01.
Chega dezembro e as ruas da cidade começam a ficar ainda mais movimentadas. Junto com o último mês do ano, vêm os recessos e consequentemente as buscas incansáveis por presentes e ingredientes da ceia. Todo o caos contribuía muito para o comércio local. Enquanto muitos entravam de férias, null começava a sua temporada mais pesada no restaurante.
O que era para ser apenas um emprego de verão acabou por se tornar uma fonte importante de sustento. Os dias eram cansativos, mas não havia muita complicação, exceto quando algum consumidor cismava em implicar com detalhes irrelevantes. Depois que passou a cobrir também a parte do atendimento no restaurante, null entendeu que o cliente nem sempre tinha a razão.
Diante da porta de vidro, preparada para mais um dia de trabalho e menos um de vida, o primeiro estranhamento veio. A entrada estava trancada e não havia ninguém para recebê-la. Onde estaria Sebastião? Usou as falanges para dar alguns toques no vidro temperado, na esperança de que alguém a percebesse no lado de fora. Pela leve transparência, viu uma silhueta se aproximar.
— Ora, ora, ora... Está vivo, null? — disparou ao reconhecer a pessoa que tinha vindo ao seu resgate.
Aquela era a forma dela de cumprimentar pessoas as quais não via há um longo período de tempo.
— Bom dia para você também, null. Para a sua tristeza, estou bem vivo. — o homem respondeu sem esconder o sorriso, dando passagem para que a funcionária entrasse — Ficarei até o fim do ano julgando tudo o que você faz de errado.
null rolou os olhos, andando em linha reta diretamente para o banheiro dos funcionários para se arrumar.
— O que faz aqui? — questionou, andando para fora do cubículo ao mesmo tempo em que prendia os cabelos em um coque — A gente sabe que você evita pisar nesse solo sagrado a todo custo.
Apesar de o lugar ser patrimônio da família dele, a mulher estava realmente surpresa pela presença a mais. Enquanto o trabalho dela era fazer de tudo um pouco na empresa, null portava a única e vitalícia função de ser filho da chefe. Ele não precisava estar ali. Todos estavam cansados de ouvir Sarah, a mãe, narrar orgulhosa sobre como o filho era competente na empresa de tecnologia onde trabalhava e juntava vários mil reais todo mês.
Mais uma vez: ele não precisava estar ali.
— É essa visão que vocês têm da minha pessoa? Um alguém que renega as raízes?
— Vocês quem? — null surgiu da cozinha, posicionando algumas travessas no buffet — Eu nunca pensaria nada do tipo vindo de você, Poderoso Chefinho.
null null era outra parte importante do lugar. O bom humor e agilidade eram os pontos que a tornavam uma das contratadas mais antigas do quadro de trabalhadores. Criar laços com ela era sempre muito fácil.
— Poderoso Chefinho? — null ficou boquiaberto, enquanto null ficava levemente corada por prender a respiração pela audácia da amiga.
— null! — a quarta voz que se fez presente na conversa fez as funcionárias ficarem rígidas — Já não falei para descarregar as bebidas que chegaram ao invés de ficar descansando?
— Eu estava fazendo exatamente isso, mãe. — respondeu em um tom infantil e emburrado, que não condizia com sua real idade — Fui só abrir a porta para a null, já que vocês todos estavam metidos na cozinha.
— Não tenho certeza disso.
— Bom dia, Sarah! — null cumprimentou ao sentir os olhos de águia da chefe sobre si.
Sarah null era a atual e única proprietária do Aroma na Panela*. Um ícone e o verdadeiro significado de mulher forte e de sucesso aos olhos de null. A mãe de null sabia ser simpática, sem deixar a pose elegante de dona da porra toda. Ela também estava sempre bem vestida por camisas de cetim que se complementavam com saias lápis, mesmo sabendo que teria de colocar a mão na massa.
