conseguia observar o olhar assustado de e o complacente de Samuel. Por mais que esse fosse seu trabalho, eu sentia que ele não estava completamente satisfeito em me levar.
/’s POV
Eu nunca tinha presenciado uma cena como aquela. Geralmente eu não estou mais ligado aos meus protegidos quando eles são levados para a sala de julgamento. Era perturbador demais. Ver uma pessoa submetida a tal poder sem nem ter chance de reação, é meio desorientador. Olhei para Samuel, que encarava um ponto qualquer, esperei que ele falasse alguma coisa, mas ele continuou em silêncio. Talvez isso trouxesse algumas lembranças ruins para ele.
- Samuel. – eu disse, fazendo com ele me olhasse.
- Eu tenho trabalho a fazer, . – ele virou as costas.
- Sim, a . – eu respirei fundo – Você precisa me ajudar. – eu me aproximei, pousando a mão em seu ombro.
- Não há nada a ser feito. Se você tivesse que evitar isso, deveria ter sido antes de acontecer.
- Tem que existir uma forma. Qualquer coisa. – ele me encarou – Samuel, qualquer coisa.
- Existe uma forma, mas é arriscado demais. – ele disse, medindo as palavras.
- O que pode ser mais arriscado pra ela do que morrer?
- Não é arriscado pra ela, é arriscado pra você. – eu nunca tinha me importado muito com o que poderia acontecer comigo. Era algo supérfluo. Quando se tem a eternidade para viver, você para de se preocupar um pouco com o que pode acontecer.
- Eu não me importo, não posso falhar com ela. – ele respirou fundo e soltou o ar pesadamente.
- Uma vez eu vi um anjo nessa mesma situação. Ele disse que faria qualquer coisa e fez. Ele deu a alma dele pela dela, deu tudo que o que tinha pela vida da protegida. Mas a falha tinha sido dele, então sua ‘doação’ não serviu para nada. Ele perdeu sua condição de anjo e ela morreu. No final das contas não adiantou de nada o sacrifício dele.
- Um anjo deu a alma por um protegido? – isso era difícil de compreender. Um anjo se submeter a tal coisa por um ‘ser menor’, não é comum, não é normal. É necessária uma conexão além da normal, acho que nem mesmo eu, que tenho a como meu afecto, poderia pensar em algo assim. A não ser que... – Você fez isso. Você deu a sua alma pela da Alane. – ele olhou para o chão e sorriu tristemente.
- E não adiantou. Eu pensei que se eu desse minha alma pela dela, nós acabaríamos da forma, seríamos compatíveis, mas não foi isso que aconteceu. Eu não pensei que essa interferência fosse tão prejudicial. Aquele acidente não estava em seu destino, foi minha culpa, minha culpa. Eu cometi tantos erros com ela, que não era digno de sequer pensar em merecê-la. Eu não podia cobiçá-la, desejá-la, muito menos amá-la, mas eu amei. Não posso deixar que isso aconteça de novo, . Não posso sujeitar outro ser humano a isso.
- Mas pode ser diferente comigo, Samuel. Eu sou responsável pelo destino da , qualquer interferência, desde que venha de mim, pode ser benigna. Eu tenho que me dar ao trabalho de pelo menos tentar. Se isso não funcionar, eu terei falhado de qualquer forma.
- É por sua conta e risco, . Todos sabem que eu tentei impedir, não podem colocar a culpa em mim.
- Eu aceito todas as consequências dos meus atos. – ele olhou durante alguns segundos, talvez buscando alguma fraqueza em meu olhar ou em minhas palavras.
- Me acompanhe.
Seguimos por um caminho rápido, escuro e estranho. Em poucos segundos estávamos num lugar que se passaria por uma sala normal em qualquer casa. As paredes claras deixavam o ambiente bem iluminado e a única mobília da sala era preta, dando um contraste enorme. Samuel sentou-se e me encarou, esperando que eu fizesse alguma coisa.
- Desculpe, mas ninguém chega vivo a esta sala, logo não tem outra poltrona. – ele disse com um olhar de desculpas.
- Não preciso me sentar, preciso saber o que fazer.
- , isso é complicado. Você precisa abrir mão de uma parte de sua alma para dar lugar a dela. A alma humana não tem o mesmo valor de uma alma angelical, então você não terá que dar a sua vida pela dela. Talvez esse tenha sido o meu erro, mas não importa agora. Você precisa querer salvá-la verdadeiramente, só assim a sua alma alimentará o cajado e a vida dela será poupada.
- O que eu preciso dizer?
- Não há nada fixo, só pode dizer o que quiser desde que seja sincero.
- Eu vou tentar. Onde ela está? – perguntei.
- Eu te levo lá. – ele disse se levantando e com um gesto rápido de uma de suas mãos, eu me vi em outro lugar. estava deitada, ela parecia levitar a minha frente. Me aproximei, olhando em seu rosto. Suas feições estavam relaxadas e seu rosto pálido. Olhei para Samuel, buscando um olhar encorajador, mas ele havia sumido. Ótimo, eu estava sozinho sem ter noção do que fazer.
Seja sincero. A voz de Samuel ecoava em minha cabeça. Sim, pelo menos ser sincero não era difícil. Receoso, segurei uma de suas mãos com delicadeza.
- Eu não sei o fazer, . Eu já lhe disse isso, mas eu preciso tentar. Eu tenho te protegido há dezesseis anos e não será agora que falharei. Tudo bem, eu falhei algumas vezes, mas consegui consertar meus erros e conseguirei mais uma vez. Custe o que custar e, aparentemente dessa vez, o preço é uma parte de mim. Sinceramente, uma parte mim não fará falta, já que desde o momento em que descobri a influência que você exerce sobre mim, eu tenho sido todo seu. Tento ser o que você precisa e agora serei sua alma, ou parte dela.
Nesse momento senti algo estranho. Respirei fundo e fechei os olhos, assim que uma luz branca muito forte encheu o lugar onde estávamos. Ainda de olhos fechados, senti meu corpo levitar e uma forte dor atingiu minha cabeça. Não pude reprimir um grito de dor, ao sentir algo totalmente novo: Dor; Essa era o nome dessa sensação. Minha cabeça parecia estar em chamas e a cada segundo minha visão ficava cada vez mais turva. Meus joelhos cederam e eu cai aos pés do corpo de . Tentei agarrar-me a alguma coisa, como se isso fizesse a sensação passar ou pelo menos amenizar. Abri os olhos, olhando para minha protegida, que também estava envolta na mesma luz branca, mas eu conseguia ver uma com uma fina linha horizontal sendo inscrita em seu peito, exatamente no centro. Olhei para o meu próprio corpo, vendo a mesma marca aparecer. Tanto a inscrição em sua pele, quando a minha começaram a brilhar intensamente e eu, subitamente, comprimi os meus olhos ao sentir a dor me assolar mais uma vez. Gritei o mais alto que minha garganta suportou. Olhei, paralisado, o momento em que abriu os olhos, alarmada, tentando enxergar alguma coisa. Respirei fundo e a sensação foi gratificante, como se eu não tivesse respirado durante todo esse período. Felizmente Samuel estava errado, tudo tinha dado certo dessa vez. estava bem, eu estava bem... ou pelo menos eu parecia bem.
Eu me sentia acabado. Como se todos os músculos do meu corpo tivessem sido arrancados e recolocados no lugar. Eu sabia que deveria estar junto da , deveria saber se ela estava realmente bem, se tudo tinha dado certo, mas eu não conseguia levantar meu corpo do chão. Samuel estava ao meu lado, mais como um companheiro, um amigo, do que qualquer coisa. Acho que fiz mal ao julgá-lo precipitadamente, afinal, ele vem me ajudado há um tempo e tudo tem dado certo a partir do intermédio dele. Talvez eu devesse lhe ajudar de alguma forma, tentar falar com nossos superiores sobre reverter o processo que fez com que ele perdesse suas asas e com isso o direito de ser um protetor. Apenas pensar fez como que eu me sentisse melhor, mas foi só lembrar da dor, que a mesma me assolou novamente, fazendo com que eu me retorcesse no chão.
- Eu sei o quanto isso é doloroso, mas eu acho que valeu a pena dessa vez, deu certo. – Samuel disse, quase que me reconfortando.
- Mas você não queria que eu fizesse. Isso tudo era pra evitar que eu me tornasse algo como você? – me arrependi no mesmo momento em que disse a última palavra. Ele tinha sido tão bom comigo nos últimos tempos e não merecia algo assim.
- Talvez. As pessoas não merecem terminar como eu, . Ninguém deveria viver para sentir a dor da perda de uma pessoa especial. Seja ela um amor ou um amigo. Mas o processo deu certo com você, isso é o que importa.
- E a ? – perguntei.
- Ela está bem, está se recuperando. Quase não sinto a necessidade de trazê-la, pode ficar tranquilo.
- Ela vai lembrar de alguma coisa que presenciou aqui?
- Não, ela teve suas memórias devidamente apagadas, é muito difícil que lembre algo substancial. E se ela lembrar, provavelmente pensará que é algum vestígio de um sonho ou algo do tipo. Os humanos não são bons em aceitar que exista algo superior a eles. – aquilo foi reconfortante, saber que eu poderia continuar visitando, convivendo com ela, mesmo que ela pensa que eu sou um amigo imaginário, era tranquilizador. De alguma forma eu me manteria na vida dela e era isso que importava. Foi isso que sempre importou no fim das contas.
- Talvez seja hora de voltar às minhas tarefas. Ela pode estar precisando de mim... – eu disse, tentando me levantar.
- Tudo bem, depois conversaremos sobre os efeitos colaterais do seu ato.
- Efeitos colaterais? – perguntei, começando a me incomodar com o tom de sua voz. Samuel geralmente utilizava de um tom frio e sombrio, mas o que ele usava agora era diferente, como se soubesse o que me esperava, mas não quisesse falar. Na realidade não havia muito a ser feito, eu havia aceitado e me responsabilizado as consequências dos meus atos e não estava preocupado com o que poderia acontecer. Eu sou um anjo e fiz isso pelo bem de minha protegida, que de tão ruim aconteceria comigo?
- Vá, . Nos encontraremos quando os efeitos começarem a aparecer. Até lá, tente não fazer mais nada de errado, por favor.
- Mas que efeitos, Samuel? – perguntei, porém sem sucesso. Ele tinha desaparecido da mesma forma de sempre. Fechei os olhos, voltando para perto de minha protegida.
A sensação era como de voltar para casa depois de muito tempo longe. Era como se eu precisasse ver o seu rosto, olhar em seus olhos, para ter certeza que eu estava no lugar certo. No lugar o qual eu realmente pertencia. Meu lugar era ao lado dela e disso ninguém poderia discordar. Mas para ser sincero, voltar para um hospital era como ver que todo o meu esforço fora em vão. Aqueles sons que os aparelhos produziam, era como uma música anunciando minha falha, mas eu sabia que ela estava bem e era por minha causa. Isso ninguém tiraria de mim. Olhei para ela, buscando o seu brilho característico, e encontrei alguém ao seu lado. O rapaz estava com um dos dedos sobre os lábios dela, enquanto dizia alguma coisa. Tentei prestar atenção e compreender o que ele falava. Nada com você pode ser perda de tempo. E então ele revezava olhares entre os olhos e os lábios dela, como se quisesse um consentimento sobre o que viria a seguir. Devo? “Claro que não, seu idiota!” eu quis gritar, mas uma voz vinda do além não faria bem à e eu não queria causar mais danos. Concentrei-me, para voltar no tempo e ver onde ele tinha entrado na vida dela, para que eu pudesse entender o que ele fazia ali. Não precisei de muito esforço. Ele era o mesmo cara que a beijou e causou tudo aquilo. Onde ela estava com a cabeça de deixar que ele fizesse tudo novamente? Acho que não. Agradeci a Deus. Talvez ela estivesse voltando a ter consciência de seus atos. Tenho certeza que um dia toda essa espera valerá a pena. Tentei entender o efeito que essa frase teve sobre mim, mas não consegui. Era uma sensação estranha, diferente. Mas não era importante no momento. Agora, eu queria mesmo que esse rapaz fosse embora e deixasse se recuperar bem, antes que ele causasse mais algum problema e nem eu pudesse resolver. Eu vou embora, antes que me impeçam de te visitar novamente. Era como se ele ouvisse meus pensamentos e isso era bom, ele estava indo embora. Mas antes ele se curvou e deixou que seus lábios encontrassem a pele macia da testa de . Ela fechou os olhos, aproveitando o máximo daquela situação. Naquele momento eu vi que, por mais que eu salvasse a vida dela, eu nunca poderia fazê-la se sentir tão bem como ele podia e não havia nada que eu pudesse fazer para mudar isso.
‘s POV
Um mês depois
Eu fui liberada do hospital semanas atrás, sob apenas uma recomendação: eu estaria sendo observada diariamente. Ninguém deixaria que eu fizesse algo inapropriado. Peter deixou isso bem claro e eu acho que subentendido estava a seguinte mensagem: “Nada de se envolver com aquele rapaz novamente, mocinha”. Era isso ou ele tinha esquecido que eu sabia muito bem o que eu não podia fazer, já que isso envolvia quase tudo que era legal. É claro que eu aceitei sua recomendação, mas aceitar é completamente diferente de obedecer e Gab me ajudava nessa parte. Ela sempre inventava que faríamos alguma coisa, para que eu pudesse encontrar com o Taylor. No começo ela também aproveitava para passar mais tempo com o Andrew, mas de repente resolveu terminar tudo com ele. Confesso que fiquei surpresa. As coisas pareciam ir tão bem... Talvez fosse isso que a alarmava, ela estava com medo de ter um relacionamento de verdade. Depois eu conversaria com ela sobre isso, porque, no momento, algo prendia mais minha atenção.
Nas últimas semanas, o que eu tinha com o Taylor tinha se desenvolvido e passamos a ter mais contato físico. O próximo passo era o meu aguardado e mais perigoso. Não, não é o que você pensa. Eu queria apenas beijá-lo, mas beijá-lo de verdade. E eu achava que estava pronta pra isso. Não sei por que, mas parecia que depois da última crise eu ficara mais forte, mais resistente. Pelo menos eu me sentia assim. Essa confiança, esse estado de espírito que me movia e, é claro, a presença do Taylor na minha vida. Eu nunca tinha sentido nada assim por alguém. Talvez ele seja o meu tão esperado primeiro amor. Ai, isso é coisa de filme...
Hoje era a festa de aniversário da Gabbie e o tão aguardado dia. Controlei a ansiedade que me dominava e comecei a me arrumar. Olhei temerosa para o vestido que me aguardava em cima da cama; outro presente da minha linda amiga. Respirei fundo, passando o tecido leve pelo meu corpo e deixando com que ele caísse suavemente. Seu grande e quase provocativo decote deixava parte do meu colo à mostra, mas não de forma vulgar. Aproximei-me do espelho, notando um marca diferente entre meus seios. Era uma pequena linha na vertical, tão pequena que eu não tinha reparado até aquele momento. Toquei-a lentamente, vendo um brilho estranho e diferente passar por ela, me levando para um local desconhecido.
Num instante eu estava em meu pequeno quarto e no seguinte eu estava lugar que nunca tinha visto na vida. Sua claridade quase me cegava e sua imensidão me dava uma profunda sensação de pequenez. Era tudo tão irreal que eu tive que levantar a mão e tentar tocar em algo, porém sem sucesso. Parecia que eu estava sonhando acordada, mas a sensação de realidade era tamanha que quase chegava a ser palpável. De repente, senti uma pontada no peito. Curvei meu corpo, olhando para frente. Um misto de imagens me confundiu, mas eu conseguia me ver no meio delas. Eu conversava com um rapaz estranho, mas era impossível tentar focalizar e tentar desvendar quem era, pois nada parava no lugar. Eu me sentia tonta e cansada, como se estar ali exigisse muito esforço e meu corpo não estava preparado para tanto. Olhei para o lado e vi a única coisa que parecia perfeitamente sintonizada. Como se o de seus olhos fosse a minha conexão com o mundo, como se nada mais importasse naquele momento, naquele lugar. Ele se aproximava a passos lentos, como se tudo girasse ao seu redor. Percebi que era dele que toda aquela luz era emanada. Ele era o sol daquele lugar. era o meu sol. Quando estava perto o suficiente, ele olhou fundo em meus olhos e uma série de coisas surgiu em minha mente. Tudo estava relacionado a nós dois e tudo que vivemos nos últimos anos. Ele era mais que um simples amigo imaginário; ele sempre foi mais do que isso.
Um pequeno sorriso surgiu em seus lábios e ele acariciou lentamente o meu rosto. Por onde sua pele roçava a minha, eu sentia um arrepio inexplicável, algo que nunca havia sentido antes. Retribuí seu sorriso, enquanto encostava minha mão na dele. O toque de nossos corpos gerou novas sensações e parecia que mais luzes surgiam no ambiente. A claridade aumentava de uma forma que a cada segundo era mais difícil manter meus olhos abertos. Quando se tornou insuportável, fechei fortemente os mesmos e então sua fala entoou pelo ambiente.
- Consegue ver agora? – sua voz doce e aveludada era tão sedutora, que fez com que eu abrisse os olhos, vendo outra cena. Meu corpo pairava flutuante no ar, enquanto aparecia ajoelhado ao meu lado. Sua blusa entreaberta deixa seu peito levemente à mostra e nele brilhava uma marca como a minha. Num instante gritou e o foi o som mais apavorante e assombroso que eu ouvi. Olhei para mim mesma e minha nova cicatriz brilhava fortemente. Ele encostou sua mão na minha e uma pequena linha se desenhou, uma pequena e disforme marca, assim como a do meu peito.
- ? – ouvi uma voz me chamando, distante.
- ? – chamei, mas a cena desaparecia lentamente.
- ? – a voz parecia mais próxima, quase me arrastando de volta à Terra. Eu não queria sair de perto do naquele momento, mas parecia impossível. Olhei mais uma vez para seu rosto e o de seus olhos foi a última coisa que vi em meu devaneio. – ? – Gabbie? chamou mais uma vez.
- Oi. – respondi, ainda fora de órbita. – Eu estava distraída.
- O que foi agora? – ela perguntou.
- Eu acho que tive uma visão... – falei, incerta.
- Como assim uma visão? – ela disse, sentando-se ao meu lado.
- Eu nunca tinha reparado nessa marca aqui. – apontei para o sinal entre meus seios – Estava colocando o vestido quase vi e quando encostei, pareceu que eu fui transportada para outra dimensão ou algo do tipo. – ela reprimiu um sorriso. – Gab, é sério. Foi muito real, eu estava sentindo as coisas...
- Que coisas?
- O estava lá, ele fez um carinho no meu rosto, eu segurei sua mão. Ele era de verdade, Gabbie. – eu disse, querendo convencer a minha mesma também.
- , me escute. Não venha enfiar esse seu amigo imaginário na sua vida de novo. Tanto tempo que você não fala dele, por que isso agora? Você tem um garoto de carne e osso louco por você. Não coloque tudo a perder por nada.
- O não é nada, Gab. Você simplesmente não entende, não viu o que eu vi, não sentiu o que eu senti. Ele... – eu parei de falar, encarando a parede, sem saber se deveria continuar ou não.
- Ele o que, ?
- Ele tinha uma marca como minha. Eu me deitava como se estivesse flutuando e ele estava ajoelhado ao meu lado. Então ele gritou... – eu respirei fundo, sentindo um arrepio forte passar pelo meu corpo. – Foi o som mais apavorante que eu já ouvi na minha vida.
- Foi um sonho ou a lembrança de um. É a única explicação possível. – ela disse, tentando encerrar o assunto.
- E isso não foi algo possível de explicações? Existem coisas assim. – ponderei, mas ela não parecia se convencer.
- Para quem acredita, sim. Mas eu não acredito, . Desculpe. – ela disse, enquanto eu encarava a marca em minha mão.
- Talvez você esteja certa. – eu respirei fundo, voltando a olhar em sua direção. – Talvez eu tenha que voltar minha atenção para o Taylor, já que ele está aqui de verdade. – dei de ombros.
- Eu estou certa. – ela afirmou. Eu levantei, seguindo para a porta.
- Te vejo lá embaixo. – disse, fechando a porta atrás de mim. Encarei mais uma vez a linha disforme em minha mão. – Não foi um sonho – murmurei para mim mesma – Não foi.
/’s POV
Eu estava preso no plano superior. Avisaram-me que Miguel queria conversar comigo e eu só poderia sair depois disso. Eu não sabia o que ele tinha para falar e isso me deixava completamente nervoso. Nunca é bom quando ele pede para conversar com um protetor durante seu tempo de serviço. Isso só pode significar duas coisas: Ou o tempo de seu protegido estava acabando ou você tinha feito algo de errado. E como da última vez que eu estive com ela, estava tudo bem, algo me dizia que o errado no momento era eu mesmo. Tentei pensar em outras coisas, mas era praticamente impossível. Quando Miguel resolve interferir pessoalmente, é porque já ultrapassou muito do limite recomendável.
- . – Miguel disse, me sobressaltando. Sua expressão não era das melhores. Apesar de seu olhar sempre parecer ríspido demais, sempre tinha algo que te acalmava. Porém, dessa vez, além de não ter nada de tranquilizador em sua fisionomia, ela estava mais severa ainda.
- O senhor queria falar comigo? – eu falei, após reunir forças.
- Vou direto ao ponto. Eu sei o que você fez para salvar sua protegida e isso não é visto com bons olhos. Sim, você deve fazer o que está ao seu alcance e apenas isso. Você não pode simplesmente abrir mão do que você tem de mais importante. – conforme ele falava, o peso de suas palavras caía sobre meus ombros, fazendo com que uma sensação de culpa me dominasse. Eu sabia que Miguel podia fazer coisas como essas, talvez para fazer com que as pessoas se arrependessem de seus atos, mas eu não estava nem um pouco arrependido. – Mesmo um pedaço ínfimo de sua alma pode causar consequências desastrosas em mãos erradas. Samuel agora a possui e você sabe o que ele pode fazer com ela agora?
- Não faço ideia, senhor.
- E você confia nele o bastante para que possamos ficar tranquilos? Porque eu não confio nenhum pouco. – ele disse, fazendo uma careta reprovadora em seguida.
- O Samuel mudou, ele fez isso porque queria o bem da minha protegida. – ponderei, mas ele não levou muito a sério meu comentário.
- Não creio que um anjo da morte possa querer o bem das pessoas. Eles podem ser criaturas terríveis. Mentem, enganam, usam as pessoas apenas para conseguir o que querem. Eu julgava você mais inteligente que isso, . E você me decepciona cada vez mais. – ele balançou a cabeça em desaprovação. – Além de fazer essa loucura, você ainda a traz aqui novamente, mesmo sabendo que humanos não podem vir em vida. Está quebrando regra após regra. Você perdeu completamente o controle da situação e eu só tenho uma coisa a fazer...
- Eu posso explicar! Só queria que ela entendesse... – tentei contornar a situação, mas ele estava irredutível.
- Ela não precisaria entender nada se você fizesse apenas o que devia. Você está se desviando de seu caminho, protetor. Mas eu tenho uma solução. É drástica, porém eficaz. Você está proibido de fazer qualquer tipo de contato com ela. Passará a seguir à risca todas as regras, sem nenhuma outra transgressão, ou as consequências serão realmente trágicas. Estamos entendidos? – ele perguntou, mas eu não conseguia responder. A única coisa que se passava pela minha cabeça era a sua frase: “Você está proibido de fazer qualquer tipo de contato com ela.”. Eu não era capaz de passar nenhum um minuto longe dela, como eu poderia não ter nenhum contato com ela? Isso era impossível. – ! – ele disse mais alto, chamando minha atenção. – Estamos entendidos?
- Senhor, eu simplesmente não consigo ficar longe dela. – confessei, sentindo o peso de minhas palavras. Ele me olhou com mais atenção, como se estivesse me estudando. E, como se visse algo diferente e poderoso, se afastou repentinamente. – Não é algo possível.
- Então torne possível. – ele disse, desaparecendo em seguida diante dos meus olhos. Então, pela primeira vez eu me senti completamente sozinho. Era como se nada me prendesse a esse ou a qualquer outro mundo. Como se eu dependesse da presença dela para viver ou para apenas ser real. Sem ela eu era apenas um espírito vagando pelo mundo. Sem direção, rumo, ponto de partida ou chegada. Afinal ela era tudo isso para mim.
- Parece que é difícil de fazer você entender o que é “tente não fazer nada de errado”. – disse Samuel, aparecendo assim que Miguel desaparecera, fazendo menção ao aviso que me dera na última vez que nos encontramos – É claro que você tinha que trazê-la aqui novamente, não é? Eu lhe disse que ela não podia ter consciência do que aconteceu, que tinha que pensar que era um sonho. – ele suspirou – Você não pode deixar que a vida pessoal dela influencie em seus atos.
- Nada influencia em meus atos, Samuel.
- Não parece. – ele riu baixo – Eu conheço os sinais, . Eu sei o que tá se passando na sua cabeça, porque eu já passei por isso.
- Não tem nada passando em minha cabeça agora, nada! – esbravejei, recebendo um olhar assustado em resposta. Senti como se o meu corpo todo ficasse mais quente, parecendo que eu estava a ponto de explodir ou perder completamente o controle. Eu não deveria descontar minha infelicidade nele, na verdade eu não deveria descontar em ninguém, pois fui eu o culpado – Me desculpe.
- , agora você terá que manter sua cabeça livre de pensamentos estúpidos. Eu sei o quanto é doloroso ficar longe dela. Eu estou longe da Alane há anos e a dor nunca cessou.
- Não faça comparações, não dê sua opinião. – fui grosso novamente – Miguel disse que eu não deveria confiar em você. Que agora você tem uma parte da minha alma e pode fazer qualquer coisa com ela.
- E você acredita? Concorda com os seus julgamentos? Porque por causa dele você está proibido de se aproximar de seu afecto, e não por minha causa. Eu te ajudei, te orientei, contei coisas sobre a minha vida que poderiam de ajudar e é assim que você me retribui? Esperava um pouco mais de você.
- Todos ficam falando a mesma coisa e eu não aguento mais. Eu não posso ser culpado pelas coisas que vocês acreditam ou esperam de mim. Vocês me subestimam e eu fico com a culpa.
