Capítulo Único
❄️❄️❄️
Dezembro é um mês que traz de volta várias coisas a Henderson, como a neve, o Natal e, agora, eu. Eu costumava adorar o Natal e Henderson – a cidade é pequena, mas era o meu lar. E o Natal era a minha magia do final do ano em que eu ficava rodeada pela minha família, amigos e todas as tradições que seguimos à risca, mas já faz algum tempo que não piso meus pés aqui.
Agora, descendo a escada rolante do aeroporto, lembro de batizar essa época como “A Maldita Estação”. Desde que fui embora, todos os anos, quando novembro termina e dezembro começa, eu sigo à risca o meu cronograma que inclui não fazer nada que envolva o Natal. Não assisto filmes natalinos, não compro presentes, nem asso biscoitos. Já virou rotina entre eu, Amélie e Sabrina passarmos a virada do dia 24 para o 25 dentro de um bar. É fácil fazer isso em Los Angeles, mas aqui, vendo o meu pai me esperando e segurando uma plaquinha com o meu nome, é impossível. Tentei dizer para minha mãe que estaria ocupada esse ano, não funcionou.
Sorrio na direção dele. Papai não serve mais ao exército americano há alguns anos, mas ele nunca perde a pose de soldado, sempre com a coluna ereta e os braços junto ao corpo. Apresso o passo conforme vou me aproximando e ele me recebe com um abraço caloroso. Em Los Angeles não faz nem um terço do frio que faz em Henderson nessa época do ano.
— Saudação! — ele diz sorrindo, e eu me aproximo.
— Soldada se apresentando, senhor! — bato continência, mas logo saímos de nossas posições para nos envolvermos em um abraço lento e aconchegante. — Nossa, que saudade.
— Muita saudade da minha pequena também. Eu tenho só duas filhas e uma decide me deixar.
— Ah, pai, para de exagero.
Nos soltamos e vamos até o estacionamento. É uma longa viagem do aeroporto de Nashville até Henderson.
— Como estão as coisas lá? — ele pergunta quando já estamos no carro, quase saindo do aeroporto.
— Tudo ótimo.
— E o trabalho?
— Muita coisa, mas estou dando conta — digo, afivelando o cinto. — Permissão para descansar, Coronel Lynch?
— Permissão concedida, soldado.
Eu retribuo o sorriso, e as duas horas de viagem passam rápido.
Quando chegamos na entrada da cidade, vou o caminho todo até em casa observando as ruas, as casas, o comércio. Está tudo a mesma coisa. Nós logo chegamos na minha. Henderson é uma cidade minúscula; logo, tudo nela não demora mais do que quinze minutos de distância. Não consigo deixar de olhar para a casa azul ao lado quando papai estaciona. É a casa dos . De . Quer dizer, eu nem mesmo sei se ele ainda mora aqui, e percebo que dói não saber disso, não saber de mais nada da vida dele depois de tantos anos compartilhando os segredos mais íntimos. Nem sei como vai ser quando nos encontrarmos, mas voltei sabendo que uma hora teria que enfrentá-lo.
Nunca pensei que pudesse ser tão difícil. As coisas com sempre foram fáceis, desde bem antes da gente nascer. Papai e John serviram juntos no exército e são melhores amigos desde então, já mamãe e Isabel trabalham juntas até hoje no Hospital Central de Henderson como enfermeiras. Nossas famílias se adoram, convivem juntas, festejam juntas desde sempre. Eu e praticamente estávamos destinados um para o outro desde que nossas mães descobriram que estavam grávidas. Cômico seria se decidíssemos nos odiar, mas fomos os melhores amigos por bastante tempo.
Estou de pé na grama, encarando a casa, e não sei porque estou encarando já que não vou saber o que fazer se a porta da frente abrir e alguém me ver aqui.
— Filha, vamos entrar, sua mãe e sua irmã estão ansiosas para te ver — diz o meu pai da porta.
Caminho até ele e, lá dentro, sinto aquela sensação de “lar doce lar” novamente. Penduro meu casaco na porta e não leva segundos até mamãe vir na minha direção.
— Não acredito que consegui mesmo te arrastar de volta para casa! — ela diz enquanto me abraça, e eu firmo meus braços ao redor da mulher dez centímetros mais baixa que amo mais que tudo nessa vida.
— Oi, mãe. Também senti saudade.
— Olha, não quero mais saber da senhorita se recusando a vir visitar a sua família aqui nessa casa.
— Eu não tava me recusando, mãe, só tava muito ocupada — dou de ombros, olhando para o chão, porque não gosto de mentir para minha mãe. Mas ela não ficaria nada feliz de saber que eu arranjava compromissos de última hora para evitar essa viagem.
— Já escutamos essa desculpa vezes demais, ! — diz Rubi aparecendo na sala com Luca, o meu sobrinho de sete anos. Vou até ela e trocamos um abraço caloroso, até que ela sussurra no meu ouvido: — Você pode enganar ao papai e a mamãe, mas não a mim, querida.
— Nossa, mana, você não me dá uma folga — rolo os olhos e me abaixo para poder dar um abraço em Luca. — E como vai esse garotinho aqui?
— Tô bem sim, tia.
— Que bom, fico feliz de saber isso — dou um sorriso. Luca sempre foi o meu xodó desde que nasceu, mesmo que não tenha convivido muito com ele. — Pete tá trabalhando? — pergunto a Rubi enquanto ela me ajuda com as malas até o meu antigo quarto, e Luca vem atrás de nós com um de seus brinquedos. Está do mesmo jeito, os móveis no mesmo lugar, mas sem as minhas coisas pessoais e com uma nova mão de tinta.
— Sim, ele já deve estar chegando. A empresa dele vai entrar de recesso nesta semana.
— Mãe, quero ir lá pra fora — Luca pede.
— Já disse, quando o seu pai chegar, ele te leva.
Eu olho para o meu sobrinho chateado e digo:
— O que você quer fazer?
— Jogar hóquei! — ele exclama, animado.
— Eu posso levá-lo — afirmo e Rubi olha para nós. Então, completo: — Mas só se a sua mãe deixar.
Luca olha para a minha irmã com aqueles olhos pidões, mas ela finalmente cede:
— Tudo bem, mas nada de hóquei!
Depois de Rubi agasalhar Luca bem, saímos de casa. O bairro que morava sempre foi bem tranquilo, e vamos a pé até uma pracinha.
— Olha, tia, a praça! — Luca aponta enquanto andamos lado a lado de mãos dadas. — Ela está cheia de ninguém!
Seguro o riso; são besteiras como essa que me fazem gostar tanto de crianças. Elas não possuem filtro nenhum.
— Sim, está vazia mesmo. O que você quer fazer?
— Hóquei! — ele exclama.
— Nada de hóquei hoje, garotão, sua mãe não deixou — bagunço o seu cabelo e ele bufa, derrotado. — Escolhe outra coisa.
— Um boneco de neve?
— Ótimo, vamos fazer um boneco.
Ajudo Luca a fazer o boneco de neve, fico com a parte chata de moldar o corpo enquanto ele procura gravetos e pedras para os braços e rosto, respectivamente. Lembro de quando eu e vínhamos a essa praça fazer justamente a mesma coisa. Claro que ele sempre foi mais radical que eu quando se tratava de brincadeiras de inverno. Enquanto eu preferia fazer bonecos e guerras com bolas de neve, ele preferia descer morros com o seu trenó, esquiar e jogar hóquei nos lagos congelados que nem sempre eram cem por cento seguros. Nós divergíamos bastante nessas preferências, mas sempre nos divertimos. tinha, acredito que ainda tenha, um sorriso bem bonito; a carcaça dentária era perfeita e as covinhas no canto dos lábios eram o seu charme.
Droga.
Não gosto de me lembrar dessas coisas, porque a saudade se apodera do meu organismo como um maldito vírus e sinto falta de apreciar aquele sorriso e segurar a sua estúpida mão.
— Tia, quem estuda ganha dinheiro? — Luca pergunta, me dando as pedras que vão ser os olhos do nosso boneco.
— Sim, Luca, quem estuda ganha muito dinheiro.
— Então por que eu não tô ganhando dinheiro ainda? — dou risada e encaro suas íris cheias de dúvida. — Mamãe me colocou em outra escola esse ano e ainda não recebi um centavo.
— Vai demorar um pouquinho, mas você tá no caminho certo — aperto o seu nariz. — E você, tá gostando da escola?
— Não — responde, me pegando de surpresa. — É chato.
— Como assim é chato?
— Tem que fazer tarefa e acordar cedo — ele faz uma careta.
— Mas a escola também tem as coisas legais, você não gosta dos seus coleguinhas?