Antes de abrirem o restaurante para a entrada de clientes, Sarah sempre fazia questão de descer dos saltos para checar pessoalmente os pré-preparos em sua cozinha industrial. Quando alcançavam o horário de pico, vestia o chinelo e um avental para assumir alguma das praças do dia.
null quase que suspirava por ter uma chefe tão magnífica.
O filho, então, ela dispensava comentários.
— Bom dia, null. Vou precisar que você atualize o cardápio antes de abrirmos as portas. Depois disso, pode assumir a recepção. Sebastião não estará conosco essa semana. — pelo canto dos olhos, avistou null baixar a cabeça — null e null, vocês podem assumir o salão e as bebidas. E, null, quando sentir que o movimento diminuiu, pode se juntar ao dois no salão.
— Pode deixar, Sarah.
Dadas as instruções, a mulher mais velha se retirou, indo para o caixa conferir algumas notas recém-chegadas de fornecedores.
— Agora, vocês sabem que estou aqui por livre e espontânea pressão. — null falou, enfezado.
Quando finalizou todos os preparativos dos quais estava encarregada, null se permitiu descansar por uns instantes, juntando-se à fiel colega do Aroma na Panela.
— Daquele jeito já estava bom. — opinou por cima dos ombros de null, ao presenciá-la apagar as escritas no quadro de giz preto mais uma vez.
— Ainda não. O espaçamento entre as letras ficou péssimo!
— Os clientes não reparam nisso quando colocamos a placa na calçada, belezura. Estão mais preocupados com o preço.
— Mas meu perfeccionismo não deixa.
null deu os ombros.
— O que aconteceu com seu tio? — null finalmente conseguiu fazer a pergunta sem a presença dos chefes.
— Teve uma recaída com o álcool. — null desviou o olhar — Não estava em condições de trabalhar.
— Mentira! — null arregalou os olhos — Eu nem sabia que Sebastião era dependente. Amiga, eu estou passada.
— Ai, null! — null escondeu o rosto entre as mãos, sentindo-se péssima — Passada fiquei eu, de vergonha, quando ele chegou batendo na porta hoje, totalmente bêbado.
— O quê? Hoje?
— Um pouco antes de você chegar. — relatou cheia de tristeza — Ele é meu tio. — suspirou — Sarah ficou uma fera e o mandou para casa, de um táxi. Disse que estava dispensado pelo resto da semana.
— Que barra, null! Mas não fica assim, vamos tentar ser mais presentes e evitar isso na próxima vez.
— Estou com medo de não ter próxima vez. — confidenciou, mirando a amiga — Acha que Sarah o demitiria?
“Jamais”, null imaginou de prontidão. Contudo, não poderia responder pela null e acabar dando falsas projeções.
— Espero que não.
— É. — null forçou um sorriso — Eu também espero.
As duas mergulharam em um silêncio constrangedor. null não conseguia disfarçar a decepção com o tio. Temia que, depois desse episódio, Sarah a olhasse diferente, afinal eles eram parentes. Ao mesmo tempo, null desejava que qualquer coisa lhe viesse à mente para distrair a colega. Aos poucos, foi abrindo um sorriso malicioso, usando o cotovelo para cutucar a outra freneticamente.
— Ficou com o gostoso no turno de hoje, ein? Aproveite para tirar todas as casquinhas que sempre quis. — passou a língua pelos lábios em provocação, seguida de uma piscada de olho.
A admiração pelo filho de Sarah nunca foi um tópico omitido na amizade das duas. Por nunca ter acontecido nada, ambas se sentiam na liberdade de zombar uma da outra sempre que possível.
Felizmente, null parecia ter aceitado a isca para afastar o mal humor, mudando a expressão para um sorriso radiante instantaneamente.
— Aproveitaria as casquinhas, se ele não estivesse interessado em pegar você, desgraça.
— Ih, nem é! — null desviou o olhar.
