Capítulo Único
Go and take this the wrong way
You knew who I was with every step that I ran to you
Only blue or black days
Electing strange perfections in any stranger I choose
Há quem diga que eu não sou uma das pessoas mais sãs desse nosso mundo. Balela. Estou ótimo. Não me importo com aqueles que insistem em contrariar.
Já me chamaram de canalha, galinha e cafajeste. Pela cidade, circulam uns boatos de que eu dormi com oitenta e sete mulheres até o dia de hoje. Calúnia. Não tenho certeza sobre o número exato, mas não foram mais de oito. Não faço ideia de onde saiu tal quantia absurda.
Mandaram-me à terapia. Diziam que eu sofria com a Síndrome de Don Juan – um transtorno caracterizado como a necessidade compulsiva por sedução. O terapeuta disse que não. Eu sabia que não. Eu podia apresentar alguns sintomas, mas não todos.
Você deve estar se perguntando quais sintomas apresento, de fato. Explicar-lhe-ei um pouco sobre a síndrome, se permitir. Prometo não me estender muito.
Would things be easier if there was a right way?
Honey, there is no right way.
Caracteriza-se por um envolvimento sexual com fracasso emocional. O indivíduo portador apresenta uma atração fugaz que logo desaparece. Vamos ao ponto onde me encaixo: não amei nenhuma das mulheres que passaram por minha vida de forma extrafamiliar. Não amei uma moça sequer. Mas amei pedaços de cada uma delas.
De Olívia, amei os longos cabelos. Iam até sua cintura, em madeixas onduladas bem marcadas, queimadas pelo sol.
De Jéssica, amei a boca. Os lábios grossos e rachados que raramente apresentavam a pele por completo. Ela sempre os mordia até arrancar um pedacinho que fosse.
De Mirella, amei o tronco. Braços longos com a força de alguém que não ganhou nada na vida de mãos beijadas. Seios volumosos, mas sem exageros, que se encaixavam perfeitamente em seu corpo. Não era absurdamente magra e nem ligava para isso.
De Luciana, amei o desenho do rosto. Uma simetria assimétrica, mas perfeita a meu ver. Sobrancelhas grossas, nariz fino e bochechas macias. Cílios cheios e longos. Queixo quadrado. Pele morena.
De Thabata, amei as pernas. Com todas as estrias e uma cicatriz acima do joelho. Coxas e panturrilhas que não eram nem finas e nem grossas. Afinal, isso é relativo e minha opinião divergiria da sua.
De Regina, amei os olhos. Regina fora minha Capitu. Olhos grandes, olhos de ressaca. A maresia em sua íris me puxava para sua pupila. Os olhos de cigana oblíqua e dissimulada dos quais Machado sempre falara.
Mas não amei Olívia, Jéssica, Mirella, Luciana, Thabata ou mesmo Regina. Amei pedaços. Amei todas ao mesmo tempo. Apaixonei-me pelo todo que fragmentos delas formavam. E, por isso, desenhei-os.
Meu escritório era uma declarada bagunça. Papéis, roteiros, pôsteres, rascunhos, brinquedos, esboços e ela. Lá estava ela. Ao fundo do cômodo, uma tela do tamanho de meu próprio corpo mostrava minha maior obra de arte. Montei a mulher de meus sonhos com tudo aquilo que um dia me encantou. E naquele desenho meio disforme, encontrei a única pessoa que eu poderia realmente amar por inteiro algum dia.
And so I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
*****
- , os organizadores da festa querem saber quantas cadeiras extras terão que ser colocadas no salão. – Meu secretário entrou quase voando em meu escritório pela quinta vez só na última hora.
- Não sei, cara. Umas vinte devem ser o suficiente.
- Certo. Vou avisá-los.
A porta foi fechada com um estrondo e Rick gritou um pedido de desculpas do lado de fora. Bufei, não pelo barulho, mas por que estava realmente exausto. Não dormia há aproximadamente cinquenta horas e nem os energéticos conseguiam fazer com que eu mantivesse meus olhos minimamente abertos a essa altura.
Com a première, a festa de lançamento e todos seus respectivos ajustes finais, eu mal tinha tempo para fazer qualquer coisa do lado de fora daquele maldito prédio. Eu só comia e ia ao banheiro porque tinha como fazê-lo sem sair de lá.
A papelada que eu segurava parecia estar escrita em hieróglifos. Minha vista embaçava e eu já não conseguia mais manter o foco e ler aqueles malditos contratos.
Desisti de tentar e acabei encostando a cabeça sobre a mesa e fechando os olhos.
******
Acordei assustado, quatro horas e meia depois, com duas mãos me sacudindo com força e uma voz gritando para que eu acordasse logo.
- Porra, . Eu vou matar você – gritei, assim que consegui adquirir o mínimo de consciência possível após ser acordado dessa maneira tão adorável.
- Ei, relaxa, cara. Eu vim te trazer a solução para os seus problemas e seu absurdo estresse.
- Eu não vou deixar você me levar para outra boate de strippers.
- Não tem nada disso. Comprei ingressos para um musical. Hoje à noite. Homenagem à Aretha Franklin, já que você tanto ama aquela mulher.
- Não amo aquela mulher. Amo as músicas dela.
- Que seja. – Ele tacou o ingresso em minha mesa. – Oito da noite. Não se atrase. Vai ser bom para você. Tem um motivo para eu ser o seu melhor amigo, afinal.
Odeio admitir que ele não poderia estar mais certo.
*****
Estávamos em poltronas privilegiadas, com uma visão central do palco. Podia ver tudo, exceto as coxias.
- E então? – se virou para mim, dando uma leve cotovelada em meu braço direito. - Está animado para, finalmente, ver seu filme nas telas de cinema?
- Poderia estar mais se não estivesse nessa correria toda para ajeitar os detalhes finais para os próximos dias.
- Os tablóides estão loucos sobre a festa de comemoração pelo lançamento. Parece que eles conseguiram uma parte da lista de convidados e inventaram o resto para chamar mais atenção. Maldita mídia.
- Nem me fale.
- Ouvi seu secretário pedindo um suporte ou cavalete que comportasse um quadro de um metro e setenta. Está pensando em expor a... Que nome você deu para aquilo?
- Aretha, . Você deveria saber. E “aquilo” virou a personagem da animação mais esperada dos últimos três anos. Além disso, você sabe o quanto aquele quadro significa para mim.
- Sei. Só não entendo. Já era estranha sua obsessão por uma mulher feita à tinta a óleo.
- ... – Minha tentativa de interrompê-lo foi absolutamente inútil, como eu já esperava.
- Daí, como se não bastasse isso, você decide fazê-la protagonista da estréia que vai fazer sua carreira decolar. Um quadro, um filme... Não quer escrever uma música também?
- Pensei que tivéssemos combinado que você entenderia ou pelo menos fingiria.
- Certo, certo. Eu vou tentar. Só acho que você deveria tentar se desapegar desse ser inexistente que você criou para seu próprio tormento. O problema é que você insiste em trazê-lo à tona, colocando-o em toda a sua vida.
- Não vejo problema algum. Aretha recebeu esse nome em homenagem à minha cantora preferida. Recebeu um filme por eu crer que ela fosse digna disso. Ela precisava ser eternizada em telas além do meu escritório. Ela pode ser inexistente fisicamente, mas esse é o meu jeito de fazê-la existir. Se é só assim que eu posso tê-la, então me conformarei com isso.
- Você é um idiota – respondeu. – Podia estar namorando, transando, saindo para se divertir, casando, tendo filhos até... Mas você decidiu se prender à sua Aretha. Ótimo, faça como quiser. Quem sou eu para lhe impedir?
- Exatamente, aliás – eu ia continuar falando, mas não pude. Anunciaram o início do espetáculo naquele exato segundo.
As longas cortinas vermelhas foram abertas e eu aplaudi as pessoas que já estavam posicionadas no palco só porque foi o que todos na plateia fizeram. Os atores e cantores nem tinham começado, por que raios eu aplaudiria? Pura educação.
A mulher que interpretaria Aretha – assumi pela roupa e pelo penteado – falou algo tão rápido que foi, pelo menos para mim, ininteligível. Então, ela começou a cantar a primeira música. As palavras flutuavam por sua boca e eu as entendia, então. Entendia mais por ter decorado cada letra e entonação que por ouvir e assimilar, de fato. Mas ela era uma cantora espetacular de uma voz maravilhosa. Digna de Aretha Franklin. Digna de Natural Woman.
A infância da cantora foi narrada e encenada, acompanhando uma ou outra cena musical. Eu estava entretido de verdade. Não estava ansiando por aquilo a princípio, mas a peça tinha me cativado a um ponto inesperado.
Respect, Oh Happy Day, Chain of Fools e I Never Loved a Man tocaram numa belíssima sequência, passando pela juventude e adentrando a vida adulta e a fama de Franklin. Eu estava ainda mais fascinado.
Após mais de uma hora e meia assistindo àquilo tudo, a peça parecia se encaminhar para o encerramento. A melodia de I Say A Little Prayer começou a tocar, enquanto todos os atores e figurantes se juntavam no centro do palco. As laterais estavam totalmente apagadas.
Os primeiros versos foram cantados de maneira quase que frenética por todos, logo chegando ao refrão. Eu me continha para não cantar junto. Foi aí que a música desacelerou consideravelmente, tornando-se praticamente uma balada. As laterais foram acesas. Existia um pequeno grupo em cada uma delas. Todos vestidos de branco. Um coral. Perfeito.
Aquela versão da música conseguiu me conquistar totalmente, mesmo sendo tão diferente da original a qual eu estava acostumado.
Passei os olhos por todos ali, naquele palco, tentando digerir cada detalhe daquele momento, que estava sendo o melhor de minha vida já há algum tempo.
Foi quando eu a vi. Ali. Parada. Cantando de forma tímida no meio do coral, olhando para frente, ao fundo da plateia. Tive que analisar a moça de cima a baixo repetidas vezes, sem acreditar que aquilo realmente fosse possível.
Os olhos de ressaca. Os longos cabelos queimados. Os grossos lábios. A leveza simultânea a uma imagem de força notável. Tudo estava ali. Tudo nela. Cada uma das partes.
- Caralho, .
- O que é?
- Lateral esquerda. A garota ao lado do careca alto demais. Ela não te parece familiar?
Meu amigo estava nas pontas de seus pés, com os olhos apertados como um míope, tentando encontrar a garota a que eu me referi no meio de tantas pessoas.
- A de coque alto?
- Não, a de cabelo comprido e solto.
reclamava, mas continuava procurando. Até que a achou.
- Puta que o pariu. É a garota do quadro. E do filme. E da música que eu falei para você escrever.
Eu estava praticamente em transe. Nem eu acreditava na possibilidade de aquilo acontecer algum dia. A garota que eu pensava ter criado, existia. Minha obra de arte. A minha Aretha, protagonista de um filme de animação, existia. Eu mal conseguia processar aquilo tudo de forma minimamente racional.
- Isso não é possível. Não faz sentido. – Eram as únicas coisas que saiam de minha boca de forma repetida. – O que eu faço, ?
- Fale com ela, oras. Você passou anos pensando e falando sobre essa garota sem que ela ao menos fosse real na sua vida. Não tem cabimento você deixá-la ir agora que ela está bem aqui. Em carne e osso. Não em tela e tinta.
E ela estava mesmo. Acompanhada de uma intensa jovialidade que eu julgava ser o que se tem em vida fora de um quadro.
*****
- Desculpe-me, senhor. Eu realmente não tenho como arranjar essa vaga agora. Tínhamos só quinze acessos ao camarim e foram todos vendidos há dias.
- Como assim? Não pode ser verdade. – Eu admito que parecia um fundo de desespero.
- Mas é. Está subestimando o quanto as pessoas pagam para ver um cover da Aretha Franklin de qualidade assim?
Uma ideia rápida me ocorreu. As quinze pessoas estavam ali pela cantora principal. Duvidava muito que uma simples jovem de coral receberia tantos convidados VIPs.
- Senhora, por favor – tentei novamente. – Eu não quero ver a protagonista. Estou aqui por uma moça que cantou no coral na última música.
A segurança pareceu entender o engano e passou a me olhar com certo desprezo.
- O senhor não sabe mesmo apreciar quem realmente tem talento. Onde já se viu preferir uma figurante medíocre e sem importância a vários atores verdadeiramente talentosos?! Que absurdo!
- A senhora tem como me ajudar? Não estou aqui para discutir gostos ou preferências. Não pretendo perder meu tempo com o que os outros acham ou não válido como talento. Só vim pedir para ver a garota.
Ela bufou e me acompanhou por três longos corredores até uma portinha já gasta e sem pintura. A diferença de nível e de reconhecimento era tristemente óbvia. Uma só atriz tinha uma sala enorme, arejada e bem decorada. Um grupo de coral se aglomerava numa pequena sala com apenas uma poltrona fajuta.
- O senhor sabe o nome de sua garota?
- Não faço ideia. Vim na tentativa de conhecê-la. A motivação me veio há pouco.
Recebi um duro olhar de reprovação. Mais uma pessoa na lista das que me achavam um completo doente mental. Grande coisa. Não era a primeira e com certeza não seria a última.
Fiquei do lado de fora, esperando que a segurança conseguisse fazer contato com a garota. Até porque ela também não sabia quem a minha procurada, de fato, era.
Meu coração estava acelerado em expectativa. Sabe a sensação de estar a um mínimo passo de conseguir aquilo que você sempre quis, mas nunca pensou que fosse possível ter? Se você sabe, pode imaginar meu estado. Se não sabe, provavelmente sentirá algo próximo algum dia. Nossa vez sempre chega.
Ela custava a voltar. Minhas mãos estavam geladas enquanto eu suava frio. A última vez em que eu tinha acumulado tanta ansiedade, expectativa e nervosismo de uma vez só foi no dia de receber (ou não) minha aprovação para a faculdade de cinema. E já faziam pelo menos dez anos desde que isso acontecera.
O tempo parecia estar demorando a passar. Eu checava o relógio a cada dez segundos pensando já terem se passado minutos. Então, ela finalmente retornou.
- Ela ainda está lá dentro. Concordou em conversar com o senhor, mas pediu que esperasse cinco minutos para que termine de se arrumar e guardar as coisas. O resto do coral já foi embora. Ela está sozinha, então vê se não faz eu me arrepender de ter te liberado.
- Muito obrigado. De verdade. Não sabe como isso é importante para mim.
- Não sei mesmo. Mas faça bom proveito – disse com desgosto e me deixou ali.
Comecei a andar em círculos feito um retardado. Pode rir. Eu também riria de minha lamentável situação.
- Pode entrar – uma voz feminina totalmente decidida disse. Era ela. – Se é que você realmente está aí e teve paciência para esperar.
Respirei o mais fundo que pude, tentando evitar um – altamente – possível desconforto, como uma gagueira ou algo do tipo. Não queria parecer mais idiota do que eu podia evitar. Abri a porta e coloquei o pé direito do lado de dentro. Qualquer superstição era válida. Por mais que eu mesmo ache isso meio idiota.
E ela estava ali. Olhando para mim, como se não estivesse entendendo coisa alguma. Exatamente como eu sempre pensara, imaginara, sonhara e esperara.
- Aretha... – Foi tudo o que consegui dizer, com uma voz baixa e incerta.
- Não. O senhor deve estar procurando pela protagonista. Imaginei mesmo que fosse um engano alguém me procurando.
- Não! – Minha voz saiu alta demais. – Desculpe-me. É que você é idêntica a ela. É quase inacreditável.
- Não conheço nenhuma Aretha, senhor. Não sei mesmo do que está falando. O meu nome é .
- ... – Pare de agir como imbecil, ! – Bom, primeiro, gostaria de te parabenizar pelo espetáculo.
- Obrigada, eu acho. Sem ofensas, mas o senhor deveria estar parabenizando os atores principais e não uma garota qualquer de um coral que cantou um refrão só.