— Eu tenho colegas no meu time de hóquei, mas a mamãe não deixa eu jogar se eu não estudar. Tia , você podia pedir pra mamãe pra eu não precisar mais ir à escola, né?
— Oh, Luca, deixa eu te contar que nem tudo está ao alcance da tia , e essa é uma das coisas.
Meia hora depois, decido voltar para casa com Luca. Estou faminta, e do lado de fora está ficando cada vez mais frio. Fazemos o caminho de volta enquanto eu seguro sua mão minúscula e caminhamos lado a lado. Estamos do outro lado da rua, e paro com Luca na calçada antes de atravessar porque vem um caminhão, mas não é qualquer caminhão.
É um caminhão branco, pequeno, com eixo e rodagem simples. E sei de quem é esse caminhão, porque caminhões não costumam passar nessa rua – a não ser que você tenha uma companhia de mudança como a dos . Como a de . Confirmo que é ele quem dirige quando o automóvel passa por nós tão devagar, quase como em câmera lenta. Seus olhos azuis profundos me encaram, carregados de melancolia, e ele não expressa uma emoção sequer. De repente, me sinto como o alvo principal das flechas da Katniss Everdeen em Jogos Vorazes, porque aquele olhar foi certeiro. Percebo que o tempo voa tão bagunçado como a lama e a neve nos pneus do caminhão de , porque nunca imaginei que um dia ele me olharia dessa maneira.
estaciona em frente à sua casa, desce do veículo, e o que me surpreende é ver Luca gritar o nome dele e correr na sua direção. agacha para poder abraçá-lo. Eles conversam alguma coisa e não olha para mim uma única vez. Eu atravesso a rua e me aproximo em passos lentos. me encara com Luca no colo e sinto algo estranho na barriga. Ele me olha de cima a baixo e pergunta ao meu sobrinho:
— E aí, Luca, você não vai me apresentar a sua amiga?
Meu queixo quase caiu. Eu esperava tudo, menos que ele começasse a fingir que não me conhece. Cruzo os braços e, antes que Luca diga alguma coisa, respondo:
— Oi, .
— Você contou meu nome para ela, Luca? — pergunta ao meu sobrinho, mas seus olhos estão fixos em mim.
— Você vai fingir que não me conhece agora?
— Qual o problema, ? Você fez isso por anos.
O choque penetra por cada poro da minha pele, e parece que estou nadando em um tanque cheio de enguias. Se ele pensa que me destratar vai fazer com que eu corra e me arraste atrás dele, está muito enganado.
Ele ignora minha face espantada para dar atenção a Luca novamente e o coloca no chão.
— Bem, Luca, não esqueça que você me prometeu que vamos pendurar as guirlandas juntos, senão...
— Vou ficar sem bengala doce.
— Exato — sorri e bagunça o cabelo do meu sobrinho, e uma pontada de ciúme me atinge. Já entendi que a conversa ali é só entre eles, mas percebo bem quando olha para mim num reflexo antes de dizer: — É o que acontece quando alguém não honra a palavra, não é?
Luca assente e eu bato o pé. Já chega! Vou até eles e puxo a criança para o meu lado pela mão, com a maior delicadeza que consigo. Delicadeza esta que não pretendo ter com .
— Não torne isso uma questão nossa — o fito séria, porque entendi bem aquela indireta.
Ele quase joga a cabeça para trás para rir.
— “Nossa”. Ainda existe você e eu?
— Você entendeu. É Natal. Não é pra ser pessoal — falo, mas nada parece mudar o seu ceticismo a respeito de mim. — Será que dá pra gente não fazer isso?
— Certo, nós não precisamos fazer isso.
É a minha tentativa para iniciar um diálogo maduro, mas não está nem aí para isso.
— Você não consegue agir como um adulto?
— Você vem até aqui e acha que tem o direito de me cobrar alguma coisa?
Abro a boca e olhos para os lados, desacreditada. Agora estou me sentindo igual uma imigrante ilegal, como se as fronteiras de Henderson fossem limites pelos quais eu fosse proibida de atravessar, de acordo com a lei outorgada por .
— “Até aqui”? Eu tô na minha casa.
— Essa até pode ser a sua casa, mas você com certeza não pertence mais aqui, .
Ele vai em direção à porta da sua casa. Eu bufo e puxo Luca para longe desse inverno. Quando entro em casa, estou tremendo tanto que não sei se é de frio ou de nervoso. O frio de Henderson é aquele tipo de frio cruel, que arranca a sua felicidade e embaça o vidro do pára-brisa. E foi exatamente isso que senti quando passei por e durante a nossa curta e amuada conversa. Percebi bem seu desconforto. Há uma dor nele, colocada lá pela dor em mim, mas mesmo assim eu quis e ainda quero jogar com seus dados. Se vai ser assim para , também vai ser assim para mim.
Tiro as botas com certa brutalidade e jogo o casaco no chão, com raiva.
Algumas histórias são engraçadas, para não dizer trágicas. Eu tinha um pouco de fé que aquilo ia durar para sempre, mas não controlo como as coisas acontecem na minha vida. foi um cara que eu amei. Um pouco bagunçado. Um pouco arruinando. Um lindo desastre. Como eu. E eu não vou mentir sobre isso – sim, sinto falta dele, com certeza sinto; sim, ainda procuro um pedacinho dele em todo cara novo que conheço, provavelmente eu sempre vá fazer isso; e sim, eu ainda tenho esperança de que vou ver o rosto dele toda vez que ouço uma batida na minha porta. Tem gente que fala que a distância acaba com tudo, e é uma dessas pessoas. Tive total consciência do que eu fiz, mas não é porque tinha consciência que não foi difícil. Ir embora foi a mais árdua escolha que já fiz, mas eu não podia perder o timing.
Tento não imaginar o que provavelmente ele deve pensar sobre mim agora, mesmo que a nossa conversa tenha me dado uma pequena ideia, porque muitas coisas ruins começam a invadir a minha mente. No entanto, eu gostaria que alguém me perguntasse há anos se eu pretendia mudar completamente minha vida, meus ciclos e minhas certezas; a minha resposta com certeza seria um sonoro não. É como o Eminem diz naquela música: “você só tem uma chance, não perca sua chance para estourar, porque essa oportunidade só vem uma vez na vida”.
Tiro as roupas pesadas de Luca primeiro e depois penduro as minhas que joguei no chão. Ele corre pela casa e vejo Rubi me encarando. Tento esconder meus olhos tristes, mas é impossível esconder as coisas da minha irmã.
— Ele me odeia, Rubi.
Ela me abraça, já imaginando meu encontro com . Somos vizinhos nessa porra de cidade minúscula. Isso uma hora ia acontecer.
— Não odeia nada, vocês se conhecem desde crianças.
— E daí? Se conhecer desde criança não é um contrato vitalício que tem “nunca sentir desafeto” como uma de suas cláusulas — vou até o sofá e me sento ali, derrotada. — Acho que até as ervilhas têm mais o carinho de do que eu.
— Ervilhas?
— Ele odeia ervilhas — a memória vem à minha mente.
— Besteira, . foi magoado e está sendo hostil porque é mais fácil lidar com a raiva do que com a tristeza.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Rubi me abraça pelos ombros enquanto tento firmemente acreditar nisso.
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Desço para tomar café cedo graças à minha insônia. Desde que cheguei aqui, não consigo dormir direito. Minha mãe está na cozinha; tem tantas coisas em cima da mesa e da ilha, vários ingredientes. Com certeza ela está contando tudo para não faltar nada quando for preparar a ceia e o principal: a receita de pudim de Natal da minha bisavó. Os meus bisavós casaram-se em 1932, e presumo que a receita já não fosse nova nessa década. Os pais da minha bisa se casaram em Belfast – mas sua mãe nasceu na Escócia, então não tenho certeza se é uma receita irlandesa ou escocesa –, mas é absolutamente o MELHOR pudim de Natal de todos os tempos, e toda a minha família o come todos os anos. Os também adoram. É um prato crucial que não pode faltar.
Da escada eu observo a sala: arrumada, enfeitada com estrelas, pinhas, velas, sinos, bolas brilhantes e perfumada com incensos de cravo e canela, porque, de acordo com Leonor , são esses os cheiros do Natal. Mas sinto falta de uma coisa.
— Mãe, por que não temos uma árvore? — olho para o canto vazio na sala.
— Você sempre gostou de montar, então decidi esperar você chegar esse ano.
Verdade. Eu sempre amei montar a árvore. Com .