A mudança de voz e postura repentina dela apenas confirmaram as suspeitas de null de que null queria null tanto quanto ele a ela. No entanto, a mulher insistia em fazer a linha de durona.
— Não sei como consegue viver assim, null! — null confessou em desaprovação — Se eu tivesse oportunidade, sentaria sem dó e nem guindaste tirava. — sonhou.
null riu pelo nariz, ainda descrente da coragem da outra de comentar aquelas coisas de forma tão aberta, sendo que o assunto estava logo ao lado.
Como se o simples ato de pensar nele fosse o suficiente, a figura de null se materializou diante delas de repente.
— Quem precisa de um guindaste? — null questionou confuso, ao escutar apenas o último pedaço da conversa.
— A null! — null prontamente respondeu, como uma criança dedo-duro.
No entanto, a mencionada não se acanhou em momento nenhum.
— Ao invés de falarmos sobre as minhas necessidades... Me permitiria fazer uma pergunta, null?
— Manda aí.
Sem pedir licença ou fazer cerimônias, o null se juntou a elas na mesa, ato que null reprovou internamente.
— Ela é hipotética, ok?
Nesse instante, null soube que precisaria ligar os sensores de perigo. Se existia algo que null não usava, além de pochetes, era o termo “limite” do vocabulário.
— Beleza, pode falar.
— O que pensa sobre uma relação entre patrão e funcionária? — um silêncio constrangedor a obrigou a limpar a garganta — Por exemplo, se uma de nós pedisse para ficar com você, aceitaria?
null pôde sentir uma pontinha de estresse subir e, em resposta, fechou os olhos com força, fazendo cara feia. Desejava poder dar um tapão na cabeça da infeliz que chamava de amiga, ou só ter uma bebida em mãos para dar um gole generoso e, em seguida, cuspir tudo na cara dela.
Faltava noção.
— Não sei o que opinar. — olhou furtivamente para a null, ato que null capturou — Se fosse alguém daqui, ainda não saberia opinar, porque eu não sou chefe de ninguém, não.
A mais audaciosa delas quis vibrar. A maneira indireta de null tirar o dele da reta havia a provado que null tinha um passe livre para ele, se quisesse. E, se não quisesse, null trataria de fazê-la querer.
— Bacana essa conversa, né? — null forçou um sorriso — Mas precisamos trabalhar. Andem logo! — foi a primeira a deixar a mesa.
null e null estavam estacados no fundo do restaurante, observando a movimentação enquanto não surgia mais serviço. O dever deles era entregar as bebidas prontas e tirar a mesa assim que os clientes fechassem a conta. Com a lotação máxima e aparentemente ninguém com pressa de sair, não restava coisa diferente para fazerem, senão aguardar.
Muito diferente deles, null começava a ficar cada vez mais ansiosa na porta do restaurante. Uma pequena fila de pessoas alinhadas à marquise, querendo entrar, se formava. Ninguém estava impaciente e mesmo assim a funcionária do Aroma na Panela se sentia pressionada. Aquilo era quase como os jogos online de restaurante que gostava quando era menor: não demoraria para a barrinha de paciência dos clientes chegar no vermelho e assim saírem xingando a organização aos quatro ventos. Quando isso acontecia, ela era quem ficava na linha de frente, sozinha, para receber as ofensas.
Com um olho na fila e outro dentro do salão, null tinha que ir fazendo as contas de quantas pessoas saíram para liberar a entrada dos próximos.
— Obrigada pela preferência! — agradeceu, abrindo passagem para um casal de saída — Até mais. — acenou freneticamente com a mão para em seguida se virar para os próximos da fila — Mesa para quantos? — indagou com o bloco de comandas na mão.
Dessa vez, era um grupo grande. Pareciam estar em família. Viu o homem se virar para trás para uma contagem rápida.
— Não se esqueça dos garotos que foram estacionar o carro. — a mulher murmurou, dando uma cutucada leve no braço do homem.