- Cantou o refrão da minha música favorita. E você chamou minha atenção.
Seu rosto, até então sereno, fechou-se.
- Não estou disponível. Não é porque não tenho um cargo importante ou um baixo salário que vou vender meu corpo para o primeiro que eu chamar atenção. Não sou esse tipo de mulher, se é isso o que o senhor está pensando. Não sou um objeto, muito menos um brinquedo para prazer próprio temporário.
- O quê?! Não! Claro que não. Não é nada disso. Desculpe-me. Acabei me expressando mal. Eu sou diretor, produtor e roteirista de cinema. Meu nome é . Não diga senhor, pode me chamar pelo meu nome.
- Certo, senh... . Posso saber o que fiz para merecer atenção de alguém do cinema?
Expirei com força, parecendo mais exausto que nervoso. Deslizei meus dedos pelo touch do celular até encontrar o vídeo do primeiro trailer que eu tinha preparado para o filme.
- O que é isso? – Foi a pergunta que ela me fez, quando lhe entreguei o celular.
- O trailer do meu filme. Preste atenção, por favor. Acho que ficará claro o porquê de eu ter te chamado de Aretha quando entrei.
franziu a sobrancelha, apertando os grandes olhos. Por fim, apertou o botão de play. A música do início começou a tocar e eu sabia que a introdução narrada estava na tela. Revisei aquele um minuto e sete segundos tantas vezes que decorei até os focos da iluminação e as posições das personagens.
Quinze segundos e meio de trailer. Era o momento da grade apresentação de Aretha. Observei cautelosamente a expressão de . Seus olhos foram se arregalando de maneira lenta. Ela começou a prestar ainda mais atenção e seguiu assim até que o vídeo chegasse ao fim. E parou. Quase que estática.
- Ela é... É igual... Sou eu?
- Juro que nunca tinha te visto antes. Mas, de certa forma, sim. É você. Desenhei-a há mais de um ano. E só encontrei a modelo agora. Não faço ideia de como tentar explicar porque ou como esse tipo de coisa acontece. É surreal para mim.
- Imagina para mim... Vim cantar por um motivo que não lhe diz importância e, esperando meu anonimato rotineiro, deparo-me com uma personagem de animação que é idêntica a mim.
- Bom, a première do filme é daqui dois dias. Eu posso mudar o discurso e fazer um agradecimento a você, . Pode ser bom para sua imagem.
Ela pareceu ponderar sobre a hipótese, enquanto as mãos e braços abraçavam o próprio corpo. Levou uma fração de segundos para que ela recuperasse a postura rígida.
- Agradeço, mas não preciso de sua ajuda. Não quero visibilidade. Não preciso de favores ou dinheiro seu, como já disse. Não sou esse tipo de pessoa.
- Por favor, entenda que minha intenção aqui não é te tratar como objeto. Em momento algum foi. Só quero te ajudar. Afinal, por que você se apresentou com o coral hoje?
- Porque eu receberia um cachê razoável para tanto. Pode ser pouco para mais da metade das pessoas que o senhor deve conhecer, mas é importante para mim.
- Você vive sozinha?
- Sim. Sou meu próprio sustento. Por isso canto em corais, se é o que você quer saber. – A voz de já demonstrava certa irritação. Ela realmente não conseguia não me levar a mal.
- Exatamente. Entendo seu esforço e sei que boas oportunidades não caem do céu simplesmente. Por isso, queria te apresentar para a mídia. Você é a minha protagonista, de certa forma. Poderia te levar à première. Com certeza terão ofertas de trabalho depois disso.
- Não posso aceitar. Não vou depender de mais ninguém. Não posso fazer isso de novo.
- O que aconteceu para você não aceitar minha ajuda?! Pelo amor de Deus, eu não consigo te entender! Eu só quero ajudar.
- Desculpa... É difícil assimilar tudo isso. Não estou pronta para comentar.
- Certo. Pega o meu cartão. Se você mudar de ideia e decidir deixar que eu te ajude, pode me ligar. O convite para comparecer à première continua valendo. Abro até para um acompanhante, se quiser. Um namorado, talvez...
- NÃO! – Fui interrompido abruptamente por ela. Reação inesperada. – Não. Eu não preciso de acompanhante. Ligo se mudar de ideia, mas não fique esperando. Não creio que isso vá acontecer.
Tive que me segurar ao máximo para não falar alguma besteira. Tudo o que eu tentei desde o começo foi ser gentil e prestativo. Não entendia o porquê de uma pessoa resolver ser cabeça dura ao ponto de recusar uma ajuda que ela mesma dizia precisar. Também não conseguia compreender em que momento eu tinha sido rude ou ignorante ao ponto de ela agir como se quisesse distância. Qual é? Eu sei que tínhamos acabado de nos conhecer, mas eu não conseguia pensar em motivos para alguém ficar assim tão na defensiva.
- Está bem. Não vou mais insistir. Sabe como me achar. Mais uma vez, meus parabéns pelo espetáculo.
E saí, tentando me lembrar das coordenadas pelos corredores por onde tinha passado quase quarenta minutos atrás. me esperava logo na saída do teatro.
- E aí? Conseguiu falar com ela? É mesmo o amor da sua vida? Como ela se chama? Ela é gostosa?
- Falei. O nome dela é e não sei o sobrenome. Pare de pensar só se uma mulher é ou não gostosa, pelo menos uma vez na sua vida, . Se fosse o amor da minha vida, duvido que teria sido tão direta em me colocar de escanteio.
- Ninguém mandou já chegar querendo partir para o abate, .
- Não foi nada disso. Ela deu a entender que estava cantando por aí porque precisava se sustentar como pudesse. Eu tentei ajudar, ofereci uma aparição na première para tentar dar visibilidade a ela e até fazer uma publicidade, pedir para que ela cantasse ou sei lá. Eu poderia alavancar algumas propostas de peso para ela. Mas ela negou tudo. Diria até que com uma convicção exagerada demais. Era como se ela estivesse mesmo totalmente determinada a me deixar totalmente de fora de sua vida. Isso porque eu mal tentei entrar.
- Cara, respira. Sei que era importante, mas sei lá. Segue em frente. Você tem coisas mais importantes para se preocupar durante essa semana. Tenta focar nelas. Não vale a pena se remoer por isso. Vai acabar prejudicando os eventos e a si mesmo. Talvez até mesmo a divulgação do filme.
- Sei que você está certo. Tem razão, assumo. Mas tem noção do quão decepcionante tudo isso foi?
- Não era o que você esperava.
- Eu mal sei o que eu esperava. – Deixei meus ombros caírem um pouco para frente, segurando minha cabeça com a mão direita. – Só sei que, com toda a certeza, não era isso.
*****
Passei quase a noite toda em claro. Tentei praticar o discurso que teria que fazer de noite, mas aquela conversa ainda não tinha saído de minha cabeça.
Liguei a Netflix em um episódio qualquer de Breaking Bad, sem nem ao menos ver que temporada eu tinha escolhido. Afinal, eu não tinha escolhido.
Minha mãe me ligou naquela tarde, assim como meus avós e algumas daquelas tias que ainda pensavam que eu tinha meus dezessete anos e gravava vídeos das formigas do jardim com minha máquina fotográfica ultrapassada. E agora minha animação ia para as maiores telas. Sem formigas levando folhas e fazendo só isso. Uma história desenhada e escrita por mim. Entre uma das maiores esperas do ano – eu só perdia para algumas sagas juvenis.
Ouvia todo mundo dizendo como estavam orgulhosos e finalmente percebi que, de certa forma, eu também estava orgulhoso de mim e do meu trabalho. Meu esforço se transformara em algo de verdade. Algo palpável. Algo reconhecido.
Mas por outro lado, tinha ela. Ela, a quem eu sempre quis orgulhar. Ela, a quem eu tanto homenageei. Ela, a quem eu tanto esperei. E ela não era minha “ela”. Pensei que achando o corpo da imagem que criei, ele acompanharia o psicológico que eu dei a ele. Esqueci-me de que ali havia uma vida própria. Fui um babaca de ter criado tanta expectativa. Mas, ao mesmo tempo, eu não conseguia me culpar totalmente.
Repeti meu discurso exatas nove vezes em frente ao espelho. Escrever e desenhar eram atividades naturais a minha pessoa. Coisas que se encaixavam. Mas eu nunca tinha sido bom em falar em público. Treinei incansavelmente o discurso, tentando manter o foco a qualquer custo à medida que cada palavra passava pelos meus olhos. Mesmo assim, eu sabia que eu acabaria esquecendo algum trecho na hora. Meu lugar era mesmo atrás das cortinas e não na frente delas.
Tomei um longo banho, tentando não me importar com o quanto a água gelada me dava calafrios. Eu sempre levei a expressão “esfriar a cabeça” muito a sério. Minha irmã sempre ria de mim por manias como essa.
Coloquei o terno azul marinho com riscas de giz e sapatos pretos, da mesma cor de meu relógio. Mandei uma mensagem pedindo que se adiantasse e me encontrasse na entrada do evento. Não me sentia nem um pouco preparado para enfrentar o tapete vermelho sozinho.
A cada semáforo, minha tensão aumentava. Metros a mais, em minha cabeça, só me lembravam de que eram metros a menos também. Essa é a hora em que você diz: “Nossa, , como você é ridículo e cafona”. Sou mesmo e agradeço sua análise.
A música de abertura de Star Wars começou a tocar, conectada ao bluetooth do carro – o que me deu um susto, pela altura do toque do celular. “Número desconhecido” eram as palavras na tela. Atendi mesmo assim, afinal, podia ser algum problema no evento.
- Alô?
- ? É você? – Era uma voz feminina que não me soava totalmente desconhecida.
- Sim. Com quem estou falando?
- É a . – Freei o carro bruscamente. – Bem, é... Eu mudei de ideia. Será que tem como voltar atrás agora? Desculpa, eu sei que já está bem tarde. Não tem problema se não der, eu só...
- Onde você está? – Eu já tinha estacionado meu carro no primeiro acostamento que encontrei.
- Como assim?
- Eu quero saber o endereço de onde você está nesse momento.
- Não sei o endereço certo, . Estou hospedada naquele hotel pequeno do centro.
- O amarelinho? Com um pomar na frente?
- Esse mesmo.
- Certo. Vá se arrumar que eu passo para te buscar em quinze minutos. Não se atrase.
*****
Ainda tive que esperá-la por mais oito minutos. Reconheci mesmo no escuro. Tantas vezes desenhei cada traço dela. Não poderia ser diferente.
Ela usava um vestido verde claro sem mangas que ia até seus joelhos. O cabelo estava preso em um simples rabo de cavalo. Não estava deslumbrantemente elegante ou chique, mas estava maravilhosa com toda sua simplicidade.
- Para de me encarar como se eu fosse um cachorro de rua.
- Duvido que cachorros de rua usem vestidos de festa – afirmei. – Posso perguntar o que te fez mudar de ideia?
- Decidi aceitar sua ajuda. Algumas coisas estão para mudar e eu não tenho muita garantia de emprego. Você disse que poderiam aparecer propostas. Preciso delas.
- Não vai se arrepender – respondi, dando a partida no carro. – Não tinha visto essa cicatriz em seu braço.
Ela se afastou abruptamente e escondeu o braço, tampando a marca com a outra mão.
- Sinto muito. – Foi minha reação automática – Não quis parecer indelicado ou intrometido.
- Tudo bem. – Ela estava visivelmente incomodada. – Só não saio por aí falando sobre isso.
*****
Chegamos ao local da première e os flashes mal me deixaram descer do carro. Corri os olhos por toda a rua e não vi . Aquele filho da mãe.
Desci rapidamente e abri a porta para , que me encarou com estranhamento total.
- Não precisa agir como se fôssemos um casal – ela reclamou.
- Estou agindo como um homem educado. Vamos.
Os paparazzi foram à loucura. O barulho era altíssimo e as luzes quase me cegavam. Minha pupila não conseguia se ajustar por um segundo sequer.
- Qual sua motivação para criar esse filme?
- Qual o enredo?
- De onde veio toda essa inspiração?
- , quem é essa garota?
- Ela parece a sua personagem. Foi inspirada em sua namorada, então?
- Vocês têm alguma pretensão de se casar em breve?
E várias outras perguntas entrecruzadas demais para que eu as distinguisse.
- O filme conta a história de Aretha, uma mulher de vinte e três anos que acaba parando em um novo mundo e em uma diferente época. Esse novo local é uma utopia, completamente perfeito. Até que um dia, uma grande reviravolta acontece e vira tudo de cabeça para baixo. Aretha, acostumada com os problemas de humanos comuns, é a única pessoa que parece ter capacidade de lidar com problemas e se torna a esperança daquele povo. Além de ser a grande heroína para os outros, é a heroína de si mesma. Tem uma grande reflexão no fim do filme.
- Queremos respostas sobre a garota também – uma mulher insistiu.
- Essa é , uma cantora de coral, aspirante a trabalhos maiores. Ela foi minha inspiração para Aretha, sim. Mas eu não a conhecia. Encontramo-nos por acaso alguns dias atrás e foi um choque total para os dois.
- Então, estão namorando?
- Não, não estamos. Não vamos nos casar. Aproveitem o filme. – Acenei com cabeça e mãos e segui para a sala de cinema separada para a primeira exibição, especial para os convidados. veio comigo.
- Que pessoal chato. – Ri do comentário dela.
- Você não viu nada, senhorita. Acabei de perceber que não sei seu sobrenome.
- Porque não te interessa.
- O que falamos sobre educação? – Foi a vez de ela rir. Uma risada divertida.
- Estava só brincando. . Sobrenomes esquisitos de famílias imigrantes.
- Líbano?
- Isso. - Seu tom era de deboche.
Ela sorriu e eu a guiei, com a mão em seu ombro, até os lugares reservados para nós.
Todas as pessoas apontavam para ela e cochichavam algo entre si. Ela não tinha notado, mas eu me incomodei com aquilo. Não gostava de pessoas que tiravam conclusões precipitadas e se dispunham a manter um pré-julgamento totalmente sem embasamento sobre outra que acabavam de ter conhecimento sobre a existência.
Foi aí que vi que todos seguravam os folhetos do filme que ilustravam a imagem de Aretha. Não era um julgamento. Ela só tinha sido reconhecida mais uma vez. Fiquei imaginando se uma daquelas pessoas em trajes formais não seria a salvação profissional e financeira dela.
Um cara forçou um pigarro para chamar atenção para si e começou a dar as boas vindas a todos ali presentes. Reconheci-o como sendo o representante de nosso patrocinador principal. Era a mesma voz chata e arrastada que eu tive que ouvir durante duas semanas ao telefone. Queria socá-lo sempre que me ligava.
O anúncio foi chato, levantei-me também para agradecer a presença de todos – bons modos forçados de um anfitrião – e finalmente o filme começou.
- Se a minha personagem for uma completa idiota, eu mato você – sussurrou.
- Se você disser que a MINHA personagem é uma completa idiota, EU mato você – respondi.
Quase cantarolei a melodia de abertura juntamente com o filme. Mas eu tinha coisas mais importantes a fazer. “Soltei” nas redes sociais a história do encontro casual com uma garota que era a sósia perfeita da nova personagem de animação mais comentada mundialmente. Levaram exatos dois minutos e quarenta e dois segundo para que a mídia fosse à loucura. Minha caixa de e-mail duplicou em cinco minutos.
Adicionei a informação de que ela seria minha acompanhante na festa e desliguei o celular completamente ciente de que as cadeiras adicionais que eu tinha reservado não estariam vazias.
*****
As luzes se acenderam e todos se levantaram e aplaudiram. Se não fosse uma première, aquilo seria totalmente bizarro. Muitos vieram me cumprimentar e me parabenizar pelo trabalho feito. Disse mais de quinze agradecimentos em menos de cinco minutos.