Nós sempre montávamos a da minha casa primeiro, e depois, a da dele. Era a nossa tarefa especial
— Ah, não sei, mãe — digo, meio incerta. Seria a primeira vez que faria isso sem ele; nem mesmo quando brigamos no nosso décimo quinto natal juntos montei a árvore sozinha. Eu sempre tive ele para me ajudar. É uma coisa simples e idiota, mas, para mim, tem um enorme significado por trás.
— Não quer mesmo? Eu peço ao Pete.
— Não! Eu vou montar.
— Tudo bem, querida. Os enfeites estão no sótão.
Dou meia-volta e passo no meu quarto para trocar o pijama. Uma coisa que você pode ter certeza que vai encontrar no sótão é muita poeira e lembranças. Todas as caixas de papelão tem etiquetas, e acho fácil as que dizem “enfeites da árvore”, mas também uma que é intitulada como “tralhas da ”. Encaro a minha caixa de tralhas, mas prefiro abrir as dos enfeites inicialmente. Estão quase todos quebrados, principalmente a estrela, e o pisca-pisca deve estar pifado. Acho isso ótimo. Uma coisa para eu resolver e me distrair.
Sou curiosa e gosto de me torturar com o passado, então abro a minha caixa. Tem tanta coisa: medalhas, cartas, diários, CDs, pulseiras, esmaltes velhos, meu anuário de formatura e fotos, muitas fotos de . e eu. , eu e nossos amigos. e eu como amigos. e eu como namorados. Bilhetes de . Presentes de . Tudo aqui nessa caixa grita: PASSOU POR AQUI, e até cheira a ele. Entre tantos envelopes, acho o vermelho. Eu o abro depressa e tiro de lá a foto do nosso primeiro beijo. Nostalgia invade o meu peito, e me lembro de como fiquei irritada quando recebi essa foto pelo correio de forma anônima na época.
Eu amei o beijo, mas odiei a ideia de ter que beijá-lo, porque me apaixonar por não estava nos meus planos de vida como todo mundo queria. E tudo aconteceu por causa de um maldito jogo da garrafa. Falei para que ir a festas de garotas populares do colégio não era uma boa ideia, mas ele insistiu. No dia seguinte, nós recebemos uma polaroid do beijo – cada um recebeu uma cópia da foto. Lembro-me de ir toda brava até sua casa para tirar satisfações sobre aquilo. Ele riu e me jurou que não fazia ideia de quem tinha tirado aquela foto, e eu acreditei, mas até hoje tenho as minhas desconfianças. Foi tudo tão cômico, porque, enquanto não se importou nem um pouco, eu estava querendo morrer.
O barulho da porta me assusta e guardo a foto depressa no bolso.
— , você pode pegar essa caixa de linhas para mim?
Dou risada, pegando a caixa e indo até a sua direção.
— Ainda com medo do sótão, mana?
— Não é medo! Eu não sei se você lembra, mas a minha alergia a poeira ainda existe, e não estou a fim de ter um surto de espirros e passar o Natal à base de antialérgicos.
— Certo, Rubi, você pode me emprestar o carro? Preciso comprar enfeites novos para a árvore, estão quase todos quebrados.
Ela ri, tira a chave do bolso e me entrega. Saio do sótão e fecho a porta. Eu e Rubi começamos a descer a escada juntas.
— Pete e Luca se exaltaram ano passado com um trem de brinquedo.
— Deve ter sido divertido — digo, imaginando a cena.
— Isso porque você não teve que limpar a bagunça depois — ela revira os olhos e vai em direção ao quarto que tem no térreo, e eu vou até a garagem.
Henderson só possui um grande mercado, que é o Walmart, além de ser o único lugar aberto onde vou encontrar enfeites bonitos de Natal tão assim em cima da hora.
Quando já peguei mais da metade dos itens, dou uma olhada no carrinho e risco da minha lista da mental os que estão ali. Decido ir atrás dos pisca-piscas, mas, quando viro no próximo corredor, me surpreendo. Não pode ser. Quer dizer, pode muito ser, porque essa cidade é minúscula. É capaz de você encontrar Jesus na próxima esquina.
está agachado do lado do próprio carrinho, avaliando algumas ferramentas na prateleira. Para o meu azar, as caixas de pisca-pisca estão na prateleira de frente para a dele. Respiro fundo no início do corredor e começo a empurrar o carrinho, porque dar a volta e ir embora é uma atitude meio infantil. Eu não preciso evitá-lo, mas não posso deixar de provocá-lo.
— Você tá me seguindo, ?
se levanta e olha para mim. Quando tínhamos quinze anos, assisti com ele a um jogo dos Boston Celtics contra o Chicago Bulls. Era a final da conferência, e os Bulls perderam feio. ficou tão chateado que não quis mais saber de esportes por um tempo.
Hoje, me sinto como a derrota dos Bulls para ele.
— Cidade pequena, — ele joga a ferramenta no carrinho e apoia as mãos no corrimão. — Temos um Natal inteiro juntos pra você se acostumar.
— Não parece que sou eu que preciso me acostumar.
O silêncio prevalece e eu decido focar no que vim fazer aqui. Olho para as caixas, e tem tantas variedades e cores que preciso escolher o certo, mas ainda presto atenção nos movimentos de . Acho que só estou esperando ele ir embora para poder soltar o ar e respirar normalmente, mas, ao invés disso, ele puxa um assunto completamente aleatório.
— Estive saindo com a June por um tempo.
Certo, o que é isso? Por que está me falando isso como se fosse da minha conta? Será que é algum jeito de me fazer ciúmes? Devolvo a caixinha de um pisca-pisca azul na prateleira e pego outra. Olho para ele rápido e, logo depois, finjo que estou lendo o rótulo, porque isso é tão desconcertante.
June Clark nunca foi nossa amiga de verdade. Ela estava sempre por perto, mas nem eu nem conseguimos enxergar lealdade nela. June vivia circulando pela escola e falava com todo mundo, inclusive com grupos que se odiavam. Ela era uma pessoa muito sociável, mas impiedosa quando o que estava em jogo era atingir um de seus objetivos. Fazíamos trabalhos em grupo com ela e íamos a festas juntos, mas era só isso. Ela era uma boa pessoa para quando você precisava de distração, mas nem um pouco confiável para contar seus mais íntimos segredos ou buscar apoio em um momento difícil.
— June? — pergunto, quase incrédula ao me lembrar da garota. — A mesma garota que inventou aquele monte de boatos sobre você?
— Você saiu da minha vida pela porta dos fundos. Perto da June, você é um monstro — ele assobia.
Há. Eu sabia que isso era só mais um jeito de me atacar. Por esse motivo, eu rio e digo:
— Melhor ser um monstro do que um deus arrogante.
— Bem, ela vai estar lá, o Phillip a convidou. Só pra você saber e não ficar incomodada.
— Acredite, se eu quisesse saber com quem você estava saindo enquanto eu estava fora, teria te perguntado. Não vai ser um problema para mim — jogo a caixinha no carrinho. São todos ruins, não sei porque estou perdendo o meu tempo escolhendo. Na verdade, é só pegar um colorido e acabou.
Ouço uma risada do meu lado.
— Qual a graça?
— A graça é que eu sei quando você está mentindo.
Suspiro de exaustão. É difícil atacar quando tudo que sinto é vontade de ficar na defensiva. Mais que tudo, uma parte de mim quer o meu melhor amigo de volta. Ele é o tipo de cara que você pode flertar e ainda conversar como se fosse o seu melhor amigo.
— … — tento me aproximar, mas seu olhar rígido me diz que essa não é a melhor coisa a se fazer.
— Pare de me olhar como se você me quisesse, porque nós dois sabemos que você não quer — me dá as costas e vai embora. Tenho certeza que não está contando os minutos para me ver de novo.
Encaro suas costas cada vez mais longe nesse corredor e tiro a polaroid do bolso. Queria poder entrar dentro dessa foto e não sair mais, igual os personagens de desenho animado fazem. Porque, lá, a minha única preocupação seria os lábios doces de nos meus. A gente não sofre tanto quando está longe, a convivência é o que fode. Agora quero amassar a foto e jogá-la no lixo, porque estou pensando que, se esse beijo não tivesse rolado, isso não estaria acontecendo agora. Encaro os enfeites no carrinho e lembro que era para essa tarefa ser a minha distração.
Vinte minutos depois estou em casa. Tive que queimar um tempo na ala de doces do mercado para não correr o risco de encontrar no caixa. Agora estou sentada no chão da sala, pendurando os enfeites de Papai Noel na árvore. Rubi está no sofá; ela tem uma caneta na mão e diversas folhas no colo de desenhos de criança. Minha irmã é professora na mesma escola em que estudamos e dá aulas para crianças de dez anos.