- Eu sei o que espero de você e não é nada além do que pode fazer. Se você está chateado porque não pode ficar com ela e tem alguém que pode, não é porque eu quero.
- Do que você está falando, Samuel? – perguntei confuso.
- Você só a trouxe aqui mais uma vez para ela ver que quem salvou a vida dela. E isso tudo porque tem um garoto...
- Não é nada disso, você está imaginando coisas. – respondi, tentando assimilar a quantidade de absurdos que ele poderia dizer em tão pouco tempo.
- Não? Então por que você a trouxe aqui? Por que você mostrou o que fez? – ele indagou, mostrando sua expressão superior, aquela que ele assume quando sabe que está certo. E para piorar a situação, eu não tinha resposta. Só de ver aquele menino próximo dela, fazendo com que ela se sentisse bem de uma forma que eu não conseguia, aquilo me matou por dentro. Eu sentia vontade de separá-los, levá-la para um lugar onde ele nunca a encontraria.
- É a forma que ele a toca, Samuel. – confessei, encarando o chão – Eu salvei a vida dela e era ele que estava lá no meu lugar. Tocando seu rosto, fazendo-a sorrir...
- ... – ele disse, esperando que eu o olhasse – Eu disse que viria quando efeitos colaterais aparecessem, mas não sabia que seria tão rápido. – ele se aproximou, ficando à minha frente. – Eu sei o que você está sentindo e o quão confuso é, mas com o passar do tempo tudo começa a fazer sentido.
- O que é isso? Essa confusão de sentimentos que eu não conheço? Eu não consigo lidar com isso. Estava acostumado a não sentir nada e agora é o contrário, eu sinto tudo. Como se a minha cabeça não comportasse isso e eu me visse obrigado a liberar tudo de uma vez.
- Quando você deu parte de sua alma, você se tornou vulnerável aos sentimentos humanos. Agora eles não passam despercebidos, você consegue senti-los e, às vezes, com mais intensidade que os próprios humanos. E sinto informar, mas é apenas o início, tudo tende a piorar.
- Ah! Muito reconfortante saber dessa última parte. – comentei sarcasticamente.
- Nossa mente não está apta a receber esse tipo de informação, então se você ficar confuso é completamente normal. Só que você tem que aprender a lidar com isso, tem aprender a controlar o que você sente antes que seja tarde demais.
- Tarde demais para quê? – perguntei, confuso novamente.
- Não vou te dar ideias ou possibilidades. – ele respondeu, rindo levemente – Fique longe dela e tente controlar o que sente. Por favor, faça o possível e o impossível para ficar longe. Eu não quero que você termine como eu. É melhor tê-la por perto, mesmo que sem nenhum contato direto, do que não poder ver nem mesmo seu rosto.
- Isso que eu estou sentindo agora é reflexo desses sentimentos que me dominam?
- Possivelmente. A raiva é um sentimento comum, qualquer coisa pode tirar alguém do sério. Uma palavra, uma ação. No nosso caso foi algo que eu disse num mau momento, confesso. Se bem que eu gosto de estar por perto nas primeiras vezes, é engraçado. – ele riu, mas eu não o acompanhei.
- E essa necessidade de tirá-la de perto dele? Por que eu não consigo aceitar? É estranho, como se meu coração pesasse e um bolo se formasse em minha garganta. Eu quero gritar com ele... – fechei as mãos em punho, tentando me controlar – Eu o quero longe dela.
- Isso, meu caro, é o ciúme. Um dos mais comuns e simples sentimentos. – ele disse, com um sorriso singelo no rosto. Mas não havia nada de simples no que eu sentia. Era um turbilhão de coisas passando em minha cabeça ao mesmo tempo, algo como perda, diminuição, troca. Como se eu não fosse mais necessário para a por causa desse garoto, como se ele estivesse roubando meu lugar. Enfim, nada comum e muito menos simples.
- Ciúme? Como eu posso sentir ciúme? Ela não é nada minha, não penso nela desse jeito... Romântico, Samuel.
- As pessoas podem sentir ciúme dos amigos, familiares, . Não é obrigatório que se tenha algum tipo de envolvimento físico ou amoroso. – ele ponderou, olhando para frente.
- Você seria sincero se eu te perguntasse uma coisa?
- Claro. – ele disse, apoiando-se à parede e me encarando com intensidade.
- Eu realmente posso confiar em você? – disse rápido, antes que eu mesmo pudesse me impedir.
- Não é como se você tivesse muitas escolhas. – ele se endireitou, rumando para a saída.
- Espere, eu não tomei minha decisão. – eu disse, indo até ele – Mas dependendo do que eu escolha, sofrerei consequências muito drásticas?
- O problema não é com quem você se mistura, o problema é o que você faz. Independente de estar do meu lado e confiando em mim, você ainda será você, um protetor.
- Tudo bem, mas eu preciso fazer uma coisa. – ponderei. Ele apertou os olhos, pensando e esperando – Preciso vê-la mais uma vez.
’s POV
Me encarei em frente ao espelho, prestando atenção na marca que havia surgido entre meus seios. Aquela sensação tinha sido altamente estranha para ser apenas lembranças de um sonho. Tornei a passar o dedo sobre a marca e nada acontecia. Por quê? Era a única coisa que passava pela minha cabeça. Até umas horas atrás, eu pensava que aquilo era coisa da minha cabeça, não tinha nenhuma chance de eu ter machucado a mão daquela forma e não ter percebido. Não há uma explicação plausível para a marca. Eu só lembro-me de ter encontrado com o antes de aparecer. Mas como ele poderia causar isso? Ele não era real, não a esse ponto. E mesmo que fosse, por que ele faria algo que me machucasse? Não há explicação... Não há! Fechei os olhos, tentando lembrar as coisas que imaginei ter visto ontem enquanto me trocava. Nada parecia ser de verdade. O lugar era amplo demais, claro demais para existir. Mas de alguma maneira eu estive nesse lugar e voltei com duas marcas. Olhei para a existente em meu peito, tocando-a levemente. Nada aconteceu, a não ser algo como uma onda de calor invadindo meu quarto e fazendo com que meus pelos se eriçarem. Fechei os olhos, inspirando o doce perfume que agora inebriava o ambiente. Era um aroma relaxante, acolhedor e conhecido. Mantive os olhos fechados até ouvir sua voz doce ecoar pelo ambiente. Porém, ao invés disso, ouvi sua respiração leve em algum lugar por perto. Abri os olhos, procurando por ele e o encontrei apoiado perto da janela. O sorriso que eu esperava não estava lá, o que foi decepcionante. Eu queria sentar e contar tudo para ele, deixá-lo a par do que estava acontecendo comigo ultimamente, mas sem realmente saber porque, eu não conseguia falar sobre o Taylor com ele. Talvez com medo de sua reação. O que, provavelmente, era uma preocupação boba. Com um leve sorriso nos lábios, eu me aproximei, esperando a mesma reação em resposta. Coisa que não aconteceu.
- O que foi, ? – perguntei baixo. E então ele me olhou nos olhos pela primeira vez. Aquele brilho intenso que eu me recordava se fora, era como se existisse uma nuvem escura pairando sobre seus lindos olhos . Olhos que eu reconheceria em qualquer lugar, a qualquer momento.
- Eu tenho uma coisa a fazer. – ele respondeu, com sua voz num tom triste.
- Aparentemente não é algo bom. – murmurei e ele acenou a cabeça, confirmando. Ele me olhou nos olhos novamente, mas de forma mais invasiva, como ele nunca tinha feito. Não me senti mal ou ofendida com isso, era como se não houvesse mais coisas para ele descobrir sobre mim. Eu sempre fui e sempre serei um livro aberto com ele. Excetos pelos capítulos que abordam o Taylor. Ele continuava me encarando, como se medisse ou estivesse se decidindo como começaria. Confesso que toda aquela espera me deixava nervosa e meu sexto sentido gritava, como se algo ruim estivesse para acontecer.
- Eu estou indo embora. – ele finalmente falou. Meu sorriso vacilou e desapareceu. Ele estava indo embora? Como isso é possível?
- C-como? – gaguejei.
- Sempre há aquele momento em que percebemos que não somos mais úteis e ele chegou para mim.
- Como você não é mais útil? Quem te disse isso? Não é verdade! – disse apressada, me aproximando mais. Ele se contraiu com minha aproximação, o que me fez recuar.
- Você precisa aceitar, , afinal, foi você que tornou isso possível. – ele disse com tamanha dificuldade, como se aquilo o matasse por dentro.
- Eu? – perguntei assustada, procurando motivos que pudessem comprovar que ele falava e minha mente me levou automaticamente para Taylor. Era óbvio, ele era a causa disso tudo – Se isso é por causa do...
- Não precisa se explicar. – ele murmurou e sorriu pela primeira vez – Nós somos necessários quando vocês estão com dificuldades, carentes de atenção, amigos ou companhia. Contudo, o momento agora é outro, você, finalmente, encontrou alguém real, de carne e osso. Para que perder tempo com alguém como eu?
- , não. Você esteve comigo nos piores momentos, sempre foi meu amigo. E o fato de eu ter ou não alguém real nunca foi motivo de nada. Eu sempre tive minhas amigas e isso não te impedia de estar ao meu lado. – rebati, tentando encontrar alguma brecha em seu discurso.
- Agora é diferente. Ele ocupa um lugar específico e não tem mais espaço para nós dois. Nós, de fato, temos a mesma função, mas ele é real, . Ele pode te confortar, te abraçar. Eu sou apenas...
- O melhor amigo que já tive em toda a minha vida? – dei uma opção. Ele sorriu abertamente, estendendo sua mão. Entrelacei nossos dedos e senti o calor de sua pele. Com o meu toque, era como se ele passasse a emitir uma luz muito intensa. Literalmente, brilhava mais do que qualquer pessoa.
- É para isso que eu existo, suprir as necessidades até que alguém apareça. – ele explicou, trazendo nossas mãos unidas para perto do seu peito. Era estranho não sentir um coração batendo, isso tornava mais difícil acreditar em tudo que eu estava vivendo. Encarei seu tronco exposto e a marca idêntica à minha reluzia fortemente. Estiquei minha mão livre, tocando a cicatriz. No mesmo momento sua luz se tornou tão intensa, que eu não conseguia manter meus olhos abertos. Me senti plena quando ela me atingiu, como se servisse de anestésico e retirasse de minha mente todos os meus problemas e complicações.
- Como vou viver sem você por perto para fazer isso quando eu precisar? – sussurrei, ainda de olhos fechados. Senti um toque suave perto dos meus olhos. Até aquele instante eu não tinha percebido que estava chorando. – Por que eu tenho imaginado coisas absurdas? Estou com medo de estar louca, ninguém acredita em mim.
- Não são coisas absurdas e nem nunca serão. – ele pareceu ofendido – Basta que você acredite, somente você. Afinal, é a única pessoa que realmente importa.
- Eu tento, mas é difícil, . Me explique então, o que foi aquilo que eu vi? Por que eu estava flutuando e você ajoelhado ao meu lado?
- Você deve ter visto algo que te impressionou, não se deixe levar por essas coisas. São sonhos. – ele disse baixo, com sua voz suave e cadenciada.
- Foi real demais para ser um sonho. Eu senti tudo.
- Sentiu tudo como está sentindo agora? Como você pode ter certeza que não está sonhando novamente? – ele questionou, com um sorriso bobo nos lábios.
- Não tente me confundir. – pedi.
- Eu nunca fiz e nem farei isso. Todas as respostas que você precisa estão debaixo de seus olhos, basta você entendê-las.
- Eu não quero entender, não quero que você vá... Não quero ficar sozinha. – pedi, quase suplicante.
- Você não estará sozinha.
- Se é por causa do Taylor, não precisa se preocupar, ele vai embora, ele vai para a faculdade... Acabou, .
- Não é por ele, não é a pessoa dele, e sim o que ele significa. Se por acaso ele sair de sua vida, outro aparecerá. – ele ponderou, tentando me fazer desistir.
- Mas... – eu comecei a falar, quando ele me interrompeu, olhando diretamente em meus olhos.
- Quando você se sentir sozinha, faça o seguinte: – ele soltou nossas mãos e pegou a que tinha a marca. Passou seu dedo por toda a extensão da mesma e o resultado foi completamente diferente do anterior. O que antes se tornou quase congelado, estava quase fervente. Mas o calor era a agradável, como quando os raios do sol tocam a sua pele depois de muito tempo num lugar frio. Era revigorante. No fim do curto trajeto de , a cicatriz assumiu um leve brilho – Busque refúgio num lugar que você saiba que é nosso. Não importa quando, não importa onde, eu estarei lá de alguma forma.
- Para sempre?
- Para todo o sempre. – ele disse, se aproximando e encostando seus lábios levemente em minha testa. Fechei os olhos, para aproveitar ainda mais do momento. Não senti o que normalmente sentiria, era como todas as minhas terminações nervosas entrassem em colapso ao mesmo tempo e me impedissem de dizer algo concreto. Agora as lágrimas desciam com vontade e eu não as impedia – Adeus, minha pequena.
Abri os olhos, mas ele não estava mais lá. A única coisa que comprovava que ele realmente esteve lá e que tudo, infelizmente, foi real, era os resquícios de sua forte e brilhante luz. Inspirei, sentindo que o seu perfume ainda estava no ambiente, fraco, porém ainda presente. Coberta por sua luz e inebriada com seu perfume, não tive outra opção a não ser murmurar alguma coisa, enquanto via sua luz se esvair aos poucos.
- Adeus, meu .
Quatro meses depois…
Apertei os olhos para atravessar a rua, pois o sol estava praticamente me cegando. Segui pela calçada coberta pela sombra dos prédios e andei o mais rápido que conseguia até o hospital.
Hoje era dia de mais uma consulta com o Peter e ele me mostraria os resultados dos últimos exames. Nós fazemos um acompanhamento de seis em seis meses, para ver se meus problemas estão estáveis ou se teve alguma piora, porque eu nunca tive nenhuma melhora, as coisas só tendiam a piorar para o meu lado. Virei mais uma esquina e já consegui enxergar o grande hospital no final da rua. Continuei meu caminho, desviando das pessoas que atravessavam meu caminho. Hoje a rua estava bem movimentada, diversas pessoas com câmeras fotográficas e aquela expressão de encantamento no rosto. Londres sempre vive lotada de turistas, mas parece que hoje ela está especialmente cheia. Fico imaginando como deve ser visitar outro país, encarar outro povo, outra cultura. Deve ser encantador. Sempre tive esse desejo de viajar pelo mundo, conhecer a maior quantidade de lugares possíveis, desde os mais clichês como Paris, Nova York e Roma, até os mais diferentes como Uganda, Malásia e, sei lá, o Suriname. Só sei que eu sinto essa necessidade de sair um pouco de casa, do lugar seguro perto da minha mãe. Nada contra ela, mas é como se eu nunca tivesse vivido. Sempre sob os olhares atentos dela, do Peter e até mesmo do Joe, Gabbie e Nate.
Eles não eram os mais paranoicos, mas sempre estavam lá, me vigiando para que eu não fizesse nada impróprio. Bem, como se eu não soubesse das minhas limitações. Eu sei que pareço uma criança pensando essas coisas, mas quem nunca quis fazer loucuras? Eu faço dezoito anos ano que vem, estou prestes a me formar, logo vem a faculdade, e depois? Serei a anormal, aquela que não participa de nada, que não sai, não se diverte, não namora... Namorar. Essa palavra me faz lembrar o Taylor. O quão estranho é o fato de eu não pensar nele ou sentir uma imensa dor pelo nosso término? Sei que já se passou um tempo, mas eu canso de ver na escola a reação das meninas quando o namorado termina com elas. Parece que o mundo acabou, que elas não tem mais motivos para viver e comigo não foi nada desse tipo. Sim, eu fiquei triste, mas foi algo totalmente suportável. Será que o meu coração é tão danificado ao ponto de eu não poder sentir essas emoções como elas devem ser sentidas? Eu sei que o coração não cuida disso, era apenas uma brincadeira.
Tá, eu não estava falando de namorados, de viagens, liberdade e do meu futuro, certo? Então, o começo desse futuro é agora, com mais uma bateria de exames e seus resultados. São eles que determinam tudo. Eu estou aqui planejando diversas coisas e na verdade eu posso morrer antes mesmo de terminar o colégio. Eu vivo na corda bamba, como dizem. Quem sabe quanto tempo eu ainda tenho?
Assim que saí do elevador, avistei Bernadette sentada na recepção. Assim que a mesma me viu, abriu um sorriso e já se levantou.
- Será que você continua crescendo ou sou eu que estou encolhendo? – ela murmurou, enquanto me abraçava. Ela sempre foi um amor comigo, talvez fosse assim com todos os pacientes, nunca pude testemunhar. Quando eu era mais nova, sempre era recepcionada com um chocolate ou algumas balas. Peter dizia que ela me faria trocar um cardiologista por um dentista. Confesso que sempre torci por isso, afinal, uma dor de dente não mata, certo?
- Acho que eu dei uma crescida nos últimos meses mesmo. – sorri.
- Aguarde só um minuto que eu já vou avisá-lo que você está aqui, ok?
- Ok. – respondi, sentando numa das cadeiras. Olhei as outras pessoas que estavam na sala, diversas crianças com as mães ou os pais. Aquilo que entristecia, não gostava de ver crianças doentes, ainda mais tendo a mesma coisa que eu, porque eu sei bem como é duro passar por tudo isso. Sei o quanto é difícil ser uma criança diferente, cheia de proibições. Mas nada pode ser perfeito, certo? Uma menina que estava do outro lado da sala, bem à minha frente, estava me olhando de forma curiosa. Seu olhar confuso contrastava com o sorriso largo que ela mantinha nos lábios, bem, tão largo quanto a máscara de oxigênio que ela usava permitia. Ela acenou levemente e eu retribuí o gesto. Aquilo partia o meu coração. Eu me via naquela menina. Em todas elas.
Entrei na sala e encontrei Peter sentado em sua mesa. Ele encarava, de cenho franzido, alguns papeis em suas mãos. Sem muito alarde, caminhei até a mesa e sentei em uma das cadeiras dispostas à frente da mesma. Observei, pela milésima vez, os diplomas na parede à minha frente. Eram tantos. Diplomas, certificados de presença em congressos, simpósios... Peter era bem instruído, por assim dizer. Ele me olhou pelo canto dos olhos e sorriu rapidamente, como se estivesse demonstrando que sabia que eu estava ali. Com a expressão confusa, ele depositou as folhas ao lado e me encarou, apoiando os cotovelos na mesa.
- E então, quanto tempo eu tenho de vida? – perguntei, tentando descontrair o ambiente, porém sem sucesso, ele se limitou a rolar os olhos.
- Eu espero que muito. – Peter respondeu, retirando os óculos e coçando os olhos. – Digamos que os seus resultados estão diferente.
- Diferentes como? – me apressei em falar, complemente confusa.
- Eu queria saber te explicar, . Eu realmente queria, mas nem eu entendi o que aconteceu. – ele disse, voltando a apoiar os cotovelos na mesa. Ele inclinou o corpo para frente e se aproximou. – É como se o seu corpo estivesse se curando.
- Se curando? – perguntei alarmada. Como assim eu estava me curando? Isso não é possível, o Peter mesmo disse antes. Minha doença é algo crônico, não é redutível e nem curável, não adiantaria nem uma cirurgia. Talvez um transplante de coração, mas isso não resolveria o problema dos pulmões. – Quer dizer que o meu corpo está, sei lá, se regenerando?
- Não se regenerando, porque as lesões continuam as mesmas, não houve mudança. A única coisa que se alterou foi o funcionamento dos seus pulmões e do seu coração. Parece que depois de anos, eles aprenderam a funcionar mesmo com os problemas, coisa que não é possível. O problema do seu coração não é passível de uma cura espontânea, uma válvula mitral não vai, simplesmente, se desenvolver.
- E isso é ruim? Porque você não está muito contente...
- Não! Isso é maravilhoso, querida. É que eu nunca tinha visto nada como isso, em todos os meus anos de profissão. Eu só estou confuso. – ele sorriu de lado. – Mas isso não garante que você não deva se policiar. Não é porque tivemos uma melhora, que vamos aprontar, certo?
- Certo, mas eu ainda não entendi, Peter. Você usa esses termos e eu não entendo nada. – falei, sincera. Ele sempre falou um monte de coisas e eu não entendia quase nada, apenas um fato que é corriqueiro: eu ainda estava doente, como sempre. Mas hoje ele vem com essa bomba, fala que eu estou me curando, usa diversos termos médicos e ainda espera que eu entenda? Estou nervosa demais para entender qualquer coisa.
- Ok. No coração humano nós temos divisões importantes, os átrios e os ventrículos, certo? Então, os do lado direito são responsáveis por bombear o sangue venoso, aquele pobre em oxigênio até os pulmões para que ele seja, tipo reabastecido. Depois esse sangue oxigenado segue pelas artérias até o lado esquerdo do coração, onde ele bombeia esse sangue para o restante do corpo. A válvula mitral controla a quantidade de sangue oxigenado que passa do átrio para o ventrículo e a sua tem uma má formação, então o fluxo de sangue não é controlado, ele pode tanto ser intenso, quanto lento. – ele respirou fundo, balançando a cabeça, como se ainda quisesse acreditar no que ia dizer. – E essa má formação não é “autocurável” por assim dizer, é passível de cirurgia, mas nós sempre tememos que você não aguentasse, porque, se não bastasse isso, você também tem o problema no pulmão. Você não absorve a quantidade normal de oxigênio e te submeter a uma cirurgia sempre foi considerado de alto risco. Mas nesses últimos exames foi comprovado que você teve uma melhora tanto na absorção de oxigênio pelo pulmão, quanto no controle de bombeamento. E sem nenhuma intervenção médica. Eu nunca vi isso.
- Então eu sou um caso isolado? – perguntei, ainda incerta e sem acreditar muito no que eu tinha ouvido.
- ... – ele riu, suspirando pesadamente em seguida. – Não diria isolado, diria raro, quase único.
- Peter, eu não sei o que dizer. – respondi, ainda tentando entender o que ele havia falado. – Mas sei que eu não quero que você conte pra ninguém, nem pra minha mãe. Preciso de um tempo para absorver isso e não quero dar falsas esperanças pra ela, vai que no próximo exame tudo volte ao normal...
- Eu entendo e vou te respeitar, é uma atitude muito madura. – ele sorriu de lado, deixando que algumas rugas surgissem no canto dos seus olhos.
Meu corpo se recuperou de alguma forma e eu, realmente, não tive mais problemas. Contei a minha mãe e ao meu irmão a novidade e acho que eles ficaram mais felizes do que eu. Talvez fosse porque eles não precisariam mais se preocupar comigo a cada segundo, pensando se eu estava bem, se algo tinha acontecido. Eu sabia como isso era importante e pensava mais neles no que em mim.
O tempo foi passando, Nate e Joe foram para faculdade, depois foi a vez de Gabbie, até que chegou a minha hora. Eu estudaria perto de casa, como eles, mas passaria a maior parte do tempo na rua. Minha mãe já estava nervosa, ansiosa com o que poderia acontecer, mas já tinham se passado dois anos e eu não tive mais nada, estava bem e saudável. Também contei com a ajuda de Peter, que tentou deixar tudo claro para ela, por mais que não tivesse compreendido tudo, ela entendeu e me deixou seguir meu caminho. E agora estava mais fácil ter a ajuda dele, já que depois de tanto tempo, eles, finalmente, assumiram o que sentiam e se casaram, não no papel, porque teoricamente meus pais ainda eram casados. Foi uma cerimônia simples, apenas para a família, onde eu, Nate, Joe e Gabbie demos nossas bênçãos aos dois. Eles podem não ser casados aos olhos da justiça, mas estão casados para todos nós e isso basta.
A faculdade era um novo mundo, repleto de pessoas novas, experiências novas, o que poderia me ajudar a ser uma pessoa nova. Sempre vivi presa ao medo do que poderia acontecer, que sentia como se não tivesse sido capaz de viver a minha vida até aquele exato momento. Então era o momento de viver, apenas viver. Eu estava na faculdade há algumas semanas e teria uma festa para os novos alunos naquela noite. Estava frio e o tempo estava fechado, como se fosse chover muito, minha mãe disse para eu não ir, mas eu fui, porque já tinha dito que iria e também porque não fazia sentido deixar de sair só porque parecia que iria chover. Pedi que Nate fosse me buscar por volta das 23hs, assim eu não precisaria arrumar uma forma de voltar para casa e ele disse que tudo bem, que tinha aula cedo no outro dia, mas que ficaria acordado.
/)’s POV
Já tinha dois anos que eu tinha me afastado de e eu sentia como se cada dia fosse uma eternidade. Eu continuava como seu protetor, mas estava proibido de manter qualquer contato direto com ela, mas era difícil demais. Era difícil lidar com a vontade de ouvir sua voz dizendo meu nome, de ver o sorriso que se formava em seu rosto toda vez que me via, de sentir tudo o que só ela despertava em mim. Só que Samuel me alertou dos efeitos que eu poderia ter, mas mesmo longe dela, eu continuava a senti-los. O primeiro e mais forte era uma dor que me fazia sentir o peito apertado, que fazia com que ela não saísse da minha mente, até mesmo quando eu queria me manter afastado. Samuel me disse o que poderia ser: saudade. Mas não havia nada que eu pudesse fazer, eu tinha que manter minha promessa, só ficava mais difícil a cada dia. Principalmente quando eu a via em situações como as de hoje: sozinha, à noite, no frio e na chuva. Ela estava numa festa, seu irmão deveria vir buscá-la, mas ele pegou no sono em casa, não atende ao telefone e o celular está desligado. contava com a sua carona e não sabe como voltar para casa. Estava chovendo muito para ela caminhar até o metrô, mas estava ficando tarde para esperar. Então resolveu seguir para o metrô de uma vez, ficando completamente encharcada em poucos segundos. caminhava rapidamente, sem olhar muitos para os lados, apenas na intenção de chegar logo. Passei a acompanhá-la de perto e senti seu temor quando dois homens surgiram no começo na rua e a encararam de forma estranha enquanto ela passava. Seu caminhar se tornou mais apressado e ela entrou numa rua à esquerda para seguir para o seu destino, mas ao olhar para trás rapidamente, viu que os homens deram a volta e agora caminhavam em sua direção. O pânico tomou conta do seu corpo e ela sentiu suas pernas travarem. Eu não poderia apenas assistir toda aquela situação, não poderia me manter distante sabendo dos riscos que ela corria. Então apareci em sua frente, fazendo com que ela se assustasse e desse dois passos para trás, por puro reflexo. Só que poucos segundos depois me reconheceu, sua expressão se suavizou um pouco e ela estendeu a mão em minha direção, mas não conseguiu me tocar. Seu olhar se tornou confuso, mas antes que pudéssemos perder mais tempo, falei:
- Vem comigo. – Atravessamos a rua, parando embaixo de uma marquise, protegidos da chuva, parei em sua frente, cobrindo seu corpo com o meu. Sua respiração estava acelerada, descompassada, como se elai estivesse prestes a ter um ataque de pânico. Olhei em seus olhos e tentei acalmá-la, tentei demonstrar a ela que eu estava ali para protegê-la. – Preciso que você fique calma, em silêncio e confie em mim. Eles vão chegar em alguns segundos, mas eles não vão te ver. Eu estou aqui para te proteger.