Uns ou outros perguntavam algo sobre . Respondi boa parte das perguntas que eram endereçadas a ela, deixando-lhe apenas as mais particulares – que eu não podia responder. A timidez estava evidente no rubor de suas bochechas e em seu acanhamento. Mas ela se virou bem, driblando com maestria perguntas menos amigáveis de se responder.
Todos se dirigiram para a saída e a seus respectivos carros ou caronas com destino à festa de lançamento. , mais uma vez, veio comigo.
- O que achou do filme? – Foi minha pergunta assim que ela fechou a porta do carro e se sentou.
- Bom. Você tem talento.
- O que achou da personagem? Aretha, digo.
- Ela é... Forte.
Engasguei em algo que parecia uma risada deprimida.
- O que quis dizer com isso? Não me lembro de ter dado à minha protagonista uma dieta de batata doce.
- Não, seu tonto. Não estou falando de músculos. Ela é forte porque ela lutou pelo que queria, por melhoras. Lutou por um mundo no qual valesse a pena viver. Ela é totalmente destemida.
- O mundo precisa de mais personagens femininas fortes – constatei -, então fiz minha parte. Fico feliz de que tenha gostado da sua versão desenhada.
sorriu, concordando com a cabeça. Parecia bem mais aliviada que no começo da noite.
Chegamos à festa. Mais um tapete vermelho. A diferença é que agora existia um microfone central onde eu teria que discursar.
- Obrigado, obrigado. Bom, gostaria de agradecer a presença de todos aqui. É realmente gratificante ter esse retorno e recepção por parte do público após anos de estudo, rabiscos, rascunhos e consecutivas e incansáveis falhas. Tentei bastante e errei ainda mais. Por fim, obtive um resultado. Um resultado que me agradou e que eu julguei ser o certo. Deve haver quem discorde de mim, mas minha consciência me diz que cumpri minha missão e fiz o melhor que pude. Devo agradecer a meus pais, colegas de faculdade e de produção, professores, amigos e à minha fonte de inspiração.
é uma cantora amadora e foi a pessoa que sem querer e sem saber me inspirou a criar Aretha. Não vou me prolongar. Agradeço e me desculpo por qualquer inconveniente. Aproveitem a festa!
Caminhei até a entrada do salão, encontrando já rodeada de fotógrafos e equipes de imprensa. Ela estava assustada, coçando constantemente o braço em que eu vira a cicatriz. Talvez ela mesma tivesse feito aquilo com as unhas ao se coçar.
- Você e o estão namorando? – Bufei ao ouvir aquilo. Eles não cansavam.
- Não, não estamos – respondi, intrometendo-me. – Precisamos entrar agora.
- Há quanto tempo você está grávida?
deu um gritinho de desespero que devia ser algo como um “o quê?!”.
- Não tem gravidez alguma. Com licença, precisamos mesmo ir.
Adentramos o salão. Cumprimentei os dubladores e produtores, além de apresentar a todos eles. Finalmente uma conversa decente e sem flashes queimando meus olhos.
- Então, a bela jovem canta? – Era Hupert, um caça talentos da TV aberta de nosso estado.
- Um pouco – ela respondeu.
- , ela é encantadora. Que achado precioso! Leve-a ao estúdio, quero fazer um teste com ela. Com licença, preciso falar com a Vanessa.
- CONSEGUIMOS! – Assim que eles saíram, eu praticamente gritei.
- Ainda não, na verdade.
- Você teve uma proposta maravilhosa. Não me diga que vai desistir.
- Não vou. Obrigada, .
- Comece a me chamar de . Vai dar tudo certo. Falei que podia confiar em mim.
Em questão de segundos, os braços dela estavam ao redor do meu corpo. Abracei-a de volta, sentindo o cheiro de seu perfume. Seu abraço era forte e me peguei abraçando-a como se quisesse protegê-la de todo o mal do mundo.
*****
- E vocês se falaram durante essas duas semanas?
- Sim, – respondi. – Quase todos os dias. Mas só por telefone e mensagens.
- Eu sabia que você ia acabar se apaixonando por ela.
- Cara, eu já era apaixonado por ela antes mesmo de ser.
me encarou, piscando algumas vezes.
- Sabe que isso não faz o menor sentido, não é?
- Claro que faz. O quadro estava ali o tempo todo. Sempre foi ela.
- E ela? Já caiu no charme do garanhão?
- Não sou garanhão. E acho que não. Mas ela aceitou sair comigo hoje no final da tarde.
- VOCÊ A CHAMOU PARA SAIR E NÃO ME AVISOU? QUE TIPO DE AMIGO É VOCÊ?
- Cara, é só um café. Ela pediu ajuda com o contrato que o Hupert a ofereceu. Está meio incerta e com medo de não ter entendido totalmente as cláusulas e acabar assinando algo que possa comprometê-la posteriormente.
- E é aí que , salvador da pátria e advogado sem formação, entra.
- Parece que sim.
- Que deprimente – comentou, rodando em minha cadeira. – É, boa sorte. É o máximo que você pode ter mesmo.
*****
Folheei mais uma vez a papelada, buscando por alguma coisa que meus olhos levemente míopes poderiam ter deixado passar despercebido.
- Acho que é só isso mesmo. Não vejo nada demais. A única condição é se disponibilizar a cantar em qualquer evento, ocasião ou programa da emissora regional. Tem alguma rejeição de sua parte sobre tudo isso?
- Não. Está ótimo, na verdade. E o salário mensal quase supera o que eu ganhava em um ano. É uma proposta e tanto. Não sei como te agradecer, . Você mudou totalmente o rumo que minha vida tomaria e eu nunca vou conseguir te recompensar por isso. Você é um ótimo amigo.
Senti uma pontada no peito e uma leve careta se formando no meu rosto. Não era possível que ela não percebesse que meu maior desejo era ser mais que um amigo.
- Na verdade, você pode me ajudar com uma coisa – falei.
- Qualquer coisa, pode falar.
- Preciso que você seja minha modelo para os pôsteres e divulgação da continuação do meu filme.
- Fechado. Quando começamos?
- Amanhã cedo está bom para você? No meu estúdio.
- Estarei lá – disse com um meio sorriso.
Meu subconsciente xingava tudo que existia no mundo e também o transcendental. Passei anos procurando-a e, quando acho, sou um ótimo amigo. , você acabou de ser deixado de escanteio.
*****
Acordei com o toque extremamente alto da campainha de minha casa. Eu estava atrasado mais uma vez. Um dos motivos claros pelos quais a campainha era tão alta. Pelo menos ela me acordava.
Escovei meus dentes e fui abrir a porta praticamente voando.
- Por que eu tenho a leve impressão de que acabei de te acordar, ?
- Provavelmente porque foi o que você acabou de fazer. Mas a culpa é minha. Isso acontece pelo menos seis vezes por semana. Preciso de dois minutos para arranjar uma roupa menos amassada e talvez mais cinco se você aceitar tomar o café da manhã com este que vos fala.
- Mal tem um mês que nos conhecemos e você já se mostrou uma pessoa incrivelmente folgada – reclamou.
- Faz parte do meu charme e eu sei que você adora.
Fiz torradas para nós porque isso era o máximo de habilidade culinária matutina que eu tinha, além de ser a única coisa que existia disponível além de pizza e chocolate.
- Parece que alguém precisa ir ao supermercado – ela disse, tomando um gole de seu café. Pelo menos um café eu ainda sabia fazer.
- Parece que alguém está com um senso crítico extremamente aguçado para me ofender hoje.
- Não só hoje.
- Sei que não. Agora, levante-se daí e vamos ao estúdio.
- Se ele for uma zona...
- Ele é uma zona. Sem condições. Você me deve essa, lembra?
Ela me seguiu, bufando. Até fora do sério ela conseguia me encantar. E eu odiava ser clichê. Mesmo que eu sempre tenha sido relativamente clichê e completamente ridicularizado pelos meus amigos. “Isso é coisa de menininha” eles diziam. Sempre respondi que nada nunca tinha sido de “menininha” ou “menininho” além de genitais e mesmo eles poderiam ser trocados. Sim, você pode se juntar aos outros e rir de mim. Não é mais novidade alguma em meu cotidiano.
There's an art to life's distractions
Somehow escapes the burning weight
The art of scraping through
Some like to imagine
The dark caress of someone else
I guess any thrill will do
Enfim, estávamos acomodados no estúdio.
- Preciso fazer pose e brincar de estátua por horas que nem aqueles filmes mostram?
- Não. Mas eu preciso te olhar.
- Se é só isso, por que não me pediu para te enviar uma foto por mensagem? Muito mais fácil.
- Porque fotos não se mexem. Eu preciso retratar uma pessoa para uma animação, não faz sentido ficar olhando para uma parada se Aretha não é uma estátua. Agora faz sentido para você?
- Não.
- Ótimo, então fique aí quietinha.
- Não sou sua empregada, . E espero que trate suas empregadas melhor que isso também.
Ri e fui até ela.
- Mexa os bracinhos. – Joguei os braços dela para o alto, recebendo um duro olhar de ódio. – As pernas também. Sei lá. Pode se jogar, dançar, pular. Preciso de movimentos.
- Não vou me jogar.
- Precisava disso. Haverá uma explosão no próximo filme e ela será atingida. Não quer mesmo tentar?
- , não.
- Por favor?
- Não posso. Não me pergunte o porquê disso.
- Certo – aceitei mais uma vez. Eu tinha uma disponibilidade muito escassa de perguntas e questionamentos que podia fazer à .
- Pode ao menos deitar no chão como se tivesse sido arremessada pela pressão de uma fissão atômica?
Ela se deitou e manteve braços e pernas em uma posição um tanto quanto esquisita. Não consegui conter uma risada.
- Cala a boca ou eu paro de tentar te ajudar.
- Ok, ok. Vamos com calma, esquentadinha. Tenta não se mexer para eu conseguir decorar a posição.
E fiz. Olhei e decorei cada detalhe. Fiz um rápido esboço em meu bloco para aperfeiçoar o traçado em outro momento. Por enquanto, os rascunhos já eram mais de metade do trabalho feito.
- Posso me levantar?
- Não, está engraçado. Pode continuar mais um dez minutos assim.
Ela se levantou quase de uma vez só, quase voando no meu pescoço.
- Eu odeio você. Espero que saiba disso.
Segurei suas mãos, que pareciam desejar fortemente acertar meu rosto com um forte tapa.
- Dá para me soltar?
- Dá para parar de tentar me espancar? Quer um abraço?
Soltei-a e ela mostrou um dedo do meio, quase o esfregando em meu rosto.
- Eu estava pensando em desenhar a cicatriz que você tem no braço em Aretha. O que você acha?
- Acho que uma coisa dolorosa assim não deveria ser exposta para crianças que ainda têm alguma fé na humanidade.
tinha se encolhido, como se quisesse entrar num casulo protetor. Engoli em seco por saber que a culpa era minha. Sempre que eu tentava fazê-la participar da construção da personagem, acabava tocando no ponto errado. Parecia um deprimente talento nato.
- , olha aqui – chamei. – Desculpe-me, ok? Eu não queria te chatear, magoar ou sei lá. É incrível como eu sempre consigo te dizer a coisa errada. Eu sou um idiota, sério e...
- , para. – Ela estava chorando. Só fazia com que eu me sentisse ainda pior. – Não é culpa sua. Eu venho escondendo toda essa história de todo mundo há um bom tempo. Não queria que você soubesse. Não queria que ninguém soubesse, na verdade. Mas já se passaram treze semanas e eu não vou conseguir esconder isso por muito tempo mais. Por favor, perdoe-me por não ter dito nada antes. Eu não estava pronta. Ainda não estou, mas...
- Você não me deve satisfação alguma, . De verdade. Não é da minha conta.
- Mas eu quero, preciso. Mais cedo ou mais tarde você ficaria sabendo de qualquer forma. Prefiro confiar isso tudo a uma pessoa que me apoiou nos meus piores momentos a deixá-la saber da pior maneira.
- Você está me assustando.
Ela segurou o rosto entre as duas mãos, tentando controlar o choro e os soluços que o acompanhavam. Aquela cena deixava meu coração em frangalhos.
- Lembra quando me perguntaram, na première, se eu estava grávida e você achou um absurdo? – Meu coração parou por um instante. – Não é tão absurdo assim, afinal – disse com uma risada fraca, enxugando as lágrimas que corriam por suas bochechas. – Eu estou grávida, sim. Por isso não me joguei no chão. Por isso, mesmo nunca tendo sido um exemplo de grande magreza, eu pareço “maior” a cada semana. Você é tão observador que pensei que já teria percebido a essa altura do campeonato.
Eu estava em completo choque. Sim, a gravidez tinha me pegado de surpresa, mas não era esse o problema. Ela estava chorando e escondendo uma gravidez e era isso que eu não entendia.
- E você... Não está... Feliz com isso? – Foi o máximo que consegui pronunciar e só depois de muito esforço.
Ela respirou fundo. Mais um assunto delicado. Ótimo.
- É complicado. Podemos sentar? – Concordei na mesma hora e fomos para a cozinha, sendo esta o cômodo mais próximo. – Bom, digamos que essa gravidez não foi esperada e muito menos desejada. Droga, nunca pensei que fosse tão difícil colocar tudo isso para fora em palavras.
- A camisinha estourou? Pílula não deu certo? Saco, desculpa, não é da minha conta de novo.
Ela riu, debruçando-se sobre a mesa.
- Não houve proteção alguma, . Assim como não houve nenhum tipo de desejo ou aceitação da minha parte.
Perdi alguns segundos tentando encaixar os fatos e entender tudo aquilo. Quando o fiz, a ficha caiu e me deixou mais chocado que as notícias anteriores.
- Você foi estuprada? – Minha voz saiu quase num sussurro. Tinha um nó enorme em minha garganta. Você sempre se choca com as histórias que ouve ou que lê na internet. Você se revolta e se irrita, mas parece algo relativamente distante e improvável de estar em seus arredores. Até que acontece com alguém próximo a você.
- Pode-se dizer que sim. Mas com isso entramos em uma longa e ainda mais complicada história.
- Não precisa me contar se não quiser. Imagino como tudo isso deve ser difícil para você. Quer dizer, imagino o pânico de ser abordada sozinha e violentada sexualmente...
- Não, não, . Não foi nada disso. Eu não fui pega de surpresa sozinha em uma rua escura e deserta por um homem que simplesmente não fazia ideia de quem fosse. Eu o conhecia bem até demais.
- O quê?! Quer dizer, eu não entendo.
- Claro que não entende, . Você não tem a menor chance de passar por isso. Mesmo nós, mulheres, esperamos e acreditamos que nunca acontecerá com a gente. Foi um relacionamento abusivo. Nós dois namoramos por uns sete meses. Ele era ótimo, carinhoso, não muito presente, mas era bom o suficiente para qualquer pessoa que se preze, imagine para mim. – Outra respiração profunda. - Então, ele começou a beber e não foi pouco. Ele saía por horas e voltava com uma raiva incontrolável. No começo, ele só me assustava. Gritava, esmurrava paredes e móveis, mas não me atingia. Duas semanas depois e tudo mudou.
“Ele passou a ser mais violento e passou a me agredir a todo o momento. Comecei a apanhar. Nunca pensei que fosse acontecer comigo, mas aconteceu. Tentei terminar e ele me deu aquela cicatriz horrível no braço e outra menor escondida na base das minhas costas. Quando ele decidiu que as mãos eram pouco dolorosas, começou com os objetos cortantes. Ameaçou me matar se eu terminasse com ele. Liguei para a polícia e riram de mim quando tentei fazer a denúncia. Disseram que eu devia ser só mais uma daquelas adolescentes que passam trote para delegacias, tentando se divertir ou simplesmente chamar atenção. Eu não tinha ninguém e nem força suficiente ou mesmo coragem para desistir daquilo tudo.