— Certo, certo... Mesa para oito.
null fez uma anotação rápida no papel e arrancou a folha do topo para entregar a eles.
— Perdão, como reconheço os garotos que ainda vão chegar? Apenas para liberar a entr...
— Não precisa mais, olha só eles vindo! — a mulher tornou a falar, atraindo a atenção deles para o outro lado da rua.
Sem ligar para a ausência da faixa de pedestres ou um sinaleiro, null arregalou os olhos ao acompanhar a dupla entrar no meio dos carros alinhados em sinal fechado. À medida que iam chegando mais perto, as pálpebras dela se esticavam ainda mais.
— Oh, ruazinha difícil para estacionar. — um deles reclamou.
No entanto, os olhos da null estavam no outro e, como se ele pudesse sentir a intensidade da ação dela, devolveu o olhar.
Nenhum dos dois disse nada. Não precisou. A maneira como estava sendo encarada deixou óbvio que o reconhecimento foi mútuo.
null, o ex-namorado mais cretino dela, estava de volta à cidade.
null simplesmente não conseguia trabalhar em paz. A consciência fazendo barulho para indicar que o homem que um dia tanto amou estava há poucos metros a deixava com tontura. O milagre do dia ela já havia feito ao continuar se sustentando em pé ao presenciar o desgraçado entrar, com a família, para comer.
O ódio apenas crescia quando a conversa que tiveram antes de romper o relacionamento era revivida na cabeça. O surto que tivera na última vez que estava bêbada não havia sido satisfatório o suficiente.
null era tudo para ela.
Agora, nada.
Aproveitando-se do próprio devaneio, os olhos traidores correram pelo salão para encontrar o lugar onde ele estaria sentado. Inesperadamente, os olhares se encontraram pela segunda vez. Flagrado, null apenas disfarçou desviando o olhar, forçando uma risada para algo que os pais haviam compartilhado na mesa.
Os pais dele. Aquilo era outro desaforo. Quando namoravam, null nunca chegou a conhecer os sogros. Chegava até a duvidar se um dia null contou a eles sobre ela.
Havia os conhecido e eles nem faziam ideia.
*O nome utilizado é inteiramente fictício. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
02.
Desde o dia anterior, null tinha reparado que as mulheres estavam agindo de maneira suspeita. Eram olhares desconfiados para cá, sussurros para lá e ele não conseguia se sentir menos traído. Achava que fazia parte do grupo e isso implicava em ter direitos para saber que porra estava se passando com elas.
— Hey, qual o motivo da null estar agindo tão estranha de repente?
null mordeu o lábio com a pergunta, por um instante, travando uma batalha interna consigo mesma sobre responder na lata ou pedir para que perguntasse diretamente para a fonte. Ao fim, concluiu que null não tinha pedido para tratar o tema como se fosse segredo de estado. Ciente disso e de que o filho da chefe lambia o chão por onde a amiga passava, ela achou que não implicaria em nada demais compartilhar:
— Sabe a família grande que acabou de chegar? Olha discretamente, por favor. — apontou com o queixo em direção à parte mais aberta do estabelecimento — Lá está um ex da null e sabe... — crispou os lábios — Eles não terminaram nada bem.
null só conseguiu escutar quieto.
— Eles foram um casal faz bastante tempo, mas acho que tem tanto ressentimento, que nenhum superou. Espero que ela não fique sabendo que te contei isso, mas as coisas terminaram tão feias que recentemente, quando estávamos tomando um porre em uma noite só de garotas, null ligou para o cara e começou a descer o pau.
Aquele lado da null era definitivamente um dos que ele nunca havia visto.
— Será que ele a reconheceu?
— Talvez... — null respondeu distraída — Olha como ela está lá na porta, toda inquieta, olhando para todos os lados, menos a bendita mesa da família. Agora, olha como ele também dá umas encaradas disfarçadas na direção dela... — narrava intrigada, quase roendo as unhas — Isso é uma novela ao vivo e ainda vai dar em alguma coisa.