Fechei os olhos no exato momento em que os homens viraram a esquina, eles percorreram alguns metros da rua, olhando para os lados, como se procurassem por . Pararam bem em frente onde estávamos, mas não nos viram, porque eu estava usando meus poderes para deixá-lo confusos, para fazê-los ver como se a rua estivesse vazia. Segundos depois, então, eles desistiram e voltaram pelo mesmo caminho que vieram. estava segurando a respiração por quase o tempo, mas depois ela se permitiu relaxar, suspirando levemente.
- . – sua voz doce me alarmou, fazendo com que eu abrisse os olhos e a encarasse. Ela estava me olhando de volta, com um misto de espanto e surpresa. – Você voltou...
- Eu não deveria estar aqui. – falei rapidamente, dando um passo para trás, mas ela me acompanhou, não deixando com que eu me afastasse.
- Não vai embora, por favor. – ela estendeu uma das mãos para me tocar, mas quando eu pensei que ela não conseguiria, eu senti o toque leve de seus dedos em meus braços. Um arrepio percorreu todo o meu corpo e acho que ela também sentiu. Ela não deveria conseguir me tocar, eu não deveria conseguir sentir, mas eu senti e... não sei como seria viver sem essa sensação novamente. – Eu posso te tocar? – disse, num misto de pergunta e exclamação.
- Eu não sei o que está acontecendo. – falei rápido, tentando me afastar, mas ainda sendo impedido. – Eu preciso ir, .
- , fica. – ela pediu, subindo a mão que segurava em braço pelo ombro, até chegar próximo ao pescoço. – Por favor. – sua voz estava baixa e suave, ela deu mais um passo em minha direção.
Senti a minha própria respiração falhar com a proximidade. olhou fundo em meus olhos e eu senti como se tivesse perdido, como se não soubesse quem era, ou melhor, o que era. Conforme ela se aproximava, eu pensei em como tudo aquilo era errado, como não deveria acontecer, mas eu não tinha forças para evitar, para detê-la. Afinal, eu não poderia parar algo que, na verdade, eu desejava há tanto tempo. E quando nossos lábios se tocaram, senti como se tivesse um fogo dentro de mim, como se um coração batesse dentro do meu peito, como se eu estivesse vivo. Eu poderia voar e não seria por causa das minhas asas, seria por todos os sentimentos eu estavam dentro de mim estarem, finalmente, sendo libertados. Eu estava leve. Eu estava bem. Eu estava feliz. Por alguns segundos eu deixei de pensar e agir como um protetor, deixei todos aqueles sentimentos que estavam presos dentro de mim saírem e pude me permitir a sentir alguma coisa, qualquer coisa. E era ela, era , a pessoa que despertava tudo em mim, o melhor e pior. Talvez agora eu pudesse, finalmente, entender o que Samuel sentia ao falar de Alane, poderia entender o que existia por trás daquele misto de sentimentos que ele tinha. Só podia ser amor. O mais puro dos sentimentos. Eu amava . Amava como protetor, desde que ela nasceu, mas agora não, era diferente. Era um sentimento que me dominava. Que me deixar sem poder pensar, me deixava sem rumo e sem escolhas. Não poderia ser seu protetor. Eu precisava dela, precisava ficar com ela.
Eu estava em pé no alto da torre mais alta de Londres. Tinha deixado em casa, ela acordaria em sua cama e pensaria que tudo não passou de sonho. Mas pra mim não seria, eu viveria com aquela lembrança eternamente. Eu sabia que aquele sentimento não morreria ou diminuiria, mesmo depois que me deixasse, eu ainda a amaria e teria que viver eternamente com a sensação de que não tinha feito tudo o que poderia. Estava fadado a ter uma vida igual a do Samuel e eu não poderia viver assim. Fechei os olhos pensando nas possibilidades e lembrei de Samuel, como ele tinha tentado fazer com que eles fossem iguais e se fossemos? Se fossemos humanos? Será que poderia me amar como eu a amo? Será que eu teria todas as lembranças? Será que eu teria as recordações de todos os momentos que tivemos? Talvez valesse o risco, não sei. Suspirei, encarando o céu, buscando por uma resposta. Apenas um sinal do que eu deveria fazer. Eu sabia que talvez fosse o final da linha para mim, Miguel nunca perdoaria um deslize como esse, provavelmente eu estaria condenado a ficar longe de para sempre e essa não era uma opção. Então eu não tinha muitas escolhas. O momento era decisivo, pela primeira vez, a vida dela dependia de mim, apenas de mim. E qualquer uma das duas escolhas que eu tinha, mudaria nossas vidas para sempre. Sim, nossas vidas. A minha vida, está entrelaçada a dela, de tal forma que se tornou impossível separar, assim como esse sentimento que eu carrego em meu peito. Não é permitido, não é correto, não é aceitável. Mas se tornou inevitável. Agora eu entendo porque os humanos fazem tantas loucuras por amor, agora eu entendo o que é amar alguém. Depois de muito tempo entendendo os sentimentos através de outras pessoas, sentir por mim mesmo é indescritível, é uma sensação que me faz sentir como se eu estivesse vivo. É exatamente assim que ela faz eu me sentir: Vivo! Ela é a minha vida. Os papéis foram invertidos, ela sempre precisou de mim, mas agora, eu preciso dela mais do que qualquer outra coisa. Eu abriria mão de tudo o que tenho, de tudo o que sou. Eu pertenço a ela. Eu pertenço a ela antes mesmo dela existir. Respirei fundo, com um sorriso sincero nos lábios, pensando:
“Eu entrego minhas asas.”
Deixei meu corpo tombar e conforme eu caia, a única imagem que se passava em minha mente era e, mesmo sem saber o que aconteceria comigo a seguir, rezava para que eu a encontrasse, de alguma forma.
Abri os olhos lentamente, estranhando a maciez da superfície onde estava deitado, e encarei um teto branco. Pisquei algumas vezes para tentar clarear a mente, mas tudo ainda parecia muito confuso. Olhei ao redor, não reconhecendo nada naquele quarto, desde as paredes verdes, até os troféus que estavam alinhados, lado a lado, numa prateleira ao lado da porta. Bem, talvez eu conhecesse aqueles troféus. Forcei a memória, tentando lembrar alguma coisa, qualquer coisa, mas não vinha nenhuma lembrança completa, apenas flashs que surgiam e depois pareciam ser reais. Como os próprios troféus, num primeiro instante, eu não os reconheci, mas olhando novamente, eram como se a lembrança de cada um fosse adicionada na minha mente e eu ia lembrando conforme olhava para cada um. O primeiro era do campeonato estadual de basquete da escola onde estudei no ensino médio, que ganhei no primeiro ano. Disso eu me lembrava, mas não lembrava o nome do colégio. Fechei os olhos fortemente, passando a mão pela cabeça, tentando entender o que estava acontecendo comigo. Aquele lugar era o meu quarto, algo me dizia isso. Mas por que eu não tinha certeza de nada de imediato? A única que eu tinha certeza era que meu nome é e o restante, bem, eu não sabia. Encarei as mãos por um instante, vendo uma pequena marca irregular na palma da mão direita, perto do dedão. Era como uma cicatriz, mas por mais que eu forçasse a memória, não conseguia lembrar como tinha conseguido.
- . – ouvi uma mulher bater na porta. Não reconheci sua voz, mas eu sentia que deveria saber quem era. – Meu bem, vai perder a hora da aula. – algo em minha mente disse que ela era minha mãe. E de repente fui inundado de recordações: nós dois em aniversários, momentos simples, consegui ouvir sua risada, ver exatamente como era o seu rosto e, de repente, eu sentia que realmente a conhecia por toda a minha vida. – , levanta, vai se atrasar para a faculdade. – ouvi novamente a sua voz e quando ela falou “faculdade”, foi como se várias memórias surgissem em flash em minha cabeça novamente: eu com meus amigos, dormindo numa aula, comemorando uma aprovação, vestindo o um jaleco... Eu fazia medicina? Olhei rapidamente para o lado, vendo uma montanha de livros que confirmavam minha suspeita. Talvez eu tivesse tido um sonho estranho e acordado confuso. Ou bebido muito na noite anterior. Será que eu costumava beber? Só sei que nada parecia normal, era como se eu estivesse aprendendo ou reaprendendo tudo sobre a minha própria vida.
- ... – minha mãe abriu a porta e colocou a cabeça para dentro do quarto. Assim que olhou em minha direção, ela sorriu de forma calorosa. Algo dentro de mim de acendeu. Eu a amava, ela era minha mãe. – Querido, a aula. Você comentou ontem que tinha uma prova importante hoje.
- Eu já vou. – falei, me levantando rapidamente. Caminhei até onde ela estava e parei bem na sua frente. Minha mãe me olhou com a expressão curiosa, com um sorriso no canto dos lábios. Eu apenas me aproximei, passando os braços ao redor do seu corpo e a abraçando bem forte. Percebi que ela sorriu, me abraçando de volta e dando um beijo em minha testa.
Caminhei rapidamente pelo corredor da faculdade. Estava perto da hora da minha prova, eu não lembrava exatamente sobre o que era a matéria, mas esperava que viesse a mim em forma de lembrança repentina também, assim como todas as outras coisas. Estava procurando a sala, coisa que sabia que não precisaria se estivesse com a cabeça em ordem, mas eu não estava, infelizmente. Então seguia olhando a numeração, sem prestar atenção nas pessoas à minha frente. Até que eu esbarrei em alguém e senti várias coisas caindo aos meus pés. Suspirei, reclamando da minha falta de atenção. Me abaixei para ajudar a menina que agora recolhia seus livros do chão. Mas ao estendermos o braço para alcançar o último que restava, nossas mãos se esbarraram e eu senti uma onda de calor percorrer o meu corpo. A menina também deve ter sentido, porque levantou a cabeça rapidamente em minha direção. Seus olhos encontraram os meus e então aconteceu. Não eram apenas memórias vagas, pareciam lembranças de outra vida, estavam pálidas, nubladas, nada parecia ser real, ou ter acontecido. Mas ela estava lá, em cada uma delas. Desde um bebê recém-nascido no hospital, uma menina correndo pela escola ou servindo um chá imaginário para alguém. Nós dois nadando numa praia ou conversando num quarto. Mas a memória mais viva, a que ficou marcada em minha mente, éramos nós dois nos beijando. Não sei quando aquilo aconteceu. Não sei nem mesmo se aconteceu. Mas algo dentro de mim parecia se tornar completo agora.
- ? – sua voz soou incerta, como se ela também não tivesse certeza do que tinha acabado de acontecer. Era como se, ao mesmo tempo, eu tivesse a sensação que não a conhecia, mas também tivesse a certeza que conhecia.
- ? – ouvi minha própria voz dizer seu nome e quando ouviu, seu olhar se iluminou. Ela piscou brevemente e se colocou de pé. Imitei seu gesto, parando bem à sua frente. Sei que pode soar estranho, mas eu não fazia ideia de quem ela era ou de como sabia o seu nome. Mas no fundo, pela forma que o meu coração batia só de olhar em seus olhos, era como se eu a conhecesse a vida toda.
- Samuel.
- .
- Por favor, poupe o de mais sofrimento.
- Eu só estou aqui para que o sofrimento acabe, eu posso parecer, mas não sou um vilão, não sou eu quem decide quem sofre ou não.
- Eu sei, Samuel, mas eu peço que você faça o que puder.
- Meu trabalho, assim como o seu, já é escrito. Eu só os levo, , assim como você só os protege. Quem decide é Aquele que você chama de Pai, ou Deus, como achar melhor.
- Não estamos aqui para discutir isso, estamos? – eu o encarei e ele negou com a cabeça. – Vou prepará-lo.
- Vá em frente. – Essa era a pior parte da minha jornada com o meu protegido, a hora de partir. Mas de certa forma, eu sentia que ele estaria bem melhor no outro plano, onde ele estaria longe da dor, da tristeza e qualquer tipo de sofrimento.
- Josh, está na hora. – eu disse perto de seu ouvido. Eu pude vê-lo sorrir fracamente, de alguma forma ele sabia quem eu era, mesmo que eu nunca tenha aparecido para ele, não em forma humana, por assim dizer. Josh respirou fundo, acariciou o rosto da filha e beijou a mão da esposa, depois olhou diretamente para mim. Quando nossos protegidos conseguem nos ver, significa que a hora deles chegou, junto com o fim de mais uma jornada para mim. Uma forte luz invadiu o quarto, e seu espírito saiu de seu corpo, passando a andar ao meu lado, em direção a mesma.
- Agora ele te acompanhará.
- Não tenha medo, seu destino foi cumprido. Aproveite o paraíso. – Samuel disse, incentivando-o a seguir em frente, através da luz. – E você cumpriu sua missão. – ele disse para mim. Fechei os olhos, voltando para o meu lar, temporariamente, é claro.
Algumas pessoas podem ter descoberto quem eu sou, mas se você ainda não percebeu, eu sou um Anjo... Um anjo da guarda, para ser mais exato. Eu acompanho meu protegido em todos os momentos de sua vida, desde o nascimento, até a morte, como foi o caso do Josh. Então a vida do meu protegido, passa a ser a minha, mas eu sempre tive a certeza de que eu não tenho uma, aparece que eu não estou verdadeiramente vivo. Mas isso não afeta a minha missão, eu sempre procuro cumpri-la com perfeição, afinal, é a única coisa que posso fazer, por mim, por ele, por todos. Minha missão é fazer com que eles tenham uma vida longa e boa, cumprindo todo o destino, sem nenhum desvio. Quem conseguir seguir todo o caminho traçado é recebido com prazer no paraíso. As pessoas devem se perguntar como é o paraíso, na verdade, elas o imaginam de diferentes formas, com anjos voando entre as nuvens, outros tocando harpas e essas coisas. Elas ficariam decepcionadas se soubessem que não é nada do pensam. Nada de anjos voando ou tocando qualquer instrumento. Cada um tem sua função e a executa ininterruptamente, como eu, por exemplo, que estou a caminho de saber quem será meu novo protegido. Miguel, meu superior, já estava a minha espera.
- , sua nova protegida já foi selecionada.
- Para onde eu vou agora?
- Londres.
- Ela já possui nome?
- Sim, . E aparentemente, ela possui um destino estranhamente traçado.
- Mas todos tem, Miguel.
- Mas o dela é, digamos, diferente. Tem algo não decidido, não confirmado. Como se dependesse da vontade de outra pessoa.
- Mas se depende da vontade de outra pessoa, isso estaria no destino dessa outra pessoa e, consequentemente, no dela, certo?
- Tecnicamente sim, mas têm pessoas que possuem o poder de ter o destino modificado de outras formas, formas que nem nós entendemos. Mas você não precisa se preocupar agora, no momento você entenderá.
- Tudo bem. Quando eu começo?
- Agora. – assim que ele disse, fechei os olhos, sentindo uma força me puxando de volta à Terra.
Quando abri os olhos, me vi na sala de parto, onde a mãe de estava dando a luz. A linda menina olhou diretamente para mim – as crianças podem nos ver, por serem puros e ingênuos. Ela não emitiu nenhum som, nenhum choro, nenhuma reação, mesmo depois da intervenção dos médicos. O pediatra que estava na sala, saiu apressado com a menina em seus braços, tentando de várias formas, que ela reagisse. Depois de várias tentativas, ela finalmente chorou, fazendo todos ficarem aliviados, porém, a expressão no rosto do pediatra, não mostrava tanto alívio. Quando ele entrou no quarto que Sophia – mãe de – estava, ele parecia bem nervoso.
- Dr. Green, está tudo bem com a minha filha? – Sophia perguntou, claramente nervosa.
- Senhora , ela nasceu prematura e sempre há riscos nesses casos. Aparentemente o sistema respiratório dela não está completamente formado e ela precisará ficar na incubadora por alguns dias. Não é nada que a senhora precise se preocupar agora, nós faremos uma bateria de exames para descobrir o que há de errado, isso se houver mesmo alguma coisa.
- Eu posso vê-la?
- A senhora não deveria se levantar agora, tem que ficar um pouco de repouso.
- Por favor.
- Que seja rápido então.
Sophia caminhou lentamente até a unidade de tratamento intensivo do hospital, onde sua filha estava no momento e pela primeira pude olhar bem para a minha protegida. Ela era muita pequenina e magra, até mesmo para uma recém-nascida; seus olhos, levemente amendoados, estavam fechados; seu tronco subia e descia rapidamente, como se estivesse com dificuldade de respirar, mesmo com a sonda presa ao seu nariz. Sua mãe de aproximou do vidro, colocando sua mão na parte interna, pela passagem existente e segurando, com extremo cuidado, a mãozinha da filha.
- , meu bem, não se preocupe, mamãe está aqui e sempre estará. Você vai bem – ela tentava conter as lágrimas – Vai sair daqui logo, logo. Vai pra casa, conhecer o lindo quartinho que nós arrumamos pra você.
- Senhora , a senhora precisa descansar. Daqui a algumas horas a senhora pode voltar.
- Tudo bem.
Sophia se retirou do aposento e fiquei, observando o pequeno bebê que já lutava pela sua vida. Coloquei minha mão no lugar que há poucos segundos, a mão de sua mãe ocupava e repeti suas palavras: Você vai ficar bem, não se preocupe, eu estarei sempre aqui. Sempre.
Horas depois...
Sophia tinha acabado de acordar, quando Nate e seu marido, Adam, entraram no quarto. Nate tinha cinco anos, e estava louco para conhecer a irmã. Sophia teve uma gravidez complicada e sempre teve o filho lhe apoiando, dizendo que seria o melhor irmão mais velho que poderia ter e lá estava agora, cumprindo seu papel. Enquanto seu pai e sua mãe conversavam no quarto, Nate seguiu escondido, para a ala restrita do hospital, para ficar perto de sua irmãzinha. Porém, as enfermeiras o encontraram e tiveram que levá-lo de volta para o quarto, mas não antes dele constatar que sua irmã era tão linda e pequena, como ele imaginava.
- Senhor e Senhora ? – o Dr. Green disse, entrando no quarto.
- Sim. – Sophia disse, ajeitando-se na cama.
- Nós realizamos alguns exames no bebê e diagnosticamos uma doença.
- Que doença? – Adam perguntou, nervoso.
- Aparentemente, ela nasceu com uma doença degenerativa no coração. Ele não funciona da forma que deveria, o transporte do sangue oxigenado é deficiente, dificultando assim a chegada de oxigênio aos pulmões. Ela terá que ter um acompanhamento de um médico especializado sempre. Às vezes ela poderá ter algumas crises, falta de ar, ou desmaios, então é de extrema importância que vocês fiquem de olho, principalmente enquanto ela dorme.
Os pais de não esboçaram nenhuma reação enquanto o médico falava, como se estivem absorvendo as informações.
- Ela pode morrer? – Sophie perguntou, com lágrimas nos olhos.
- Se ela sempre tiver o acompanhamento correto, as chances são pequenas, mas sempre há chances.
- Sempre há chances. – Adam repetiu, sussurrando.
- Vou encaminhá-los para o Dr. Simpson, ele é um especialista, saberá como proceder, ok?
- Tudo bem. – Sophia disse, segurando a mão do marido.
Um mês depois...
Finalmente receberia alta. Ela conseguiu alcançar o peso mínimo para a liberação e toda a sua família estava presente. Nate estava nervoso, seria praticamente a primeira vez que ele veria sua irmãzinha de perto. Durante todo esse período, ele não pode entrar na UTI, devido a sua idade.
- Mamãe, você deixa eu segurar a ? – ele perguntou, assim que a mãe saiu do hospital, com a filha nos braços.
- Assim que chegarmos em casa, tudo bem? – ele assentiu com a cabeça, correndo em direção ao carro. Quando o pai abriu a porta traseira, ele sentou em seu assento infantil, arrumando a cadeirinha do bebê, que foi colocado na mesma em seguida. Ele não conseguia tirar os olhos da irmã, como se ela fosse a coisa mais importante no mundo. Seus pais tinham explicado que era um bebê especial e que precisaria de cuidados especiais, isso serviu só para aumentar o amor e a preocupação que ele já sentia. Algo extremamente inesperado para uma criança de sua idade.
Ele seguia de perto seus pais, até o quarto que ele visitava todo o dia, aquele que ficava ao lado do seu, o rosa, cheio de bichinhos de pelúcia e bonecas. foi colocada gentilmente no berço e eu me sentei na poltrona que ficava logo ao lado. Seu pai saiu do quarto, indo até a garagem pegar o restante das coisas, sua mãe foi colocar a bolsa no quarto, restando apenas nós dois e Nate. Ele se aproximou do berço, ficando na ponta dos pés para enxergar. Um singelo sorriso brotou em seus lábios ao ver a irmã finalmente em casa, sentindo a família completa.
- Quem tá falando é o seu irmão, Nate. Você pode contar comigo pra qualquer coisa, tá? Eu não vou contar pra mamãe se você fizer bagunça, vou te proteger na escola, brincar com você... Ah! Todas essas coisas, mas pra isso você tem que crescer logo. – ele fez um bico. – Você tem que aprender a falar, não gosto de falar sozinho, fico parecendo um bobão. – ele se esticou para tocar em seu braço. – Você é tão pequenininha, parece que vai quebrar. – ele deu uma risadinha. – Olha você não pode fazer muita bagunça pela casa, só aqui no seu quarto, senão o papai briga. Na escola então, nem pensar, senão mamãe te deixa de castigo, sem ver desenho durante uma semana. Olha, a mamãe tá vindo, então depois eu conto mais coisas que você não pode fazer, tá. – ele se esforçou mais uma vez, colocando o dedo na mão da , que apertou muito levemente o mesmo, fazendo o irmão sorrir de orelha a orelha. - Bem vinda à família, .
Os primeiros meses foram extremamente complicados. Os cuidados que eles deveriam ter com a , não eram os mesmos que se deve ter com uma criança normal. Sua mãe praticamente não dormia, ela só conseguia descansar quando Adam ou quando a babá que contrataram estava em casa. Sendo que após a primeira crise que ela presenciou, a babá pediu demissão, ela viu o tamanho da responsabilidade que estava em suas mãos. Então todo o peso era jogado em cima da cabeça de seus pais. Perdi as contas de quantas vezes vi Sophia chorando ao lado do berço, pedindo a Deus que as coisas melhorassem, que Ele tornasse a vida de todos um pouco mais fácil, tranquila.
Seu primeiro aniversário foi marcado por uma festa de aparências. Com o passar do tempo, sua mãe aprendeu a esconder tudo o que ela passava em casa. As brigas, agressões verbais, quase físicas, e agora as traições. Ela suportava tudo calada, para o bem dos filhos, pois se não fosse o salário do marido, ela não saberia o que fazer. Eles eram como completos estranhos. Estranhos que dividiam uma cama, uma casa, uma família, uma vida. Independente disso tudo, crescia bem, graças ao zelo de sua mãe. Suas crises eram raras, ela estava grande e feliz. Como toda criança de sua idade deve ser. Já seu irmão, que consegue entender o que se passa ao seu redor, absorvia toda a aura pesada que pairava pela casa. Ele passou a criar um sentimento diferente pelo pai, uma espécie de rancor. Ele sabia o que o pai fazia a mãe dele, sabia que era errado e que ela aceitava isso por ele e pela irmã. Era no mínimo triste que uma criança da idade dele já alimentasse esse tipo de sentimento, ainda mais pelo pai, mas era uma espécie de bloqueio, de proteção. Assim ele não se magoaria, como sempre acontecia.
O acompanhamento do Dr. Simpson estava rendo bons frutos, aos cinco anos, estava pronta para o seu primeiro dia na escola. Escola essa recomendada pelo próprio Dr. Simpson, era a escola onde sua filha mais nova estudava e onde o mais velho também estudou. Claro que a sua mãe não estava contente com essa novidade, ela tinha medo do que podia acontecer com sua filha. Elas nunca tinham passado muito tempo separadas e a escola seria um ótimo teste para ambas. Porém tinha várias recomendações médicas que são difíceis de uma criança cumprir, ainda mais na companhia de outras. Não correr, não pular, não se cansar... Isso é quase um ‘não viver’ para crianças. Mas ela sabia que todas essas regras eram para o seu bem, para que ela ficasse bem. Diferentemente do irmão, não guardava rancor do pai, ele a tratava bem, não maravilhosamente bem, mas de uma forma que ela achava que era o bastante. A ideia de mandá-la para a escola foi dele, ele queria que ela se tornasse normal, coisa que não aconteceria se ela continuasse ‘debaixo da asa da mãe’, termo usado pelo próprio. Ele estava certo, pelo menos em alguns aspectos. Não deixar viver ou retirá-la do convívio de outras crianças seria prejudicial a ela e a mãe sabia disso, tanto que aceitou a ideia da escola. O primeiro dia de aula rendeu mais recomendações que o natural. Estavam as duas na porta da escola, trazia um enorme sorriso no rosto. Ela nunca havia estado no meio de tantas crianças de sua idade. Todas correndo e brincando, livre de qualquer impedimento. Mas isso não a desanimava, ela se sentia livre, a sua própria maneira.