Foi aí que ele adicionou a violência sexual à física. Eu não queria aquilo. Implorei para que ele não o fizesse, mas ele simplesmente não me deu ouvidos. Fez tudo mesmo assim, enquanto eu chorava e pedia para ele parar.”
- , eu não fazia ideia. Pelo amor de Deus ou de qualquer coisa em que você acredite. Isso é a coisa mais horrível que eu já ouvi na minha vida. – Eu não conseguia disfarçar meu choque, mas acho que não tinha mesmo como tentar depois de tudo o que tinha acabado de ouvir. Talvez essa fosse exatamente a reação que ela esperasse. – Posso perguntar se você pensou em arranjar uma saída para o lance da gravidez?
- Aborto? Pensei. Pensei muito porque eu podia alegar ter sido vítima de estupro. Mas, com isso, encontrei outro dois problemas. Já não tinham acreditado em mim uma vez, por que acreditariam nessa? E eu sempre achei que a culpa era minha. Se eu não tivesse sido covarde o suficiente para sofrer com as ameaças de morte, poderia ter saído e nada disso teria acontecido.
- Isso não é culpa sua, meu Deus. Nada disso foi. Você foi vítima de agressões, ameaças e estupro. VÍ-TI-MA. Não é culpa sua.
irrompeu em lágrimas mais uma vez, repetindo continuamente o quanto ela tinha sido fraca. Mesmo não sabendo se eu tinha ou não essa intimidade toda, tomei a liberdade de abraçá-la. Ela se aconchegou em meus braços, apertando-me com um pouco de força. Naquele momento, eu me vi chorando junto com ela. Não conseguia acreditar que uma pessoa que eu tanto idealizara e imaginara sendo perfeita tinha sofrido tanto na vida.
- E eu também não consegui. Não tive coragem, mesmo achando que devia. – Ela se soltou de mim, ajeitando o cabelo e passando a mão no rosto, provavelmente na tentativa de secá-lo. – Então, terei meu bebê. E essa é a história do porquê de eu ter procurado um emprego feito louca e também a razão pela qual eu tenho um certo bloqueio afetivo. Motivo pelo qual eu tentei te afastar desde o começo. Eu não sou idiota, , sei que sente alguma coisa por mim. Na verdade, foi o quem me contou.
- O QUÊ?! – Não acreditei.
- Não fique bravo com ele por ter me contado. Ele fez uma bela propaganda sua, se isso te consola. Tentou me convencer a “te amar de volta”, como ele mesmo disse.
- É extremamente vergonhoso ter que ouvir isso de você, se quer saber – comentei.
- Qual é? Eu carrego um bebê fruto de um relacionamento abusivo e você está com vergonha? Faça-me o favor, .
Instantaneamente, eu me senti um idiota de novo naquele dia. Sempre falando as coisas erradas.
- Desculpa. Aliás, se precisar de qualquer ajuda ou apoio financeiro ou emocional, saiba que pode contar comigo, certo?
- Não quero que tenham dó de mim, . Não pedi sua piedade.
- Mas eu posso e quero ajudar. Você sabe que eu me apaixonei por você. Eu sei que você não me ama. Simples assim. Mas, de qualquer forma, acho que posso ser um bom amigo e oferecer um apoio.
Ela ficou em silêncio absoluto. Foi o tempo de eu me lembrar de uma ex namorada de , que era terapeuta.
- , você se importaria se eu marcasse consultas com uma psicóloga para você?
- Você é maluco.
- Não, não sou. Eu posso te acompanhar. Não acho que nenhum de nós dois sejamos malucos. Acho que você poderia tirar coisas boas do tratamento e isso te ajudaria talvez até mesmo a lidar com o bebê que está chegando.
- A bebê. É uma menina.
- Só quero saber se vai ou não aceitar o meu pedido.
- Aceito.
- Vem morar comigo.
- O QUÊ?! Qual é o seu problema?!
- , você não tem estabilidade financeira total ainda, eu posso te ajudar. Não estou te pedindo para dividir um quarto comigo ou para nos casarmos. Eu quero ajudar. Quero cuidar de você e dela. Por favor.
- Não é possível – disse, bufando. – Certo, , eu venho. Mas só porque o hotel não terá como ser bancado por muito tempo enquanto eu tiver que cuidar das coisas para a gravidez.
- É para isso que o amigo aqui serve, não é mesmo? – Dei uma ênfase em “amigo”, tentando fazer aquilo soar irônico. Ela com certeza notou, pois riu.
E tudo depois disso foi uma sucessão de movimentos que eu não saberia dizer a ordem ou mesmo a motivação para tal.
me puxou para um abraço apertado e eu me desvencilhei o suficiente para lhe dar um beijo na bochecha. Ela virou o rosto e acabei beijando seus lábios. Tudo o que eu mais quis desde que a desenhei, finalmente tinha acontecido e eu não consigo pensar em descrever aquele momento.
Separamo-nos e minha cara de espanto estava completamente evidente.
- O que foi isso? – Não consegui evitar a pergunta.
- Talvez alguém possa te amar de volta, afinal , – foi sua resposta. Seguida de um rápido encostar de lábios. – Obrigada por aparecer em minha vida. Você é um anjo. Meu anjo.
******
Seis meses de terapia tinham se passado e a psicóloga já estava prestes a dar alta para uma praticamente em trabalho de parto.
Estávamos felizes como nunca. tinha finalmente se libertado da culpa que ela não tinha, mas sentia. Ela não escondia mais suas cicatrizes. Parara de sentir vergonha para sentir certo orgulho por ser uma sobrevivente.
Eu tinha conseguido derrubar sua barreira de medo e apreensão e a pedido em namoro durante um filme muito chato a que estávamos assistindo em um dia ainda mais chato e chuvoso – que acabou sendo um dos melhores dias de minha vida.
E essa era mais uma daquelas tardes chatas e chuvosas. Por sorte era sábado, então eu não precisava trabalhar. Ela já tinha parado de trabalhar por poder entrar em trabalho de parto a qualquer momento, considerando que a pequenina criança já não estava nada pequenina.
estava praticamente esparramada em meu colo, apoiando as mãos em sua barriga. Eu assistia ao filme, brincando de enrolar seus cabelos. Depois de vários nós por essa mania minha, ela parou de se incomodar.
- Será que ela vai gostar de filmes?
- Gostando ou não, ela vai assistir aos meus – respondi.
- Você não vai fazer minha filha crescer pensando que eu sou uma super heroína.
- Não vejo motivos para não deixar isso. Nossa garotinha merece a mãe maravilhosa que tem.
- Nossa garotinha?
se sentou me encarando como se eu tivesse acabado de dizer o maior absurdo da história mundial.
- Nós estamos em um relacionamento, pensei que já estivesse subentendido que eu assumiria sua filha.
- Que droga, . Eu já disse que não quero sua piedade. Jurava que você tinha parado com essas suas ideias.
- Ei, não é uma ideia absurda e muito menos uma atitude derivada de pena. Eu te amo, dá para entender isso? Eu te amei por completo, amei tudo sobre você e ainda amo. Ela é parte de você e eu quero cuidar dela. Você vai ter uma filha e quero que ela seja minha também. Ela não precisa crescer sem um pai, mesmo sabendo que você será uma mãe maravilhosa o suficiente que poderia dar conta de tudo sozinha. É esse o meu ponto, . Você tem plena capacidade de arcar com tudo por si só, mas isso não significa que você precise. Eu realmente quero fazer parte disso e...
- , meu Deus – agarrou meu braço com certo desespero.
- É sério. Eu não estou brincando. Nós podemos fazer isso juntos. Por favor, você pode me deixar ajudar?
- , eu preciso de ajuda.
- Aleluia! Então temos um acordo?
- Não, , cacete! Eu preciso de ajuda AGORA! A minha bolsa estourou. Eu preciso que você me leve ao hospital.
- Puta que o pariu.
Aquela foi a única coisa que consegui dizer, ao mesmo tempo em que voava para pegar a chave do carro e algumas roupas e escovas de dente.
Demos entrada no hospital da cidade e uma enfermeira apareceu prontamente para nos levar à sala de cirurgia.
- Eu posso entrar com ela? – Eu não sabia nem se podia ou se ela me queria ali, mas não custava tentar.
- Claro, o pai da criança tem permissão para assistir ao parto.
Olhei para em busca de algum sinal. Ela assentiu.
- Ótimo – disse a enfermeira. – Vamos prepará-la e o senhor pode vestir essa roupa e esperar com os médicos.
Quando trouxeram já na maca, eu não sabia o que sentir. Estava nervoso, ansioso, feliz, apavorado. Mas tudo foi relativamente como eu esperava: gritos, sangue, incentivos, lágrimas e a porcaria da minha mão tremendo mesmo segurando a dela.
Um choro diferente começou. Um mais estridente e menos controlado. Após alguns minutos, uma pequena menina estava sendo colocada nos braços de .
- É uma linda garotinha – a enfermeira disse sorrindo enquanto nós dois chorávamos. – Qual será o nome dela?
- Droga, nós nunca discutimos que nome daríamos a ela.
- É porque eu já tinha escolhido o nome. – estava rindo agora. – Aretha, dê oi para o papai. Pare de ser frouxo e segure a sua filha, .
A enfermeira retirou Aretha dos braços de e a entregou para mim.
- Certo, mas seja rápido porque precisamos levá-la ao berçário.
Eu era um desajeitado, mas consegui. Estava segurando aquele ser chorão de cinquenta centímetros em meus braços. E ela era linda.
- Ela se parece com você. É a coisa mais adorável que eu já vi em toda a minha vida. Você está aqui do lado de fora há quatro minutos e eu já te amo mais que tudo nesse mundo.
- Certo, papai coruja, hora de levar sua garotinha. Mas fique tranquilo, vocês três ainda terão muito tempo juntos.
I wake at the first cringe of morning
And my heart's already sinned
How pure, how sweet your love
Aretha, can you pray for him?
*****
- Papai, onde eu escondo a caxinha que você me deu?
Abaixei-me ao lado de Aretha. Ela usava um vestido cor de rosa e tinha os cabelos escuros trançados.
- Eu não tinha comprado uma bolsa rosa para você, filha? – Ela assentiu para mim. – Então, você vai colocar a caixinha dentro dela. Aliás, você está linda.
Aretha começou a rir. Era a reação dela sempre que lhe fazíamos um elogio. Ela já estava prestes a completar seis anos e eu achava aquilo tudo uma graça.
- Só tem um problema.
- O que é?
- A mamãe está passando aquelas tintas no rosto dela. – Era assim que ela se referia à maquiagem. – Eu fiquei com medo de atrapalhar. Posso pedir para você?
- Claro, meu amor. O que é?
- Corta a etiqueta do meu vestido? Ela fica pinicando meu pescoço e me dá uma coceira ruim.
Ri da carinha que ela fazia. Encontrei uma tesoura na gaveta e cortei a etiqueta que tanto a importunava.
- Obrigada, papai. Agora eu vou lá guardar a...
- Guardar o quê? Posso saber o que vocês dois estão aprontando aí? – estava parada na porta.
- Guardar a tesoura que o papai pegou para cortar a etiqueta para mim. – Apresento a vocês a criança mais esperta do mundo. – Vocês podem me esperar no carro. Eu já vou.
Tentei segurar a risada. estava maravilhosa como de costume. Aretha parecia muito com a mãe. Tinha seus olhos e sua personalidade.
- Ei, por que você está me encarando? Eu borrei a maquiagem? Tem batom no meu dente?
- Não, você está linda. Pronta?
- Eu estou, mas sua filha não está. – A própria ria da situação.
- Vamos logo, ela disse que podíamos ir na frente.
Dei um beijo nela e segurei sua mão.
- Depois de todos esses anos, eu ainda não consegui me acostumar com esses eventos.
- Deveria, porque dessa vez aquilo tudo é para você também. Você deixou de ser a acompanhante do diretor para ser a responsável por toda a trilha sonora.
- Nossa, que honra. – foi sarcástica como sempre.
- Ei, vocês dois. – Aretha tinha voltado à porta. – Eu peço um tempo para vocês e agora são vocês os atrasados? Que falta de educação comigo.
agarrou Aretha pela cintura fazendo cócegas nela.
Tive que colocar o CD dos Rolling Stones assim que saímos de casa a pedido de Aretha. Nunca entenderia o fascínio que minha criança tinha por aquela banda.
- Mamãe, como é lá? Como é o tapete vermelho?
- Um longo tecido vermelho onde você será cegada por flashes e te farão várias perguntas.
- Posso ir de óculos de sol para não machucar meus olhos?
- Não, filha. – Ri alto. – Mas faça como o papai: olhe diretamente para frente, através dos paparazzi. Se eles perguntarem alguma coisa, deixe que eu ou sua mãe responderemos por você. A menos que...
- A menos que o quê? – perguntou e Aretha riu. – O que vocês dois estão aprontando?
- Nada – respondemos em uníssono e eu estendi a mão para o banco traseiro de forma que ela tocasse.
Desci do carro e abri a porta para que Aretha descesse. Os flashes não a assustaram como eu pensei que fossem. Ela ajeitou a postura, deu a mão para mim e e foi andando como se tivesse total controle sobre a situação.
E as perguntas vieram, juntamente com as fotos.
- , como foi trabalhar na trilha sonora?
- Foi uma experiência maravilhosa – ela respondeu, com um sorriso. – Nunca me imaginei fazendo algo assim. Acredito que foi bastante construtivo para mim e para minha carreira.
- , como foi começar uma nova saga de filmes? Como foi trabalhar sem a Aretha?
- Não trabalhei sem a Aretha – disse, orgulhoso. – Pode não ser naquela tela, mas minhas Arethas estiveram aqui o tempo todo. – As duas sorriram automaticamente.
- Aretha – alguém chamou. Torci para que fosse a pergunta pela qual esperávamos. – Como é ser filha desses dois?
- Ah, eles são bem legais e sempre me dão abraços e chocolate.
Eu e rimos. Os paparazzi também. Aquela garota iria longe.
- Você acha que eles têm um casamento feliz?
Não era exatamente o que eu esperava, mas dava para o gasto. Aretha puxou meu braço – para chamar minha atenção – e me deu uma piscadinha.
- Eles são muito felizes juntos. Mas eles não são casados ainda.
- Não? – Todos perguntaram.
- Não. Mas o papai planejou tudo para pedir a mamãe em casamento hoje.
- O QUÊ?! – praticamente gritou.
- Filha – chamei, sem parar de olhar nos olhos de . – Pega a caixinha que o papai te deu.
- Eu não acredito que vocês fizeram isso comigo.
Aretha colocou a caixinha em minha mão e eu me ajoelhei em frente à .
- , sei que levei anos para isso, mas te amei incondicionalmente durante todos eles. Sei que tivemos nossos estranhamentos no início, mas todos os dias de felicidade ao seu lado compensariam qualquer desavença. Sei também que essa é só uma eventualidade, pois já temos uma vida inteira juntos. Mas mesmo assim, , meu amor... Você aceita se casar comigo?
Os olhos dela estavam marejados. Ela me encarava sorrindo.
- Mamãe, essa é a hora em que você diz sim – Aretha disse, puxando a barra do vestido de .
Nós rimos mais uma vez de nossa pequena.
- Sim, eu aceito.
Encaixei a aliança em seu anelar e a beijei ali mesmo. Todos ali por perto aplaudiam. Alguns até secavam tímidas lágrimas. Mas eu não ligava para nada disso. Ela estava ali. Na verdade, elas estavam. Tudo que eu mais precisava e que me fazia completo. Logo eu, sempre tão vazio, estava tão completo que quase transbordava.
- Dá para vocês dois pararem de se beijar? É nojento – Aretha reclamou.
