04. Take Me Home

Finalizada em 23/01/2022

Capítulo Único

Desde que ele ouviu “Aqui embaixo! Ele está aqui embaixo! Tragam a escavadeira!” e barulhos de alguma coisa que parecia um misto de gritos de felicidade e algum caminhão dando ré, ele não conseguiu ouvir mais nada. Talvez tenham se passado cinco minutos, cinco horas ou simplesmente cinco segundos, ele não conseguia diferenciar.
O ombro já não incomodava mais, não sabia se era o seu corpo entrando em colapso, porque não sabia onde começar a regenerar primeiro ou já estava morto, perdendo a consciência aos poucos... É, aqueles artigos que diziam que a audição era o último sentido a desligar estavam certos, quem diria?
sempre fora um garoto curioso em sua infância, os amigos de classes implicavam quando ele aparecia com algum fato científico novo ou uma história sobre a antiguidade. Todos gostavam de implicar com suas esquisitices, mas no final do dia eram pessoas gentis com ele, então perdoava e entrava na brincadeira. Se eles não queriam saber qual era a ordem dos sentidos que vão desligando quando se está perto da morte, bem, problema era deles, certo?
E naquele momento, com o mundo inteiro em cima dele, não de forma figurada, mas literal em sua essência - alguma coisa derrubou a casa em cima do cômodo que ele estava -, ele também teria gostado de não saber a ordem das coisas, do contrário poderia ter esperanças de sair daquela escuridão.

***


sentia que se sentasse, ela iria desmaiar e com isso desviaria a atenção de algumas pessoas da equipe de resgate e precisava de todos atentos e funcionais para tratar de qualquer problema que ele tenha, porque sabia que ele não tinha morrido, era cabeça dura de mais para morrer num desabamento. Morrer envenenado por que foi cutucar uma cobra? Totalmente possível, quase morreu assim há dois verões. Morrer atropelado, por que não largava o celular e não viu que não era o momento certo de atravessar a rua? Também.
Mas soterrado? Não mesmo, ela apostava que ele estava em algum lugar onde deveria ser o escritório pensando que a casa estava atrapalhando seus planos de ir visitar a Bela, cadela do casal, que estava internada na clínica veterinária, se recuperando de uma cirurgia no quadril. Ele amava demais a cadela para faltar uma visita, e essa seria uma visita mais do que especial, porque Bela poderia voltar finalmente para casa, para receber os cuidados dos seus humanos preferidos.
Ela ficou aérea pensando em como estava, porque ele poderia estar muito machucado, mas morto era um pensamento que ela se recusava a ter. Ele estava vivo. Ele tinha que estar vivo.

***


Ele já estava entediado. Morrer estava demorando muito, então talvez a hora dele não tenha chegado, não era um cara muito religioso ou espiritual, mas a sua avó o fez acreditar que existia um céu para se ir após a morte, e era inadmissível que o céu que tanto pregam por aí nas mais diversas religiões seja sentir o corpo doer em todos os lugares e ouvir barulhos. A cada momento que desmaiava e recobrava a consciência o barulho parecia estar um pouco mais perto, e ele voltava com uma memória diferente.
Lembrou da sua infância, as cagadas que fez na adolescência e as conquistas de sua vida adulta, apagou e voltou tantas vezes que perdeu as contas, mas agora a lembrança com que despertou foi a mais forte até agora. Despertou com o cheiro de . Sabia que era impossível ela estar ali, mas era como se estivesse sendo abraçado por ela por trás, numa conchinha inversa que ela tanto gostava de fazer quando estava se sentindo mal, porque apoiava a testa nas costas e dormia quase que imediatamente. Ele achava estranho, porque estava acostumado a ser o big spoon, mas ela falava que se sentia segura ao fazer isso, porque ele funcionava como uma barreira entre ela e o problema.
Com dois anos e sete meses de relacionamento, ele já desistiu de tentar entender o que uma coisa tem a ver com a outra, apenas deixava ser abraçado e se mantinha disponível para ela. E naquele momento ele sentia como se o corpo dela estivesse moldado a suas costas, era alucinação, sabia, mas ia abraçar essa pequena fagulha de esperança de ver novamente.
! , você está ouvindo?” alguém gritou longe.
Ele tinha vontade de responder que sim, mas nenhum som saia. Não conseguia abrir a boca, o pescoço doía e quase não era capaz de manter a respiração regular. A poeira já não era mais um incomodo, seu cérebro entendeu que não era o momento de brincar de rinite, espirrar estava fora de cogitação. De novo, quem diria que os artigos que falavam como o cérebro age num momento de pânico estavam certos. Ele realmente foca a atenção no problema maior e o menor fica esquecido.
Quando ele encontrasse falaria sobre as descobertas que fez. A primeira é que na próxima vez – e sim, teria uma próxima vez, porque ele já estava determinado a não morrer naquele dia – que ouvisse no noticiário que uma tempestade de grande volume se aproximava e que pessoas que morassem em áreas costeiras muito íngremes era para procurar um local mais seguro, pois o solo poderia ficar instável, ele seria o primeiro a fazer as malas e levaria e Bela junto, nem que fossem carregadas.