- Filha, você sabe o que não deve fazer, certo?
- Sei, mãe. – respondeu, impaciente – Não posso correr, não posso pular, se não eu fico doente.
- A mamãe só está preocupada, meu anjo. Eu nunca passei tanto tempo longe de você. – Sophia disse, segurando o choro. olhou para a mãe, em seguida para o lado, onde a cena era o inverso, uma menininha chorava, não querendo se separar da mãe.
- Mãe... – ela disse, fazendo a mãe abaixar e ficar na sua altura – Não é porque eu não estou chorando que eu não gosto de você, tá. – ela deu um sorriso.
- Eu te amo, minha filha.
- Também te amo, mamãe.
Ela deu um último beijo em sua mãe e seguiu para sala de aula, o olhar de sua mãe era carregado de preocupação, mas não se importava com isso. Eu queria poder dizer para sua mãe que estava ali, que ela não precisava se preocupar, que estava em boas mãos. Mas eu não podia interferir tão ativamente, então lancei uma onda de tranquilidade por ela, para que conseguisse ao menos ir para casa.
olhou mais uma vez para mãe antes de entrar sala e viu de relance o sorriso encorajador da mãe. Ela estava com uma pequena mochila rosa nas costas e um coelho de pelúcia, o mesmo que a acompanhava desde quando era bebê. Ela sentou-se numa pequena cadeira de plástico, em frente a uma das seis mesas que havia na sala. Ao seu lado tinha outra menininha, loira e com os olhos claros; a sua frente estava um menino, moreno com os olhos e cabelos escuros. Pouco tempo depois, aquela mesma menina que estava chorando na porta da escola, entrou na sala, sentando-se ao lado de . Seus olhos ainda estavam molhados e vermelhos, seu rosto retorcido numa careta e os braços cruzados na altura do peito. Ela realmente não queria estar ali. achava complemente estranha a reação daquela menina, afinal, ir para a escola era o seu maior desejo e alguém não querer estar ali era completamente incompreensível. Ela estudou atentamente o rosto da menina, até que num impulso resolveu falar com ela.
- Não precisa chorar, sua mamãe vai voltar pra te buscar. – disse, dando um sorriso em seguida.
- Eu quero minha mãe agora. – a menina disse, fazendo bico. olhou para o coelho e depois para a menina, repetido depois.
- Eu te empresto o Zac. – ela disse, estendendo a mão com o coelho – Mas toma cuidado, tá. – a menina a encarou por um tempo e olhou para o coelho, pegando-o. Ela o abraçou e sorriu um pouco.
- Qual é o seu nome? – a menina disse, mais animada.
- e o seu.
- Hellen.
E assim começaram a conversar. A conversa não foi das mais interessantes, afinal, sobre que assunto duas crianças de cinco anos de idade podem falar, a não ser brinquedos, desenhos e outras brincadeiras? Elas passaram o dia todo juntas, lancharam, pintaram, desenharam juntas. Mas na hora da brincadeira que o dilema apareceu. Quando chegaram ao pátio, todas as crianças corriam, pulavam, enfim, faziam o que a mãe de pediu que ela não fizesse e ela não faria. Hellen saiu correndo junto com as outras crianças, deixando para trás. Ela pegou seu coelho e sentou-se num dos bancos do local, brincando sozinha. Após alguns minutos, Hellen se aproximou.
- Por que você tá aqui sozinha? – ela sentou-se ao lado de .
- Minha mãe pediu pra eu não correr e nem pular, eu fico doente se fizer isso.
- Por quê?
- Não sei... – deu de ombros, voltando para o seu brinquedo.
- Eu posso brincar com você? – Hellen perguntou, com um sorriso no rosto.
- Claro! – responde animada, pegando outros brinquedos na mochila que carregava.
Faltava pouco tempo para a hora da saída e as crianças ficariam brincando até seus pais chegarem. As duas novas amigas continuavam no banco, enquanto as outras crianças, inclusive as mais velhas, corriam para todos os lados. Até que Jullies – uma menina mais velha, que também brincava no pátio – avistou as duas e correu em direção a elas, com outras duas meninas em seu encalço. A que corria a frente, chegou primeiro, pegando o coelho das mãos de Hellen.
- Devolve o meu Zac. – pediu.
- Não, agora ele é meu. – Jullies disse, colocando o coelho atrás de seu corpo.
- Me devolve. – Hellen gritou, levantando do banco e tentou pegar o coelho. Mas foi impedida por Jullies, que a empurrou, fazendo com que ela caísse no chão.
- Se você quer o seu bichinho, é melhor você sabe correr bem rápido. – dizendo isso, ela começou a correr, deixando as duas meninas para trás. Antes que Hellen conseguisse levantar, saiu correndo atrás de Jullies, contrariando todas as recomendações feitas por sua mãe. Ela corria o mais rápido que podia, mas mesmo assim não conseguia se aproximar das outras meninas. Depois de correr por quase todo o pátio, ela parou abruptamente. Seu rosto estava pálido, seus lábios esbranquiçados, sua respiração pesada, parecia que ela cairia a qualquer momento. Segundos depois seu corpo foi ao chão, fazendo com todos corressem ao seu encontro, até mesmo as meninas que provocaram isso. A senhora Manson, sua professora, a pegou no colo, seguindo para a enfermaria, gritando para que alguém ligasse para a mãe da menina e para a ambulância. A preocupação em visível no rosto do todos no colégio, alguém murmurava que a ambulância estava demorando; outro murmurava que a respiração dela estava fraca demais, que ela precisava ir para o hospital imediatamente. Cinco minutos depois a ambulância chegou e os enfermeiros correram com para dentro da mesma. Com uma máscara de oxigênio em seu rosto, ela seguiu, ainda desacordada, para o hospital.
Então era esse seu destino? Morrer aos cinco anos de idade?
Nesses momentos que eu me pergunto: Por que eu existo? Por que eu devo proteger uma pessoa, se a qualquer momento ela pode partir? Eu não posso evitar essas coisas, eu não posso interferir diretamente, não posso modificar um destino já traçado, muito menos um indefinido. Passei todos esses anos esperando as informações que Miguel me prometera. Ele disse que eu as receberia no momento certo, esse seria um deles? Eu espero que sim. E se esse é realmente o destino dela, porque ele não estava traçado, definido e, agora, concretizado? Por que essa demora, essa angústia?
Os aparelhos mostravam que ela ainda estava viva, mas a situação não parecia tão favorecedora. Ela nunca tivera uma crise tão forte como esta, ela nunca estivera tão frágil, tão debilitada. Era estranho o laço afetivo que existia entre nós, eu sentia que deveria fazer algo a respeito, mas o quê? O que está ao alcance de minhas mãos? Infelizmente, nada.
- Peço que você não se envolva tanto, ela será minha em breve. – o tom de sua voz, parecia capaz de tornar todo o ambiente mais frio, sombrio, quase fúnebre. Era difícil acreditar em qualquer coisa boa com ele por perto, era como se ele sugasse os bons sentimentos. Samuel surgiu ao meu lado, com seu sorriso irônico nos lábios.
- Qual é o seu problema?
- Nenhum, estou apenas fazendo o meu trabalho, . – ele deu de ombros, encostando as costas no vidro que permitia ver dentro da UTI – Eu não tenho problemas pessoais com ninguém, até porque eu não sou de fato uma pessoa. Assim como você, por mais que você esqueça isso às vezes.
- Você estava falando a verdade quando disse que ela seria sua em breve? – ignorei seu último comentário.
- Eu não minto, às vezes eu posso omitir alguns fatos, mas eu não minto. Tem algo que impede que a leve hoje, como impediu que eu a levasse desde o dia que ela nasceu. Você não sabe o que é? – ele perguntou, levantando as sobrancelhas, como se soubesse de algo que eu não sei.
- Se eu soubesse não estaria perguntando, certo?
- Você nunca vai enxergar o que está diante do seu nariz. – ele murmurou.
- O que você quis dizer com isso?
- Olhe para frente, o que você vê? – ele voltou a posição inicial, apontando com a cabeça para frente, cruzando os braços na altura do peito.
- Eu vejo a numa cama, ligada a diversos aparelhos e...
- Não, . – ele balançou a cabeça lentamente – Afaste-se um pouco do vidro e me diga o que vê. – fiz o que ele disse, observando mais atentamente.
- Eu vejo meu reflexo. – eu disse confuso, eu não deveria ver, nem ao menos ter um reflexo. Tentei lembrar a última vez que vi meu próprio rosto, meus olhos eram lembranças anuviadas pelas sombra que parecia se formar ofuscando todo o meu passado. Levantei uma das mãos, tocando o rosto e vi o gesto ser repetido a minha frente. Estendi as mãos, quase que tocando o vidro. Era como se outra pessoa estivesse do outro lado, aquele rosto não era meu. Aquele não era eu ou não era o que um dia eu fui. – Como?
- Aprendi alguns truques. – ele disse rindo. – É boa essa sensação, não é? O simples de fato de conseguir ver a si mesmo como pessoa é sensacional. Há quanto tempo você não se sentia assim?
- Muito tempo. – disse, ainda atordoado com o que estava acontecendo.
- Infelizmente os humanos não dão tanto valor a vida, se eles soubessem o que os esperam. – ele acenou negativamente com a cabeça – Mas o que é bom... – disse, fazendo o reflexo desaparecer lentamente, deixando a minha vista mais uma vez – Dura muito pouco.
- Como... Como você pode fazer isso?
- Ser o que sou tem alguns benefícios... – ele deu de ombros – Enfim, entendeu o que eu quis dizer sobre algo que impede que ela vá, por exemplo, agora? – no momento em que ele disse isso, o coração de falhou numa batida.
- Eu tenho alguma coisa a ver com isso?
- O que você acha? Ela não resistiu durante todo esse tempo sem nenhum motivo muito forte. – ele respirou fundo, mesmo sem necessidade – Bom, eu preciso ir, é um grande hospital... Muito trabalho, se é que você me entende. Pense no que eu te falei ou nos veremos em breve, quem sabe...
Antes que eu pudesse pedir uma explicação sobre o que ele tinha falado, ele não estava mais lá. Algo estava acontecendo, ou estava para acontecer. Eu podia sentir. Algo maior do que qualquer coisa que eu já tenha visto ou vivido. De alguma forma eu impedia a morte dessa menina e alguma coisa dentro de mim esperava que isso continuasse acontecendo. Eu queria que ela vivesse, eu precisava que ela vivesse. Era como se a sua luta pela vida, fosse a minha também. Como se a vontade que ela tinha de viver, aumentasse a minha dedicação. Eu sentia que seria um trabalho árduo, mas isso não em desanimava, pelo contrário, me motivava. Eu estava mantendo-a viva e era isso que continuaria fazendo pelo maior período de tempo que eu pudesse. Se isso fosse o que estava a ser decidido em seu destino, eu acabara de aceitar minha maior e mais importante missão.
Senti uma presença no recinto, uma onda de tranquilidade e uma atmosfera de paz inundaram o ambiente. A diferença entre as duas sensações era gritante, assim como os sentimentos que elas despertavam. Sentindo minha mente mais leve, ouvi a voz de Miguel ecoando em minha cabeça: ”Não estava nos planos você ter pistas sobre isso agora, mas acho que você está no caminho certo. Você era a chave de tudo e agora aceitou traçar o destino dela.”
Espero que você seja sábio e tome as decisões corretas, . Eu espero que dê certo...
Sophia surgiu correndo através do longo corredor, esbarrou em algumas pessoas pelo caminho, inclusive com o Dr. Simpson. Ela parecia exausta, nervosa, ansiosa, estava um pouco pálida, com a respiração ofegante. Se apoiou no médico, respirando fundo antes de falar.
- Peter, o que aconteceu? Como está minha filha, onde ela está? Eu preciso saber o que aconteceu, como aconteceu, e...
- Sophia, por favor, se acalme. Ela está bem, não corre mais perigo. – Sophia pareceu relaxar um pouco com o que o médico disse, mas não o suficiente para que o nervosismo fosse embora.
- Eu... Eu preciso vê-la. – ela praticamente implorou.
- Nesse momento, só através do vidro da UTI.
- Como, UTI? Você disse que ela não corre perigo...
- Mas não corre, a UTI é só uma precaução, fica tranquila. – ela continuava preocupada, era possível ver em seus olhos. – Vamos vê-la?
- Vamos. – ela concordou e eles seguiram pelo corredor em direção ao quarto. Pararam em frente ao vidro e Sophia repetiu a posição que eu estava há pouco tempo. Ela passava cuidadosamente as mãos pelo vidro, como se estivesse fazendo carinho na filha. As lágrimas escorriam por seus olhos, por mais que ela tentasse impedir.
- Não se preocupe, ela vai ficar bem, é uma garota forte. – ela apenas assentiu fracamente com a cabeça.
- O que eu vou fazer agora? – ela murmurava.
- Você disse alguma coisa?
- Não. – ela apoiou a cabeça no vidro, respirando fundo.
- Onde está Adam? – Peter perguntou.
- Ele... – ela respirou fundo, buscando forças para responder.
- Aconteceu alguma coisa, Sophia? – o médico perguntou preocupado.
- Não. – ela forçou um sorriso – Não aconteceu nada de importante.
- Nós nos conhecemos há cinco anos e eu acho que consigo perceber que aconteceu alguma coisa.
- As coisas não andam bem lá em casa, e já tem um bom tempo que estão assim.
- E não há nada que você possa fazer? Você sempre pode fazer alguma coisa...
- É algo que eu posso simplesmente ignorar, eu venho fazendo isso há alguns anos. – ela riu sem humor – Mas chega um momento em que você fica saturada. Eu estou exausta, eu acho que não tenho uma noite tranquila de sono desde que a nasceu. Eu não estou reclamando, só acho que algumas coisas deveriam ser dividas, algumas responsabilidades deveriam ser compartilhadas.
- Problemas com o Adam? – Peter perguntou meio sem jeito.
- Problemas são apelidos carinhosos perto do que temos, mas não é nada com que eu não possa lidar. – ela respirou fundo, forçando um sorriso em seguida.
- Eu não sei o que falar. Na verdade, quando minha esposa era viva, nós não éramos o tipo de casal perfeito.
- Não existem casais perfeitos, Peter, o que existem são pessoas dispostas a levar uma relação adiante. – ela deu de ombros.
- Quer saber? Acho que vou quebrar algumas regras... Quer ver sua filha? – ele perguntou com um sorriso.
Sophia entrou no quarto lentamente, segurava o choro a cada passo que dava. Ver a filha naquelas condições a matava por dentro, ela daria qualquer coisa para trocar de lugar com ela, sofrer em seu lugar... Na verdade, ela provavelmente sofria tanto quanto , mas de outra forma. Ela pegou uma das mãos de sua filha e colocou sobre a sua, com a mão livre, ela acariciou o rosto da menina. Ela estava com uma feição tranquila e, aparentemente, parecia não sentir dor ou algo do tipo.
- Meu amorzinho... – ela passou as mãos na testa da filha, tirando alguns fios de cabelo que ali estavam. Ela não conseguia mais segurar o choro, as lágrimas escorriam de seus olhos uma após a outra. Ver tão debilitada não era novidade, mas sempre doía. De repente, as pálpebras da menina tremeram e seus olhos se abriram um pouco. Ela estranhou o ambiente e ficou confusa até enxergar sua mãe ao seu lado.
- Mamãe, o que aconteceu? – ela perguntou, tentando tirar a sonda que estava presa ao nariz.
- Não, querida, não pode tirar. – Sophia disse, dando um sorriso verdadeiro para a filha.
- Por que eu tô aqui?
- Você passou mal e teve que vir para o hospital, não se lembra de nada?
- Eu lembro um pouco. Estava brincando com o Zac... Onde está o Zac, mamãe? – a menina perguntou assustada, olhando por todo o quarto.
- Ele deve ter ficado na escola, vão cuidar bem dele. – Sophia passou a mão pelo cabelo da filha.
- Deve ter ficado com a , ela sim vai cuidar bem dele.
- Quem é , ?
- Minha amiguinha, mamãe. Ela ficou brincando comigo o dia todo. Comigo e com o Zac. Até que a menina grande pegou o Zac e saiu correndo. – ela disse fazendo bico – Ela é muito chata, mãe.
- Então essa menina pegou o Zac e saiu correndo? – afirmou com a cabeça – E você foi atrás dela, correndo também. – ela afirmou novamente, negando em seguida. Ela sabia que não devia ter feito aquilo.
- Foi sem querer, a menina grande pegou o Zac e empurrou a , o que eu podia fazer?
- Não correr? – Sophia perguntou, rindo – Você sabe que é por isso que está aqui, não sabe? – afirmou – Você vai fazer novamente? – ela negou – Então vamos esquecer isso.
- Onde está o papai e o Nate?
- Papai está no trabalho, e o seu irmão na escola.
- Quando eu vou pra casa? – ela perguntou fazendo bico e tentando tirar a sonda mais uma vez.
- Não sei, meu bem, só o Dr. Simpson sabe. Eu vou lá fora falar com ele, você vai ficar bem sozinha?
- Vou, só não demora, por favor.
- Não demorarei. – a mãe deu um beijo na testa da filha, que se ajeitou no travesseiro e fechou os olhos.
se recuperou bem e passou a seguir as recomendações da mãe. Durante os cinco anos seguintes, ela quase não sofreu nenhuma crise e fazia apenas o acompanhamento com o Dr. Simpson. Ele dizia que a doença não tinha sinais de melhora e nem de avanço, ela encontrava-se estagnada, controlada. Porém, a sua vida ‘fora’ doença não estava sob controle. Sua família estava cada vez mais despedaçada. Seu pai agora mal parava em casa e sua mãe se desdobrava para dar conta de tudo que deveria fazer, a única coisa que Adam ainda fazia, era pagar as contas e o tratamento da filha. Mas num dia, que parecia ser um como qualquer outro, tudo mudou. Sophia foi levar a na escola e quando voltou, estranhou algumas coisas fora do lugar em seu quarto e outras coisas não estavam onde deveriam. Abriu o armário e chocou-se ao perceber que tudo o que era de Adam tinha sumido. Procurou por todos os lugares, até encontrar um bilhete em cima da bancada da cozinha. Sophia abriu o bilhete com as mãos tremendo, ela sabia o que provavelmente estava escrito no papel, mas lê-lo só tornaria tudo mais real. Contudo, não estava escrito o que ela esperava. O bilhete só continha uma frase: ”Eu sinto muito.
Não havia explicações ou nada do tipo. Para Adam, aquele casamento não precisava de motivações para acabar, ele havia acabado sozinho. Ele tinha se desgastado até deixar de existir. Sophia também sabia disso, mas esperava uma atitude, pelo menos, madura do, agora, ex-marido. Não havia telefone ou um novo endereço no papel. Talvez ela tivesse visto Adam pela última vez naquela manhã, antes de sair de casa. Será que se ela soubesse que isso aconteceria, teria dito alguma coisa ou tudo terminaria como foi? Sem nada a ser dito? Sophia ficou sentada em silêncio em sua cozinha pelo resto da manhã, ela não tinha noção do que fazer de sua vida. Tinha dois filhos para sustentar e nenhum emprego. Quando voltou a si, estava na hora de buscar na escola e levá-la para a consulta com o Dr. Simpson. Pegou a bolsa e as chaves do carro, seguindo para a escola. Tentou disfarçar o nervosismo perto da menina, não queria que ela se preocupasse com isso agora. Talvez isso não fizesse tão bem a ela. Sophia não queria imaginar a reação de Nate quando ele descobrisse. O menino estava numa fase meio revolta de sua vida e isso com certeza agravaria a situação. Nesse momento ela soube que os problemas financeiros seriam os menores, ela teria problemas maiores para lidar.
Quando chegou ao hospital, mãe e filha seguiram ao encontro do Dr. Simpson, que recebeu as duas com um sorriso acolhedor, mas ao olhar nos olhos de Sophia, Peter soube que tinha acontecido alguma coisa.
- , querida, vá até a Bernadette e diga que eu falei pra ela te dar o chocolate que está na minha sala. – ele disse se abaixando, para ficar na altura da menina.
- Chocolate? – ela disse com os olhos brilhando – Posso, mãe?
- Claro. – Sophia forçou um sorriso, encorajando a filha a seguir em frente.
- O que aconteceu? – o médico perguntou preocupado.
- O Adam saiu de casa. Eu fui levar a na escola e quando cheguei, ele não estava, pensei que tivesse ido para o trabalho, mas quando abri o armário, não tinha nada dele. – Peter a levou até as cadeiras que estavam próximas, sentando ao seu lado.
- Como isso aconteceu? Eu pensei que o casamento de vocês ia bem...
- Nós não éramos casados há muito tempo, Peter, éramos estranhos que dividiam uma casa. Só que eu precisava dele por causa da , nunca pude trabalhar e era dele o único dinheiro da casa. Agora eu não posso mais pagar o tratamento dela, eu não sei como eu vou fazer com duas crianças, Peter, eu não sei...
- Sophia, calma, nós daremos um jeito. – ele disse, colocando a mão por cima da mão de Sophia.
- Nós? – ela levantou a cabeça, olhando para as suas mãos juntas e em seguida para os seus olhos e assim ficaram por alguns segundos.
- Desculpe. – ele disse sem jeito, retirando sua mão – E eu disse nós, porque queria ajudar. Meus filhos perderam a mãe muito cedo, principalmente a minha filha, e ela não tem um terço dos problemas que a tem, então eu sinto que preciso ajudar.
- Mas ajudar como, Peter?
- Eu posso bancar o tratamento da , eu me pago, não tem problema nenhum. – ele riu.
- Não posso aceitar, eu estaria tomando o tempo de outro paciente que paga a consulta.
- Então o que você vai fazer, vai deixar a sem acompanhamento médico?
- Não, eu darei um jeito de pagar. Vou arrumar um emprego ou algo do tipo...
- Emprego? É claro. – ele parecia falar sozinho – Tenho a solução perfeita, isso é, se você aceitar.
- O que é? – ela perguntou curiosa.
- Eu estava precisando de alguém que cuidasse dos meus filhos e da casa, alguém que pudesse ficar lá durante o dia. Se você aceitar, eu posso oferecer os dois quartos do primeiro andar, você se acomoda com os seus filhos. Estará trabalhando e me pagando pelos meus serviços como médico.
- Peter, eu não sei... – Sophia disse sem jeito.
- Você vai aceitar, porque eu não quero um não como resposta. – Ele abaixou o olhar, encarando o chão por alguns segundos – Eu sinto que preciso te ajudar, Sophia, por favor, aceite. Além do mais, eu estou com medo de não fazer um bom trabalho como pai. O Joe já está grande, ele já entende bem as coisas, mas eu sei que sente falta de um pai mais presente. E a Gabbie só tem doze anos, ela reclama que eu não passo muito tempo com ela. – ele voltou a olhar para Sophia, só que agora bem dentro de seus olhos – Eu também preciso de ajuda, acho que tanto quanto você. – dessa vez foi Sophia que colocou sua mão sobre as dele e lhe deu um sorriso encorajador.
- Eu acho que podemos passar por isso juntos. Não juntos nesse sentido, mas...
- Eu entendi. – ele também sorriu.
- Mãe, por que nós temos que nos mudar para a casa de um desconhecido? – Nate perguntou, jogando suas roupas de qualquer jeito na mala. Sophia respirou fundo, tirando as roupas emboladas e começando a dobrar uma por uma.
- Nate, eu não tenho dinheiro suficiente para pagar o aluguel dessa casa e o tratamento da sua irmã, também não é a casa de um desconhecido, nós vamos para a casa do Peter, eu vou trabalhar lá.
- Desde quando a senhora chama o Dr. Simpson de Peter? – Nate perguntou, arqueando as sobrancelhas. Sophia ficou meio sem jeito e encarou o filho por alguns segundos.
- Chega de perguntas, termine de colocar as suas coisas nas caixas, o caminhão da mudança chegará a qualquer momento. – ela deu um beijo na testa do menino e seguiu para o quarto da filha, para empacotar as coisas dela.
Nate encarou o seu, agora antigo, quarto com as feições sérias, sérias demais para um menino de quinze anos. Ele sabia que tinha acontecido, sabia que o pai tinha abandonado a família e isso só fez com que todo o respeito que ele ainda tinha pelo pai, se acabasse. Ele pegou um portarretrato que estava na cômoda, na foto a família estava reunida e quem olhasse, pensaria que seria impossível que aquela felicidade acabasse um dia. Mas acabou. Na cabeça dele ele não tinha mais pai, a família dele se resumia a sua mãe e sua irmã mais nova. Mas algo parecia não se encaixar para ele, ele não entendia como alguém podia agir como o pai, como alguém podia ter sangue frio, a indecência, ser covarde ao ponto de abandonar a família, abandonar uma filha doente. Aquilo o deixava revoltado. Enquanto a maioria dos meninos de sua idade tem o pai como heroi, Nate via na figura de Adam tudo que ele mais repudiava. Ele sentia vergonha, sentia nojo, sentia pena... Pena de Adam ser como ele é. Ele abriu o portarretrato, pegou a foto e a encarou com repulsa, não conseguia encarar aquele homem. Com muito cuidado, ele rasgou a mesma, retirando Adam do retrato da família, família que ele não pertencia mais. Com quinze anos de idade, ele sentia que deveria ser o homem da casa, que deveria ajudar sua mãe e cuidar da sua irmã, que só tinha dez anos, ela iria precisar muito dele. E é isso que ele faria. Ele não chorava, muito menos ficava se perguntando por que aquilo estava acontecendo. Era como se ele tivesse crescido, amadurecido em poucos dias... Era como se ele não fosse mais uma criança. Tudo que ele já havia presenciado: as brigas, os gritos, tudo só ajudava a aumentar a raiva que crescia em seu peito. O que não é nada bom. Uma criança não pode nutrir sentimentos assim por ninguém, muito menos pelo seu pai. Ele colocou a última coisa que faltava na caixa, a fechou e colocou no corredor. Olhou uma última vez para o cômodo dando adeus a ele, dando adeus ao que ele representava... Dando adeus a sua antiga vida.