Separamo-nos e pequei nossa menina no colo. Ela abraçou a nós dois pelo pescoço. Uma família. Minha família.
I fall in love just a little, oh, little bit every day with... YOU.
You knew who I was with every step that I ran to you
Only blue or black days
Electing strange perfections in any stranger I choose
Há quem diga que eu não sou uma das pessoas mais sãs desse nosso mundo. Balela. Estou ótimo. Não me importo com aqueles que insistem em contrariar.
Já me chamaram de canalha, galinha e cafajeste. Pela cidade, circulam uns boatos de que eu dormi com oitenta e sete mulheres até o dia de hoje. Calúnia. Não tenho certeza sobre o número exato, mas não foram mais de oito. Não faço ideia de onde saiu tal quantia absurda.
Mandaram-me à terapia. Diziam que eu sofria com a Síndrome de Don Juan – um transtorno caracterizado como a necessidade compulsiva por sedução. O terapeuta disse que não. Eu sabia que não. Eu podia apresentar alguns sintomas, mas não todos.
Você deve estar se perguntando quais sintomas apresento, de fato. Explicar-lhe-ei um pouco sobre a síndrome, se permitir. Prometo não me estender muito.
Would things be easier if there was a right way?
Honey, there is no right way.
Caracteriza-se por um envolvimento sexual com fracasso emocional. O indivíduo portador apresenta uma atração fugaz que logo desaparece. Vamos ao ponto onde me encaixo: não amei nenhuma das mulheres que passaram por minha vida de forma extrafamiliar. Não amei uma moça sequer. Mas amei pedaços de cada uma delas.
De Olívia, amei os longos cabelos. Iam até sua cintura, em madeixas onduladas bem marcadas, queimadas pelo sol.
De Jéssica, amei a boca. Os lábios grossos e rachados que raramente apresentavam a pele por completo. Ela sempre os mordia até arrancar um pedacinho que fosse.
De Mirella, amei o tronco. Braços longos com a força de alguém que não ganhou nada na vida de mãos beijadas. Seios volumosos, mas sem exageros, que se encaixavam perfeitamente em seu corpo. Não era absurdamente magra e nem ligava para isso.
De Luciana, amei o desenho do rosto. Uma simetria assimétrica, mas perfeita a meu ver. Sobrancelhas grossas, nariz fino e bochechas macias. Cílios cheios e longos. Queixo quadrado. Pele morena.
De Thabata, amei as pernas. Com todas as estrias e uma cicatriz acima do joelho. Coxas e panturrilhas que não eram nem finas e nem grossas. Afinal, isso é relativo e minha opinião divergiria da sua.
De Regina, amei os olhos. Regina fora minha Capitu. Olhos grandes, olhos de ressaca. A maresia em sua íris me puxava para sua pupila. Os olhos de cigana oblíqua e dissimulada dos quais Machado sempre falara.
Mas não amei Olívia, Jéssica, Mirella, Luciana, Thabata ou mesmo Regina. Amei pedaços. Amei todas ao mesmo tempo. Apaixonei-me pelo todo que fragmentos delas formavam. E, por isso, desenhei-os.
Meu escritório era uma declarada bagunça. Papéis, roteiros, pôsteres, rascunhos, brinquedos, esboços e ela. Lá estava ela. Ao fundo do cômodo, uma tela do tamanho de meu próprio corpo mostrava minha maior obra de arte. Montei a mulher de meus sonhos com tudo aquilo que um dia me encantou. E naquele desenho meio disforme, encontrei a única pessoa que eu poderia realmente amar por inteiro algum dia.
And so I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
I fall in love just a little, oh a little bit every day with someone new
- Não sei, cara. Umas vinte devem ser o suficiente.
- Certo. Vou avisá-los.
A porta foi fechada com um estrondo e Rick gritou um pedido de desculpas do lado de fora. Bufei, não pelo barulho, mas por que estava realmente exausto. Não dormia há aproximadamente cinquenta horas e nem os energéticos conseguiam fazer com que eu mantivesse meus olhos minimamente abertos a essa altura.
Com a première, a festa de lançamento e todos seus respectivos ajustes finais, eu mal tinha tempo para fazer qualquer coisa do lado de fora daquele maldito prédio. Eu só comia e ia ao banheiro porque tinha como fazê-lo sem sair de lá.
A papelada que eu segurava parecia estar escrita em hieróglifos. Minha vista embaçava e eu já não conseguia mais manter o foco e ler aqueles malditos contratos.
Desisti de tentar e acabei encostando a cabeça sobre a mesa e fechando os olhos.
Acordei assustado, quatro horas e meia depois, com duas mãos me sacudindo com força e uma voz gritando para que eu acordasse logo.
- Porra, . Eu vou matar você – gritei, assim que consegui adquirir o mínimo de consciência possível após ser acordado dessa maneira tão adorável.
- Ei, relaxa, cara. Eu vim te trazer a solução para os seus problemas e seu absurdo estresse.
- Eu não vou deixar você me levar para outra boate de strippers.
- Não tem nada disso. Comprei ingressos para um musical. Hoje à noite. Homenagem à Aretha Franklin, já que você tanto ama aquela mulher.
- Não amo aquela mulher. Amo as músicas dela.
- Que seja. – Ele tacou o ingresso em minha mesa. – Oito da noite. Não se atrase. Vai ser bom para você. Tem um motivo para eu ser o seu melhor amigo, afinal.
Odeio admitir que ele não poderia estar mais certo.
Estávamos em poltronas privilegiadas, com uma visão central do palco. Podia ver tudo, exceto as coxias.
- E então? – se virou para mim, dando uma leve cotovelada em meu braço direito. - Está animado para, finalmente, ver seu filme nas telas de cinema?
- Poderia estar mais se não estivesse nessa correria toda para ajeitar os detalhes finais para os próximos dias.
- Os tablóides estão loucos sobre a festa de comemoração pelo lançamento. Parece que eles conseguiram uma parte da lista de convidados e inventaram o resto para chamar mais atenção. Maldita mídia.
- Nem me fale.
- Ouvi seu secretário pedindo um suporte ou cavalete que comportasse um quadro de um metro e setenta. Está pensando em expor a... Que nome você deu para aquilo?
- Aretha, . Você deveria saber. E “aquilo” virou a personagem da animação mais esperada dos últimos três anos. Além disso, você sabe o quanto aquele quadro significa para mim.
- Sei. Só não entendo. Já era estranha sua obsessão por uma mulher feita à tinta a óleo.
- ... – Minha tentativa de interrompê-lo foi absolutamente inútil, como eu já esperava.
- Daí, como se não bastasse isso, você decide fazê-la protagonista da estréia que vai fazer sua carreira decolar. Um quadro, um filme... Não quer escrever uma música também?
- Pensei que tivéssemos combinado que você entenderia ou pelo menos fingiria.
- Certo, certo. Eu vou tentar. Só acho que você deveria tentar se desapegar desse ser inexistente que você criou para seu próprio tormento. O problema é que você insiste em trazê-lo à tona, colocando-o em toda a sua vida.
- Não vejo problema algum. Aretha recebeu esse nome em homenagem à minha cantora preferida. Recebeu um filme por eu crer que ela fosse digna disso. Ela precisava ser eternizada em telas além do meu escritório. Ela pode ser inexistente fisicamente, mas esse é o meu jeito de fazê-la existir. Se é só assim que eu posso tê-la, então me conformarei com isso.
- Você é um idiota – respondeu. – Podia estar namorando, transando, saindo para se divertir, casando, tendo filhos até... Mas você decidiu se prender à sua Aretha. Ótimo, faça como quiser. Quem sou eu para lhe impedir?
- Exatamente, aliás – eu ia continuar falando, mas não pude. Anunciaram o início do espetáculo naquele exato segundo.
As longas cortinas vermelhas foram abertas e eu aplaudi as pessoas que já estavam posicionadas no palco só porque foi o que todos na plateia fizeram. Os atores e cantores nem tinham começado, por que raios eu aplaudiria? Pura educação.
A mulher que interpretaria Aretha – assumi pela roupa e pelo penteado – falou algo tão rápido que foi, pelo menos para mim, ininteligível. Então, ela começou a cantar a primeira música. As palavras flutuavam por sua boca e eu as entendia, então. Entendia mais por ter decorado cada letra e entonação que por ouvir e assimilar, de fato. Mas ela era uma cantora espetacular de uma voz maravilhosa. Digna de Aretha Franklin. Digna de Natural Woman.
A infância da cantora foi narrada e encenada, acompanhando uma ou outra cena musical. Eu estava entretido de verdade. Não estava ansiando por aquilo a princípio, mas a peça tinha me cativado a um ponto inesperado.
Respect, Oh Happy Day, Chain of Fools e I Never Loved a Man tocaram numa belíssima sequência, passando pela juventude e adentrando a vida adulta e a fama de Franklin. Eu estava ainda mais fascinado.
Após mais de uma hora e meia assistindo àquilo tudo, a peça parecia se encaminhar para o encerramento. A melodia de I Say A Little Prayer começou a tocar, enquanto todos os atores e figurantes se juntavam no centro do palco. As laterais estavam totalmente apagadas.
Os primeiros versos foram cantados de maneira quase que frenética por todos, logo chegando ao refrão. Eu me continha para não cantar junto. Foi aí que a música desacelerou consideravelmente, tornando-se praticamente uma balada. As laterais foram acesas. Existia um pequeno grupo em cada uma delas. Todos vestidos de branco. Um coral. Perfeito.
Aquela versão da música conseguiu me conquistar totalmente, mesmo sendo tão diferente da original a qual eu estava acostumado.
Passei os olhos por todos ali, naquele palco, tentando digerir cada detalhe daquele momento, que estava sendo o melhor de minha vida já há algum tempo.
Foi quando eu a vi. Ali. Parada. Cantando de forma tímida no meio do coral, olhando para frente, ao fundo da plateia. Tive que analisar a moça de cima a baixo repetidas vezes, sem acreditar que aquilo realmente fosse possível.
Os olhos de ressaca. Os longos cabelos queimados. Os grossos lábios. A leveza simultânea a uma imagem de força notável. Tudo estava ali. Tudo nela. Cada uma das partes.
- Caralho, .
- O que é?
- Lateral esquerda. A garota ao lado do careca alto demais. Ela não te parece familiar?
Meu amigo estava nas pontas de seus pés, com os olhos apertados como um míope, tentando encontrar a garota a que eu me referi no meio de tantas pessoas.
- A de coque alto?
- Não, a de cabelo comprido e solto.
reclamava, mas continuava procurando. Até que a achou.
- Puta que o pariu. É a garota do quadro. E do filme. E da música que eu falei para você escrever.
Eu estava praticamente em transe. Nem eu acreditava na possibilidade de aquilo acontecer algum dia. A garota que eu pensava ter criado, existia. Minha obra de arte. A minha Aretha, protagonista de um filme de animação, existia. Eu mal conseguia processar aquilo tudo de forma minimamente racional.
- Isso não é possível. Não faz sentido. – Eram as únicas coisas que saiam de minha boca de forma repetida. – O que eu faço, ?
- Fale com ela, oras. Você passou anos pensando e falando sobre essa garota sem que ela ao menos fosse real na sua vida. Não tem cabimento você deixá-la ir agora que ela está bem aqui. Em carne e osso. Não em tela e tinta.
E ela estava mesmo. Acompanhada de uma intensa jovialidade que eu julgava ser o que se tem em vida fora de um quadro.
- Desculpe-me, senhor. Eu realmente não tenho como arranjar essa vaga agora. Tínhamos só quinze acessos ao camarim e foram todos vendidos há dias.
- Como assim? Não pode ser verdade. – Eu admito que parecia um fundo de desespero.
- Mas é. Está subestimando o quanto as pessoas pagam para ver um cover da Aretha Franklin de qualidade assim?
Uma ideia rápida me ocorreu. As quinze pessoas estavam ali pela cantora principal. Duvidava muito que uma simples jovem de coral receberia tantos convidados VIPs.
- Senhora, por favor – tentei novamente. – Eu não quero ver a protagonista. Estou aqui por uma moça que cantou no coral na última música.
A segurança pareceu entender o engano e passou a me olhar com certo desprezo.
- O senhor não sabe mesmo apreciar quem realmente tem talento. Onde já se viu preferir uma figurante medíocre e sem importância a vários atores verdadeiramente talentosos?! Que absurdo!
- A senhora tem como me ajudar? Não estou aqui para discutir gostos ou preferências. Não pretendo perder meu tempo com o que os outros acham ou não válido como talento. Só vim pedir para ver a garota.
Ela bufou e me acompanhou por três longos corredores até uma portinha já gasta e sem pintura. A diferença de nível e de reconhecimento era tristemente óbvia. Uma só atriz tinha uma sala enorme, arejada e bem decorada. Um grupo de coral se aglomerava numa pequena sala com apenas uma poltrona fajuta.
- O senhor sabe o nome de sua garota?
- Não faço ideia. Vim na tentativa de conhecê-la. A motivação me veio há pouco.
Recebi um duro olhar de reprovação. Mais uma pessoa na lista das que me achavam um completo doente mental. Grande coisa. Não era a primeira e com certeza não seria a última.
Fiquei do lado de fora, esperando que a segurança conseguisse fazer contato com a garota. Até porque ela também não sabia quem a minha procurada, de fato, era.
Meu coração estava acelerado em expectativa. Sabe a sensação de estar a um mínimo passo de conseguir aquilo que você sempre quis, mas nunca pensou que fosse possível ter? Se você sabe, pode imaginar meu estado. Se não sabe, provavelmente sentirá algo próximo algum dia. Nossa vez sempre chega.
Ela custava a voltar. Minhas mãos estavam geladas enquanto eu suava frio. A última vez em que eu tinha acumulado tanta ansiedade, expectativa e nervosismo de uma vez só foi no dia de receber (ou não) minha aprovação para a faculdade de cinema. E já faziam pelo menos dez anos desde que isso acontecera.
O tempo parecia estar demorando a passar. Eu checava o relógio a cada dez segundos pensando já terem se passado minutos. Então, ela finalmente retornou.
- Ela ainda está lá dentro. Concordou em conversar com o senhor, mas pediu que esperasse cinco minutos para que termine de se arrumar e guardar as coisas. O resto do coral já foi embora. Ela está sozinha, então vê se não faz eu me arrepender de ter te liberado.
- Muito obrigado. De verdade. Não sabe como isso é importante para mim.
- Não sei mesmo. Mas faça bom proveito – disse com desgosto e me deixou ali.
Comecei a andar em círculos feito um retardado. Pode rir. Eu também riria de minha lamentável situação.
- Pode entrar – uma voz feminina totalmente decidida disse. Era ela. – Se é que você realmente está aí e teve paciência para esperar.
Respirei o mais fundo que pude, tentando evitar um – altamente – possível desconforto, como uma gagueira ou algo do tipo. Não queria parecer mais idiota do que eu podia evitar. Abri a porta e coloquei o pé direito do lado de dentro. Qualquer superstição era válida. Por mais que eu mesmo ache isso meio idiota.
E ela estava ali. Olhando para mim, como se não estivesse entendendo coisa alguma. Exatamente como eu sempre pensara, imaginara, sonhara e esperara.
- Aretha... – Foi tudo o que consegui dizer, com uma voz baixa e incerta.
- Não. O senhor deve estar procurando pela protagonista. Imaginei mesmo que fosse um engano alguém me procurando.
- Não! – Minha voz saiu alta demais. – Desculpe-me. É que você é idêntica a ela. É quase inacreditável.
- Não conheço nenhuma Aretha, senhor. Não sei mesmo do que está falando. O meu nome é .
- ... – Pare de agir como imbecil, ! – Bom, primeiro, gostaria de te parabenizar pelo espetáculo.
- Obrigada, eu acho. Sem ofensas, mas o senhor deveria estar parabenizando os atores principais e não uma garota qualquer de um coral que cantou um refrão só.