É a vida que ela sempre quis. Se formou em Pedagogia e agora dá aula para crianças, além de viver em uma casinha com o seu marido e o primeiro filho.
— Vamos, , pode falar.
— Falar o quê?
— Você está fazendo barulhos estranhos o tempo todo. Sei muito bem quando tem algo te incomodando.
Suspiro. Mas antes que eu possa começar a falar, Luca surge na sala, parecendo estar muito sério, e cai de costas no sofá.
— Mãe, preciso de um distanciamento social do meu pai. Não tá dando mais.
Eu e Rubi trocamos um olhar e damos risada. Crianças são engraçadas.
— O que ele aprontou, garotão? — pergunto quando Pete aparece na sala. Essa coisa de ser tia me ensinou que você sempre deve ficar do lado dos seus sobrinhos ao invés dos seus cunhados. Rubi olha para o filho, também interessada.
— Não fui eu quem aprontou! — Pete se defende. — Luca, conta pra sua mãe e pra sua tia o que você fez.
Luca se levanta e encolhe os ombros como a pessoa mais inocente do mundo.
— Eu? Não fiz nadinha!
Minha irmã olha para Pete com a esperança de saber a verdadeira versão dessa história.
— Eu apenas o repreendi porque ele fez bagunça com os brinquedos do quarto. E ainda saiu de lá sem arrumar.
— Ah, é? — diz Rubi, voltando a olhar para Luca, que se esconde atrás de uma almofada. — Pode ir voltando agora pro quarto arrumar o que você bagunçou, mocinho.
— Aff…
— E sem reclamar! — ela diz, autoritária, como toda mãe tem que ser em algum momento. Luca resmunga e se levanta do sofá.
— Tá bom, tá bom!
Luca sai da sala, lamentando como se arrumar os brinquedos fosse a tarefa mais árdua do mundo, e Pete vai atrás dele, rindo. Eu e Rubi rimos baixinho. Quando éramos mais novas, eu e ela sempre imaginávamos como seria quando fôssemos mães, e até agora julgaria que Rubi está fazendo um ótimo trabalho com Pete para criar Luca.
Ela olha para mim com o mesmo olhar que deu ao filho, e eu me levanto para pendurar os enfeites mais altos da árvore, porque é mais fácil do que olhar de volta para ela sabendo qual é o próximo assunto.
— Agora você. Como estão as coisas?
— Você tava doida pra perguntar isso, não era? — olho por cima do ombro, e Rubi abraça os joelhos, animada no sofá.
— Claro? Isso tá parecendo uma novela, eu tô doida pra saber os próximos capítulos. E aí, como estão?
— Pior impossível — rio pelo nariz, pendurando uma rena em um dos galhos. O nome de June Clark coça na minha garganta, e, quando vejo, a pergunta já saiu. — O que rolou com e a June?
— Eles tiveram um rolo aí, entre o ano passado e esse, mas terminou faz algum tempo. Ela agora tá namorando o Phillip.
— Então foi por isso que o Phillip chamou ela para passar o Natal.
Tudo começa a fazer sentido na minha cabeça. Phillip é um primo de terceiro grau de . A família dele quase toda foi embora de Henderson, só restando ele. Quer dizer, Phillip nunca realmente está aqui, mas também nunca vai embora. Quando éramos adolescentes, ele sempre aparecia nas horas mais inoportunas.
— Encontrei com no mercado hoje, acredita?
— Acredito.
— Sinceramente, eu desisto. Tentei jogar o jogo dele, mas não deu certo — desabafo, enrolando o festão verde brilhoso por todos os galhos após pendurar cada enfeite.
— O quê? Não pode fazer isso! — Rubi de repente se levanta do sofá. — Essa novela tem que ter um final feliz.
Eu suspiro.
— Ah, Rubi…
— A que eu conheço não joga o jogo de ninguém. Ela faz o próprio, e sempre ganha.
Encaro os laços da árvore com uma sensação horrível dentro de mim, porque sei que minha irmã tem razão. Talvez eu só precise pensar em um jeito de contornar essa situação.
Eu conheço melhor do que ninguém. Isso não pode ser tão difícil.
Depois do almoço, Isabel decidiu aparecer na nossa casa. A visita dela não é nenhuma surpresa; nossas mães são melhores amigas e vivem se visitando. De início, fiquei meio sem graça, um pouco envergonhada ao ficar na frente de Isabel depois do que aconteceu comigo e com , mas ela é adorável como sempre. Duvido que tenha feito a minha caveira para os pais dele. Mas, se fez, não deu certo.
Ela trouxe consigo um baú de madeira que passou a ser o centro da sala quando nos sentamos no sofá.
— Quando Leonor me disse que você viria, fiquei muito animada — Isabel diz, tirando vários suéteres do baú. — Eu sempre costuro um a mais para essas ocasiões.
O suéter de Natal é uma das tradições das nossas famílias. A mãe de passa meses costurando suéteres iguais para nossa família e para a família dela. Sempre do mesmo jeito: com uma cor alegre, na frente um desenho divertido com o nosso nome, e na parte de trás, a inicial do nosso sobrenome. O deste ano é laranja, e o desenho é uma rena sorridente enrolada em um pisca-pisca colorido.
Isabel sempre costumou brincar que, um dia, ela faria um suéter para mim e para com as iniciais dos dois sobrenomes juntos, porque tinha alguma fé que nos casaríamos. Triste acabar com esse sonho.
Ela entrega um para mamãe e deixa o de papai, Rubi, Pete e Luca dobrados no sofá. Logo em seguida, me entrega o meu. Não o provei, mas sei que cabe perfeitamente.
— Ficaram lindos, Isabel — o aperto nas mãos, e é tão macio desde que me lembro. Quando se trata de costura, Isabel tem mãos de fada. — Obrigada por fazer o meu.
— Não podia te deixar de fora da tradição, querida — ela sorri, simpática. — Inclusive, está na escola ajudando a terminar de confeccionar as lanternas.
— Oh, as lanternas — diz papai, entrando na sala. — Vai ser lindo.
— Falando em tradições… — minha mãe olha horrorizada para a prateleira que fica em cima da lareira e dá um pulo do sofá, como se estivesse sentada em espinhos. — Lynch, onde está o elfo?
— Ninguém o pegou? — meu pai perguntou inocente e minha mãe o encara, séria.
— Lynch, não acredito que você esqueceu! Essa tarefa era sua.
— Eu sei, eu sei, e iria agora imediatamente buscá-lo se não tivesse que comprar o presente do nosso neto — o sorriso angelical do meu pai tenta combater o olhar aborrecido da minha mãe e, logo depois, se dirige a mim. — , querida, você poderia buscá-lo?
— Claro, onde está? — pergunto, me levantando.
— Na escola — papai diz e quase me arrependo de ter aceitado. É fresco na minha memória Isabel dizendo que está na escola, mas é tarde demais para voltar atrás agora.
Na véspera de Natal, é tradição tentarmos ver algumas luzes e soltar lanternas nas fazendas TMT que ficam a cerca de 45 minutos de casa. As fazendas TMT são basicamente um monte de hectares, e eles têm um festival de luz no drive-through, e é sempre muito legal. Vamos sempre depois da ceia e, depois de apreciar o “show”, dormimos em chalés pré-reservados. Voltamos para casa na manhã seguinte para o café da manhã especial de Natal e o almoço.
Já o elfo na estante é quase como algo bem simples, mas obrigatório na minha família: colocá-lo na estante, não encostar nele e, principalmente, por Luca ser criança, deixá-lo bem longe do elfo. Até hoje não sei de onde essa lenda surgiu. Alguns dizem que o pequeno nixie vai amaldiçoar você caso o toque. Outras famílias relataram crianças pequenas pegando fogo. Seja o que for, é muito ruim. A magia do elfo depende um pouco de não ser tocado, especialmente por crianças pequenas. Há relatos de que os adultos são imunes ao truque do rapazinho malvado, mas estou divagando.
Minha mãe diz isso todo santo Natal: faça o que fizer, não toque no elfo, apenas coisas ruins acontecem. Eu particularmente considero isso uma besteira supersticiosa, mas é A Tradição, e você não pode contestar tradições, principalmente aquelas praticadas pelas famílias -. E é por esse motivo que estou me dando o trabalho de entrar nesse carro e dirigir até a escola, mesmo ainda não tendo pensado em como resolver com .