Sophia parou o carro em frente ao seu novo lar. Não era realmente dela, mas seria a coisa mais próxima que ela teria disso. Ela saiu do carro com um sorriso, tentando encorajar os filhos a fazer a mesma coisa. saiu meio desconfiada e triste, ainda sentia saudade do pai, ela não conseguia entender por que ele foi embora. Já Nate continuava enfurnado dentro do carro, essa mudança não estava o agradando.
- Nate, sai desse carro, a mamãe já está de cara feia. – disse, colocando a cabeça na janela ao lado do irmão. Ele apenas ignorou o que a irmã disse e colocou o fone de volta ao ouvido. A irmã puxou o fone e o encarou, ele bufou, tirando o outro fone e saindo do carro.
- Eu tenho que parar com essa mania de fazer tudo o que você pede. – ele disse e ela sorriu.
- Nossa, que casa grande. – disse boquiaberta. A casa tinha dois andares e era num estilo vitoriano: as paredes eram brancas e as molduras das janelas eram azuis, que contrastavam com o telhado acinzentado; na frente, e rodeando boa parte da casa, tinha uma varanda a qual um lance de escadas dava acesso; e tudo isso era bem moldurado por um belo jardim e grandes árvores em frente a casa.
- Ser médico realmente dá dinheiro. – Nate disse, concordando com a irmã.
- Vocês podem, por favor, me ajudar? – Sophia disse, pegando uma grande mala no carro.
- Eu ajudo. – um menino, que parecia ter a idade de Nate apareceu – Eu sou Joe, o filho mais velho do Peter.
- Ah, muito obrigada. Eu sou Sophia e esses são meus filhos: Nate e . – o menino sorriu e cumprimentou a todos, antes de pegar a mala das mãos de Sophia.
- Eu te ajudo, onde é pra colocar? – Nate disse, pegando outra mala.
- Eu te mostro. – Joe respondeu e eles seguiram para dentro da casa.
Alguns minutos depois, todas as coisas já estavam nos quartos e a pior parte começaria: arrumar tudo. Sophia resolveu fazer o almoço antes de começar a arrumação, já Nate seguiu para o quintal, pois Joe o convidara para jogar futebol. ficou sozinha no quarto que dividiria com o irmão. Sentada em sua cama, ela começou a lembrar de seu pai e algumas lágrimas brotaram em seus olhos. Era uma cena difícil de se ver, ainda mais quando não se pode fazer nada a respeito. Mas era como se eu precisasse fazer alguma coisa, ao menos dar apoio a ela. Talvez ela precisasse de companhia, talvez ela precisasse de um amigo. Talvez...
- Se eu fosse você, eu não faria nada contra as normas. – Samuel surgiu ao meu lado, com a mesma fisionomia superior.
- Mas você não é, e eu não pretendia quebrar nenhuma regra.
- Você sabe que se aparecer pra ela, pode complicar as coisas...
- E eu por acaso perguntei a sua opinião? – eu disse seco, tentando fazer com que ele desaparecesse logo. Ele balançou a cabeça lentamente.
- Só não diga que eu não avisei... – e assim como surgiu, de repente, ele se foi. Tentei pensar duas vezes antes de fazer qualquer coisa, ajudar meu protegido é a minha função e isso engloba qualquer tipo de ajuda, certo? Era nisso que eu estava me apoiando.
‘s POV
Eu me sentia estranha, como se alguma coisa faltasse. Tá, não é apenas qualquer coisa, eu sentia falta do meu pai. Ele foi embora sem se despedir, sem dizer se eu o veria novamente e isso me magoou. Eu ouvi Nate dizer à mamãe que ele não tem mais pai, mas eu não consigo pensar dessa forma. Minha família está incompleta e assim não funciona. Nós éramos como um mecanismo que precisava de todas as peças para funcionar perfeitamente e agora estaríamos quebrados para sempre. Talvez essa sensação de vazio se amenizasse com o tempo, provavelmente ela nunca me abandonaria, mas ficaria suportável. Talvez algo possa preencher esse espaço, mas o que? Ou melhor, quem?
De repente senti como se tivesse mais uma pessoa no cômodo, parecia que alguém me observava. Senti o colchão afundar ao meu lado e ao olhar, encontrei um rapaz que nunca tinha visto na vida, mas pela forma que ele me olhava, era como se eu o conhecesse da vida toda. Seu sorriso era como um calmante, aliviava toda a dor que eu sentia, eu me sentia bem novamente.
- Quem... Quem é você? – perguntei cautelosa. Eu sabia que não havia motivos para ter medo, mas ele é um estranho... Ou nem tanto. Ele não me respondia, continuava apenas me olhando e sorrindo, como se estivesse feliz porque eu estava lhe vendo.
- Meu nome é . – quando sua voz suave soou, senti um alívio imediato, mas continuava com medo de quem ele poderia ser. Será que ninguém viu quando ele entrou na casa? Talvez eu devesse gritar... – Não precisa ficar com medo, eu não farei nada com você, . Eu estou aqui pra te ajudar.
- Me ajudar, em quê? – perguntei curiosa. Nesse momento ouvi um barulho do lado de fora e em seguida minha mãe surgiu na porta.
- Tá falando sozinha, minha filha? – ela indagou. Imediatamente eu olhei para o lado, não encontrando meu antigo companheiro. Vasculhei todo o quarto com os olhos, procurando-o, mas não o encontrei.
- Não, eu estava, como se diz mesmo? Pensando alto. – forcei um sorriso. Ela balançou a cabeça e voltou para a cozinha.
- Aonde ele foi? – sussurrei para mim mesma.
- Eu ainda estou aqui – ele surgiu novamente a minha frente – E ficarei pelo tempo que você quiser.
/‘s POV
E então as coisas saíram do controle.
Depois que eu apareci para a pela primeira vez, eu não conseguia mais ficar longe. Eu sentia que algo dentro dela mudava quando eu estava perto, talvez eu conseguisse deixá-la mais feliz ou que ela tirasse um pouco o pai da cabeça. Mas foi justamente esse o meu erro. Ela substituiu a figura paterna por esse ‘amigo imaginário’ que estava sempre por perto. Sua mãe achou estranho no começo, sempre via a filha falando sozinha pelos cantos, servindo café na xícara de brinquedo para uma pessoa que estava ao seu lado e que ela não conseguia ver. Mas depois ela entendeu, ou pelo menos achou uma desculpa para si mesma. Na sua concepção, a filha tinha criado esse amigo para suprir uma falta específica e se isso não a prejudicasse, ela não interferiria.
Seis anos depois
- Você continua vendo seu ‘amigo imaginário’? – Gabbie perguntou, sentando em sua cama.
- Bem, ele aparece algumas vezes... – disse, tentando acabar com o assunto.
- Eu acho isso tão estranho, . Tipo, você não tem mais idade para ter um amigo imaginário.
- Não tem idade pra essas coisas, Gab. Eu já vi um filme que a menina crescia com o amigo e quando ela se tornava adulta, ele era como um namorado pra ela.
- Sim, até ela conhecer um cara de verdade. – Gabbie completou. suspirou, olhando para a lua pela janela. Eu sabia que esse assunto era delicado e que ela não gostava de falar sobre isso. Era algo extremamente particular, ainda mais pelos motivos que só ela sabia. Talvez fosse hora de colocar pra fora, fazer com que a amiga a ajudasse de alguma maneira, ou que pelo menos parasse de repreendê-la. – Você acha que ele será como um namorado pra você também?
- Não! – negou veementemente – De maneira nenhuma, eu não o vejo dessa forma.
- Então você precisa conhecer um cara de verdade, . De carne e osso, que você possa tocar, abraçar, beijar...
- Pare com isso, Gab. Eu não gosto de falar sobre isso.
- Mas eu gosto. – a amiga forçou, abrindo um sorriso – Sabe, o Andrew quer me convidar para sair e eu disse que só aceitaria se ele levasse um amigo, assim eu poderia te levar.
- E quem disse que eu iria? Ou melhor, quem aceitaria sair comigo, Gabbie? Você precisa entender que eu não sou como você, não posso ter uma vida normal. Namorados e festas não fazem parte no meu mundo. Eu não sou como você.
- Claro que é! – Gabbie levantou da cama, quase que revoltada – Eu não consigo ouvir você dizer uma besteira dessa e ficar calada. – ela puxou a amiga, fazendo com que ela ficasse parada ao seu lado em frente ao espelho – Olhe para nós duas e diga o que eu tenho que você não tem ou ao contrário. Por algum acaso você tem cinco olhos, três narizes e duas bocas? Não. Claro que não! Você é normal, . Mais do que isso, você é linda e nunca deixem que te digam o contrário, ou melhor, nunca diga o contrário. Você tem dezesseis anos e você deve começar a viver, claro, respeitando seus limites, mas deve começar a viver. – a encarou por alguns segundos, antes de desabar na cama, segurando o choro.
- Por mais que você diga que eu sou normal, eu não sou. Eu nunca vou poder sair, me divertir ou namorar como todo mundo. Quer dizer, como se alguém fosse se interessar pela estranha aqui. Ao contrário de você, eu já aceitei a minha condição. – ela levantou, secando as lágrimas que teimavam em rolar – Eu vou pro meu quarto e, por favor, me deixa sozinha.
Vê-la naquele estado me deixava estranho. Eu queria ajudá-la de alguma forma, ser o que ela precisava, mas eu no podia. Já havia quebrado demais as regras e as coisas fugiriam mais ainda do meu controle. Não é aconselhável que os protetores se envolvam tanto com seus protegidos, porque isso faz com que eles se tornem dependentes, vulneráveis. E já era vulnerável demais para o seu próprio bem.
Ela deitou na cama, agradecendo pelo fato de que seu irmão não estava no quarto. Jogou-se na cama, cobrindo a cabeça com o travesseiro, fechou fortemente os olhos, como se aquela ação afastasse algum pensamento ou algo do tipo. Tentei forçar-me a ficar longe, deixar com que ela tivesse um tempo só para ela, mas era praticamente impossível vê-la naquela situação e não fazer algo a respeito. Aproximei-me dela, tentando passar-lhe força, segurança, ou apenas acolhe-la. Com o ambiente um pouco mais leve, ela conseguiu se acalmar, caindo levemente no sono. Suas feições relaxaram e leve sorriso em seus lábios me dizia que ela estava sonhando. Algo me atraía, praticamente me chamava. Era como se eu precisasse saber o que ela estava vivendo em sua mente, como se eu precisasse participar.
Sem pensar mais uma vez, me atirei em minha própria loucura, quebrei mais uma regra. Mas naquele momento, isso era o que menos me preocupava.
Aquele foi o primeiro dia em que eu resolvi visitar em seu sonho.
Ela estava sentada na areia de uma praia, observando as ondas baterem furiosamente contra as pedras da encosta. A noite era escura e fria, e seu fino casaco estava longe de ser o suficiente para protegê-la do frio. Sentei-me ao seu lado, um pouco incomodado pelo fato dela não ter sentido a minha presença, mas antes que eu pudesse me segurar a esse pensamento, virou lentamente sua cabeça em minha direção e sorriu.
- Eu sabia que um dia isso ia acontecer. Eu esperei bastante por isso, na verdade. - ela disse e a mim e eu apenas a olhei confuso.
- Pelo que?
- Pelo dia em que você me visitaria.
- Você sabe que isso é um sonho, não sabe?
- Mas eu sei que é real. Eu sei que você está realmente aqui. Não me pergunte como, mas eu só sei. E eu sei que ainda vou saber disso quando eu acordar.
- Existe uma linha tênue entre sonho e a fantasia. Nunca se deixe levar por nenhuma das duas. A realidade pode ser dura, mas é nela que devemos nos manter sempre. – ela suspirou, voltando a encarar o horizonte.
- Eu preciso de algumas respostas, .
- Eu também, . Mas não podemos ter tudo o que queremos.
- Eu nunca posso ter nada do que eu quero, então eu meio que já estou acostumada. – ela riu sem humor – Eu me pergunto por que não me levam embora? Por que eu tenho esse sentimento de que eu já passei da minha hora?
- Não é a sua hora ainda. Você tem que pensar também na sua família. Você já parou pra pensar em como eles se sentiriam se você se fosse?
- Às vezes eu acho que seria melhor se eu morresse de vez. Estou cansada de ver todo mundo vivendo os meus problemas todos os dias comigo, sofrendo por minha causa.
- Não pense assim, . Só eu sei o quanto a sua mãe e o seu irmão agradecem no final de todas as noites por você ter conseguido sobreviver mais um dia.
- Eu acho que eles não entendem como eu me sinto. Talvez eles também desejariam que eu fosse de vez.
- Eu sou a melhor pessoa nesse universo para te entender, . E eu sei o quanto você quer viver. Você só está tendo um momento de dúvidas.
- Ninguém que eu conheça é a melhor pessoa pra me entender. Eu passei a minha vida inteira morrendo, . E eu quero viver. E se eu tiver que morrer pra que isso aconteça, então talvez é isso que eu deva fazer.
E quando ela disse isso foi quase como se algo dentro de mim quebrasse. Por que por mais que ela tivesse certa, tinha aquela pequena e poderosa parte de mim que não queria isso acontecesse. Primeiro porque a minha missão falharia. Segundo porque, incrivelmente, eu estava considerando o fato de que eu nunca mais a veria se deixasse isso acontecer.
Peguei na mão de e a levantei, vendo seu olhar assustado.
- Eu posso te tocar!
- Esse é o seu sonho. Você pode tudo... - ela sorriu animada, entendo o meu recado e me puxou pela mão, correndo em direção ao mar.
- Vamos nadar. - e assim que ela terminou de falar, o céu se tornou claro e aquecido, o mar pairava tranquilo sobre o horizonte. A água estava aquecida quando entramos e soltou a minha mão pra nadar como se tivesse feito isso a vida toda. Ela parou por um momento, me encarando maravilhada.
- Eu nunca tive tanto controle sobre os meus sonhos antes.
- Eu posso estar ajudando nisso... - eu disse casualmente, dando de ombros.
- Obrigada! - ela sorriu, me pegando de surpresa em seu abraço. Algo dentro de mim se aqueceu com essa atitude. Eu não estava acostumado com demonstrações físicas de afeto. Era como se eu tivesse esquecido como era a sensação de ser abraçado, de ter alguém tão próximo. De repente parou seu abraço bruscamente e me olhou assustada, me apavorando instantaneamente.
- O que está acontecendo? - ela alternava seu olhar entre meu rosto e suas mãos, que ficavam cada vez mais translúcidas.
- Você está acordando.
- Droga. Nos veremos de novo? - eu hesitei em responder. Eu sabia que o que eu estava fazendo era errado em todos os sentidos e que aquilo não podia voltar acontecer, mas eu queria que parasse? Antes que eu pudesse responder, desapareceu completamente.
Quando eu voltei ao quarto para ver sendo despertada pela sua mãe com um gigante sorriso no rosto, eu soube que ela ainda se lembrava de tudo e então eu não pude deixar de sorrir também. Só demorou um segundo pra perceber o quarto gelado e sombrio por alguns instantes. Então eu soube que Samuel esteve aqui enquanto eu visitava os sonhos de e então o nervosismo alcançou minhas terminações nervosas. O que eu achava que tinha sido apenas um sonho bom, poderia ter se tornado um terrível pesadelo. E eu logo vi que pensar em seu nome, era como chamar-lhe em voz alta. Ele apareceu em minha frente, com a expressão tensa, como se soubesse de algo e não pudesse falar.
- Eu sei que quebrei mais uma regra, não precisa me lembrar.
- Ainda bem que você reconhece seus próprios erros. – ele disse, da forma irônica e superior de sempre.
- Não é um erro, nada que beneficia meu protegido pode ser considerado um erro.
- Blá, blá, blá... – ele disse, com uma careta – Você sabe que contatos diretos são proibidos e já não basta aparecer para ela, você tem que ir até seus sonhos, tocá-la, abraçá-la? Pelo amor de Deus, . – ele disse, olhando para cima e dando um sorriso – Não é a sua primeira vez, você sabe o que pode e o que não pode.
- É que você não entende, Samuel... Eu sinto uma necessidade de ficar perto dela, eu não consigo entender o porquê. É algo mais forte do que eu posso aguentar ou resistir.
- Eu entendo perfeitamente. – ele suspirou, olhando para como se visse outra pessoa no lugar.
- Como assim?
- Eu não sou isso desde sempre, . Eu já fui um anjo protetor e só fui deposto do meu cargo porque eu violei uma série de regras, assim como você. Eu sentia essa necessidade de fazer parte da vida da Alane, te estar perto, de ser quem e o que ela precisar. Só que isso fez com que o seu destino mudasse completamente de rumo e...
- E? O que aconteceu com ela? – perguntei interessado. Nunca tinha o visto falar com tanto sentimento sobre alguém, ela deve ter sido alguém extremamente importante em sua vida.
- O que acontece com as pessoas que tem o seu destino não concretizado? – ele perguntou, com um sorriso sem humor nos lábios – Ela morreu por minha causa, pelos meus erros, meus deslizes. Não pense que eu sou de todo ruim, , eu já fui bom, já fui exatamente como você, e é por isso que eu me dou ao trabalho de me intrometer. Eu vejo você cometendo os meus erros e não quero que você carregue esse fardo que eu tenho que carregar. Eu me culpo pela morte dela todos os dias. – ele respirou fundo, encarando meus olhos por alguns segundos e eu pude sentir a sinceridade de suas palavras – Ela é pra você, o que Alane era para mim... Ela é o seu afecto.
- Como assim meu afecto? – perguntei confuso. Nunca tinha ouvido esse termo antes e me perguntava o que poderia significar, o que poderia ser.
- Quando Alane entrou na minha vida, ou melhor, quando eu entrei na dela, algo mudou em mim. Ela despertou sentimentos estranhos. Anseios, necessidades que não me eram comuns. Era como se eu passasse a sentir falta de coisas que eu nunca tive, que nunca vivi. Então eu praticamente vivia pela vida dela, pelos seus sentimentos, suas experiências. Ela era a minha realidade. – ele deu um sorriso de lado, como se lembrasse de algo bom.
- Por que você nunca me disse isso?
- Porque não é nem um pouco reconfortante ficar falando sobre o seu fracasso, ainda mais com o que ele motivou.
- Samuel, não foi culpa sua, afinal todos morrem um dia... – tentei contornar, fazer com que ele se sentisse um pouco melhor, que esquecesse.
- Eu fui estúpido, egoísta... – ele balançou a cabeça lentamente – Eu estava apaixonado.
- Apaixonado? – perguntei, com milhões de perguntas surgindo em minha cabeça. Como um anjo poderia se apaixonar, nós não temos esse tipo de poder, não somos capazes disso, é algo característico e próprio dos humanos – Como apaixonado? Você era um anjo e ela uma humana, sua protegida. Não há como ter esse tipo de envolvimento, ter esse tipo de sentimento...
- Tecnicamente nós somos iguais aos humanos, apenas temos o privilégio da ‘vida eterna’. Nós somos capazes de sentir qualquer coisa, contanto que achamos algo ou alguém para despertá-los. Alane despertou o amor em mim, a pode ter despertado outra coisa em você, talvez um forte sentimento de amizade ou carinho... – ele deu de ombros, antes de respirar fundo, tentando se recompor – Acho que te dei muita coisa pra se pensar, não é? – deu um sorriso sem humor.
- Você nem imagina o quanto. – disse impressionado. E de fato, Samuel havia me dado muito no que pensar.
Amor era algo muito distante pra mim, muito distante do meu mundo. Não conseguia imaginar uma pessoa como eu podendo se envolver amorosamente com alguém. Provavelmente em minha vida eu tenha passado por essa experiência, mas não é algo que eu lembre ou deva lembrar. Não conseguimos manter nossos vínculos passados, é como se não tivéssemos existido, como se fossemos anjos por toda a nossa existência. Talvez seja isso que nos afete tanto, se soubéssemos como vivemos ou se ao menos vivemos de verdade, nós não teríamos tantos assuntos não resolvidos ou problemas internos. Eu mesmo sofro muito com essa dúvida. Não saber, não ter lembranças... não ter vivido. Eu nunca tinha tido um envolvimento tão grande com um protegido. Eu realmente estou vivendo muitas coisas pela vida da . Suas experiências são as minhas, seus sentimentos são os meus. Isso explica porque eu não consigo ficar longe e interferir o mínimo possível ou deixar que ela viva a sua vida. Talvez seja por isso que eu tenha o poder de decidir seu futuro. O futuro dela é o meu futuro. Será que um dia eu serei egoísta como Samuel disse que foi? Será que serei capaz de fazer algo mal a ela, algo que possa ter consequências drásticas? Espero que ela desperte algo bom em mim, algo que seja proveitoso para nós dois. Algo que faça a nossa vida melhor.
‘s POV
Depois de ter sonhado com o eu me senti um pouco diferente, mais confiante talvez. Acho que foi por isso que, depois de muita insistência, eu aceitei sair com a Gabbie e os meninos. Só de pensar eu já conseguia sentir meu coração bater mais forte, imagina na hora? Eu me arrependi de ter aceitado um segundo depois, já que ela começou a bolar vários planos mirabolantes para que tudo saísse da forma que ela esperava. Entendam, Gabbie tem dezoito anos, sair com meninos é normal pra ela, que já teve até alguns namorados mais sérios. Mas eu nunca sai com nenhum garoto, eu sempre me policiei a ficar longe, não sei o que pode acontecer comigo. E já que nunca sai com nenhum garoto, vocês podem imaginar o meu grau de inexperiência com o sexo oposto. Esse pensamento me fazia suar frio. Mas eu já tinha falado que ia e eu cumpro minhas promessas.
- ? – ouvi Gabbie chamar do lado de fora do quarto – Você vai assim? – ela perguntou chocada, quando abri a porta. Ela vestia uma saia preta de cintura alta e bem solta nas pernas, uma blusa laranja, que deixava um ombro amostra e uma sandália preta não muito alta. Olhei minha roupa e vi o que estava errado nela. Os problemas eram uma calça jeans, uma blusa branca e um all star.
- Qual é o problema com a minha roupa? – perguntei, sabendo que ouviria por, no mínimo, cinco minutos.
- Não sei nem por onde começar... E não é só a roupa, qual é o problema de soltar os cabelos, ? – ela disse, entrando no quarto e fechando a porta. Sem me dar muita confiança, seguiu até o meu armário e o abriu em cerimônias. Revirou o mesmo por alguns segundo até puxar uma peça. Olhei atentamente para o que estava em suas mãos e comecei a temer o pior.
- Nem pense nisso! – eu disse séria. Gabbie segurava um vestido preto que ela mesma tinha me dado no último Natal. Ele era lindo, mas completamente desnecessário pra mim, ele estava jogado num canto do armário até hoje. Para que uma menina que não sai de casa precisa de um vestido preto tomara que caia com brilho por todos os lados? – A gente vai comer uma pizza, certo? – perguntei e ela concordou – Então por que eu vou vestida como se fosse pra uma festa? – ela revirou os olhos.
- Mas também não precisa ir vestida como se fosse na esquina comprar pão. , o Andrew vai levar o Taylor. Você tem noção da quantidade de meninas que se matariam para estar no seu lugar? – ela perguntou. O Taylor é realmente lindo, um dos caras mais bonitos da escola, mas não é um dois mais difíceis. Grande parte das meninas que queriam estar no meu lugar, poderiam mesmo estar e ele não veria nenhuma diferença nisso.
- E qualquer uma delas poderia estar no meu lugar, aposto que ele não se importaria. Talvez ele vá embora assim que souber que sou eu.
- Não seja idiota. – ela me empurrou, fazendo com que eu caísse sentada na cama – Tá, talvez esse vestido seja exagerado mesmo. – ela disse, voltando a mexer no armário – Ah! Achei um perfeito. – ela disse sorrindo. Ela desenrolou um vestido branco de alças bem fininhas, o tecido era leve e fazia com que ele modelasse o corpo de uma forma bonita – Esse você vai usar e não vai reclamar!
- Claro, Gab. Tudo pela sua felicidade. – coloquei o vestido, voltei para o quarto e vi um sorriso iluminar seu rosto.
- Ficou perfeito. – ela disse me puxando pela mão e me fazendo sentar novamente – Agora vamos dar um jeito no resto.
- Resto... – resmunguei, enquanto sentia cada parte do meu rosto ser coberta por alguma coisa.
Nós estávamos prontas e sentadas no sofá, sob os olhares atentos de Nate e Joe. Eles não gostaram muito dessa história de encontro, talvez seja apenas ciúme de irmão. E então ouvimos um barulho vindo da porta e em seguida algumas batidas. Senti meu coração acelerar. Gabbie levantou tranquilamente e esperou que a seguisse, mas eu me mantive sentada.
- Eu acho melhor você ir sozinha, não estou me sentindo bem. – eu disse baixo.
- Sem inventar histórias, , levante já desse sofá. – ela disse sem paciência. Respirei fundo antes de acompanhá-la. Ela trocou sua impaciência por um belo sorriso e abriu a porta, encontrando os dois meninos com os lábios repuxados numa expressão de expectativa.
- Oi, Gabbie. – Andrew disse, lhe dando dois beijos no rosto. Ela corou um pouco e me puxou para fora, gritando um ‘tchau’ para quem escutasse. Andrew era um rapaz muito bonito, seu cabelo loiro caia levemente sobre seus olhos verdes e seu corpo era um pouco malhado, mas nada exagerado. Com muita timidez, olhei Taylor pelo canto dos olhos e encontrei-o me encarando de volta.
- Tudo bem? – ele perguntou, com sua voz rouca.
- Tudo. – respondi, tentando manter minha voz firme. Ele era mais bonito ainda de perto. Era um pouco mais alto e forte que o Andrew, seu cabelo escuro estava propositalmente despenteado e seus olhos quase negros me fitavam estranhamente.
- Fiquei surpreso quando o Andrew disse que você tinha aceitado sair com a gente. – ele disse com um sorriso sacana nos lábios.
- A Gabbie quase me obrigou. – respondi, mantendo meus olhos longe dos dele.
- Por um momento eu pensei que o problema fosse comigo.
- Não! – eu disse rápido – Não pense isso.
- Não se preocupe, você já mudou minha opinião. – ele disse calmamente – Na verdade, você mudou minha opinião sobre duas coisas.
- E qual é a outra? – perguntei, me virando para ele, quando paramos no sinal para atravessar.