O homem cruzou os braços, tentando enxergar a aura que null descrevia. Realmente, os olhares furtivos existiam, mas não implicava necessariamente que rolaria algo mais.
03.
Depois de duas idas ao restaurante com a família, null retornou todos os dias da semana seguinte, sozinho, para o desespero de null. Ele chegava, olhava para ela por um tempo, comia, encarava mais um pouco e ia embora para repetir tudo no dia seguinte.
— Ele está me testando, só pode ser! — a mulher praguejava entredentes.
— Sinto muito, null, não posso pedir para minha mãe vetar a entrada dele sem um motivo convincente.
Depois que descobrira que null havia aberto a belíssima da boca grande que tinha, só restou recrutar o filho de Sarah para ouvir seus chororôs de todos os dias.
— Jamais pediria uma coisa dessas, null. — encarou null — Acha que eu sou do tipo que não sabe lidar com as coisas?
null rolou os olhos, no meio dos dois. null estava sensível à beça por conta da aparição do ex-namorado. Com isso, acabava interpretando as coisas que falavam da maneira que bem queria, sem nem pensar um pouco, acarretando em várias discussões breves entre eles, que não levavam a lugar algum. Antes que outra briga desnecessária pudesse ser iniciada, null se intrometeu:
— Poderíamos derramar suco “sem querer” — fez aspas com os dedos — nele, né? Então, acharia o nosso serviço péssimo e nunca mais voltaria.
— É... Junto do suco, escorria o nosso emprego também. — null debochou da sugestão infantil.
— Não se for o null! — null cantarolou, mirando-o maldosa.
— Ninguém vai jogar suco no null. — null interveio antes do null opinar.
04.
Enquanto almoçava, null ouviu claramente a mulher que atendia pelo salão chamar a colega da entrada de null. Essa foi a confirmação que precisava para aquietar as suspeitas de que havia encontrado uma ex-namorada.
Determinado a conseguir falar com ela, o homem desacelerou na mastigação, enrolando com o prato ao máximo, até virem notificá-lo de que estariam fechando as portas em breve. Quando tomou coragem para ir atrás, encontrou-a acompanhada por um outro homem.
— null? — chamou, incerto, vendo-a se virar em sua direção — Então, é você mesmo. — soltou um riso nasalado, em alívio — É o null, lembra? — ela ficou sem reação.
Uma abordagem repentina naquele momento era algo que ninguém podia esperar.
— Temos tantas coisas para conversar. — null emendou — Está com tempo agora?
— Lembrando que não precisa ir, se não quiser. — null interveio, sério, fuzilando o recém-chegado, sem nem piscar.
— Não! — null negou, para a surpresa dos homens — Eu quero. Eu preciso. Obrigada, null. Pode deixar comigo. — deu um sorriso em agradecimento.
De maxilar contraído, o filho de Sarah observou o casal se acomodar em uma mesa mais afastada. Sentiu vontade de quebrar algo, ainda com preferência para a cara do sujeito que acompanhava null. Havia sido um movimento discreto, contudo null presenciou o sorriso convencido que o maldito deu ao ouvir que a mulher iria conversar com ele.
Bufou pesadamente.
— Calma, Poderoso Chefinho. Você se garante.
null não ajudou muito mais.
Do lado oposto do restaurante, o ex-casal puxava as cadeiras para se sentar de frente para o outro na mesa.
— Como tem andado, null?
— Muito bem e você?
— Perfeitamente bem.
— Mesmo? — mostrou um semblante de quem não acreditava muito — Seus últimos áudios não condizem muito. — null sentiu o sangue circular com mais força nas bochechas.
— Eu ainda tenho muita raiva de você, não vou mentir. — confidenciou — Mas não sei o que me deu naquela noite para te chamar na conversa. Não é como se lembrasse da sua existência todo dia.