- Cantou o refrão da minha música favorita. E você chamou minha atenção.
Seu rosto, até então sereno, fechou-se.
- Não estou disponível. Não é porque não tenho um cargo importante ou um baixo salário que vou vender meu corpo para o primeiro que eu chamar atenção. Não sou esse tipo de mulher, se é isso o que o senhor está pensando. Não sou um objeto, muito menos um brinquedo para prazer próprio temporário.
- O quê?! Não! Claro que não. Não é nada disso. Desculpe-me. Acabei me expressando mal. Eu sou diretor, produtor e roteirista de cinema. Meu nome é . Não diga senhor, pode me chamar pelo meu nome.
- Certo, senh... . Posso saber o que fiz para merecer atenção de alguém do cinema?
Expirei com força, parecendo mais exausto que nervoso. Deslizei meus dedos pelo touch do celular até encontrar o vídeo do primeiro trailer que eu tinha preparado para o filme.
- O que é isso? – Foi a pergunta que ela me fez, quando lhe entreguei o celular.
- O trailer do meu filme. Preste atenção, por favor. Acho que ficará claro o porquê de eu ter te chamado de Aretha quando entrei.
franziu a sobrancelha, apertando os grandes olhos. Por fim, apertou o botão de play. A música do início começou a tocar e eu sabia que a introdução narrada estava na tela. Revisei aquele um minuto e sete segundos tantas vezes que decorei até os focos da iluminação e as posições das personagens.
Quinze segundos e meio de trailer. Era o momento da grade apresentação de Aretha. Observei cautelosamente a expressão de . Seus olhos foram se arregalando de maneira lenta. Ela começou a prestar ainda mais atenção e seguiu assim até que o vídeo chegasse ao fim. E parou. Quase que estática.
- Ela é... É igual... Sou eu?
- Juro que nunca tinha te visto antes. Mas, de certa forma, sim. É você. Desenhei-a há mais de um ano. E só encontrei a modelo agora. Não faço ideia de como tentar explicar porque ou como esse tipo de coisa acontece. É surreal para mim.
- Imagina para mim... Vim cantar por um motivo que não lhe diz importância e, esperando meu anonimato rotineiro, deparo-me com uma personagem de animação que é idêntica a mim.
- Bom, a première do filme é daqui dois dias. Eu posso mudar o discurso e fazer um agradecimento a você, . Pode ser bom para sua imagem.
Ela pareceu ponderar sobre a hipótese, enquanto as mãos e braços abraçavam o próprio corpo. Levou uma fração de segundos para que ela recuperasse a postura rígida.
- Agradeço, mas não preciso de sua ajuda. Não quero visibilidade. Não preciso de favores ou dinheiro seu, como já disse. Não sou esse tipo de pessoa.
- Por favor, entenda que minha intenção aqui não é te tratar como objeto. Em momento algum foi. Só quero te ajudar. Afinal, por que você se apresentou com o coral hoje?
- Porque eu receberia um cachê razoável para tanto. Pode ser pouco para mais da metade das pessoas que o senhor deve conhecer, mas é importante para mim.
- Você vive sozinha?
- Sim. Sou meu próprio sustento. Por isso canto em corais, se é o que você quer saber. – A voz de já demonstrava certa irritação. Ela realmente não conseguia não me levar a mal.
- Exatamente. Entendo seu esforço e sei que boas oportunidades não caem do céu simplesmente. Por isso, queria te apresentar para a mídia. Você é a minha protagonista, de certa forma. Poderia te levar à première. Com certeza terão ofertas de trabalho depois disso.
- Não posso aceitar. Não vou depender de mais ninguém. Não posso fazer isso de novo.
- O que aconteceu para você não aceitar minha ajuda?! Pelo amor de Deus, eu não consigo te entender! Eu só quero ajudar.
- Desculpa... É difícil assimilar tudo isso. Não estou pronta para comentar.
- Certo. Pega o meu cartão. Se você mudar de ideia e decidir deixar que eu te ajude, pode me ligar. O convite para comparecer à première continua valendo. Abro até para um acompanhante, se quiser. Um namorado, talvez...
- NÃO! – Fui interrompido abruptamente por ela. Reação inesperada. – Não. Eu não preciso de acompanhante. Ligo se mudar de ideia, mas não fique esperando. Não creio que isso vá acontecer.
Tive que me segurar ao máximo para não falar alguma besteira. Tudo o que eu tentei desde o começo foi ser gentil e prestativo. Não entendia o porquê de uma pessoa resolver ser cabeça dura ao ponto de recusar uma ajuda que ela mesma dizia precisar. Também não conseguia compreender em que momento eu tinha sido rude ou ignorante ao ponto de ela agir como se quisesse distância. Qual é? Eu sei que tínhamos acabado de nos conhecer, mas eu não conseguia pensar em motivos para alguém ficar assim tão na defensiva.
- Está bem. Não vou mais insistir. Sabe como me achar. Mais uma vez, meus parabéns pelo espetáculo.
E saí, tentando me lembrar das coordenadas pelos corredores por onde tinha passado quase quarenta minutos atrás. me esperava logo na saída do teatro.
- E aí? Conseguiu falar com ela? É mesmo o amor da sua vida? Como ela se chama? Ela é gostosa?
- Falei. O nome dela é e não sei o sobrenome. Pare de pensar só se uma mulher é ou não gostosa, pelo menos uma vez na sua vida, . Se fosse o amor da minha vida, duvido que teria sido tão direta em me colocar de escanteio.
- Ninguém mandou já chegar querendo partir para o abate, .
- Não foi nada disso. Ela deu a entender que estava cantando por aí porque precisava se sustentar como pudesse. Eu tentei ajudar, ofereci uma aparição na première para tentar dar visibilidade a ela e até fazer uma publicidade, pedir para que ela cantasse ou sei lá. Eu poderia alavancar algumas propostas de peso para ela. Mas ela negou tudo. Diria até que com uma convicção exagerada demais. Era como se ela estivesse mesmo totalmente determinada a me deixar totalmente de fora de sua vida. Isso porque eu mal tentei entrar.
- Cara, respira. Sei que era importante, mas sei lá. Segue em frente. Você tem coisas mais importantes para se preocupar durante essa semana. Tenta focar nelas. Não vale a pena se remoer por isso. Vai acabar prejudicando os eventos e a si mesmo. Talvez até mesmo a divulgação do filme.
- Sei que você está certo. Tem razão, assumo. Mas tem noção do quão decepcionante tudo isso foi?
- Não era o que você esperava.
- Eu mal sei o que eu esperava. – Deixei meus ombros caírem um pouco para frente, segurando minha cabeça com a mão direita. – Só sei que, com toda a certeza, não era isso.
Passei quase a noite toda em claro. Tentei praticar o discurso que teria que fazer de noite, mas aquela conversa ainda não tinha saído de minha cabeça.
Liguei a Netflix em um episódio qualquer de Breaking Bad, sem nem ao menos ver que temporada eu tinha escolhido. Afinal, eu não tinha escolhido.
Minha mãe me ligou naquela tarde, assim como meus avós e algumas daquelas tias que ainda pensavam que eu tinha meus dezessete anos e gravava vídeos das formigas do jardim com minha máquina fotográfica ultrapassada. E agora minha animação ia para as maiores telas. Sem formigas levando folhas e fazendo só isso. Uma história desenhada e escrita por mim. Entre uma das maiores esperas do ano – eu só perdia para algumas sagas juvenis.
Ouvia todo mundo dizendo como estavam orgulhosos e finalmente percebi que, de certa forma, eu também estava orgulhoso de mim e do meu trabalho. Meu esforço se transformara em algo de verdade. Algo palpável. Algo reconhecido.
Mas por outro lado, tinha ela. Ela, a quem eu sempre quis orgulhar. Ela, a quem eu tanto homenageei. Ela, a quem eu tanto esperei. E ela não era minha “ela”. Pensei que achando o corpo da imagem que criei, ele acompanharia o psicológico que eu dei a ele. Esqueci-me de que ali havia uma vida própria. Fui um babaca de ter criado tanta expectativa. Mas, ao mesmo tempo, eu não conseguia me culpar totalmente.
Repeti meu discurso exatas nove vezes em frente ao espelho. Escrever e desenhar eram atividades naturais a minha pessoa. Coisas que se encaixavam. Mas eu nunca tinha sido bom em falar em público. Treinei incansavelmente o discurso, tentando manter o foco a qualquer custo à medida que cada palavra passava pelos meus olhos. Mesmo assim, eu sabia que eu acabaria esquecendo algum trecho na hora. Meu lugar era mesmo atrás das cortinas e não na frente delas.
Tomei um longo banho, tentando não me importar com o quanto a água gelada me dava calafrios. Eu sempre levei a expressão “esfriar a cabeça” muito a sério. Minha irmã sempre ria de mim por manias como essa.
Coloquei o terno azul marinho com riscas de giz e sapatos pretos, da mesma cor de meu relógio. Mandei uma mensagem pedindo que se adiantasse e me encontrasse na entrada do evento. Não me sentia nem um pouco preparado para enfrentar o tapete vermelho sozinho.
A cada semáforo, minha tensão aumentava. Metros a mais, em minha cabeça, só me lembravam de que eram metros a menos também. Essa é a hora em que você diz: “Nossa, , como você é ridículo e cafona”. Sou mesmo e agradeço sua análise.
A música de abertura de Star Wars começou a tocar, conectada ao bluetooth do carro – o que me deu um susto, pela altura do toque do celular. “Número desconhecido” eram as palavras na tela. Atendi mesmo assim, afinal, podia ser algum problema no evento.
- Alô?
- ? É você? – Era uma voz feminina que não me soava totalmente desconhecida.
- Sim. Com quem estou falando?
- É a . – Freei o carro bruscamente. – Bem, é... Eu mudei de ideia. Será que tem como voltar atrás agora? Desculpa, eu sei que já está bem tarde. Não tem problema se não der, eu só...
- Onde você está? – Eu já tinha estacionado meu carro no primeiro acostamento que encontrei.
- Como assim?
- Eu quero saber o endereço de onde você está nesse momento.
- Não sei o endereço certo, . Estou hospedada naquele hotel pequeno do centro.
- O amarelinho? Com um pomar na frente?
- Esse mesmo.
- Certo. Vá se arrumar que eu passo para te buscar em quinze minutos. Não se atrase.
Ainda tive que esperá-la por mais oito minutos. Reconheci mesmo no escuro. Tantas vezes desenhei cada traço dela. Não poderia ser diferente.
Ela usava um vestido verde claro sem mangas que ia até seus joelhos. O cabelo estava preso em um simples rabo de cavalo. Não estava deslumbrantemente elegante ou chique, mas estava maravilhosa com toda sua simplicidade.
- Para de me encarar como se eu fosse um cachorro de rua.
- Duvido que cachorros de rua usem vestidos de festa – afirmei. – Posso perguntar o que te fez mudar de ideia?
- Decidi aceitar sua ajuda. Algumas coisas estão para mudar e eu não tenho muita garantia de emprego. Você disse que poderiam aparecer propostas. Preciso delas.
- Não vai se arrepender – respondi, dando a partida no carro. – Não tinha visto essa cicatriz em seu braço.
Ela se afastou abruptamente e escondeu o braço, tampando a marca com a outra mão.
- Sinto muito. – Foi minha reação automática – Não quis parecer indelicado ou intrometido.
- Tudo bem. – Ela estava visivelmente incomodada. – Só não saio por aí falando sobre isso.
Chegamos ao local da première e os flashes mal me deixaram descer do carro. Corri os olhos por toda a rua e não vi . Aquele filho da mãe.
Desci rapidamente e abri a porta para , que me encarou com estranhamento total.
- Não precisa agir como se fôssemos um casal – ela reclamou.
- Estou agindo como um homem educado. Vamos.
Os paparazzi foram à loucura. O barulho era altíssimo e as luzes quase me cegavam. Minha pupila não conseguia se ajustar por um segundo sequer.
- Qual sua motivação para criar esse filme?
- Qual o enredo?
- De onde veio toda essa inspiração?
- , quem é essa garota?
- Ela parece a sua personagem. Foi inspirada em sua namorada, então?
- Vocês têm alguma pretensão de se casar em breve?
E várias outras perguntas entrecruzadas demais para que eu as distinguisse.
- O filme conta a história de Aretha, uma mulher de vinte e três anos que acaba parando em um novo mundo e em uma diferente época. Esse novo local é uma utopia, completamente perfeito. Até que um dia, uma grande reviravolta acontece e vira tudo de cabeça para baixo. Aretha, acostumada com os problemas de humanos comuns, é a única pessoa que parece ter capacidade de lidar com problemas e se torna a esperança daquele povo. Além de ser a grande heroína para os outros, é a heroína de si mesma. Tem uma grande reflexão no fim do filme.
- Queremos respostas sobre a garota também – uma mulher insistiu.
- Essa é , uma cantora de coral, aspirante a trabalhos maiores. Ela foi minha inspiração para Aretha, sim. Mas eu não a conhecia. Encontramo-nos por acaso alguns dias atrás e foi um choque total para os dois.
- Então, estão namorando?
- Não, não estamos. Não vamos nos casar. Aproveitem o filme. – Acenei com cabeça e mãos e segui para a sala de cinema separada para a primeira exibição, especial para os convidados. veio comigo.
- Que pessoal chato. – Ri do comentário dela.
- Você não viu nada, senhorita. Acabei de perceber que não sei seu sobrenome.
- Porque não te interessa.
- O que falamos sobre educação? – Foi a vez de ela rir. Uma risada divertida.
- Estava só brincando. . Sobrenomes esquisitos de famílias imigrantes.
- Líbano?
- Isso. - Seu tom era de deboche.
Ela sorriu e eu a guiei, com a mão em seu ombro, até os lugares reservados para nós.
Todas as pessoas apontavam para ela e cochichavam algo entre si. Ela não tinha notado, mas eu me incomodei com aquilo. Não gostava de pessoas que tiravam conclusões precipitadas e se dispunham a manter um pré-julgamento totalmente sem embasamento sobre outra que acabavam de ter conhecimento sobre a existência.
Foi aí que vi que todos seguravam os folhetos do filme que ilustravam a imagem de Aretha. Não era um julgamento. Ela só tinha sido reconhecida mais uma vez. Fiquei imaginando se uma daquelas pessoas em trajes formais não seria a salvação profissional e financeira dela.
Um cara forçou um pigarro para chamar atenção para si e começou a dar as boas vindas a todos ali presentes. Reconheci-o como sendo o representante de nosso patrocinador principal. Era a mesma voz chata e arrastada que eu tive que ouvir durante duas semanas ao telefone. Queria socá-lo sempre que me ligava.
O anúncio foi chato, levantei-me também para agradecer a presença de todos – bons modos forçados de um anfitrião – e finalmente o filme começou.
- Se a minha personagem for uma completa idiota, eu mato você – sussurrou.
- Se você disser que a MINHA personagem é uma completa idiota, EU mato você – respondi.
Quase cantarolei a melodia de abertura juntamente com o filme. Mas eu tinha coisas mais importantes a fazer. “Soltei” nas redes sociais a história do encontro casual com uma garota que era a sósia perfeita da nova personagem de animação mais comentada mundialmente. Levaram exatos dois minutos e quarenta e dois segundo para que a mídia fosse à loucura. Minha caixa de e-mail duplicou em cinco minutos.
Adicionei a informação de que ela seria minha acompanhante na festa e desliguei o celular completamente ciente de que as cadeiras adicionais que eu tinha reservado não estariam vazias.
As luzes se acenderam e todos se levantaram e aplaudiram. Se não fosse uma première, aquilo seria totalmente bizarro. Muitos vieram me cumprimentar e me parabenizar pelo trabalho feito. Disse mais de quinze agradecimentos em menos de cinco minutos.