- Eu sempre soube que você era linda, até porque não sou cego. Mas assim tão perto – ele se aproximou perigosamente – Você é mais linda ainda. – precisei de vários segundos pra lembrar de como respirar. Não é todo dia que eu tenho um dos meninos mais lindos da escola assim tão... próximo.
Com o passar do tempo as aproximações do Taylor ficavam cada vez mais descaradas e isso começou a me assustar. Não que eu estivesse com medo do que ele poderia fazer comigo, nós estávamos num local público e ele não seria tão louco assim. O que me assustava era como tudo era completamente novo pra mim. Enquanto Gabbie e Andrew estavam aos beijos, eu continuava olhando para qualquer lugar, menos para Taylor, tentava o ignorar o máximo. Mas ele parecia ser bem persistente.
- Você tá nervosa? – ele perguntou, pegando minha mão, que tremia um pouco por sinal.
- Talvez. – respondi, com um sorriso nervoso.
- Eu acho que sei como te acalmar ou, pelo menos, te fazer relaxar um pouco. – ele colocou uma das mãos no meu queixo e o levantou um pouco, olhando nos meus olhos.
Eu posso ser inexperiente, mas não sou burra, eu sabia muito bem o que estava por vir. Era como se fosse coordenado, a cada centímetro que ele se aproximava, mais rápido meu coração batia e mais descompassada minha respiração ficava. Eu já tinha ouvido falar de ‘beijos de tirar o fôlego’, mas eu deveria esperar nossos lábios se tocarem pelo menos, certo? Tentei me concentrar e entender o que estava acontecendo. Tudo parecia meio quieto e lento demais, talvez o mundo tivesse desacelerado, enquanto eu tentava me localizar nele. Eu estava tendo a minha chance de ser normal e aproveitaria de qualquer maneira. Tudo isso passou por minha cabeça no intervalo de um segundo. Ele ainda estava diminuindo a distância entre nós e eu parecia já sentir seus efeitos. Quando ele já estava próximo o suficiente para que eu sentisse uma respiração contra o meu rosto, a minha respiração começou a ficar difícil. Era sentia algo estranho, um incomodo que não sentia há anos e eu sabia que não tinha nenhuma relação com o beijo, ou futuro beijo. Quando seus lábios finalmente alcançaram os meus, minha atenção estava em outra coisa. Percebendo a minha falta de atenção em relação ao seu beijo, Taylor se afastou lentamente e me encarou.
- Você tá bem? – ele perguntou, mas sua voz parecia mais distante do que deveria estar. Minha visão começou a ficar turva e eu não conseguia mais sustentar o peso do meu corpo da forma correta – ? – ele disse um pouco mais alto, chamando a atenção de todos ao redor, principalmente de Gabbie.
- O que ela tem? – ela perguntou preocupada.
- Não sei, ela estava bem alguns minutos atrás. – ele disse, enquanto eu me esforçava em me manter acordada. Respire fundo, respire bem fundo... eu dizia a mim mesma, mas não estava funcionando.
- Ela está muito pálida, Taylor. – Gabbie disse, mas eu não consegui ouvir a resposta dele. Cansada de lutar contra o inevitável, deixei que meus olhos se fechassem.
Abri os olhos e me vi num lugar estranho. Olhei em volta, procurando por algo familiar ou, pelo menos, confortador, mas não encontrei nada. Era tudo tão branco, tão claro que mal parecia um lugar real. Forcei-me a levantar e estranhei a sensação de parecer estar flutuando. Talvez eu estivesse em outro dos meus sonhos e não tinha me dado conta ainda. Olhei meu corpo e eu ainda estava com a roupa que usei para sair com a Gabbie e os meninos. Estranho, talvez eu tenha ficado impressionada com o que tenha acontecido, que me forcei a sonhar com isso. Tentei lembrar de alguma coisa, mas era tudo tão indefinido, tão confuso. Alguns flashes surgiam: Nós quatro andando pelas ruas, a primeira aproximação de Taylor e ele dizendo o quanto eu estava bonita, Gabbie aos beijos com Andrew e a última coisa que eu me lembro é de sentir a mão de Taylor em meu queixo e sua respiração perto do meu rosto e depois... Nada! Voltei a olhar ao redor. Esse sonho estava estranho demais.
- Talvez isso não seja um sonho. – uma voz me sobressaltou. Era uma voz firme, grave, poderosa. Uma voz que você sentia vontade de obedecer. Virei-me para encarar meu acompanhante e me deparei com um rapaz estranho me olhando de forma curiosa. Ele avançava lentamente, mas o curioso era que não parecia que era ele que se movia e sim as coisas ao seu redor. Uma força estranha emanava dele, como se fosse uma aura poderosa. Mas não era um bom poder. Só de sentir sua presença, algo como medo, passou a me dominar. Mas ao mesmo tempo em que o medo me rondava, passei a sentir algo estranho. Era como se eu soubesse que deveria sentir medo dele, mas também deveria ansiar por ele, por mais proximidade. Ele tinha um ar misterioso que me seduzia de alguma forma. Ele estava distante, então ainda não conseguia ver seu rosto perfeitamente. Mas era algo sombrio, indescritível e, provavelmente, belíssimo. Seus traços me lembravam de alguma coisa ou alguém, mas eu não conseguia lembrar. A única coisa em que eu conseguia pensar e manter a minha atenção era no rapaz misterioso. E então pude ver seus olhos. Seus olhos castanhos e calorosos. Seu sorriso, longe de ser acolhedor, era inquietante. – Estou contente de finalmente te conhecer, .
- Quem é você? – perguntei baixo, encarando seus lábios levemente repuxados – Como você sabe o meu nome?
- Eu sei muitas coisas sobre você, mais do que você imagina. – ele parou em minha frente, com sua postura superior – Mas isso não é tão importante no momento, não nas circunstâncias que estamos.
- Que circunstâncias? – perguntei confusa. Pra mim isso era apenas um sonho. Um sonho muito estranho, mas ainda apenas um sonho.
- Ah! Vejo que a névoa ainda encobre seus olhos. – ele riu baixo e fez um leve momento com as mãos, como se afastasse alguma coisa – Consegue ver agora? – olhei novamente o ambiente e dessa vez o local era outro. O ambiente claro desapareceu, dando lugar a outro conhecido. Era como se eu visse tudo de um ângulo diferente, como se eu sobrevoasse a cena enquanto observava. Do alto eu conseguia ver Gabbie, Andrew e Taylor perto de uma menina que parecia comigo. Ela estava caída no chão, enquanto Taylor fazia algumas manobras de ressuscitamento, Andrew conversava com alguém no telefone e Gabbie gritava, meio desesperada.
- Aquela sou eu? – perguntei, colocando a mão em meu peito e vendo que, pra mim, eu estava ali de carne e osso. Tentei forçar-me para baixo, voltar ao meu corpo para que eu pudesse levantar e continuar minha vida normalmente. Mas eu não conseguia me mexer, era como se tivesse uma barreira invisível que me impedisse de voltar.
- Sim, aquele é o seu corpo. Apenas as almas têm acesso a esse lugar em que você está. – ele disse tranquilamente.
- Almas? – eu perguntei nervosa – Eu morri? – ele riu com vontade e balançou a cabeça lentamente.
- Ainda não.
Ainda não.
Então eu estava tendo uma experiência de quase morte? Para que eu estou aqui exatamente? Para que possam repensar a minha morte ou decidir o lugar onde passarei a eternidade? Várias perguntas passavam pela minha cabeça, mas eu não conseguia focar em apenas uma. Eu me sentia tão viva para estar morrendo. Eu penso que é até meio injusto. Logo no momento em que eu começo a viver, consigo um garoto que queria sair comigo, desfruto um pouco da minha adolescência... Isso acontece. É como se alguém conspirasse contra mim, fizesse tudo dar errado de propósito.
- Juro que não sou eu. – o rapaz respondeu. Eu o encarei com os olhos arregalados. Eu estava falando isso em voz alta? – Desculpe minha intromissão. É como se os seus pensamentos fossem gritos, é quase impossível não respondê-los.
- Você pode ler meus pensamentos?
- Eu posso quase tudo. – ele disse com o rosto próximo ao meu. E então, como mágica, estávamos em outro lugar. Nós estávamos no alto e quando eu digo alto, é bem alto. Era como se estivéssemos numa nuvem, flutuando sobre a cidade. Era mais como uma cabine transparente acima de tudo. A visão era perfeita, mas era como uma prisão. Mas eu não conseguia me ater a detalhes como a paisagem, eu precisava entender o que aconteceu comigo.
- O que tá acontecendo?
- Você está fazendo a passagem. – ele deu de ombros.
- E isso significa que...? – forcei.
- Que você está tecnicamente morta, mas que ainda há salvação. Senão você teria ido direto para onde deve ir.
- Tecnicamente morta? Como assim? Quem é você? – perguntei, me desesperando.
- Eu? Eu sou a morte. – ele deu mais um de seus sorrisos inquietantes. Eu recuei no mesmo instante, temendo o que ele poderia fazer. Ele revirou os olhos – Se eu quisesse mesmo te levar, teria feito isso no dia em que você nasceu ou em qualquer uma de suas outras crises. Você não precisa ter medo de mim, nem me temer. Afinal, eu sou inevitável.
- Mas se você não quer me levar, o que eu ainda estou fazendo aqui? Por que eu não posso voltar?
- Porque isso não depende de você. – ele passou a mão em meu rosto lentamente e eu senti todos os pelos do meu corpo de arrepiarem.
- E depende de quem? – eu disse, tentando controlar a minha voz.
- Dele. – ele disse apontando para frente – Mas se apresse, seu tempo está acabando. – Eu me virei, mas não consegui enxergar nada.
- Mas eu não consigo ver nada. – eu disse olhando para o rapaz, mas ele deu de ombros, como se o problema não fosse dele. Voltei minha atenção para o lugar que ele tinha apontado e dessa vez eu consegui enxergar uma forma entre as nuvens. Mantive meu olhar fixo, até a forma se transformar numa pessoa. Conhecida por sinal. Seus olhos se destacavam no horizonte e eu me prendi neles. Era como se eu nunca tivesse o visto. Ele estava diferente, estava mais nítido, sua presença era mais forte, quase palpável. – ?
- Me desculpe por isso. – ele disse calmamente. Até a sua voz era diferente do que eu lembrava. Era como se eu nunca tivesse visto, ele era novo. Era um novo .
- O que você tem a ver com isso? Como você pode me ajudar?
- Eu não sou o que você pensa, . E eu me sinto mal por ter escondido isso por tanto tempo, mas era necessário.
- Quem é você? Ou melhor, o que é você, ? – perguntei no momento em que ele parou a minha frente. A distância era tão curta, que eu podia tocá-lo se levantasse a mão.
- Eu sou um anjo. – ele disse com um pequeno sorriso – Eu sou o seu anjo.
- Tipo um anjo da guarda? – perguntei confusa.
- Exatamente.
- Então foi por isso que o... que ele falou que eu dependia de você? – apontei para o rapaz atrás de mim.
- Samuel geralmente fala demais, mas sim, é por isso que você depende de mim agora.
- Você pode realmente me salvar?
- Eu não sei. – ele respondeu e eu vi a dor da sinceridade em seu olhar – Eu não sei exatamente o que fazer.
- Você precisa tentar, tentar o que puder. Por favor. – eu disse, começando a me desesperar – Eu não quero morrer.
- Você tem certeza disso? O que aconteceu com aquele pensamento de ‘seria melhor se me levassem de uma vez’? – ele indagou, pegando meu ponto fraco.
- Eu não penso mais assim, eu juro. Eu vi que posso levar uma vida normal, ou ao menos tentar. Por mais que tenha sido isso que tenha me trazido aqui, eu não me arrependo.
- Eu juro que não sei o que fazer. – ele disse em voz baixa, olhando nos meus olhos. Era como o infinito. Seu olhar era tão penetrante, que parecia que ele podia olhar dentro da minha alma, enxergar meus pensamentos, ver todos os meus segredos, desejos e anseios. Era como se naquele momento, a minha dor fosse a sua dor. Então eu entendi, ou pensei entender. Sendo meu anjo, deveria entender e sentir tudo que se passava comigo, como se fosse com ele. Era como um espelho, meus sentimentos eram refletidos nele. Talvez isso ajudasse em alguma coisa.
- Eu confio em você. É como se te conhecesse de toda a vida e provavelmente é. – ele deu um pequeno sorriso – Eu quero viver, quero ser capaz de passar por tudo isso mais uma vez.
Vi trocar olhares significativos com o outro rapaz que ele chamou de Samuel. Era como se eles conversassem apenas com o olhar e isso era meio assustador.
- Eu não posso fazer nada, isso é com vocês. – Samuel disse, como se pedisse desculpas.
- Mas você disse que dependia de mim, então você sabe de alguma coisa.
- Eu disse isso porque qualquer coisa relacionada ao destino dela depende de você. E eu não quero me responsabilizar se algo sair errado.
Enquanto eles conversavam, eu comecei a me sentir estranha, como se eu estivesse me desmaterializando. Uma força estranha me puxava para baixo e não era a gravidade. Por mais que o meu corpo estivesse no mesmo lugar, eu sentia como se estivesse caindo em queda livre diretamente para o chão. Eu não estava sentindo coisas muito boas ao longo de todo esse tempo, mas esse era, sem dúvida, a pior sensação de todas.
- ... – eu sussurrei e o seu olhar em resposta foi arrasador. Era como se ele tivesse me perdido, como se não existisse mais volta. Estendi a mão em sua direção e senti levemente o seu contato. Era reconfortante. Sorri com a sensação que seu toque me trouxe e olhei mais uma vez em seus olhos – Por favor, me salve. – Então senti meu corpo pesar e seguir em direção ao solo, completamente vulnerável ao poder daquela força. Durante a queda, eu ainda conseguia observar o olhar assustado de e o complacente de Samuel. Por mais que esse fosse seu trabalho, eu sentia que ele não estava completamente satisfeito em me levar.
/’s POV
Eu nunca tinha presenciado uma cena como aquela. Geralmente eu não estou mais ligado aos meus protegidos quando eles são levados para a sala de julgamento. Era perturbador demais. Ver uma pessoa submetida a tal poder sem nem ter chance de reação, é meio desorientador. Olhei para Samuel, que encarava um ponto qualquer, esperei que ele falasse alguma coisa, mas ele continuou em silêncio. Talvez isso trouxesse algumas lembranças ruins para ele.
- Samuel. – eu disse, fazendo com ele me olhasse.
- Eu tenho trabalho a fazer, . – ele virou as costas.
- Sim, a . – eu respirei fundo – Você precisa me ajudar. – eu me aproximei, pousando a mão em seu ombro.
- Não há nada a ser feito. Se você tivesse que evitar isso, deveria ter sido antes de acontecer.
- Tem que existir uma forma. Qualquer coisa. – ele me encarou – Samuel, qualquer coisa.
- Existe uma forma, mas é arriscado demais. – ele disse, medindo as palavras.
- O que pode ser mais arriscado pra ela do que morrer?
- Não é arriscado pra ela, é arriscado pra você. – eu nunca tinha me importado muito com o que poderia acontecer comigo. Era algo supérfluo. Quando se tem a eternidade para viver, você para de se preocupar um pouco com o que pode acontecer.
- Eu não me importo, não posso falhar com ela. – ele respirou fundo e soltou o ar pesadamente.
- Uma vez eu vi um anjo nessa mesma situação. Ele disse que faria qualquer coisa e fez. Ele deu a alma dele pela dela, deu tudo que o que tinha pela vida da protegida. Mas a falha tinha sido dele, então sua ‘doação’ não serviu para nada. Ele perdeu sua condição de anjo e ela morreu. No final das contas não adiantou de nada o sacrifício dele.
- Um anjo deu a alma por um protegido? – isso era difícil de compreender. Um anjo se submeter a tal coisa por um ‘ser menor’, não é comum, não é normal. É necessária uma conexão além da normal, acho que nem mesmo eu, que tenho a como meu afecto, poderia pensar em algo assim. A não ser que... – Você fez isso. Você deu a sua alma pela da Alane. – ele olhou para o chão e sorriu tristemente.
- E não adiantou. Eu pensei que se eu desse minha alma pela dela, nós acabaríamos da forma, seríamos compatíveis, mas não foi isso que aconteceu. Eu não pensei que essa interferência fosse tão prejudicial. Aquele acidente não estava em seu destino, foi minha culpa, minha culpa. Eu cometi tantos erros com ela, que não era digno de sequer pensar em merecê-la. Eu não podia cobiçá-la, desejá-la, muito menos amá-la, mas eu amei. Não posso deixar que isso aconteça de novo, . Não posso sujeitar outro ser humano a isso.
- Mas pode ser diferente comigo, Samuel. Eu sou responsável pelo destino da , qualquer interferência, desde que venha de mim, pode ser benigna. Eu tenho que me dar ao trabalho de pelo menos tentar. Se isso não funcionar, eu terei falhado de qualquer forma.
- É por sua conta e risco, . Todos sabem que eu tentei impedir, não podem colocar a culpa em mim.
- Eu aceito todas as consequências dos meus atos. – ele olhou durante alguns segundos, talvez buscando alguma fraqueza em meu olhar ou em minhas palavras.
- Me acompanhe.
Seguimos por um caminho rápido, escuro e estranho. Em poucos segundos estávamos num lugar que se passaria por uma sala normal em qualquer casa. As paredes claras deixavam o ambiente bem iluminado e a única mobília da sala era preta, dando um contraste enorme. Samuel sentou-se e me encarou, esperando que eu fizesse alguma coisa.
- Desculpe, mas ninguém chega vivo a esta sala, logo não tem outra poltrona. – ele disse com um olhar de desculpas.
- Não preciso me sentar, preciso saber o que fazer.
- , isso é complicado. Você precisa abrir mão de uma parte de sua alma para dar lugar a dela. A alma humana não tem o mesmo valor de uma alma angelical, então você não terá que dar a sua vida pela dela. Talvez esse tenha sido o meu erro, mas não importa agora. Você precisa querer salvá-la verdadeiramente, só assim a sua alma alimentará o cajado e a vida dela será poupada.
- O que eu preciso dizer?
- Não há nada fixo, só pode dizer o que quiser desde que seja sincero.
- Eu vou tentar. Onde ela está? – perguntei.
- Eu te levo lá. – ele disse se levantando e com um gesto rápido de uma de suas mãos, eu me vi em outro lugar. estava deitada, ela parecia levitar a minha frente. Me aproximei, olhando em seu rosto. Suas feições estavam relaxadas e seu rosto pálido. Olhei para Samuel, buscando um olhar encorajador, mas ele havia sumido. Ótimo, eu estava sozinho sem ter noção do que fazer.
Seja sincero. A voz de Samuel ecoava em minha cabeça. Sim, pelo menos ser sincero não era difícil. Receoso, segurei uma de suas mãos com delicadeza.
- Eu não sei o fazer, . Eu já lhe disse isso, mas eu preciso tentar. Eu tenho te protegido há dezesseis anos e não será agora que falharei. Tudo bem, eu falhei algumas vezes, mas consegui consertar meus erros e conseguirei mais uma vez. Custe o que custar e, aparentemente dessa vez, o preço é uma parte de mim. Sinceramente, uma parte mim não fará falta, já que desde o momento em que descobri a influência que você exerce sobre mim, eu tenho sido todo seu. Tento ser o que você precisa e agora serei sua alma, ou parte dela.
Nesse momento senti algo estranho. Respirei fundo e fechei os olhos, assim que uma luz branca muito forte encheu o lugar onde estávamos. Ainda de olhos fechados, senti meu corpo levitar e uma forte dor atingiu minha cabeça. Não pude reprimir um grito de dor, ao sentir algo totalmente novo: Dor; Essa era o nome dessa sensação. Minha cabeça parecia estar em chamas e a cada segundo minha visão ficava cada vez mais turva. Meus joelhos cederam e eu cai aos pés do corpo de . Tentei agarrar-me a alguma coisa, como se isso fizesse a sensação passar ou pelo menos amenizar. Abri os olhos, olhando para minha protegida, que também estava envolta na mesma luz branca, mas eu conseguia ver uma com uma fina linha horizontal sendo inscrita em seu peito, exatamente no centro. Olhei para o meu próprio corpo, vendo a mesma marca aparecer. Tanto a inscrição em sua pele, quando a minha começaram a brilhar intensamente e eu, subitamente, comprimi os meus olhos ao sentir a dor me assolar mais uma vez. Gritei o mais alto que minha garganta suportou. Olhei, paralisado, o momento em que abriu os olhos, alarmada, tentando enxergar alguma coisa. Respirei fundo e a sensação foi gratificante, como se eu não tivesse respirado durante todo esse período. Felizmente Samuel estava errado, tudo tinha dado certo dessa vez. estava bem, eu estava bem... ou pelo menos eu parecia bem.
Eu me sentia acabado. Como se todos os músculos do meu corpo tivessem sido arrancados e recolocados no lugar. Eu sabia que deveria estar junto da , deveria saber se ela estava realmente bem, se tudo tinha dado certo, mas eu não conseguia levantar meu corpo do chão. Samuel estava ao meu lado, mais como um companheiro, um amigo, do que qualquer coisa. Acho que fiz mal ao julgá-lo precipitadamente, afinal, ele vem me ajudado há um tempo e tudo tem dado certo a partir do intermédio dele. Talvez eu devesse lhe ajudar de alguma forma, tentar falar com nossos superiores sobre reverter o processo que fez com que ele perdesse suas asas e com isso o direito de ser um protetor. Apenas pensar fez como que eu me sentisse melhor, mas foi só lembrar da dor, que a mesma me assolou novamente, fazendo com que eu me retorcesse no chão.
- Eu sei o quanto isso é doloroso, mas eu acho que valeu a pena dessa vez, deu certo. – Samuel disse, quase que me reconfortando.
- Mas você não queria que eu fizesse. Isso tudo era pra evitar que eu me tornasse algo como você? – me arrependi no mesmo momento em que disse a última palavra. Ele tinha sido tão bom comigo nos últimos tempos e não merecia algo assim.
- Talvez. As pessoas não merecem terminar como eu, . Ninguém deveria viver para sentir a dor da perda de uma pessoa especial. Seja ela um amor ou um amigo. Mas o processo deu certo com você, isso é o que importa.
- E a ? – perguntei.
- Ela está bem, está se recuperando. Quase não sinto a necessidade de trazê-la, pode ficar tranquilo.
- Ela vai lembrar de alguma coisa que presenciou aqui?
- Não, ela teve suas memórias devidamente apagadas, é muito difícil que lembre algo substancial. E se ela lembrar, provavelmente pensará que é algum vestígio de um sonho ou algo do tipo. Os humanos não são bons em aceitar que exista algo superior a eles. – aquilo foi reconfortante, saber que eu poderia continuar visitando, convivendo com ela, mesmo que ela pensa que eu sou um amigo imaginário, era tranquilizador. De alguma forma eu me manteria na vida dela e era isso que importava. Foi isso que sempre importou no fim das contas.
- Talvez seja hora de voltar às minhas tarefas. Ela pode estar precisando de mim... – eu disse, tentando me levantar.
- Tudo bem, depois conversaremos sobre os efeitos colaterais do seu ato.
- Efeitos colaterais? – perguntei, começando a me incomodar com o tom de sua voz. Samuel geralmente utilizava de um tom frio e sombrio, mas o que ele usava agora era diferente, como se soubesse o que me esperava, mas não quisesse falar. Na realidade não havia muito a ser feito, eu havia aceitado e me responsabilizado as consequências dos meus atos e não estava preocupado com o que poderia acontecer. Eu sou um anjo e fiz isso pelo bem de minha protegida, que de tão ruim aconteceria comigo?
- Vá, . Nos encontraremos quando os efeitos começarem a aparecer. Até lá, tente não fazer mais nada de errado, por favor.
- Mas que efeitos, Samuel? – perguntei, porém sem sucesso. Ele tinha desaparecido da mesma forma de sempre. Fechei os olhos, voltando para perto de minha protegida.
A sensação era como de voltar para casa depois de muito tempo longe. Era como se eu precisasse ver o seu rosto, olhar em seus olhos, para ter certeza que eu estava no lugar certo. No lugar o qual eu realmente pertencia. Meu lugar era ao lado dela e disso ninguém poderia discordar. Mas para ser sincero, voltar para um hospital era como ver que todo o meu esforço fora em vão. Aqueles sons que os aparelhos produziam, era como uma música anunciando minha falha, mas eu sabia que ela estava bem e era por minha causa. Isso ninguém tiraria de mim. Olhei para ela, buscando o seu brilho característico, e encontrei alguém ao seu lado. O rapaz estava com um dos dedos sobre os lábios dela, enquanto dizia alguma coisa. Tentei prestar atenção e compreender o que ele falava. Nada com você pode ser perda de tempo. E então ele revezava olhares entre os olhos e os lábios dela, como se quisesse um consentimento sobre o que viria a seguir. Devo? “Claro que não, seu idiota!” eu quis gritar, mas uma voz vinda do além não faria bem à e eu não queria causar mais danos. Concentrei-me, para voltar no tempo e ver onde ele tinha entrado na vida dela, para que eu pudesse entender o que ele fazia ali. Não precisei de muito esforço. Ele era o mesmo cara que a beijou e causou tudo aquilo. Onde ela estava com a cabeça de deixar que ele fizesse tudo novamente? Acho que não. Agradeci a Deus. Talvez ela estivesse voltando a ter consciência de seus atos. Tenho certeza que um dia toda essa espera valerá a pena. Tentei entender o efeito que essa frase teve sobre mim, mas não consegui. Era uma sensação estranha, diferente. Mas não era importante no momento. Agora, eu queria mesmo que esse rapaz fosse embora e deixasse se recuperar bem, antes que ele causasse mais algum problema e nem eu pudesse resolver. Eu vou embora, antes que me impeçam de te visitar novamente. Era como se ele ouvisse meus pensamentos e isso era bom, ele estava indo embora. Mas antes ele se curvou e deixou que seus lábios encontrassem a pele macia da testa de . Ela fechou os olhos, aproveitando o máximo daquela situação. Naquele momento eu vi que, por mais que eu salvasse a vida dela, eu nunca poderia fazê-la se sentir tão bem como ele podia e não havia nada que eu pudesse fazer para mudar isso.