O homem ainda tentou, mas as pálpebras tremendo em um tique denunciaram que as palavras o atingiram com êxito. Ele esperava outro tipo de recepção dela para uma primeira conversa depois de muito tempo.
— Delicada como uma mula.
— Sério que você vai se doer com isso?
— Tudo bem, eu mereço. — levantou as mãos em redenção — Acho que te devo desculpas. Eu era um idiota, assim como qualquer um na nossa idade, e fiz coisas idiotas, como te magoar.
— Falo com propriedade que eu nunca fui idiota com você.
— Eu sei. — suspirou — Acho que, no final, tínhamos planos muito diferentes para o futuro.
Aquele era um momento que null trataria de guardar na memória como um dos mais estranhos. Ela não conseguia sentir nada além de indiferença. null estava falando, pedindo perdão, mas ela não conseguia se importar. O que poderia fazer com as desculpas dele a essa altura do campeonato? Os danos na versão mais jovem dela não podiam ser apagados.
null sentia vergonha demasiada ao se lembrar de quanta humilhação se sujeitou para entrar nos padrões dele. As roupas, o cabelo e até o modo de falar. Abrira mão de compromissos pessoais importantes para estar disponível em alguma festa ou reunião dele. Em troca, não recebeu nada.
Foi errado esperar que ele a considerasse tanto quanto ela o considerava. Todavia, a lição estava aprendida para nunca mais ser repetida.
Além disso, null não sentia verdade nas palavras do outro. Não sabia o que sentir, pois eram dois completos estranhos conversando sobre situações que não precisavam ser revividas. Ela não conhecia o atual null para entender se era sincero. Essa era uma conversa que não fazia o peito pesar e nem o coração acelerar.
— Você não estava vivendo no Rio de Janeiro? — tratou de mudar de assunto.
— Oh, estava. Meus pais compraram uma casa ali. Estamos de passagem na cidade para comemorar as festas com a outra parte da família que ficou.
— Hm, legal.
— E você, null? Não esperava te encontrar trabalhando... — o olhar dele varreu toda a extensão do restaurante — Aqui. E aqueles esboços que você fazia?
— As ilustrações e retratos, você quis dizer. — corrigiu — Os mesmos que me tornavam uma “Sem-Ambição” aos seus olhos? — deu um sorriso cínico — Continuo produzindo e vendendo. O restaurante dá a renda extra que preciso para suprir os meus desejos de princesa.
— Já pedi desculpas, mas peço de novo e quantas vezes forem necessárias. Nunca foi para te ofender. Minhas intenções sempre foram das melhores, justamente para evitar isso que está passando agora.
— De boas intenções, o inferno está cheio. — retrucou, sentindo o ranço voltar com força aos poucos — E não entendi a parte final da sua fala, sobre evitar passar por isso. Isso o quê?
— Essa instabilidade, null. Pular de um emprego para o outro, sem uma renda fixa. Isso não é vida!
— É claro que é! — ela se exaltou, batendo a palma da mão contra a mesa — Agradeço a preocupação, mas meus boletos seguem todos em dia. Pintar é o que gosto de fazer e quero morrer com isso. Minhas tintas me deixam feliz e relaxada. Fazem o equilíbrio perfeito com o estresse de trabalhar no restaurante. Para a sua informação, tenho dias tão bons nesse lugar que me esqueço que é um trabalho. Conviver com pessoas me torna mais empática. Também aprendo sobre administração de negócios e... — tomou fôlego para continuar.
— Calma, null! — null pediu com os olhos arregalados — Não quis diminuir o seu trabalho.
— Coitadinho, não está querendo nada também. Eu que sou maluca e estou dando outro sentido para suas palavras. — disparou desaforada.
— Não é isso! — bufou — Pelo visto, sugerir essa conversa foi um erro.