Vou o caminho todo ouvindo Voices Carry do ‘Til Tuesday – era a minha banda favorita quando ainda estudava, e me trás boas memórias. Estaciono entre a primeira igreja metodista da cidade e a Chester County High School. Saio do carro e olho para o segundo prédio. Rubi e Pete estudaram aqui. Eu e estudamos aqui. Basicamente, todo mundo que cresce em Henderson bota os pés nessa escola. e eu passamos por muitas coisas juntos enquanto estudamos. É uma época que gosto de chamar de “Os Anos Dourados”, porque com certeza foram os melhores. Isso até o verão do último ano. Eu tinha uma decisão para tomar, e as férias daquele ano demoraram como um perfume ruim, daqueles que não saem da sua pele mesmo que você lave umas dez vezes.
O ginásio da Chester High é o segundo maior espaço público da cidade, por isso qualquer coisa é feita aqui no período de recesso das aulas. É aqui que eles recebem as doações de comida e agasalhos para a Missão Humanitária de Natal de Henderson, e também onde um grupo de pessoas se junta para a confecção das lanternas. Há várias pessoas aqui trabalhando, e da entrada do ginásio consigo ver os elfos perto da árvore. Seria muito fácil ir lá, pegar um e voltar, isso se não estivesse no meu caminho.
— Você não faz um mínimo esforço para ficar longe de mim? — ele diz, mas não me olha. Está muito ocupado cortando o papel manteiga para fazer as lanternas orientais.
— Dá pra parar com isso? Vamos passar o Natal inteiro juntos, e não vai ser legal se a gente ficar se alfinetando o tempo todo.
— Não me importo, . Só quero que você vá embora logo.
Dou um longo suspiro.
— Você pode correr, , mas só até certo ponto. — O que quer dizer com isso? — ele vira a cabeça para me olhar.
— Toda vez que eu chego perto, você foge porque prefere me ignorar e me tratar mal a se resolver comigo. Mas preciso te dizer que isso é um péssimo plano. Eu também escapei dessa conversa, e você viu como isso acabou para mim. Então me diz se dá pra gente dialogar como duas pessoas decentes, porque se estiver tudo bem pra você… também está tudo bem pra mim — cruzo os braços, desconfortável, e levanta da cadeira para ficar de frente para mim. Mesmo falando baixo, não é o tipo de conversa que eu queria ter com tanta gente ao redor.
— Acho que você estava certa de fugir para Los Angeles.
— Eu não fugi, eu me mudei.
— Mudar é diferente de ir embora sem se despedir do noivo.
— Não éramos noivos! — exclamo e olho para os lados, com medo de ter falado alto demais e tivesse platéia apreciando o nosso showzinho. Esse é o problema de morar em cidade pequena: a fofoca aqui se espalha mais rápido do que Usain Bolt nas Olimpíadas de Pequim. Seguro pelo braço e o puxo até um canto mais vazio do ginásio. — Nós conversamos sobre isso, claro, mas éramos praticamente crianças. E se eu não tivesse ido na época, provavelmente nunca teria ido.
— Tínhamos combinado de ir juntos — ele lamenta, e a lembrança deixa a minha boca seca e o meu coração mais pesado.
— Eu sei, mas...
— Mas você percebeu que na hora H eu não teria ido.
— Não foi só isso… — quase mordo a língua, porque essa decisão sempre foi um impasse nas nossas vidas.
queria ser artista – e ele tinha talento para isso –, mas acho que sempre lhe faltou um pouco de coragem. Metade dele queria ir, e a outra metade ficar, porque ele sempre sentiu que pertencia a essa cidade. Era o lugar dele. Já eu sempre fui um passarinho, queria abrir minhas asas e voar, mas via Henderson como uma gaiola. Por isso jamais vou me arrepender de ter ido, mas com certeza eu teria feito tudo diferente.
— E mesmo se tivesse ido — ele continua —, eu teria fracassado no mundo real com a minha arte e acabaria voltando para trabalhar com o meu pai na companhia. Você não aceitaria isso, aceitaria?
— Não foi só isso, . Quero dizer, não totalmente...
— Você tem um lado individualista, . Isso não te deixou pensar na gente na época, só em você.
— E agora você vai começar a duvidar do que eu sentia por você? — minha voz chocou, porque aquilo era irreal demais para ser verdade. Por isso, decido rebater somente a primeira afirmação. — Foi você que disse que eu era muito talentosa pra Henderson, que o mundo tinha que conhecer o que eu escrevia.
— Eu nunca fui contra você ir atrás dos seus objetivos, jamais ficaria chateado por você receber uma grande oportunidade. Eu, mais que todo mundo, sabia que você merecia — ele bufa, frustrado, e eu balanço a cabeça, concordando. É verdade, era uma das pessoas que mais me apoiava. — O que me deixou com raiva foi o jeito que você me tirou completamente da sua vida. Parou até de vir visitar seus pais, sua irmã, sua família. O que a gente tinha era algo muito grande pra jogar no lixo por causa de um relacionamento que não deu certo, e você jogou.
dá a impressão de sair andando, mas eu o impeço, ficando na sua frente. Minhas mãos tremem para segurar as dele, mas não o faço porque acredito que o contato não vai ser bem-vindo.
— Você não sabe como teria sido. A amizade nem sempre sobrevive à distância.
— Você tá brincando comigo? Olha pra nossa família — ri, mas não é o riso que eu quero. É aquela risada sarcástica, e penso por um momento que ele tem razão. Nossas famílias se amam; nós jamais nos afastaríamos totalmente. — E não, eu não sei, mas ia ficar ansioso por cada feriado, cada Natal pra poder te ver. Ao contrário do que aconteceu, porque em todos eu torcia pra você não vir.
— Eu fiquei com a decisão na minha mão, , e tive tão pouco tempo pra decidir. Eu estava apavorada…
— É? E desde quando você deixou de me contar como se sentia?
— E por que a gente não pode fazer isso agora?
— Você não quis fazer isso antes, por que eu preciso querer fazer agora? — é a última palavra dele.
me deixa encostada na parede e volta para a confecção das lanternas. Vou até a grande árvore para pegar esse elfo feio.
Maldita tradição.
❄️❄️❄️
Olho a hora no meu celular. São três da manhã e simplesmente não consigo dormir. Estou rolando na cama sem parar, nenhuma posição me deixa confortável o suficiente para cair no sono. E só tem uma coisa que eu faço quando estou com insônia: comer. Por isso, desço até a cozinha atrás de leite e biscoitos.
⠀Estou apoiada na ilha, atacando a lata Santa Edwiges de biscoitos, quando Rubi aparece na cozinha.
— Insônia? — ela pergunta, indo até o armário e pegando uma xícara.
— Muita.
O micro-ondas apita e tiro de lá meu leite quentinho, enquanto a minha irmã olha feio para a lata Santa Edwiges.
— Não sei como você consegue comer esses biscoitos de nata. São horríveis.
— Você que se engana. São a melhor coisa do Natal.
Volto ao meu lugar no banco, enfiando um biscoito inteiro na boca; ela revira os olhos, enchendo a xícara com a caixa de leite.
— Achei que a melhor coisa do Natal fosse trocar presentes com .
— Oh, isso só me fez odiar mais ainda essa época do ano.
— Por quê?
Eu observo Rubi colocando a xícara no micro-ondas para esquentar o leite e isso me dá algo para pensar. Rubi teve a chance de estudar na Universidade de Nova York, mas ela preferiu ficar e se matriculou na Universidade de Memphis, em Jackson, a aproximadamente vinte e seis minutos de carro de Henderson. Ficou claro para todo mundo que a escolha dela teve a ver com Pete, e ela não se importava que as pessoas soubessem disso. Eu não estava nem no ensino médio quando ela entrou na faculdade, mas jurei para mim mesma que não faria a mesma coisa. Meu sonho era sair daqui.
Cumpri o juramento, mas não me sinto tão completa e realizada quanto ela.
Será esse o destino de todo mundo aqui? Decidir se vai embora ou não?
— Porque perdi isso — olho para baixo, encarando a minha xícara vazia.
Rubi vem até mim. Ela está de pé enquanto eu continuo sentada e me abraça pelos ombros.
— O que atormenta o coração da minha irmãzinha?
— Sei lá, eu só tô pensando — ansiosa, giro a xícara na minha mão. — Parece que a gente fica parada a vida toda em um cruzamento que leva a duas estradas, até ter um hora que temos que escolher qual estrada vamos seguir. E toda hora eu fico me perguntando se eu segui a certa. Não tô triste com a minha vida em Los Angeles, não me arrependo e, se eu pudesse voltar no tempo, teria escolhido ir também. Mas acho que eu faria diferente.
Ela me solta porque o micro-ondas apita, indicando que seu leite já está quente. Minha irmã pega a xícara e se senta no banco ao meu lado. Ela leva a xícara à boca e bebe um pouco antes de dizer:
— No meu ano de formatura, a escola nos levou em uma excursão.