Uns ou outros perguntavam algo sobre . Respondi boa parte das perguntas que eram endereçadas a ela, deixando-lhe apenas as mais particulares – que eu não podia responder. A timidez estava evidente no rubor de suas bochechas e em seu acanhamento. Mas ela se virou bem, driblando com maestria perguntas menos amigáveis de se responder.
Todos se dirigiram para a saída e a seus respectivos carros ou caronas com destino à festa de lançamento. , mais uma vez, veio comigo.
- O que achou do filme? – Foi minha pergunta assim que ela fechou a porta do carro e se sentou.
- Bom. Você tem talento.
- O que achou da personagem? Aretha, digo.
- Ela é... Forte.
Engasguei em algo que parecia uma risada deprimida.
- O que quis dizer com isso? Não me lembro de ter dado à minha protagonista uma dieta de batata doce.
- Não, seu tonto. Não estou falando de músculos. Ela é forte porque ela lutou pelo que queria, por melhoras. Lutou por um mundo no qual valesse a pena viver. Ela é totalmente destemida.
- O mundo precisa de mais personagens femininas fortes – constatei -, então fiz minha parte. Fico feliz de que tenha gostado da sua versão desenhada.
sorriu, concordando com a cabeça. Parecia bem mais aliviada que no começo da noite.
Chegamos à festa. Mais um tapete vermelho. A diferença é que agora existia um microfone central onde eu teria que discursar.
- Obrigado, obrigado. Bom, gostaria de agradecer a presença de todos aqui. É realmente gratificante ter esse retorno e recepção por parte do público após anos de estudo, rabiscos, rascunhos e consecutivas e incansáveis falhas. Tentei bastante e errei ainda mais. Por fim, obtive um resultado. Um resultado que me agradou e que eu julguei ser o certo. Deve haver quem discorde de mim, mas minha consciência me diz que cumpri minha missão e fiz o melhor que pude. Devo agradecer a meus pais, colegas de faculdade e de produção, professores, amigos e à minha fonte de inspiração.
é uma cantora amadora e foi a pessoa que sem querer e sem saber me inspirou a criar Aretha. Não vou me prolongar. Agradeço e me desculpo por qualquer inconveniente. Aproveitem a festa!
Caminhei até a entrada do salão, encontrando já rodeada de fotógrafos e equipes de imprensa. Ela estava assustada, coçando constantemente o braço em que eu vira a cicatriz. Talvez ela mesma tivesse feito aquilo com as unhas ao se coçar.
- Você e o estão namorando? – Bufei ao ouvir aquilo. Eles não cansavam.
- Não, não estamos – respondi, intrometendo-me. – Precisamos entrar agora.
- Há quanto tempo você está grávida?
deu um gritinho de desespero que devia ser algo como um “o quê?!”.
- Não tem gravidez alguma. Com licença, precisamos mesmo ir.
Adentramos o salão. Cumprimentei os dubladores e produtores, além de apresentar a todos eles. Finalmente uma conversa decente e sem flashes queimando meus olhos.
- Então, a bela jovem canta? – Era Hupert, um caça talentos da TV aberta de nosso estado.
- Um pouco – ela respondeu.
- , ela é encantadora. Que achado precioso! Leve-a ao estúdio, quero fazer um teste com ela. Com licença, preciso falar com a Vanessa.
- CONSEGUIMOS! – Assim que eles saíram, eu praticamente gritei.
- Ainda não, na verdade.
- Você teve uma proposta maravilhosa. Não me diga que vai desistir.
- Não vou. Obrigada, .
- Comece a me chamar de . Vai dar tudo certo. Falei que podia confiar em mim.
Em questão de segundos, os braços dela estavam ao redor do meu corpo. Abracei-a de volta, sentindo o cheiro de seu perfume. Seu abraço era forte e me peguei abraçando-a como se quisesse protegê-la de todo o mal do mundo.
- E vocês se falaram durante essas duas semanas?
- Sim, – respondi. – Quase todos os dias. Mas só por telefone e mensagens.
- Eu sabia que você ia acabar se apaixonando por ela.
- Cara, eu já era apaixonado por ela antes mesmo de ser.
me encarou, piscando algumas vezes.
- Sabe que isso não faz o menor sentido, não é?
- Claro que faz. O quadro estava ali o tempo todo. Sempre foi ela.
- E ela? Já caiu no charme do garanhão?
- Não sou garanhão. E acho que não. Mas ela aceitou sair comigo hoje no final da tarde.
- VOCÊ A CHAMOU PARA SAIR E NÃO ME AVISOU? QUE TIPO DE AMIGO É VOCÊ?
- Cara, é só um café. Ela pediu ajuda com o contrato que o Hupert a ofereceu. Está meio incerta e com medo de não ter entendido totalmente as cláusulas e acabar assinando algo que possa comprometê-la posteriormente.
- E é aí que , salvador da pátria e advogado sem formação, entra.
- Parece que sim.
- Que deprimente – comentou, rodando em minha cadeira. – É, boa sorte. É o máximo que você pode ter mesmo.
Folheei mais uma vez a papelada, buscando por alguma coisa que meus olhos levemente míopes poderiam ter deixado passar despercebido.
- Acho que é só isso mesmo. Não vejo nada demais. A única condição é se disponibilizar a cantar em qualquer evento, ocasião ou programa da emissora regional. Tem alguma rejeição de sua parte sobre tudo isso?
- Não. Está ótimo, na verdade. E o salário mensal quase supera o que eu ganhava em um ano. É uma proposta e tanto. Não sei como te agradecer, . Você mudou totalmente o rumo que minha vida tomaria e eu nunca vou conseguir te recompensar por isso. Você é um ótimo amigo.
Senti uma pontada no peito e uma leve careta se formando no meu rosto. Não era possível que ela não percebesse que meu maior desejo era ser mais que um amigo.
- Na verdade, você pode me ajudar com uma coisa – falei.
- Qualquer coisa, pode falar.
- Preciso que você seja minha modelo para os pôsteres e divulgação da continuação do meu filme.
- Fechado. Quando começamos?
- Amanhã cedo está bom para você? No meu estúdio.
- Estarei lá – disse com um meio sorriso.
Meu subconsciente xingava tudo que existia no mundo e também o transcendental. Passei anos procurando-a e, quando acho, sou um ótimo amigo. , você acabou de ser deixado de escanteio.
Acordei com o toque extremamente alto da campainha de minha casa. Eu estava atrasado mais uma vez. Um dos motivos claros pelos quais a campainha era tão alta. Pelo menos ela me acordava.
Escovei meus dentes e fui abrir a porta praticamente voando.
- Por que eu tenho a leve impressão de que acabei de te acordar, ?
- Provavelmente porque foi o que você acabou de fazer. Mas a culpa é minha. Isso acontece pelo menos seis vezes por semana. Preciso de dois minutos para arranjar uma roupa menos amassada e talvez mais cinco se você aceitar tomar o café da manhã com este que vos fala.
- Mal tem um mês que nos conhecemos e você já se mostrou uma pessoa incrivelmente folgada – reclamou.
- Faz parte do meu charme e eu sei que você adora.
Fiz torradas para nós porque isso era o máximo de habilidade culinária matutina que eu tinha, além de ser a única coisa que existia disponível além de pizza e chocolate.
- Parece que alguém precisa ir ao supermercado – ela disse, tomando um gole de seu café. Pelo menos um café eu ainda sabia fazer.
- Parece que alguém está com um senso crítico extremamente aguçado para me ofender hoje.
- Não só hoje.
- Sei que não. Agora, levante-se daí e vamos ao estúdio.
- Se ele for uma zona...
- Ele é uma zona. Sem condições. Você me deve essa, lembra?
Ela me seguiu, bufando. Até fora do sério ela conseguia me encantar. E eu odiava ser clichê. Mesmo que eu sempre tenha sido relativamente clichê e completamente ridicularizado pelos meus amigos. “Isso é coisa de menininha” eles diziam. Sempre respondi que nada nunca tinha sido de “menininha” ou “menininho” além de genitais e mesmo eles poderiam ser trocados. Sim, você pode se juntar aos outros e rir de mim. Não é mais novidade alguma em meu cotidiano.
There's an art to life's distractions
Somehow escapes the burning weight
The art of scraping through
Some like to imagine
The dark caress of someone else
I guess any thrill will do
Enfim, estávamos acomodados no estúdio.
- Preciso fazer pose e brincar de estátua por horas que nem aqueles filmes mostram?
- Não. Mas eu preciso te olhar.
- Se é só isso, por que não me pediu para te enviar uma foto por mensagem? Muito mais fácil.
- Porque fotos não se mexem. Eu preciso retratar uma pessoa para uma animação, não faz sentido ficar olhando para uma parada se Aretha não é uma estátua. Agora faz sentido para você?
- Não.
- Ótimo, então fique aí quietinha.
- Não sou sua empregada, . E espero que trate suas empregadas melhor que isso também.
Ri e fui até ela.
- Mexa os bracinhos. – Joguei os braços dela para o alto, recebendo um duro olhar de ódio. – As pernas também. Sei lá. Pode se jogar, dançar, pular. Preciso de movimentos.
- Não vou me jogar.
- Precisava disso. Haverá uma explosão no próximo filme e ela será atingida. Não quer mesmo tentar?
- , não.
- Por favor?
- Não posso. Não me pergunte o porquê disso.
- Certo – aceitei mais uma vez. Eu tinha uma disponibilidade muito escassa de perguntas e questionamentos que podia fazer à .
- Pode ao menos deitar no chão como se tivesse sido arremessada pela pressão de uma fissão atômica?
Ela se deitou e manteve braços e pernas em uma posição um tanto quanto esquisita. Não consegui conter uma risada.
- Cala a boca ou eu paro de tentar te ajudar.
- Ok, ok. Vamos com calma, esquentadinha. Tenta não se mexer para eu conseguir decorar a posição.
E fiz. Olhei e decorei cada detalhe. Fiz um rápido esboço em meu bloco para aperfeiçoar o traçado em outro momento. Por enquanto, os rascunhos já eram mais de metade do trabalho feito.
- Posso me levantar?
- Não, está engraçado. Pode continuar mais um dez minutos assim.
Ela se levantou quase de uma vez só, quase voando no meu pescoço.
- Eu odeio você. Espero que saiba disso.
Segurei suas mãos, que pareciam desejar fortemente acertar meu rosto com um forte tapa.
- Dá para me soltar?
- Dá para parar de tentar me espancar? Quer um abraço?
Soltei-a e ela mostrou um dedo do meio, quase o esfregando em meu rosto.
- Eu estava pensando em desenhar a cicatriz que você tem no braço em Aretha. O que você acha?
- Acho que uma coisa dolorosa assim não deveria ser exposta para crianças que ainda têm alguma fé na humanidade.
tinha se encolhido, como se quisesse entrar num casulo protetor. Engoli em seco por saber que a culpa era minha. Sempre que eu tentava fazê-la participar da construção da personagem, acabava tocando no ponto errado. Parecia um deprimente talento nato.
- , olha aqui – chamei. – Desculpe-me, ok? Eu não queria te chatear, magoar ou sei lá. É incrível como eu sempre consigo te dizer a coisa errada. Eu sou um idiota, sério e...
- , para. – Ela estava chorando. Só fazia com que eu me sentisse ainda pior. – Não é culpa sua. Eu venho escondendo toda essa história de todo mundo há um bom tempo. Não queria que você soubesse. Não queria que ninguém soubesse, na verdade. Mas já se passaram treze semanas e eu não vou conseguir esconder isso por muito tempo mais. Por favor, perdoe-me por não ter dito nada antes. Eu não estava pronta. Ainda não estou, mas...
- Você não me deve satisfação alguma, . De verdade. Não é da minha conta.
- Mas eu quero, preciso. Mais cedo ou mais tarde você ficaria sabendo de qualquer forma. Prefiro confiar isso tudo a uma pessoa que me apoiou nos meus piores momentos a deixá-la saber da pior maneira.
- Você está me assustando.
Ela segurou o rosto entre as duas mãos, tentando controlar o choro e os soluços que o acompanhavam. Aquela cena deixava meu coração em frangalhos.
- Lembra quando me perguntaram, na première, se eu estava grávida e você achou um absurdo? – Meu coração parou por um instante. – Não é tão absurdo assim, afinal – disse com uma risada fraca, enxugando as lágrimas que corriam por suas bochechas. – Eu estou grávida, sim. Por isso não me joguei no chão. Por isso, mesmo nunca tendo sido um exemplo de grande magreza, eu pareço “maior” a cada semana. Você é tão observador que pensei que já teria percebido a essa altura do campeonato.
Eu estava em completo choque. Sim, a gravidez tinha me pegado de surpresa, mas não era esse o problema. Ela estava chorando e escondendo uma gravidez e era isso que eu não entendia.
- E você... Não está... Feliz com isso? – Foi o máximo que consegui pronunciar e só depois de muito esforço.
Ela respirou fundo. Mais um assunto delicado. Ótimo.
- É complicado. Podemos sentar? – Concordei na mesma hora e fomos para a cozinha, sendo esta o cômodo mais próximo. – Bom, digamos que essa gravidez não foi esperada e muito menos desejada. Droga, nunca pensei que fosse tão difícil colocar tudo isso para fora em palavras.
- A camisinha estourou? Pílula não deu certo? Saco, desculpa, não é da minha conta de novo.
Ela riu, debruçando-se sobre a mesa.
- Não houve proteção alguma, . Assim como não houve nenhum tipo de desejo ou aceitação da minha parte.
Perdi alguns segundos tentando encaixar os fatos e entender tudo aquilo. Quando o fiz, a ficha caiu e me deixou mais chocado que as notícias anteriores.
- Você foi estuprada? – Minha voz saiu quase num sussurro. Tinha um nó enorme em minha garganta. Você sempre se choca com as histórias que ouve ou que lê na internet. Você se revolta e se irrita, mas parece algo relativamente distante e improvável de estar em seus arredores. Até que acontece com alguém próximo a você.
- Pode-se dizer que sim. Mas com isso entramos em uma longa e ainda mais complicada história.
- Não precisa me contar se não quiser. Imagino como tudo isso deve ser difícil para você. Quer dizer, imagino o pânico de ser abordada sozinha e violentada sexualmente...
- Não, não, . Não foi nada disso. Eu não fui pega de surpresa sozinha em uma rua escura e deserta por um homem que simplesmente não fazia ideia de quem fosse. Eu o conhecia bem até demais.
- O quê?! Quer dizer, eu não entendo.
- Claro que não entende, . Você não tem a menor chance de passar por isso. Mesmo nós, mulheres, esperamos e acreditamos que nunca acontecerá com a gente. Foi um relacionamento abusivo. Nós dois namoramos por uns sete meses. Ele era ótimo, carinhoso, não muito presente, mas era bom o suficiente para qualquer pessoa que se preze, imagine para mim. – Outra respiração profunda. - Então, ele começou a beber e não foi pouco. Ele saía por horas e voltava com uma raiva incontrolável. No começo, ele só me assustava. Gritava, esmurrava paredes e móveis, mas não me atingia. Duas semanas depois e tudo mudou.
“Ele passou a ser mais violento e passou a me agredir a todo o momento. Comecei a apanhar. Nunca pensei que fosse acontecer comigo, mas aconteceu. Tentei terminar e ele me deu aquela cicatriz horrível no braço e outra menor escondida na base das minhas costas. Quando ele decidiu que as mãos eram pouco dolorosas, começou com os objetos cortantes. Ameaçou me matar se eu terminasse com ele. Liguei para a polícia e riram de mim quando tentei fazer a denúncia. Disseram que eu devia ser só mais uma daquelas adolescentes que passam trote para delegacias, tentando se divertir ou simplesmente chamar atenção. Eu não tinha ninguém e nem força suficiente ou mesmo coragem para desistir daquilo tudo.