***


Já passava das 12 horas quando a equipe de resgate, através dos cães farejadores, finalmente conseguiu pegar um rastro de onde estava. Já estava em certo ponto há pouco mais de 40 minutos, estava soterrado há cerca de três horas. Ninguém da equipe de resgate falava com ela diretamente, mas ela conseguia entender pelas entrelinhas quando diziam “estamos fazendo tudo para que a situação se resolva o mais rápido possível”. Uma casa de dois andares estava sobre um ser humano. As chances são muitas e em 99,9% dos casos o resultado é o mesmo: resgate de corpo e não de sobrevivente.
“Minha querida, tome um pouco de água. Coma um sanduíche.” a paramédica de uma das equipes de resgate falou estendendo os alimentos para ela.
“Muito obrigada, mas eu não consigo colocar nada no estômago agora.” Disse, mas aceitou de bom grado o que fora oferecido.
“Entendo a sua preocupação, mas você precisa se alimentar. Você não me deixa te examinar, então acalme o meu coração e me deixe assistir se alimentando.” Suyin, a paramédica, falou com a voz baixa e suave. A mulher esteve de olho em desde que a mais nova entrou a tenda montada próximo ao local do desabamento.
Estava preocupada, pois apresentava sinais que poderia ter uma crise de ansiedade a qualquer momento, o que não seria difícil, tendo em vista que o noivo estava preso embaixo de quilos e mais quilos de entulho e lama. Mais cedo os bombeiros conseguiram acessar um bolsão de ar e os cachorros conseguiram pegar uma localização de , mas chegar onde o rapaz se encontrava estava se provando um desafio, com o solo ainda bem encharcado e risco de nova tempestade a qualquer momento, a corrida contra o tempo era real.

***


estava sentindo o corpo sacolejar. Tentou abrir os olhos, mas estavam muito pesados. Alguma coisa estava pressionando seu nariz e ao fundo ouvia barulhos de bipes e vozes estranhas. Será que finalmente sucumbiu e estava indo caminhando para o pós-morte? Não caminhando, mas sendo levado.
Ficou um tempo avaliando e absorvendo as sensações ao seu redor quando sentiu alguma coisa mexendo na sua mão. O seu corpo inteiro estava doendo, não sabia se conseguiria fazer um novo trabalho mental de não surtar ao sentir coisas se arrastando e arranhando o seu corpo. Mexeu a mão para se livrar da sensação, mas a coisa apertou com força. Ótimo, a cobra que quase o matou há dois verões estava ali e apertando a sua mão, vindo para terminar o trabalho incompleto. O senso de humor celestial era hilário.
?” ouviu a voz de . “Está me ouvindo?”
Ele estava sonhando, certo? Mais uma alucinação. Muito bom. Dessa vez era uma bem vívida e de mal gosto do seu cérebro.
Baby, consegue me ouvir? Abra os olhos. Consegue abrir os olhos?” pediu. “Por favor, abra os olhos, .” sussurrou suplicante.
Ele sentiu alguma coisa pingando no seu rosto. Ela estava chorando? Aquilo era verdade? Ele fez um esforço de levantar as pálpebras. Nas duas primeiras tentativas fracassou, mas na terceira após muita força de vontade conseguiu. Os olhos demoraram a se ajustar às luzes muito claras da ambulância. Via tudo um pouco embaçado, o vulto que pairava sobre ele o ajudou um pouco, bloqueando a luz e sendo melhor para ele o ajuste. Piscou algumas vezes até conseguir focar no rosto da sua noiva.
O contato durou pouco, porque logo um paramédico retirou da frente dele para avaliar seus olhos. Depois dos exames iniciais, ele pode voltar a ver a noiva. Ele queria poder falar alguma coisa, mas nada saia, apenas pequenos gemidos.
“Está tudo bem. Você está indo para o hospital. Já está quase acabando.” Ela abriu um pequeno sorriso para acalmá-lo.
gostaria de dar um suspiro de alívio, mas alguma coisa impossibilitava, mas estava aliviado. Não estava mais na escuridão lutando contra as opressoras ideias. Sua vida estava bem, porque ela estava segurando a sua mão naquele momento. Estava feliz, o pior já tinha passado. Ele estava indo para casa, não importava se era um hospital, desde que estivesse lá, seria sua casa.




FIM



Nota da autora: SURTO E MAIS SURTO! Essa fic nasceu de um surto. Agradeço à Loura pelo plot. Obrigada por ler, deixei aqui embaixo me dizendo o que achou da história! Vou amar saber o que achou. ^^
Para jogar um pouco de conversa fora, meu twitter está aqui embaixo, sinta-se livre em mandar DM ou uma reply. <3
Até a próxima!



Outras Fanfics:
Todas na minha página de autora, link acima!


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