— Pela primeira vez, estamos concordando em algo.
Ambos cruzaram os braços e a conversa morreu. Depois de alguns segundos esfriando a cabeça, null quis confirmar:
— Não sente mais nada por mim?
— Não. — negou prontamente, sem pestanejar.
— Nem um pouquinho? — o homem riu, descrente.
— Não. — tornou a repetir — Por que deveria? Você saiu da minha vida faz muito tempo, null, e sem querer te ofender: não foi tão marcante assim.
Para a null adolescente talvez.
Agora, para a null mulher, não mais.
— Qual é, null...
— Quem você pensa que é? É null para você.
— Ok, null. — enfatizou, rolando os orbes — Deve ser difícil confessar em voz alta algo que está incubado faz muito tempo. Pode só me dar uma piscada para confirmar, se quiser.
null crispou os lábios para evitar uma gargalhada. Em troca, acabou rindo pelo nariz.
— Não me lembrava de que era piadista, null. Essa eu vou passar, estou bem assim.
— Está namorando?
— Não. Como disse, estou bem assim.
No entanto, o homem não queria aceitar.
— Inacreditável.
— Que eu não te amo mais, ou que estou solteira?
— Principalmente a primeira opção, querida. — atreveu-se a falar — Não dá para aceitar que não tem mais nenhuma faísca por mim, depois daquela chamada. Você ainda tem o meu número!
— E daí? Sabe de quem mais tenho o número guardado? Do encanador, da moça da pizzaria e até do porteiro. Por isso, tenho uma “faísca” por todos eles?
— Não distorce as minhas palavras! — brigou — Você entendeu o sentido...
— Antes, para você de ignorar o que estou dizendo. Entenda: nunca poderia manter sentimentos por alguém que não soube me valorizar na minha melhor versão de mim.
— Essa conversa está me cansando. — null se frustrou — Queria um papo de boa, mas você está preocupada em lacrar. — null precisou arquear as sobrancelhas ao máximo pela falta de noção — Estou indo. Não me procure. Não irá me achar. Até nunca mais.
“Vai tarde”, ela completou mentalmente.
Em passos duros, null se levantou para acertar a conta do restaurante para depois sumir o mais breve possível.
Ainda surpresa, null passou as mãos pelo rosto várias vezes para entender o que tinha sido aquilo. O ex-namorado parecia ter saído de um filme com o personagem principal narcisista e caricato. A pergunta que ficava era: o que ela viu nele, um dia, para ter se apaixonado perdidamente?
O expediente estava quase no fim. Assim que terminasse de secar e forrar as bandejas recém-saídas da lavadora, poderia ir para casa. A conversa anterior com null ainda não havia saído de sua mente. Entretanto, não tinha nada a ver com o impacto das palavras dele.
Ela não estava afetada, como temia que pudesse acontecer.
O jogo de charme e emocional que o ex havia tentado despejar para cima de si não havia funcionado. Mais que isso, null estava feliz por finalmente ter colocado um ponto final naquilo.
— Uma flor para outra flor.
O objeto posto bem à frente do nariz a obrigou a sair do devaneio. Era null pedindo por atenção, dessa vez com uma flor improvisada de guardanapo.
— Me fala: essas abordagens horrorosas funcionam?
— Depende. — deu uma pausa dramática — Depende se você falar que gostou.
— Depende nada. Deve fazer isso com todas, safado.
— Pode ser. — confirmou com um sorriso ladino — Mas agora chegou a sua vez de ser mimada.
null mordeu o lábio inferior para não rir da pouca vergonha e desferiu um tapa no braço do homem.
— Tapa de amor não dói. — ele replicou em provocação.
— Por céus, você é muito cretino. — balançava a cabeça, desacreditada.
— E você gosta.
— Gosto nada! — exibiu uma careta que provava o contrário. — Homens só trazem problemas. Estou bem, sozinha.