‘s POV
Um mês depois
Eu fui liberada do hospital semanas atrás, sob apenas uma recomendação: eu estaria sendo observada diariamente. Ninguém deixaria que eu fizesse algo inapropriado. Peter deixou isso bem claro e eu acho que subentendido estava a seguinte mensagem: “Nada de se envolver com aquele rapaz novamente, mocinha”. Era isso ou ele tinha esquecido que eu sabia muito bem o que eu não podia fazer, já que isso envolvia quase tudo que era legal. É claro que eu aceitei sua recomendação, mas aceitar é completamente diferente de obedecer e Gab me ajudava nessa parte. Ela sempre inventava que faríamos alguma coisa, para que eu pudesse encontrar com o Taylor. No começo ela também aproveitava para passar mais tempo com o Andrew, mas de repente resolveu terminar tudo com ele. Confesso que fiquei surpresa. As coisas pareciam ir tão bem... Talvez fosse isso que a alarmava, ela estava com medo de ter um relacionamento de verdade. Depois eu conversaria com ela sobre isso, porque, no momento, algo prendia mais minha atenção.
Nas últimas semanas, o que eu tinha com o Taylor tinha se desenvolvido e passamos a ter mais contato físico. O próximo passo era o meu aguardado e mais perigoso. Não, não é o que você pensa. Eu queria apenas beijá-lo, mas beijá-lo de verdade. E eu achava que estava pronta pra isso. Não sei por que, mas parecia que depois da última crise eu ficara mais forte, mais resistente. Pelo menos eu me sentia assim. Essa confiança, esse estado de espírito que me movia e, é claro, a presença do Taylor na minha vida. Eu nunca tinha sentido nada assim por alguém. Talvez ele seja o meu tão esperado primeiro amor. Ai, isso é coisa de filme...
Hoje era a festa de aniversário da Gabbie e o tão aguardado dia. Controlei a ansiedade que me dominava e comecei a me arrumar. Olhei temerosa para o vestido que me aguardava em cima da cama; outro presente da minha linda amiga. Respirei fundo, passando o tecido leve pelo meu corpo e deixando com que ele caísse suavemente. Seu grande e quase provocativo decote deixava parte do meu colo à mostra, mas não de forma vulgar. Aproximei-me do espelho, notando um marca diferente entre meus seios. Era uma pequena linha na vertical, tão pequena que eu não tinha reparado até aquele momento. Toquei-a lentamente, vendo um brilho estranho e diferente passar por ela, me levando para um local desconhecido.
Num instante eu estava em meu pequeno quarto e no seguinte eu estava lugar que nunca tinha visto na vida. Sua claridade quase me cegava e sua imensidão me dava uma profunda sensação de pequenez. Era tudo tão irreal que eu tive que levantar a mão e tentar tocar em algo, porém sem sucesso. Parecia que eu estava sonhando acordada, mas a sensação de realidade era tamanha que quase chegava a ser palpável. De repente, senti uma pontada no peito. Curvei meu corpo, olhando para frente. Um misto de imagens me confundiu, mas eu conseguia me ver no meio delas. Eu conversava com um rapaz estranho, mas era impossível tentar focalizar e tentar desvendar quem era, pois nada parava no lugar. Eu me sentia tonta e cansada, como se estar ali exigisse muito esforço e meu corpo não estava preparado para tanto. Olhei para o lado e vi a única coisa que parecia perfeitamente sintonizada. Como se o de seus olhos fosse a minha conexão com o mundo, como se nada mais importasse naquele momento, naquele lugar. Ele se aproximava a passos lentos, como se tudo girasse ao seu redor. Percebi que era dele que toda aquela luz era emanada. Ele era o sol daquele lugar. era o meu sol. Quando estava perto o suficiente, ele olhou fundo em meus olhos e uma série de coisas surgiu em minha mente. Tudo estava relacionado a nós dois e tudo que vivemos nos últimos anos. Ele era mais que um simples amigo imaginário; ele sempre foi mais do que isso.
Um pequeno sorriso surgiu em seus lábios e ele acariciou lentamente o meu rosto. Por onde sua pele roçava a minha, eu sentia um arrepio inexplicável, algo que nunca havia sentido antes. Retribuí seu sorriso, enquanto encostava minha mão na dele. O toque de nossos corpos gerou novas sensações e parecia que mais luzes surgiam no ambiente. A claridade aumentava de uma forma que a cada segundo era mais difícil manter meus olhos abertos. Quando se tornou insuportável, fechei fortemente os mesmos e então sua fala entoou pelo ambiente.
- Consegue ver agora? – sua voz doce e aveludada era tão sedutora, que fez com que eu abrisse os olhos, vendo outra cena. Meu corpo pairava flutuante no ar, enquanto aparecia ajoelhado ao meu lado. Sua blusa entreaberta deixa seu peito levemente à mostra e nele brilhava uma marca como a minha. Num instante gritou e o foi o som mais apavorante e assombroso que eu ouvi. Olhei para mim mesma e minha nova cicatriz brilhava fortemente. Ele encostou sua mão na minha e uma pequena linha se desenhou, uma pequena e disforme marca, assim como a do meu peito.
- ? – ouvi uma voz me chamando, distante.
- ? – chamei, mas a cena desaparecia lentamente.
- ? – a voz parecia mais próxima, quase me arrastando de volta à Terra. Eu não queria sair de perto do naquele momento, mas parecia impossível. Olhei mais uma vez para seu rosto e o de seus olhos foi a última coisa que vi em meu devaneio. – ? – Gabbie? chamou mais uma vez.
- Oi. – respondi, ainda fora de órbita. – Eu estava distraída.
- O que foi agora? – ela perguntou.
- Eu acho que tive uma visão... – falei, incerta.
- Como assim uma visão? – ela disse, sentando-se ao meu lado.
- Eu nunca tinha reparado nessa marca aqui. – apontei para o sinal entre meus seios – Estava colocando o vestido quase vi e quando encostei, pareceu que eu fui transportada para outra dimensão ou algo do tipo. – ela reprimiu um sorriso. – Gab, é sério. Foi muito real, eu estava sentindo as coisas...
- Que coisas?
- O estava lá, ele fez um carinho no meu rosto, eu segurei sua mão. Ele era de verdade, Gabbie. – eu disse, querendo convencer a minha mesma também.
- , me escute. Não venha enfiar esse seu amigo imaginário na sua vida de novo. Tanto tempo que você não fala dele, por que isso agora? Você tem um garoto de carne e osso louco por você. Não coloque tudo a perder por nada.
- O não é nada, Gab. Você simplesmente não entende, não viu o que eu vi, não sentiu o que eu senti. Ele... – eu parei de falar, encarando a parede, sem saber se deveria continuar ou não.
- Ele o que, ?
- Ele tinha uma marca como minha. Eu me deitava como se estivesse flutuando e ele estava ajoelhado ao meu lado. Então ele gritou... – eu respirei fundo, sentindo um arrepio forte passar pelo meu corpo. – Foi o som mais apavorante que eu já ouvi na minha vida.
- Foi um sonho ou a lembrança de um. É a única explicação possível. – ela disse, tentando encerrar o assunto.
- E isso não foi algo possível de explicações? Existem coisas assim. – ponderei, mas ela não parecia se convencer.
- Para quem acredita, sim. Mas eu não acredito, . Desculpe. – ela disse, enquanto eu encarava a marca em minha mão.
- Talvez você esteja certa. – eu respirei fundo, voltando a olhar em sua direção. – Talvez eu tenha que voltar minha atenção para o Taylor, já que ele está aqui de verdade. – dei de ombros.
- Eu estou certa. – ela afirmou. Eu levantei, seguindo para a porta.
- Te vejo lá embaixo. – disse, fechando a porta atrás de mim. Encarei mais uma vez a linha disforme em minha mão. – Não foi um sonho – murmurei para mim mesma – Não foi.
/’s POV
Eu estava preso no plano superior. Avisaram-me que Miguel queria conversar comigo e eu só poderia sair depois disso. Eu não sabia o que ele tinha para falar e isso me deixava completamente nervoso. Nunca é bom quando ele pede para conversar com um protetor durante seu tempo de serviço. Isso só pode significar duas coisas: Ou o tempo de seu protegido estava acabando ou você tinha feito algo de errado. E como da última vez que eu estive com ela, estava tudo bem, algo me dizia que o errado no momento era eu mesmo. Tentei pensar em outras coisas, mas era praticamente impossível. Quando Miguel resolve interferir pessoalmente, é porque já ultrapassou muito do limite recomendável.
- . – Miguel disse, me sobressaltando. Sua expressão não era das melhores. Apesar de seu olhar sempre parecer ríspido demais, sempre tinha algo que te acalmava. Porém, dessa vez, além de não ter nada de tranquilizador em sua fisionomia, ela estava mais severa ainda.
- O senhor queria falar comigo? – eu falei, após reunir forças.
- Vou direto ao ponto. Eu sei o que você fez para salvar sua protegida e isso não é visto com bons olhos. Sim, você deve fazer o que está ao seu alcance e apenas isso. Você não pode simplesmente abrir mão do que você tem de mais importante. – conforme ele falava, o peso de suas palavras caía sobre meus ombros, fazendo com que uma sensação de culpa me dominasse. Eu sabia que Miguel podia fazer coisas como essas, talvez para fazer com que as pessoas se arrependessem de seus atos, mas eu não estava nem um pouco arrependido. – Mesmo um pedaço ínfimo de sua alma pode causar consequências desastrosas em mãos erradas. Samuel agora a possui e você sabe o que ele pode fazer com ela agora?
- Não faço ideia, senhor.
- E você confia nele o bastante para que possamos ficar tranquilos? Porque eu não confio nenhum pouco. – ele disse, fazendo uma careta reprovadora em seguida.
- O Samuel mudou, ele fez isso porque queria o bem da minha protegida. – ponderei, mas ele não levou muito a sério meu comentário.
- Não creio que um anjo da morte possa querer o bem das pessoas. Eles podem ser criaturas terríveis. Mentem, enganam, usam as pessoas apenas para conseguir o que querem. Eu julgava você mais inteligente que isso, . E você me decepciona cada vez mais. – ele balançou a cabeça em desaprovação. – Além de fazer essa loucura, você ainda a traz aqui novamente, mesmo sabendo que humanos não podem vir em vida. Está quebrando regra após regra. Você perdeu completamente o controle da situação e eu só tenho uma coisa a fazer...
- Eu posso explicar! Só queria que ela entendesse... – tentei contornar a situação, mas ele estava irredutível.
- Ela não precisaria entender nada se você fizesse apenas o que devia. Você está se desviando de seu caminho, protetor. Mas eu tenho uma solução. É drástica, porém eficaz. Você está proibido de fazer qualquer tipo de contato com ela. Passará a seguir à risca todas as regras, sem nenhuma outra transgressão, ou as consequências serão realmente trágicas. Estamos entendidos? – ele perguntou, mas eu não conseguia responder. A única coisa que se passava pela minha cabeça era a sua frase: “Você está proibido de fazer qualquer tipo de contato com ela.”. Eu não era capaz de passar nenhum um minuto longe dela, como eu poderia não ter nenhum contato com ela? Isso era impossível. – ! – ele disse mais alto, chamando minha atenção. – Estamos entendidos?
- Senhor, eu simplesmente não consigo ficar longe dela. – confessei, sentindo o peso de minhas palavras. Ele me olhou com mais atenção, como se estivesse me estudando. E, como se visse algo diferente e poderoso, se afastou repentinamente. – Não é algo possível.
- Então torne possível. – ele disse, desaparecendo em seguida diante dos meus olhos. Então, pela primeira vez eu me senti completamente sozinho. Era como se nada me prendesse a esse ou a qualquer outro mundo. Como se eu dependesse da presença dela para viver ou para apenas ser real. Sem ela eu era apenas um espírito vagando pelo mundo. Sem direção, rumo, ponto de partida ou chegada. Afinal ela era tudo isso para mim.
- Parece que é difícil de fazer você entender o que é “tente não fazer nada de errado”. – disse Samuel, aparecendo assim que Miguel desaparecera, fazendo menção ao aviso que me dera na última vez que nos encontramos – É claro que você tinha que trazê-la aqui novamente, não é? Eu lhe disse que ela não podia ter consciência do que aconteceu, que tinha que pensar que era um sonho. – ele suspirou – Você não pode deixar que a vida pessoal dela influencie em seus atos.
- Nada influencia em meus atos, Samuel.
- Não parece. – ele riu baixo – Eu conheço os sinais, . Eu sei o que tá se passando na sua cabeça, porque eu já passei por isso.
- Não tem nada passando em minha cabeça agora, nada! – esbravejei, recebendo um olhar assustado em resposta. Senti como se o meu corpo todo ficasse mais quente, parecendo que eu estava a ponto de explodir ou perder completamente o controle. Eu não deveria descontar minha infelicidade nele, na verdade eu não deveria descontar em ninguém, pois fui eu o culpado – Me desculpe.
- , agora você terá que manter sua cabeça livre de pensamentos estúpidos. Eu sei o quanto é doloroso ficar longe dela. Eu estou longe da Alane há anos e a dor nunca cessou.
- Não faça comparações, não dê sua opinião. – fui grosso novamente – Miguel disse que eu não deveria confiar em você. Que agora você tem uma parte da minha alma e pode fazer qualquer coisa com ela.
- E você acredita? Concorda com os seus julgamentos? Porque por causa dele você está proibido de se aproximar de seu afecto, e não por minha causa. Eu te ajudei, te orientei, contei coisas sobre a minha vida que poderiam de ajudar e é assim que você me retribui? Esperava um pouco mais de você.
- Todos ficam falando a mesma coisa e eu não aguento mais. Eu não posso ser culpado pelas coisas que vocês acreditam ou esperam de mim. Vocês me subestimam e eu fico com a culpa.
- Eu sei o que espero de você e não é nada além do que pode fazer. Se você está chateado porque não pode ficar com ela e tem alguém que pode, não é porque eu quero.
- Do que você está falando, Samuel? – perguntei confuso.
- Você só a trouxe aqui mais uma vez para ela ver que quem salvou a vida dela. E isso tudo porque tem um garoto...
- Não é nada disso, você está imaginando coisas. – respondi, tentando assimilar a quantidade de absurdos que ele poderia dizer em tão pouco tempo.
- Não? Então por que você a trouxe aqui? Por que você mostrou o que fez? – ele indagou, mostrando sua expressão superior, aquela que ele assume quando sabe que está certo. E para piorar a situação, eu não tinha resposta. Só de ver aquele menino próximo dela, fazendo com que ela se sentisse bem de uma forma que eu não conseguia, aquilo me matou por dentro. Eu sentia vontade de separá-los, levá-la para um lugar onde ele nunca a encontraria.
- É a forma que ele a toca, Samuel. – confessei, encarando o chão – Eu salvei a vida dela e era ele que estava lá no meu lugar. Tocando seu rosto, fazendo-a sorrir...
- ... – ele disse, esperando que eu o olhasse – Eu disse que viria quando efeitos colaterais aparecessem, mas não sabia que seria tão rápido. – ele se aproximou, ficando à minha frente. – Eu sei o que você está sentindo e o quão confuso é, mas com o passar do tempo tudo começa a fazer sentido.
- O que é isso? Essa confusão de sentimentos que eu não conheço? Eu não consigo lidar com isso. Estava acostumado a não sentir nada e agora é o contrário, eu sinto tudo. Como se a minha cabeça não comportasse isso e eu me visse obrigado a liberar tudo de uma vez.
- Quando você deu parte de sua alma, você se tornou vulnerável aos sentimentos humanos. Agora eles não passam despercebidos, você consegue senti-los e, às vezes, com mais intensidade que os próprios humanos. E sinto informar, mas é apenas o início, tudo tende a piorar.
- Ah! Muito reconfortante saber dessa última parte. – comentei sarcasticamente.
- Nossa mente não está apta a receber esse tipo de informação, então se você ficar confuso é completamente normal. Só que você tem que aprender a lidar com isso, tem aprender a controlar o que você sente antes que seja tarde demais.
- Tarde demais para quê? – perguntei, confuso novamente.
- Não vou te dar ideias ou possibilidades. – ele respondeu, rindo levemente – Fique longe dela e tente controlar o que sente. Por favor, faça o possível e o impossível para ficar longe. Eu não quero que você termine como eu. É melhor tê-la por perto, mesmo que sem nenhum contato direto, do que não poder ver nem mesmo seu rosto.
- Isso que eu estou sentindo agora é reflexo desses sentimentos que me dominam?
- Possivelmente. A raiva é um sentimento comum, qualquer coisa pode tirar alguém do sério. Uma palavra, uma ação. No nosso caso foi algo que eu disse num mau momento, confesso. Se bem que eu gosto de estar por perto nas primeiras vezes, é engraçado. – ele riu, mas eu não o acompanhei.
- E essa necessidade de tirá-la de perto dele? Por que eu não consigo aceitar? É estranho, como se meu coração pesasse e um bolo se formasse em minha garganta. Eu quero gritar com ele... – fechei as mãos em punho, tentando me controlar – Eu o quero longe dela.
- Isso, meu caro, é o ciúme. Um dos mais comuns e simples sentimentos. – ele disse, com um sorriso singelo no rosto. Mas não havia nada de simples no que eu sentia. Era um turbilhão de coisas passando em minha cabeça ao mesmo tempo, algo como perda, diminuição, troca. Como se eu não fosse mais necessário para a por causa desse garoto, como se ele estivesse roubando meu lugar. Enfim, nada comum e muito menos simples.
- Ciúme? Como eu posso sentir ciúme? Ela não é nada minha, não penso nela desse jeito... Romântico, Samuel.
- As pessoas podem sentir ciúme dos amigos, familiares, . Não é obrigatório que se tenha algum tipo de envolvimento físico ou amoroso. – ele ponderou, olhando para frente.
- Você seria sincero se eu te perguntasse uma coisa?
- Claro. – ele disse, apoiando-se à parede e me encarando com intensidade.
- Eu realmente posso confiar em você? – disse rápido, antes que eu mesmo pudesse me impedir.
- Não é como se você tivesse muitas escolhas. – ele se endireitou, rumando para a saída.
- Espere, eu não tomei minha decisão. – eu disse, indo até ele – Mas dependendo do que eu escolha, sofrerei consequências muito drásticas?
- O problema não é com quem você se mistura, o problema é o que você faz. Independente de estar do meu lado e confiando em mim, você ainda será você, um protetor.
- Tudo bem, mas eu preciso fazer uma coisa. – ponderei. Ele apertou os olhos, pensando e esperando – Preciso vê-la mais uma vez.
’s POV
Me encarei em frente ao espelho, prestando atenção na marca que havia surgido entre meus seios. Aquela sensação tinha sido altamente estranha para ser apenas lembranças de um sonho. Tornei a passar o dedo sobre a marca e nada acontecia. Por quê? Era a única coisa que passava pela minha cabeça. Até umas horas atrás, eu pensava que aquilo era coisa da minha cabeça, não tinha nenhuma chance de eu ter machucado a mão daquela forma e não ter percebido. Não há uma explicação plausível para a marca. Eu só lembro-me de ter encontrado com o antes de aparecer. Mas como ele poderia causar isso? Ele não era real, não a esse ponto. E mesmo que fosse, por que ele faria algo que me machucasse? Não há explicação... Não há! Fechei os olhos, tentando lembrar as coisas que imaginei ter visto ontem enquanto me trocava. Nada parecia ser de verdade. O lugar era amplo demais, claro demais para existir. Mas de alguma maneira eu estive nesse lugar e voltei com duas marcas. Olhei para a existente em meu peito, tocando-a levemente. Nada aconteceu, a não ser algo como uma onda de calor invadindo meu quarto e fazendo com que meus pelos se eriçarem. Fechei os olhos, inspirando o doce perfume que agora inebriava o ambiente. Era um aroma relaxante, acolhedor e conhecido. Mantive os olhos fechados até ouvir sua voz doce ecoar pelo ambiente. Porém, ao invés disso, ouvi sua respiração leve em algum lugar por perto. Abri os olhos, procurando por ele e o encontrei apoiado perto da janela. O sorriso que eu esperava não estava lá, o que foi decepcionante. Eu queria sentar e contar tudo para ele, deixá-lo a par do que estava acontecendo comigo ultimamente, mas sem realmente saber porque, eu não conseguia falar sobre o Taylor com ele. Talvez com medo de sua reação. O que, provavelmente, era uma preocupação boba. Com um leve sorriso nos lábios, eu me aproximei, esperando a mesma reação em resposta. Coisa que não aconteceu.
- O que foi, ? – perguntei baixo. E então ele me olhou nos olhos pela primeira vez. Aquele brilho intenso que eu me recordava se fora, era como se existisse uma nuvem escura pairando sobre seus lindos olhos . Olhos que eu reconheceria em qualquer lugar, a qualquer momento.
- Eu tenho uma coisa a fazer. – ele respondeu, com sua voz num tom triste.
- Aparentemente não é algo bom. – murmurei e ele acenou a cabeça, confirmando. Ele me olhou nos olhos novamente, mas de forma mais invasiva, como ele nunca tinha feito. Não me senti mal ou ofendida com isso, era como se não houvesse mais coisas para ele descobrir sobre mim. Eu sempre fui e sempre serei um livro aberto com ele. Excetos pelos capítulos que abordam o Taylor. Ele continuava me encarando, como se medisse ou estivesse se decidindo como começaria. Confesso que toda aquela espera me deixava nervosa e meu sexto sentido gritava, como se algo ruim estivesse para acontecer.
- Eu estou indo embora. – ele finalmente falou. Meu sorriso vacilou e desapareceu. Ele estava indo embora? Como isso é possível?
- C-como? – gaguejei.
- Sempre há aquele momento em que percebemos que não somos mais úteis e ele chegou para mim.
- Como você não é mais útil? Quem te disse isso? Não é verdade! – disse apressada, me aproximando mais. Ele se contraiu com minha aproximação, o que me fez recuar.
- Você precisa aceitar, , afinal, foi você que tornou isso possível. – ele disse com tamanha dificuldade, como se aquilo o matasse por dentro.
- Eu? – perguntei assustada, procurando motivos que pudessem comprovar que ele falava e minha mente me levou automaticamente para Taylor. Era óbvio, ele era a causa disso tudo – Se isso é por causa do...
- Não precisa se explicar. – ele murmurou e sorriu pela primeira vez – Nós somos necessários quando vocês estão com dificuldades, carentes de atenção, amigos ou companhia. Contudo, o momento agora é outro, você, finalmente, encontrou alguém real, de carne e osso. Para que perder tempo com alguém como eu?
- , não. Você esteve comigo nos piores momentos, sempre foi meu amigo. E o fato de eu ter ou não alguém real nunca foi motivo de nada. Eu sempre tive minhas amigas e isso não te impedia de estar ao meu lado. – rebati, tentando encontrar alguma brecha em seu discurso.
- Agora é diferente. Ele ocupa um lugar específico e não tem mais espaço para nós dois. Nós, de fato, temos a mesma função, mas ele é real, . Ele pode te confortar, te abraçar. Eu sou apenas...
- O melhor amigo que já tive em toda a minha vida? – dei uma opção. Ele sorriu abertamente, estendendo sua mão. Entrelacei nossos dedos e senti o calor de sua pele. Com o meu toque, era como se ele passasse a emitir uma luz muito intensa. Literalmente, brilhava mais do que qualquer pessoa.
- É para isso que eu existo, suprir as necessidades até que alguém apareça. – ele explicou, trazendo nossas mãos unidas para perto do seu peito. Era estranho não sentir um coração batendo, isso tornava mais difícil acreditar em tudo que eu estava vivendo. Encarei seu tronco exposto e a marca idêntica à minha reluzia fortemente. Estiquei minha mão livre, tocando a cicatriz. No mesmo momento sua luz se tornou tão intensa, que eu não conseguia manter meus olhos abertos. Me senti plena quando ela me atingiu, como se servisse de anestésico e retirasse de minha mente todos os meus problemas e complicações.
- Como vou viver sem você por perto para fazer isso quando eu precisar? – sussurrei, ainda de olhos fechados. Senti um toque suave perto dos meus olhos. Até aquele instante eu não tinha percebido que estava chorando. – Por que eu tenho imaginado coisas absurdas? Estou com medo de estar louca, ninguém acredita em mim.
- Não são coisas absurdas e nem nunca serão. – ele pareceu ofendido – Basta que você acredite, somente você. Afinal, é a única pessoa que realmente importa.
- Eu tento, mas é difícil, . Me explique então, o que foi aquilo que eu vi? Por que eu estava flutuando e você ajoelhado ao meu lado?
- Você deve ter visto algo que te impressionou, não se deixe levar por essas coisas. São sonhos. – ele disse baixo, com sua voz suave e cadenciada.
- Foi real demais para ser um sonho. Eu senti tudo.
- Sentiu tudo como está sentindo agora? Como você pode ter certeza que não está sonhando novamente? – ele questionou, com um sorriso bobo nos lábios.
- Não tente me confundir. – pedi.
- Eu nunca fiz e nem farei isso. Todas as respostas que você precisa estão debaixo de seus olhos, basta você entendê-las.
- Eu não quero entender, não quero que você vá... Não quero ficar sozinha. – pedi, quase suplicante.
- Você não estará sozinha.
- Se é por causa do Taylor, não precisa se preocupar, ele vai embora, ele vai para a faculdade... Acabou, .
- Não é por ele, não é a pessoa dele, e sim o que ele significa. Se por acaso ele sair de sua vida, outro aparecerá. – ele ponderou, tentando me fazer desistir.
- Mas... – eu comecei a falar, quando ele me interrompeu, olhando diretamente em meus olhos.
- Quando você se sentir sozinha, faça o seguinte: – ele soltou nossas mãos e pegou a que tinha a marca. Passou seu dedo por toda a extensão da mesma e o resultado foi completamente diferente do anterior. O que antes se tornou quase congelado, estava quase fervente. Mas o calor era a agradável, como quando os raios do sol tocam a sua pele depois de muito tempo num lugar frio. Era revigorante. No fim do curto trajeto de , a cicatriz assumiu um leve brilho – Busque refúgio num lugar que você saiba que é nosso. Não importa quando, não importa onde, eu estarei lá de alguma forma.