— Eu lembro disso. Papai e mamãe quase não deixaram você ir por ter saído escondida com Pete na noite anterior.
— Sim, era uma excursão para um museu em Nashville — ela dá uma risada nostálgica. — Era pra fazermos um trabalho de artes. O museu estava fazendo uma exposição especial sobre Van Gogh. Além das obras, tinha várias cópias das cartas que ele mandou pro seu irmão, Theo, contando toda a história da vida dele.
— O que é isso? Uma aula de artes? — brinco, mesmo sabendo que Rubi é alguém muito esperta e, tudo que ela começa, com certeza vai te levar a algum lugar.
— , eu li absolutamente tudo, então escuta! — ela dá um tapinha no meu braço, e eu dou risada. — Descobri que, aos 27 anos, Vincent Van Gogh estava perdidinho. Ele passou anos vagando por aí, mudando de emprego em emprego, de cidade em cidade, às vezes ficando sem trabalho por muito tempo. Até que ele começou a pensar que se aproximar das pessoas de Deus seria o seu chamado e, então, conseguiu um emprego como missionário na Bélgica. Mas as autoridades da igreja local o despediram por estarem cansados de seus hábitos estranhos — ela explica, e imagino um filminho da Netflix na minha cabeça. — Ele ficou tão atormentado que percorreu os 75 quilômetros necessários para chegar a Bruxelas a pé. Não encontrou nada na capital belga, então o desanimado ex-missionário fez a única coisa em que conseguiu pensar. Sabe o que foi?
— O quê?
— Ele voltou a morar com seus pais no sul da Holanda.
Reviro os olhos, entediada.
— Ah claro, o clichê de voltar a morar com os pais existe até na vida de Van Gogh. É isso que eu devia fazer? Dar uma de Colt em The Ranch?
— Calma! Deixa eu terminar — ela chama minha atenção como se eu fosse um de seus alunos da pré-escola. — O problema era que, mesmo lá, ele não conseguia nenhum conforto. Os pais, apesar de gostarem muito do filho, não apreciavam suas escolhas de vida. Sentindo-se sem direção, Vincent passava a maior parte do tempo deitado, pensando, com a mente trabalhando, procurando um propósito.
— E isso levou ele pra algum lugar?
— Claro que levou. Como você acha que esse homem prestes a completar 30 anos passou de zero a um dos artistas mais famosos do mundo?
— Ah, então é esse o segredo.
Me levanto e vou até a sala. Deito no tapete de barriga para cima e Rubi me segue, rindo. Ela deita ao meu lado e continua a história.
— Ele entrou em depressão depois de anos de fracasso. Vamos dizer que atingiu o fundo do poço. Só que toda a busca da alma não foi em vão. Em um daqueles dias frios e chuvosos típicos dos Países Baixos, o holandês errante teve uma epifania. Ele descobriu a verdadeira vocação de sua vida — olho para Rubi quando ela faz uma pausa. — Ele se tornaria um pintor.
— Acho que o meu cérebro deu uma pifada, mana. Não sei onde você quer chegar com isso.
Me levanto, ficando sentada no tapete, e Rubi faz o mesmo, ficando de frente para mim.
— Você não entendeu, ? — balanço a cabeça para os lados. — O vendedor fracassado, o pregador fracassado e o jovem sem direção finalmente viram um caminho claro.
— Isso ajudou ele a virar pintor.
— Exato! — ela balança meus ombros, orgulhosa das suas habilidades didáticas. — Então, toda vez que se você se perguntar se seguiu a estrada certa, pense que Van Gogh não sabia de nada, e o que parecia errado acabou dando muito certo no final.
Eu e Rubi ficamos conversando por mais algum tempo antes de ela subir para voltar a dormir. Ainda fico um pouco mais de tempo na sala pensando e, quando subo para o quarto, tento não sonhar com “A Noite Estrelada”.
❄️❄️❄️
Papai deixou comigo a tarefa de embrulhar todos os presentes. Adoro fazer isso – posso dizer que é um dos meus hobbies –, mas certo que ele me escolheu pois, no momento, sou a única pessoa disponível. Até mesmo Luca está ajudando Rubi com alguma coisa para o dia de amanhã. Não estou animada como todos aqui, mas isso não é uma novidade. Voltar só me fez odiar mais o Natal.
No momento, não sei o que odeio mais: a situação que me encontro ou o fato de saber como embrulhar a porra de uma bicicleta. Quase desisto, quando a campainha toca.
— Oi, Sr. ! — sorrio quando abro a porta. É o pai de , e, assim como a mãe dele, é alguém que ainda sinto muito carinho. Usando o seu famoso chapéu coco, estilo Charles Chaplin.
— Você nunca vai me chamar de John, não é?
— É o costume — dou uma risadinha. — Quer entrar? Papai está meio ocupado lá em cima, mas acho que ele já desce.
— Oh, não. Só vim entregar as meias — ele me entrega. Lembro do aviso da minha mãe.
— Claro, vou avisar minha mãe que já passou aqui.
John se despede e eu fecho a porta. Sento no sofá novamente e observo os tecidos um por um: são as meias que penduramos na lareira. Como a ceia deste ano vai ser aqui em casa, é a nossa obrigação pendurá-las, mas foi Isabel quem bordou cada uma. Não falta o nome de ninguém. É outra pequena tradição: deixamos as meias penduradas na lareira e, no decorrer da noite, colocamos coisas dentro. No final da noite, você pode se surpreender.
Meus dedos apertam a meia de , e isso me dá uma ideia. Tiro a foto do nosso primeiro beijo do bolso – eu a carrego por aí porque me traz uma boa sensação, e tenho medo de perdê-la. Coloco a foto dentro da meia dele e me levanto, sabendo de um ótimo lugar para pendurá-la.
Sinto muito, , mas esse ano sua meia vai ficar longe das dos outros.
❄️❄️❄️
No Natal passado eu estava em um pub com Sabrina e Amélie. Há quem se engane e pense que esses lugares ficam vazios na véspera de Natal. É quase um ano-novo para aqueles que odeiam o feriado ou não comemoram com a família por outros motivos. Bebemos tanto que antes da meia-noite já estávamos bêbadas, e nossa ceia foi frango frito servido em baldes e pretzels. Naquele dia, Sabrina me confessou que achava a minha vida intrigante e que adoraria escrever sobre isso em uma das suas crônicas do seu livro. Sabrina é escritora e trabalha em uma editora; seu projeto atual é um livro de crônicas sobre a vida e os pandemônios das mulheres no século XXI. Achei o tema interessante e estou curiosa para ler como ela escreveria algo sobre mim.
Neste Natal voltei à tradição antiga. O começo da noite foi tranquilo. A família de chegou, incluindo Phillip e June. Conversei pouco com ela, mas foi uma conversa cordial. Vendo ela e Phillip juntos até achei que combinavam. Jantamos e, em seguida, todos se reuniram na sala para assistir às fitas da abertura de presentes do Natal passado. Lembro disso ser muito divertido de fazer, porque as memórias vinham à tona, e, por um momento, eu quis ter estado aqui no ano passado. Foi um momento pacífico – eu e não discutimos, sequer conversamos. Ele estava tão empolgado que acho que nem lembrou que eu existia para poder se chatear comigo.
Agora todos estão na sala bebendo vinho enquanto ouvem o álbum de Natal da Sarah McLachlan que papai colocou para tocar. Peguei a tarefa de cuidar de Luca nessa noite para não ter que socializar cem por cento do tempo.
— O Luca quer chocolate, tia — ele pede, puxando a barra da minha blusa. O menino me arrastou até a cozinha, e agora sei o porquê.
— Luca, você tem que jantar primeiro. Você não quis comer aquela hora, sua comida está aqui dentro do micro-ondas — aponto para o aparelho, mas ele continua olhando para o chocolate em cima do armário. Tento não entrar na onda dele de falar na terceira pessoa, mas é quase impossível. — Depois a tia te dá o chocolate.
— Mas o Luca quer...⠀
— A tia também quer um monte de coisa na vida.
— Mas o Luca não quer uma monte de coisa na vida. O Luca só quer chocolate.
Paro de prestar atenção nele quando escuto a voz de vinda da sala.
— Por que a minha meia não está aqui?
Eu o imagino olhando para a lareira, percebendo que a meia não está lá, e sorrio quando a voz da minha irmã entra em cena antes de qualquer outra. Ela está me ajudando com o plano.
— Ah, , a que ficou responsável por prender as meias na lareira. Acho que ela deixou a sua em outro lugar.
— Onde?
— Lá fora. No batente daquela porta que vocês costumavam medir as alturas.