Foi aí que ele adicionou a violência sexual à física. Eu não queria aquilo. Implorei para que ele não o fizesse, mas ele simplesmente não me deu ouvidos. Fez tudo mesmo assim, enquanto eu chorava e pedia para ele parar.”
- , eu não fazia ideia. Pelo amor de Deus ou de qualquer coisa em que você acredite. Isso é a coisa mais horrível que eu já ouvi na minha vida. – Eu não conseguia disfarçar meu choque, mas acho que não tinha mesmo como tentar depois de tudo o que tinha acabado de ouvir. Talvez essa fosse exatamente a reação que ela esperasse. – Posso perguntar se você pensou em arranjar uma saída para o lance da gravidez?
- Aborto? Pensei. Pensei muito porque eu podia alegar ter sido vítima de estupro. Mas, com isso, encontrei outro dois problemas. Já não tinham acreditado em mim uma vez, por que acreditariam nessa? E eu sempre achei que a culpa era minha. Se eu não tivesse sido covarde o suficiente para sofrer com as ameaças de morte, poderia ter saído e nada disso teria acontecido.
- Isso não é culpa sua, meu Deus. Nada disso foi. Você foi vítima de agressões, ameaças e estupro. VÍ-TI-MA. Não é culpa sua.
irrompeu em lágrimas mais uma vez, repetindo continuamente o quanto ela tinha sido fraca. Mesmo não sabendo se eu tinha ou não essa intimidade toda, tomei a liberdade de abraçá-la. Ela se aconchegou em meus braços, apertando-me com um pouco de força. Naquele momento, eu me vi chorando junto com ela. Não conseguia acreditar que uma pessoa que eu tanto idealizara e imaginara sendo perfeita tinha sofrido tanto na vida.
- E eu também não consegui. Não tive coragem, mesmo achando que devia. – Ela se soltou de mim, ajeitando o cabelo e passando a mão no rosto, provavelmente na tentativa de secá-lo. – Então, terei meu bebê. E essa é a história do porquê de eu ter procurado um emprego feito louca e também a razão pela qual eu tenho um certo bloqueio afetivo. Motivo pelo qual eu tentei te afastar desde o começo. Eu não sou idiota, , sei que sente alguma coisa por mim. Na verdade, foi o quem me contou.
- O QUÊ?! – Não acreditei.
- Não fique bravo com ele por ter me contado. Ele fez uma bela propaganda sua, se isso te consola. Tentou me convencer a “te amar de volta”, como ele mesmo disse.
- É extremamente vergonhoso ter que ouvir isso de você, se quer saber – comentei.
- Qual é? Eu carrego um bebê fruto de um relacionamento abusivo e você está com vergonha? Faça-me o favor, .
Instantaneamente, eu me senti um idiota de novo naquele dia. Sempre falando as coisas erradas.
- Desculpa. Aliás, se precisar de qualquer ajuda ou apoio financeiro ou emocional, saiba que pode contar comigo, certo?
- Não quero que tenham dó de mim, . Não pedi sua piedade.
- Mas eu posso e quero ajudar. Você sabe que eu me apaixonei por você. Eu sei que você não me ama. Simples assim. Mas, de qualquer forma, acho que posso ser um bom amigo e oferecer um apoio.
Ela ficou em silêncio absoluto. Foi o tempo de eu me lembrar de uma ex namorada de , que era terapeuta.
- , você se importaria se eu marcasse consultas com uma psicóloga para você?
- Você é maluco.
- Não, não sou. Eu posso te acompanhar. Não acho que nenhum de nós dois sejamos malucos. Acho que você poderia tirar coisas boas do tratamento e isso te ajudaria talvez até mesmo a lidar com o bebê que está chegando.
- A bebê. É uma menina.
- Só quero saber se vai ou não aceitar o meu pedido.
- Aceito.
- Vem morar comigo.
- O QUÊ?! Qual é o seu problema?!
- , você não tem estabilidade financeira total ainda, eu posso te ajudar. Não estou te pedindo para dividir um quarto comigo ou para nos casarmos. Eu quero ajudar. Quero cuidar de você e dela. Por favor.
- Não é possível – disse, bufando. – Certo, , eu venho. Mas só porque o hotel não terá como ser bancado por muito tempo enquanto eu tiver que cuidar das coisas para a gravidez.
- É para isso que o amigo aqui serve, não é mesmo? – Dei uma ênfase em “amigo”, tentando fazer aquilo soar irônico. Ela com certeza notou, pois riu.
E tudo depois disso foi uma sucessão de movimentos que eu não saberia dizer a ordem ou mesmo a motivação para tal.
me puxou para um abraço apertado e eu me desvencilhei o suficiente para lhe dar um beijo na bochecha. Ela virou o rosto e acabei beijando seus lábios. Tudo o que eu mais quis desde que a desenhei, finalmente tinha acontecido e eu não consigo pensar em descrever aquele momento.
Separamo-nos e minha cara de espanto estava completamente evidente.
- O que foi isso? – Não consegui evitar a pergunta.
- Talvez alguém possa te amar de volta, afinal , – foi sua resposta. Seguida de um rápido encostar de lábios. – Obrigada por aparecer em minha vida. Você é um anjo. Meu anjo.
Seis meses de terapia tinham se passado e a psicóloga já estava prestes a dar alta para uma praticamente em trabalho de parto.
Estávamos felizes como nunca. tinha finalmente se libertado da culpa que ela não tinha, mas sentia. Ela não escondia mais suas cicatrizes. Parara de sentir vergonha para sentir certo orgulho por ser uma sobrevivente.
Eu tinha conseguido derrubar sua barreira de medo e apreensão e a pedido em namoro durante um filme muito chato a que estávamos assistindo em um dia ainda mais chato e chuvoso – que acabou sendo um dos melhores dias de minha vida.
E essa era mais uma daquelas tardes chatas e chuvosas. Por sorte era sábado, então eu não precisava trabalhar. Ela já tinha parado de trabalhar por poder entrar em trabalho de parto a qualquer momento, considerando que a pequenina criança já não estava nada pequenina.
estava praticamente esparramada em meu colo, apoiando as mãos em sua barriga. Eu assistia ao filme, brincando de enrolar seus cabelos. Depois de vários nós por essa mania minha, ela parou de se incomodar.
- Será que ela vai gostar de filmes?
- Gostando ou não, ela vai assistir aos meus – respondi.
- Você não vai fazer minha filha crescer pensando que eu sou uma super heroína.
- Não vejo motivos para não deixar isso. Nossa garotinha merece a mãe maravilhosa que tem.
- Nossa garotinha?
se sentou me encarando como se eu tivesse acabado de dizer o maior absurdo da história mundial.
- Nós estamos em um relacionamento, pensei que já estivesse subentendido que eu assumiria sua filha.
- Que droga, . Eu já disse que não quero sua piedade. Jurava que você tinha parado com essas suas ideias.
- Ei, não é uma ideia absurda e muito menos uma atitude derivada de pena. Eu te amo, dá para entender isso? Eu te amei por completo, amei tudo sobre você e ainda amo. Ela é parte de você e eu quero cuidar dela. Você vai ter uma filha e quero que ela seja minha também. Ela não precisa crescer sem um pai, mesmo sabendo que você será uma mãe maravilhosa o suficiente que poderia dar conta de tudo sozinha. É esse o meu ponto, . Você tem plena capacidade de arcar com tudo por si só, mas isso não significa que você precise. Eu realmente quero fazer parte disso e...
- , meu Deus – agarrou meu braço com certo desespero.
- É sério. Eu não estou brincando. Nós podemos fazer isso juntos. Por favor, você pode me deixar ajudar?
- , eu preciso de ajuda.
- Aleluia! Então temos um acordo?
- Não, , cacete! Eu preciso de ajuda AGORA! A minha bolsa estourou. Eu preciso que você me leve ao hospital.
- Puta que o pariu.
Aquela foi a única coisa que consegui dizer, ao mesmo tempo em que voava para pegar a chave do carro e algumas roupas e escovas de dente.
Demos entrada no hospital da cidade e uma enfermeira apareceu prontamente para nos levar à sala de cirurgia.
- Eu posso entrar com ela? – Eu não sabia nem se podia ou se ela me queria ali, mas não custava tentar.
- Claro, o pai da criança tem permissão para assistir ao parto.
Olhei para em busca de algum sinal. Ela assentiu.
- Ótimo – disse a enfermeira. – Vamos prepará-la e o senhor pode vestir essa roupa e esperar com os médicos.
Quando trouxeram já na maca, eu não sabia o que sentir. Estava nervoso, ansioso, feliz, apavorado. Mas tudo foi relativamente como eu esperava: gritos, sangue, incentivos, lágrimas e a porcaria da minha mão tremendo mesmo segurando a dela.
Um choro diferente começou. Um mais estridente e menos controlado. Após alguns minutos, uma pequena menina estava sendo colocada nos braços de .
- É uma linda garotinha – a enfermeira disse sorrindo enquanto nós dois chorávamos. – Qual será o nome dela?
- Droga, nós nunca discutimos que nome daríamos a ela.
- É porque eu já tinha escolhido o nome. – estava rindo agora. – Aretha, dê oi para o papai. Pare de ser frouxo e segure a sua filha, .
A enfermeira retirou Aretha dos braços de e a entregou para mim.
- Certo, mas seja rápido porque precisamos levá-la ao berçário.
Eu era um desajeitado, mas consegui. Estava segurando aquele ser chorão de cinquenta centímetros em meus braços. E ela era linda.
- Ela se parece com você. É a coisa mais adorável que eu já vi em toda a minha vida. Você está aqui do lado de fora há quatro minutos e eu já te amo mais que tudo nesse mundo.
- Certo, papai coruja, hora de levar sua garotinha. Mas fique tranquilo, vocês três ainda terão muito tempo juntos.
I wake at the first cringe of morning
And my heart's already sinned
How pure, how sweet your love
Aretha, can you pray for him?
- Papai, onde eu escondo a caxinha que você me deu?
Abaixei-me ao lado de Aretha. Ela usava um vestido cor de rosa e tinha os cabelos escuros trançados.
- Eu não tinha comprado uma bolsa rosa para você, filha? – Ela assentiu para mim. – Então, você vai colocar a caixinha dentro dela. Aliás, você está linda.
Aretha começou a rir. Era a reação dela sempre que lhe fazíamos um elogio. Ela já estava prestes a completar seis anos e eu achava aquilo tudo uma graça.
- Só tem um problema.
- O que é?
- A mamãe está passando aquelas tintas no rosto dela. – Era assim que ela se referia à maquiagem. – Eu fiquei com medo de atrapalhar. Posso pedir para você?
- Claro, meu amor. O que é?
- Corta a etiqueta do meu vestido? Ela fica pinicando meu pescoço e me dá uma coceira ruim.
Ri da carinha que ela fazia. Encontrei uma tesoura na gaveta e cortei a etiqueta que tanto a importunava.
- Obrigada, papai. Agora eu vou lá guardar a...
- Guardar o quê? Posso saber o que vocês dois estão aprontando aí? – estava parada na porta.
- Guardar a tesoura que o papai pegou para cortar a etiqueta para mim. – Apresento a vocês a criança mais esperta do mundo. – Vocês podem me esperar no carro. Eu já vou.
Tentei segurar a risada. estava maravilhosa como de costume. Aretha parecia muito com a mãe. Tinha seus olhos e sua personalidade.
- Ei, por que você está me encarando? Eu borrei a maquiagem? Tem batom no meu dente?
- Não, você está linda. Pronta?
- Eu estou, mas sua filha não está. – A própria ria da situação.
- Vamos logo, ela disse que podíamos ir na frente.
Dei um beijo nela e segurei sua mão.
- Depois de todos esses anos, eu ainda não consegui me acostumar com esses eventos.
- Deveria, porque dessa vez aquilo tudo é para você também. Você deixou de ser a acompanhante do diretor para ser a responsável por toda a trilha sonora.
- Nossa, que honra. – foi sarcástica como sempre.
- Ei, vocês dois. – Aretha tinha voltado à porta. – Eu peço um tempo para vocês e agora são vocês os atrasados? Que falta de educação comigo.
agarrou Aretha pela cintura fazendo cócegas nela.
Tive que colocar o CD dos Rolling Stones assim que saímos de casa a pedido de Aretha. Nunca entenderia o fascínio que minha criança tinha por aquela banda.
- Mamãe, como é lá? Como é o tapete vermelho?
- Um longo tecido vermelho onde você será cegada por flashes e te farão várias perguntas.
- Posso ir de óculos de sol para não machucar meus olhos?
- Não, filha. – Ri alto. – Mas faça como o papai: olhe diretamente para frente, através dos paparazzi. Se eles perguntarem alguma coisa, deixe que eu ou sua mãe responderemos por você. A menos que...
- A menos que o quê? – perguntou e Aretha riu. – O que vocês dois estão aprontando?
- Nada – respondemos em uníssono e eu estendi a mão para o banco traseiro de forma que ela tocasse.
Desci do carro e abri a porta para que Aretha descesse. Os flashes não a assustaram como eu pensei que fossem. Ela ajeitou a postura, deu a mão para mim e e foi andando como se tivesse total controle sobre a situação.
E as perguntas vieram, juntamente com as fotos.
- , como foi trabalhar na trilha sonora?
- Foi uma experiência maravilhosa – ela respondeu, com um sorriso. – Nunca me imaginei fazendo algo assim. Acredito que foi bastante construtivo para mim e para minha carreira.
- , como foi começar uma nova saga de filmes? Como foi trabalhar sem a Aretha?
- Não trabalhei sem a Aretha – disse, orgulhoso. – Pode não ser naquela tela, mas minhas Arethas estiveram aqui o tempo todo. – As duas sorriram automaticamente.
- Aretha – alguém chamou. Torci para que fosse a pergunta pela qual esperávamos. – Como é ser filha desses dois?
- Ah, eles são bem legais e sempre me dão abraços e chocolate.
Eu e rimos. Os paparazzi também. Aquela garota iria longe.
- Você acha que eles têm um casamento feliz?
Não era exatamente o que eu esperava, mas dava para o gasto. Aretha puxou meu braço – para chamar minha atenção – e me deu uma piscadinha.
- Eles são muito felizes juntos. Mas eles não são casados ainda.
- Não? – Todos perguntaram.
- Não. Mas o papai planejou tudo para pedir a mamãe em casamento hoje.
- O QUÊ?! – praticamente gritou.
- Filha – chamei, sem parar de olhar nos olhos de . – Pega a caixinha que o papai te deu.
- Eu não acredito que vocês fizeram isso comigo.
Aretha colocou a caixinha em minha mão e eu me ajoelhei em frente à .
- , sei que levei anos para isso, mas te amei incondicionalmente durante todos eles. Sei que tivemos nossos estranhamentos no início, mas todos os dias de felicidade ao seu lado compensariam qualquer desavença. Sei também que essa é só uma eventualidade, pois já temos uma vida inteira juntos. Mas mesmo assim, , meu amor... Você aceita se casar comigo?
Os olhos dela estavam marejados. Ela me encarava sorrindo.
- Mamãe, essa é a hora em que você diz sim – Aretha disse, puxando a barra do vestido de .
Nós rimos mais uma vez de nossa pequena.
- Sim, eu aceito.
Encaixei a aliança em seu anelar e a beijei ali mesmo. Todos ali por perto aplaudiam. Alguns até secavam tímidas lágrimas. Mas eu não ligava para nada disso. Ela estava ali. Na verdade, elas estavam. Tudo que eu mais precisava e que me fazia completo. Logo eu, sempre tão vazio, estava tão completo que quase transbordava.
- Dá para vocês dois pararem de se beijar? É nojento – Aretha reclamou.
Separamo-nos e pequei nossa menina no colo. Ela abraçou a nós dois pelo pescoço. Uma família. Minha família.
I fall in love just a little, oh, little bit every day with... YOU.
FIM
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