- Para sempre?
- Para todo o sempre. – ele disse, se aproximando e encostando seus lábios levemente em minha testa. Fechei os olhos, para aproveitar ainda mais do momento. Não senti o que normalmente sentiria, era como todas as minhas terminações nervosas entrassem em colapso ao mesmo tempo e me impedissem de dizer algo concreto. Agora as lágrimas desciam com vontade e eu não as impedia – Adeus, minha pequena.
Abri os olhos, mas ele não estava mais lá. A única coisa que comprovava que ele realmente esteve lá e que tudo, infelizmente, foi real, era os resquícios de sua forte e brilhante luz. Inspirei, sentindo que o seu perfume ainda estava no ambiente, fraco, porém ainda presente. Coberta por sua luz e inebriada com seu perfume, não tive outra opção a não ser murmurar alguma coisa, enquanto via sua luz se esvair aos poucos.
- Adeus, meu .
Quatro meses depois…
Apertei os olhos para atravessar a rua, pois o sol estava praticamente me cegando. Segui pela calçada coberta pela sombra dos prédios e andei o mais rápido que conseguia até o hospital.
Hoje era dia de mais uma consulta com o Peter e ele me mostraria os resultados dos últimos exames. Nós fazemos um acompanhamento de seis em seis meses, para ver se meus problemas estão estáveis ou se teve alguma piora, porque eu nunca tive nenhuma melhora, as coisas só tendiam a piorar para o meu lado. Virei mais uma esquina e já consegui enxergar o grande hospital no final da rua. Continuei meu caminho, desviando das pessoas que atravessavam meu caminho. Hoje a rua estava bem movimentada, diversas pessoas com câmeras fotográficas e aquela expressão de encantamento no rosto. Londres sempre vive lotada de turistas, mas parece que hoje ela está especialmente cheia. Fico imaginando como deve ser visitar outro país, encarar outro povo, outra cultura. Deve ser encantador. Sempre tive esse desejo de viajar pelo mundo, conhecer a maior quantidade de lugares possíveis, desde os mais clichês como Paris, Nova York e Roma, até os mais diferentes como Uganda, Malásia e, sei lá, o Suriname. Só sei que eu sinto essa necessidade de sair um pouco de casa, do lugar seguro perto da minha mãe. Nada contra ela, mas é como se eu nunca tivesse vivido. Sempre sob os olhares atentos dela, do Peter e até mesmo do Joe, Gabbie e Nate.
Eles não eram os mais paranoicos, mas sempre estavam lá, me vigiando para que eu não fizesse nada impróprio. Bem, como se eu não soubesse das minhas limitações. Eu sei que pareço uma criança pensando essas coisas, mas quem nunca quis fazer loucuras? Eu faço dezoito anos ano que vem, estou prestes a me formar, logo vem a faculdade, e depois? Serei a anormal, aquela que não participa de nada, que não sai, não se diverte, não namora... Namorar. Essa palavra me faz lembrar o Taylor. O quão estranho é o fato de eu não pensar nele ou sentir uma imensa dor pelo nosso término? Sei que já se passou um tempo, mas eu canso de ver na escola a reação das meninas quando o namorado termina com elas. Parece que o mundo acabou, que elas não tem mais motivos para viver e comigo não foi nada desse tipo. Sim, eu fiquei triste, mas foi algo totalmente suportável. Será que o meu coração é tão danificado ao ponto de eu não poder sentir essas emoções como elas devem ser sentidas? Eu sei que o coração não cuida disso, era apenas uma brincadeira.
Tá, eu não estava falando de namorados, de viagens, liberdade e do meu futuro, certo? Então, o começo desse futuro é agora, com mais uma bateria de exames e seus resultados. São eles que determinam tudo. Eu estou aqui planejando diversas coisas e na verdade eu posso morrer antes mesmo de terminar o colégio. Eu vivo na corda bamba, como dizem. Quem sabe quanto tempo eu ainda tenho?
Assim que saí do elevador, avistei Bernadette sentada na recepção. Assim que a mesma me viu, abriu um sorriso e já se levantou.
- Será que você continua crescendo ou sou eu que estou encolhendo? – ela murmurou, enquanto me abraçava. Ela sempre foi um amor comigo, talvez fosse assim com todos os pacientes, nunca pude testemunhar. Quando eu era mais nova, sempre era recepcionada com um chocolate ou algumas balas. Peter dizia que ela me faria trocar um cardiologista por um dentista. Confesso que sempre torci por isso, afinal, uma dor de dente não mata, certo?
- Acho que eu dei uma crescida nos últimos meses mesmo. – sorri.
- Aguarde só um minuto que eu já vou avisá-lo que você está aqui, ok?
- Ok. – respondi, sentando numa das cadeiras. Olhei as outras pessoas que estavam na sala, diversas crianças com as mães ou os pais. Aquilo que entristecia, não gostava de ver crianças doentes, ainda mais tendo a mesma coisa que eu, porque eu sei bem como é duro passar por tudo isso. Sei o quanto é difícil ser uma criança diferente, cheia de proibições. Mas nada pode ser perfeito, certo? Uma menina que estava do outro lado da sala, bem à minha frente, estava me olhando de forma curiosa. Seu olhar confuso contrastava com o sorriso largo que ela mantinha nos lábios, bem, tão largo quanto a máscara de oxigênio que ela usava permitia. Ela acenou levemente e eu retribuí o gesto. Aquilo partia o meu coração. Eu me via naquela menina. Em todas elas.
Entrei na sala e encontrei Peter sentado em sua mesa. Ele encarava, de cenho franzido, alguns papeis em suas mãos. Sem muito alarde, caminhei até a mesa e sentei em uma das cadeiras dispostas à frente da mesma. Observei, pela milésima vez, os diplomas na parede à minha frente. Eram tantos. Diplomas, certificados de presença em congressos, simpósios... Peter era bem instruído, por assim dizer. Ele me olhou pelo canto dos olhos e sorriu rapidamente, como se estivesse demonstrando que sabia que eu estava ali. Com a expressão confusa, ele depositou as folhas ao lado e me encarou, apoiando os cotovelos na mesa.
- E então, quanto tempo eu tenho de vida? – perguntei, tentando descontrair o ambiente, porém sem sucesso, ele se limitou a rolar os olhos.
- Eu espero que muito. – Peter respondeu, retirando os óculos e coçando os olhos. – Digamos que os seus resultados estão diferente.
- Diferentes como? – me apressei em falar, complemente confusa.
- Eu queria saber te explicar, . Eu realmente queria, mas nem eu entendi o que aconteceu. – ele disse, voltando a apoiar os cotovelos na mesa. Ele inclinou o corpo para frente e se aproximou. – É como se o seu corpo estivesse se curando.
- Se curando? – perguntei alarmada. Como assim eu estava me curando? Isso não é possível, o Peter mesmo disse antes. Minha doença é algo crônico, não é redutível e nem curável, não adiantaria nem uma cirurgia. Talvez um transplante de coração, mas isso não resolveria o problema dos pulmões. – Quer dizer que o meu corpo está, sei lá, se regenerando?
- Não se regenerando, porque as lesões continuam as mesmas, não houve mudança. A única coisa que se alterou foi o funcionamento dos seus pulmões e do seu coração. Parece que depois de anos, eles aprenderam a funcionar mesmo com os problemas, coisa que não é possível. O problema do seu coração não é passível de uma cura espontânea, uma válvula mitral não vai, simplesmente, se desenvolver.
- E isso é ruim? Porque você não está muito contente...
- Não! Isso é maravilhoso, querida. É que eu nunca tinha visto nada como isso, em todos os meus anos de profissão. Eu só estou confuso. – ele sorriu de lado. – Mas isso não garante que você não deva se policiar. Não é porque tivemos uma melhora, que vamos aprontar, certo?
- Certo, mas eu ainda não entendi, Peter. Você usa esses termos e eu não entendo nada. – falei, sincera. Ele sempre falou um monte de coisas e eu não entendia quase nada, apenas um fato que é corriqueiro: eu ainda estava doente, como sempre. Mas hoje ele vem com essa bomba, fala que eu estou me curando, usa diversos termos médicos e ainda espera que eu entenda? Estou nervosa demais para entender qualquer coisa.
- Ok. No coração humano nós temos divisões importantes, os átrios e os ventrículos, certo? Então, os do lado direito são responsáveis por bombear o sangue venoso, aquele pobre em oxigênio até os pulmões para que ele seja, tipo reabastecido. Depois esse sangue oxigenado segue pelas artérias até o lado esquerdo do coração, onde ele bombeia esse sangue para o restante do corpo. A válvula mitral controla a quantidade de sangue oxigenado que passa do átrio para o ventrículo e a sua tem uma má formação, então o fluxo de sangue não é controlado, ele pode tanto ser intenso, quanto lento. – ele respirou fundo, balançando a cabeça, como se ainda quisesse acreditar no que ia dizer. – E essa má formação não é “autocurável” por assim dizer, é passível de cirurgia, mas nós sempre tememos que você não aguentasse, porque, se não bastasse isso, você também tem o problema no pulmão. Você não absorve a quantidade normal de oxigênio e te submeter a uma cirurgia sempre foi considerado de alto risco. Mas nesses últimos exames foi comprovado que você teve uma melhora tanto na absorção de oxigênio pelo pulmão, quanto no controle de bombeamento. E sem nenhuma intervenção médica. Eu nunca vi isso.
- Então eu sou um caso isolado? – perguntei, ainda incerta e sem acreditar muito no que eu tinha ouvido.
- ... – ele riu, suspirando pesadamente em seguida. – Não diria isolado, diria raro, quase único.
- Peter, eu não sei o que dizer. – respondi, ainda tentando entender o que ele havia falado. – Mas sei que eu não quero que você conte pra ninguém, nem pra minha mãe. Preciso de um tempo para absorver isso e não quero dar falsas esperanças pra ela, vai que no próximo exame tudo volte ao normal...
- Eu entendo e vou te respeitar, é uma atitude muito madura. – ele sorriu de lado, deixando que algumas rugas surgissem no canto dos seus olhos.
Meu corpo se recuperou de alguma forma e eu, realmente, não tive mais problemas. Contei a minha mãe e ao meu irmão a novidade e acho que eles ficaram mais felizes do que eu. Talvez fosse porque eles não precisariam mais se preocupar comigo a cada segundo, pensando se eu estava bem, se algo tinha acontecido. Eu sabia como isso era importante e pensava mais neles no que em mim.
O tempo foi passando, Nate e Joe foram para faculdade, depois foi a vez de Gabbie, até que chegou a minha hora. Eu estudaria perto de casa, como eles, mas passaria a maior parte do tempo na rua. Minha mãe já estava nervosa, ansiosa com o que poderia acontecer, mas já tinham se passado dois anos e eu não tive mais nada, estava bem e saudável. Também contei com a ajuda de Peter, que tentou deixar tudo claro para ela, por mais que não tivesse compreendido tudo, ela entendeu e me deixou seguir meu caminho. E agora estava mais fácil ter a ajuda dele, já que depois de tanto tempo, eles, finalmente, assumiram o que sentiam e se casaram, não no papel, porque teoricamente meus pais ainda eram casados. Foi uma cerimônia simples, apenas para a família, onde eu, Nate, Joe e Gabbie demos nossas bênçãos aos dois. Eles podem não ser casados aos olhos da justiça, mas estão casados para todos nós e isso basta.
A faculdade era um novo mundo, repleto de pessoas novas, experiências novas, o que poderia me ajudar a ser uma pessoa nova. Sempre vivi presa ao medo do que poderia acontecer, que sentia como se não tivesse sido capaz de viver a minha vida até aquele exato momento. Então era o momento de viver, apenas viver. Eu estava na faculdade há algumas semanas e teria uma festa para os novos alunos naquela noite. Estava frio e o tempo estava fechado, como se fosse chover muito, minha mãe disse para eu não ir, mas eu fui, porque já tinha dito que iria e também porque não fazia sentido deixar de sair só porque parecia que iria chover. Pedi que Nate fosse me buscar por volta das 23hs, assim eu não precisaria arrumar uma forma de voltar para casa e ele disse que tudo bem, que tinha aula cedo no outro dia, mas que ficaria acordado.
/)’s POV
Já tinha dois anos que eu tinha me afastado de e eu sentia como se cada dia fosse uma eternidade. Eu continuava como seu protetor, mas estava proibido de manter qualquer contato direto com ela, mas era difícil demais. Era difícil lidar com a vontade de ouvir sua voz dizendo meu nome, de ver o sorriso que se formava em seu rosto toda vez que me via, de sentir tudo o que só ela despertava em mim. Só que Samuel me alertou dos efeitos que eu poderia ter, mas mesmo longe dela, eu continuava a senti-los. O primeiro e mais forte era uma dor que me fazia sentir o peito apertado, que fazia com que ela não saísse da minha mente, até mesmo quando eu queria me manter afastado. Samuel me disse o que poderia ser: saudade. Mas não havia nada que eu pudesse fazer, eu tinha que manter minha promessa, só ficava mais difícil a cada dia. Principalmente quando eu a via em situações como as de hoje: sozinha, à noite, no frio e na chuva. Ela estava numa festa, seu irmão deveria vir buscá-la, mas ele pegou no sono em casa, não atende ao telefone e o celular está desligado. contava com a sua carona e não sabe como voltar para casa. Estava chovendo muito para ela caminhar até o metrô, mas estava ficando tarde para esperar. Então resolveu seguir para o metrô de uma vez, ficando completamente encharcada em poucos segundos. caminhava rapidamente, sem olhar muitos para os lados, apenas na intenção de chegar logo. Passei a acompanhá-la de perto e senti seu temor quando dois homens surgiram no começo na rua e a encararam de forma estranha enquanto ela passava. Seu caminhar se tornou mais apressado e ela entrou numa rua à esquerda para seguir para o seu destino, mas ao olhar para trás rapidamente, viu que os homens deram a volta e agora caminhavam em sua direção. O pânico tomou conta do seu corpo e ela sentiu suas pernas travarem. Eu não poderia apenas assistir toda aquela situação, não poderia me manter distante sabendo dos riscos que ela corria. Então apareci em sua frente, fazendo com que ela se assustasse e desse dois passos para trás, por puro reflexo. Só que poucos segundos depois me reconheceu, sua expressão se suavizou um pouco e ela estendeu a mão em minha direção, mas não conseguiu me tocar. Seu olhar se tornou confuso, mas antes que pudéssemos perder mais tempo, falei:
- Vem comigo. – Atravessamos a rua, parando embaixo de uma marquise, protegidos da chuva, parei em sua frente, cobrindo seu corpo com o meu. Sua respiração estava acelerada, descompassada, como se elai estivesse prestes a ter um ataque de pânico. Olhei em seus olhos e tentei acalmá-la, tentei demonstrar a ela que eu estava ali para protegê-la. – Preciso que você fique calma, em silêncio e confie em mim. Eles vão chegar em alguns segundos, mas eles não vão te ver. Eu estou aqui para te proteger.
Fechei os olhos no exato momento em que os homens viraram a esquina, eles percorreram alguns metros da rua, olhando para os lados, como se procurassem por . Pararam bem em frente onde estávamos, mas não nos viram, porque eu estava usando meus poderes para deixá-lo confusos, para fazê-los ver como se a rua estivesse vazia. Segundos depois, então, eles desistiram e voltaram pelo mesmo caminho que vieram. estava segurando a respiração por quase o tempo, mas depois ela se permitiu relaxar, suspirando levemente.
- . – sua voz doce me alarmou, fazendo com que eu abrisse os olhos e a encarasse. Ela estava me olhando de volta, com um misto de espanto e surpresa. – Você voltou...
- Eu não deveria estar aqui. – falei rapidamente, dando um passo para trás, mas ela me acompanhou, não deixando com que eu me afastasse.
- Não vai embora, por favor. – ela estendeu uma das mãos para me tocar, mas quando eu pensei que ela não conseguiria, eu senti o toque leve de seus dedos em meus braços. Um arrepio percorreu todo o meu corpo e acho que ela também sentiu. Ela não deveria conseguir me tocar, eu não deveria conseguir sentir, mas eu senti e... não sei como seria viver sem essa sensação novamente. – Eu posso te tocar? – disse, num misto de pergunta e exclamação.
- Eu não sei o que está acontecendo. – falei rápido, tentando me afastar, mas ainda sendo impedido. – Eu preciso ir, .
- , fica. – ela pediu, subindo a mão que segurava em braço pelo ombro, até chegar próximo ao pescoço. – Por favor. – sua voz estava baixa e suave, ela deu mais um passo em minha direção.
Senti a minha própria respiração falhar com a proximidade. olhou fundo em meus olhos e eu senti como se tivesse perdido, como se não soubesse quem era, ou melhor, o que era. Conforme ela se aproximava, eu pensei em como tudo aquilo era errado, como não deveria acontecer, mas eu não tinha forças para evitar, para detê-la. Afinal, eu não poderia parar algo que, na verdade, eu desejava há tanto tempo. E quando nossos lábios se tocaram, senti como se tivesse um fogo dentro de mim, como se um coração batesse dentro do meu peito, como se eu estivesse vivo. Eu poderia voar e não seria por causa das minhas asas, seria por todos os sentimentos eu estavam dentro de mim estarem, finalmente, sendo libertados. Eu estava leve. Eu estava bem. Eu estava feliz. Por alguns segundos eu deixei de pensar e agir como um protetor, deixei todos aqueles sentimentos que estavam presos dentro de mim saírem e pude me permitir a sentir alguma coisa, qualquer coisa. E era ela, era , a pessoa que despertava tudo em mim, o melhor e pior. Talvez agora eu pudesse, finalmente, entender o que Samuel sentia ao falar de Alane, poderia entender o que existia por trás daquele misto de sentimentos que ele tinha. Só podia ser amor. O mais puro dos sentimentos. Eu amava . Amava como protetor, desde que ela nasceu, mas agora não, era diferente. Era um sentimento que me dominava. Que me deixar sem poder pensar, me deixava sem rumo e sem escolhas. Não poderia ser seu protetor. Eu precisava dela, precisava ficar com ela.
Eu estava em pé no alto da torre mais alta de Londres. Tinha deixado em casa, ela acordaria em sua cama e pensaria que tudo não passou de sonho. Mas pra mim não seria, eu viveria com aquela lembrança eternamente. Eu sabia que aquele sentimento não morreria ou diminuiria, mesmo depois que me deixasse, eu ainda a amaria e teria que viver eternamente com a sensação de que não tinha feito tudo o que poderia. Estava fadado a ter uma vida igual a do Samuel e eu não poderia viver assim. Fechei os olhos pensando nas possibilidades e lembrei de Samuel, como ele tinha tentado fazer com que eles fossem iguais e se fossemos? Se fossemos humanos? Será que poderia me amar como eu a amo? Será que eu teria todas as lembranças? Será que eu teria as recordações de todos os momentos que tivemos? Talvez valesse o risco, não sei. Suspirei, encarando o céu, buscando por uma resposta. Apenas um sinal do que eu deveria fazer. Eu sabia que talvez fosse o final da linha para mim, Miguel nunca perdoaria um deslize como esse, provavelmente eu estaria condenado a ficar longe de para sempre e essa não era uma opção. Então eu não tinha muitas escolhas. O momento era decisivo, pela primeira vez, a vida dela dependia de mim, apenas de mim. E qualquer uma das duas escolhas que eu tinha, mudaria nossas vidas para sempre. Sim, nossas vidas. A minha vida, está entrelaçada a dela, de tal forma que se tornou impossível separar, assim como esse sentimento que eu carrego em meu peito. Não é permitido, não é correto, não é aceitável. Mas se tornou inevitável. Agora eu entendo porque os humanos fazem tantas loucuras por amor, agora eu entendo o que é amar alguém. Depois de muito tempo entendendo os sentimentos através de outras pessoas, sentir por mim mesmo é indescritível, é uma sensação que me faz sentir como se eu estivesse vivo. É exatamente assim que ela faz eu me sentir: Vivo! Ela é a minha vida. Os papéis foram invertidos, ela sempre precisou de mim, mas agora, eu preciso dela mais do que qualquer outra coisa. Eu abriria mão de tudo o que tenho, de tudo o que sou. Eu pertenço a ela. Eu pertenço a ela antes mesmo dela existir. Respirei fundo, com um sorriso sincero nos lábios, pensando:
“Eu entrego minhas asas.”
Deixei meu corpo tombar e conforme eu caia, a única imagem que se passava em minha mente era e, mesmo sem saber o que aconteceria comigo a seguir, rezava para que eu a encontrasse, de alguma forma.
Abri os olhos lentamente, estranhando a maciez da superfície onde estava deitado, e encarei um teto branco. Pisquei algumas vezes para tentar clarear a mente, mas tudo ainda parecia muito confuso. Olhei ao redor, não reconhecendo nada naquele quarto, desde as paredes verdes, até os troféus que estavam alinhados, lado a lado, numa prateleira ao lado da porta. Bem, talvez eu conhecesse aqueles troféus. Forcei a memória, tentando lembrar alguma coisa, qualquer coisa, mas não vinha nenhuma lembrança completa, apenas flashs que surgiam e depois pareciam ser reais. Como os próprios troféus, num primeiro instante, eu não os reconheci, mas olhando novamente, eram como se a lembrança de cada um fosse adicionada na minha mente e eu ia lembrando conforme olhava para cada um. O primeiro era do campeonato estadual de basquete da escola onde estudei no ensino médio, que ganhei no primeiro ano. Disso eu me lembrava, mas não lembrava o nome do colégio. Fechei os olhos fortemente, passando a mão pela cabeça, tentando entender o que estava acontecendo comigo. Aquele lugar era o meu quarto, algo me dizia isso. Mas por que eu não tinha certeza de nada de imediato? A única que eu tinha certeza era que meu nome é e o restante, bem, eu não sabia. Encarei as mãos por um instante, vendo uma pequena marca irregular na palma da mão direita, perto do dedão. Era como uma cicatriz, mas por mais que eu forçasse a memória, não conseguia lembrar como tinha conseguido.
- . – ouvi uma mulher bater na porta. Não reconheci sua voz, mas eu sentia que deveria saber quem era. – Meu bem, vai perder a hora da aula. – algo em minha mente disse que ela era minha mãe. E de repente fui inundado de recordações: nós dois em aniversários, momentos simples, consegui ouvir sua risada, ver exatamente como era o seu rosto e, de repente, eu sentia que realmente a conhecia por toda a minha vida. – , levanta, vai se atrasar para a faculdade. – ouvi novamente a sua voz e quando ela falou “faculdade”, foi como se várias memórias surgissem em flash em minha cabeça novamente: eu com meus amigos, dormindo numa aula, comemorando uma aprovação, vestindo o um jaleco... Eu fazia medicina? Olhei rapidamente para o lado, vendo uma montanha de livros que confirmavam minha suspeita. Talvez eu tivesse tido um sonho estranho e acordado confuso. Ou bebido muito na noite anterior. Será que eu costumava beber? Só sei que nada parecia normal, era como se eu estivesse aprendendo ou reaprendendo tudo sobre a minha própria vida.
- ... – minha mãe abriu a porta e colocou a cabeça para dentro do quarto. Assim que olhou em minha direção, ela sorriu de forma calorosa. Algo dentro de mim de acendeu. Eu a amava, ela era minha mãe. – Querido, a aula. Você comentou ontem que tinha uma prova importante hoje.
- Eu já vou. – falei, me levantando rapidamente. Caminhei até onde ela estava e parei bem na sua frente. Minha mãe me olhou com a expressão curiosa, com um sorriso no canto dos lábios. Eu apenas me aproximei, passando os braços ao redor do seu corpo e a abraçando bem forte. Percebi que ela sorriu, me abraçando de volta e dando um beijo em minha testa.
Caminhei rapidamente pelo corredor da faculdade. Estava perto da hora da minha prova, eu não lembrava exatamente sobre o que era a matéria, mas esperava que viesse a mim em forma de lembrança repentina também, assim como todas as outras coisas. Estava procurando a sala, coisa que sabia que não precisaria se estivesse com a cabeça em ordem, mas eu não estava, infelizmente. Então seguia olhando a numeração, sem prestar atenção nas pessoas à minha frente. Até que eu esbarrei em alguém e senti várias coisas caindo aos meus pés. Suspirei, reclamando da minha falta de atenção. Me abaixei para ajudar a menina que agora recolhia seus livros do chão. Mas ao estendermos o braço para alcançar o último que restava, nossas mãos se esbarraram e eu senti uma onda de calor percorrer o meu corpo. A menina também deve ter sentido, porque levantou a cabeça rapidamente em minha direção. Seus olhos encontraram os meus e então aconteceu. Não eram apenas memórias vagas, pareciam lembranças de outra vida, estavam pálidas, nubladas, nada parecia ser real, ou ter acontecido. Mas ela estava lá, em cada uma delas. Desde um bebê recém-nascido no hospital, uma menina correndo pela escola ou servindo um chá imaginário para alguém. Nós dois nadando numa praia ou conversando num quarto. Mas a memória mais viva, a que ficou marcada em minha mente, éramos nós dois nos beijando. Não sei quando aquilo aconteceu. Não sei nem mesmo se aconteceu. Mas algo dentro de mim parecia se tornar completo agora.
- ? – sua voz soou incerta, como se ela também não tivesse certeza do que tinha acabado de acontecer. Era como se, ao mesmo tempo, eu tivesse a sensação que não a conhecia, mas também tivesse a certeza que conhecia.
- ? – ouvi minha própria voz dizer seu nome e quando ouviu, seu olhar se iluminou. Ela piscou brevemente e se colocou de pé. Imitei seu gesto, parando bem à sua frente. Sei que pode soar estranho, mas eu não fazia ideia de quem ela era ou de como sabia o seu nome. Mas no fundo, pela forma que o meu coração batia só de olhar em seus olhos, era como se eu a conhecesse a vida toda.
Fim.
Nota da autora: Eu escrevi essa fic ANOS atrás, ela era uma long que eu parei de escrever e eu sempre imaginei a cena onde eles se encontravam e se beijavam ao som de I'm With You. Podem falar que a fic não tem nada a ver com a música? Podem, mas pra mim fez muito sentido. Choices, né? HAHAHA
Até a próxima.
Beijo da That.
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Até a próxima.
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