Passa algum tempo e não escuto mais nada. Rubi aparece na cozinha momentos depois, e o seu sorriso indica que deu tudo certo.
— Por que essa pausa dramática? — pergunto.
— Porque ele não queria ir lá fora. Tive que sussurrar que ia valer a pena e que era para ele olhar dentro da meia.
Curiosidade. sempre teve muita. Ele nunca conseguiu vencê-la.
— Ótimo.
— Agora você pode subir. Boa sorte, mana.
Deixo Luca com Rubi e subo para a sala do primeiro andar, que está vazia. Sento no sofá do meio e minha perna treme ansiosa. Mostrar para ele que eu tinha guardado a foto é uma aposta que não faço ideia do resultado. Ou vai tudo dar muito certo, ou acabei de piorar o que já está ruim.
Ouço passos na escada e os meus dedos se descruzam quando vejo que é ele, segurando a polaroid. está diferente e não falo a respeito das roupas ou do cabelo. Inclusive, estamos usando suéteres iguais, mas o laranja fica melhor nele do que em mim. Ele está diferente porque sua expressão facial está mais amena quando me vê, e isso quase causa um arrepio na minha espinha.
— Eu jurava que você tinha jogado fora — ele joga a foto no meu colo e se senta ao meu lado no sofá.
— Por quê?
— Porque você fez isso! — ele se vira para mim e me acusa, mas não é algo do tipo incriminatório, está mais para divertido. — Você, literalmente, amassou e jogou na lata do lixo, . Bem na minha frente. — É, mas eu peguei de volta depois.
— Então eu estava certo esse tempo todo — se ajeita preguiçosamente, apoiando as mãos atrás da cabeça. Sei que sua guarda está baixa porque conheço cada postura sua, e isso é bom, muito bom. Ergo uma sobrancelha, suspeitando do que isso quer dizer. — Você gostou e estava fingindo.
Nunca quis ficar com daquele jeito; eu amava nossa amizade e aquilo era suficiente. No dia que fui até a sua casa tirar satisfações sobre a foto, eu estava brava de verdade. deu uma leve insinuação de que dali algo como o amor estava nascendo entre nós, e a minha primeira reação foi negar, porque, no momento, eu não queria que acontecesse. Achei que amassando e jogando a foto fora eu podia fingir que nunca tinha acontecido.
— Não estava fingindo.
— Sim, estava.
— Não, .
— Então por que guardou a foto?
— Eu não consegui jogar fora.
Cruzo os braços e encosto no sofá, porque admitir isso quase me faz corar. Admitir sentimentos é a minha maior dificuldade na vida.
— Agora você pode assumir que foi você que mandou alguém tirar essa foto.
— Eu não fiz isso, juro — ele levanta as mãos como rendição. — Até hoje não sei quem foi.
— Você ainda tem a sua?
— Tenho, tá em algum lugar do meu quarto.
Fala sério, estamos parecendo duas crianças, e contenho um sorriso enorme porque nunca foi tão bom parecer criança. Estamos conversando como antigamente.
sempre me viu negando o que eu sentia por ele. Acho que saber que guardei aquela foto por tanto tempo, depois de achar que eu tinha jogado no lixo, tocou em alguma coisa dentro dele. Feliz é uma palavra forte demais, mas penso que talvez lhe trouxe algum conforto em relação a mim, e isso finalmente me deu algum tipo de abertura que não fosse agressiva.
O plano deu certo.
A gente se encara por um tempo, com um meio sorriso na boca. É como se um filme do que já vivemos juntos passasse bem na nossa frente em questão de segundos, e é muito nostálgico.
— Não devia ter ido embora como fui — admito, encarando o tablado do chão. — Fui covarde.
— Sim, foi — plácido, concorda.
— A gente era tão jovem. Eu passei para a universidade e...
— Foi embora.
Apoio uma perna no sofá, é a minha vez de virar na direção dele.
— Pensei que seria mais fácil. Não sabia como me despedir. Me desculpe, . Deveria ter falado isso anos atrás.
Ele não diz nada, e começo a duvidar se disse a coisa certa ou se isso nos levará ao começo. rasteja no sofá, ficando mais próximo de mim, e se eu não estivesse com uma perna apoiada no sofá, nossos quadris estariam colados um no outro. Ele desencosta do sofá e sua mão escorrega até a minha, que está segurando a polaroid do nosso beijo. É uma sensação boa sentir os dedos dele sobre os meus novamente. Trocamos um sorriso cúmplice; eu olho para as nossas mãos juntas e acho que isso é o significado de “fazer as pazes”.
— Vem aqui.
Ele envolve a minha cintura com os braços como se lesse os meus pensamentos, pois esse abraço é tudo que o meu subconsciente mais queria. Apoio a cabeça no ombro dele e nem a mais trágica das desgraças me impediria de sorrir agora. e eu nos afastamos um pouco, o bastante para ele piscar para mim e olhar para o lado, onde sua mão está estendida com a foto que ele roubou dos meus dedos. Acho que está feliz, porque está relembrando daquele momento, e, por isso, fico feliz também. Mas no momento seguinte, percebo que não é isso. está sorrindo porque ele tem outras intenções. Como se olhar a foto do beijo lhe desse as mais insanas ideias. E é isso que acontece, porque ele olha de novo para mim e, no segundo seguinte, estamos nos beijando. Isso é loucura. Há três dias ele não queria nem me ver, mas isso não deixa o beijo ruim. É um beijo de saudade misturado com o desejo que a gente nem sabia que ainda tinha.
Quando começo a imaginar onde isso vai parar, Luca aparece na sala.
— Tia , vovó está chamando para irmos ver as lanternas! — ele grita quando sai das escadas. Eu e nos separamos tão rápido que não sei se deu tempo de ele ver alguma coisa, mas Luca não parece constrangido. Na verdade, ele está pulando no tapete enquanto puxa a minha mão e a de para nos levantar. — Vamos, tio , você também.
Tio?
Arqueio uma sobrancelha para ; ele dá de ombros, não posso culpá-lo. Nessa idade, para todas as crianças os adultos são uma espécie de tio. Trocamos um sorriso nervoso e seguimos Luca até o andar de baixo.
Nas fazendas de TMT não há nada barulhento, a não ser o barulho dos grilos. É um lugar grande, arborizado e bem conservado. A tradição das lanternas não é uma coisa só da minha família ou da de , muitas outras vêm até aqui para fazer o mesmo. Não há chalés para todos, por isso é necessário reservar meses antes. Muitos preferem ir para casa; nós não, pois gostamos de curtir a festa que acontece logo após a soltura, e ninguém aqui quer dirigir bêbado.
Está frio e ainda neva muito, por isso decidi vestir uma jaqueta preta da Alyx Caliste, uma legging skinny da Moncler também preta e botas Pocket Combate da Prada. E assim me aqueço um pouco, porque quase todos vamos ficar do lado de fora por um tempo.
Todos se posicionam no enorme gramado coberto de neve, esperando a hora certa. Há uma enorme fogueira no centro, irradiando calor e luz.
Pego um copo de suco de maçã na mesa de bebidas e, no caminho de volta, ouço uma leve discussão de com sua mãe. Não consegui conversar com ele a sós depois do beijo, porque, de um lado, ele estava grudado com a mãe o tempo inteiro, e do outro, Rubi não parava de me encher o saco querendo saber o que tinha acontecido.
Volto ao encontro da minha família e, quando o relógio bate meia-noite em ponto, me abaixo atrás de Luca enquanto ele segura sua lanterna. Prometi que faria isso com ele, e agora estou cumprindo. Todos soltam as luzes orientais para o céu e se abraçam, desejando Feliz Natal.
Abraço cada um deles, e, quando chega na vez de , é quase automático nós dois hesitarmos a alguns metros de distância e encarar um ao outro. Ao invés de ir a seu encontro, prefiro dar as costas e caminhar até um lugar que sei que ele conhece – fica atrás de algumas árvores e um pouco afastado da área da festa. Tem um balanço pendurado ali. Descobri esse lugar no Natal de quando tinha doze anos. Eu estava chateada por alguma coisa que aconteceu e vim aqui chorar, me encontrou algum tempo depois e ficamos ali por algumas horas enquanto nossos pais enlouqueciam com o nosso “desaparecimento”.
Com as mãos, tiro a neve que se acumulou no assento e me sento ali. As correntes estão congeladas, e é meio difícil mover o balanço.
— Feliz Natal, — aparece ali e sorri.
— Feliz Natal, .
— Por que você e a sua mãe estavam discutindo? — pergunto quando ele se senta no balanço ao meu lado.
— Porque eu vou sair de casa, e ela não quer.
— Sério? — pergunto animada, é tão bom voltar a saber sobre a vida dele.
— No próximo ano — ele confirma com a cabeça. — Ela está fazendo uma tempestade em copo d’água, não é como se eu fosse mudar para o Alasca.
Dou uma risada fraca, segurando firme a corrente do balanço.
— Você é homem e filho único. É normal que sua mãe ache que você ainda é um garotinho indefeso que precisa se esconder atrás das pernas dela pra se proteger.
— De fato. Acho que, na cabeça dela, eu iria morar com ela pra sempre.
Eu e ficamos em silêncio, aproveitando a nossa companhia. O céu está limpo e é uma noite bonita, apesar de fria. O barulho das risadas e da música dá para ouvir daqui. É tudo tão animado e mágico.
Ele suspira e olha para mim. Não preciso nem escutar para saber o que vai dizer.
E então, voltamos a falar de nós.
— Não estava desesperado para sair daqui como você. Eu tava morrendo de medo de ir embora e fracassar com a minha arte — começa, e eu mordo a parte interna da minha bochecha. Olho para ele curiosa, porque, porra, ele nunca me revelou nada parecido. — Entendo por quê foi sem mim. Acho que você precisou ir embora para me dar coragem de ficar.
apoia as duas mãos no ferro superior do balanço. É um pouco engraçado, porque ele é meio grande para o brinquedo.
Nesses últimos dias, falei tanto sobre mim e sobre como me senti naquela época, porque achei que o pedido de desculpas tinha que vir de mim, e não tive a chance de ouvir o lado dele. Ele nunca quis contar.
— Então… estamos quites — dou um meio sorriso, que ele retribui. — Sobre aquele beijo... — começo, porque não dá para ignorar aquilo.
— Eu te desculpo por ter me beijado — dá um sorriso cortejador e eu pisco, indignada, me inclinando na sua direção.
— O quê? Foi você que me beijou.
Ele ri e empurra o meu balanço para o lado.
— Você sempre foi resistente.
— Eu? Resistente?
— Claro. No nosso primeiro beijo, por exemplo, você queria fingir que nunca aconteceu, enquanto eu já tava todo apaixonado — ele diz, e eu abro a boca quase em descrença. A naturalidade daqueles palavras saem tão fácil de sua boca. nunca teve dificuldade com essa coisa de lidar com sentimentos. Para ele, era bem simples. Se queria alguém, ele demonstrava sem rodeios. — Nós nos beijamos, amour.
Desvio o rosto, querendo me enfiar debaixo da neve quando ouço o apelido.
— Nossa, eu odiava quando você me chamava assim.
— Mas eu amava.
— Lembra daquele acordo?
Depois daquele beijo, decidi estabelecer algumas regras para que aquilo não acontecesse de novo. Eu e tínhamos dezesseis anos, e eu pensava que éramos muito jovens para viver todo aquele drama desnecessário. Então, resisti e pedi a ele que fizesse o mesmo, que se contentasse com a nossa amizade.
Passei um mês resistindo e foi péssimo, porque nossa relação ficou esquisita. Mesmo que não tivéssemos brigado, meu cérebro ficava em alerta toda vez que chegava perto de mim. E todas as minhas atitudes em relação a ele eram voltadas a evitar que um “clima” rolasse entre nós.
Um mês de esquivas intencionais e algumas discussões. Foi uma tortura, mas depois que finalmente chegamos a conclusão que a nossa impulsão e tensão sexual era difícil de controlar, decidimos fazer um acordo. Na verdade, fui eu que pensei no acordo. Se esse trem ia mesmo sair da estação, então eu seria a maquinista – achava que assim dava para controlar o destino. Eu gosto de regras, acredito que minha vida é mais fácil de conduzir quando as tenho. Foi quase como uma amizade colorida que não deveria ter passado disso, mas passou, e três meses foi o máximo que consegui resistir.
E eu juro que tentei, mas era bom demais para ser verdade. Bom demais para mim. As garotas na escola passavam por mim e diziam que eu era uma garota de sorte. Eu achava isso quando olhava para como um amigo, mas pela primeira vez comecei a vê-lo como um namorado.
— Durou três meses. Era pra ter durado menos, mas você tinha que continuar na sua pose de menina durona que se recusava a admitir que gostava de mim.
— Não é que eu não gostava! — protesto, e ele franze a testa. — É sério, . É que todo mundo queria tanto isso, colocavam tanta expectativa, e eu tinha medo de não atingir todas.
— Você sempre preencheu todas as minhas expectativas, amour — ele faz um carinho no meu rosto que me faz corar.
— Quando foi que eu deixei você me chamar assim de novo? — pergunto sem graça.
— É Natal. Dê isso a mim — ele pede de um jeito tão fascinante que é impossível recusar. Se antes eu e estávamos parecendo duas crianças, agora somos dois adolescentes.
Pouco tempo depois, Rubi nos achou e tive que aturar por dez minutos as piadinhas da minha irmã. Logo voltamos para aproveitar o resto da noite com o pessoal, e confesso que foi uma mega surpresa quando ele pegou a minha mão no caminho.
Eu e ficamos juntos o resto da noite. Brincamos com Luca, fugimos das perguntas dos nossos pais sobre o nosso “relacionamento” e dançamos Mazzy Star juntos depois de eu trocar a playlist, pois não aguentava mais músicas de Natal. Considero isso como o milagre de Natal que essa maldita estação me deu, agora estou ficando sem argumentos para odiá-la.
Foi divertido ter o meu amigo de volta por pelo menos uma noite. Sem beijos, apenas nossa amizade, e, por esse motivo, não sei em que pé estamos neste momento.
Agora passa das duas da manhã e todos já foram para os seus chalés dormir ou se aquecer nas lareira há pelo menos uma hora, com exceção de nós. Eu ia dividir um chalé com Rubi, Pete e Luca, até receber uma mensagem repentina da minha irmã avisando que ela e a sua linda família iriam se juntar a June e Phillip em outro.
Não faço ideia de onde vai dormir, mas estamos caminhando em direção ao chalé que eu ia dividir com Rubi. A música já cessou e as nossas vozes são a única coisa audível enquanto andamos pela ponte térrea de madeira que leva aos chalés.
— Sabe o que é triste? — ele diz.
— O quê?
— Não tenho nada pra te dar de presente esse ano.
— Ah, que besteira, .
— Besteira? Era o nosso lance. Tínhamos os melhores presentes.
E ele tem razão. Eu lembro do presente que me deu no último Natal que passamos juntos. Ele simplesmente gravou todos os meus momentos mais embaraçosos ao longo do ano, editou em vídeos e colocou num CD. Em outro ano, ele moldou com argila o “Estúdio da ” – que era basicamente a salinha do teatro da escola onde eu montava os meus roteiros –, mas, na história que ele criou ali, eu já era uma roteirista bem sucedida. Guardei todos os presentes, porque nosso lance não tinha nada a ver com dinheiro ou coisas materiais, mas sim com o valor sentimental.
— É, você tem razão — digo, me encostando na porta do chalé quando chegamos. — Podemos melhorar isso no Natal que vem, o que acha?
Ele se aproxima e brinca com uma mecha do meu cabelo. Seus dedos rumam dos meus fios para o meu rosto.
— Acho perfeito.
Há uma tensão aqui à medida que nos encaramos e nossos corpos se aproximam mais. Seus olhos são tão bonitos, e seu toque é tão gentil que, nesse momento, sou quase capaz de explodir em êxtase. Sua boca está tão próxima da minha, até que não aguento mais.
Pergunto:
— O que é isso entre nós?
Ele responde:
— Nada.
me agarra pela parte de trás do pescoço e me beija. A minha mão, no automático, vai parar na maçaneta da porta do chalé, e agora entendo porque Rubi foi dormir com June e Phillip. Esse era o plano dela. E deu certo.
Nós entramos juntos e penso que:
está certo.
Não tem nada entre a gente.
Nada entre os nossos lábios, nem mesmo ar.
❄️❄️❄️
Eu e tivemos dificuldade para sair da cama no dia seguinte. O dia lá fora está frio e, dentro do chalé, está quente por conta da lareira e dos nossos corpos entrelaçados. A cortina da janela está aberta e ficamos um bom tempo observando como o sol ilumina a neve que se recusa a derreter. Não preciso de muitos cobertores, pois o corpo dele, mesmo nu, é o suficiente para me aquecer. Nessa noite eu me aconcheguei em seus braços como nunca fiz antes, e nós decidimos dormir metade do dia como nos velhos tempos.
Quando acordamos, passa do meio-dia. Quase todos os chalés já estão vazios, e nem preciso dizer que ninguém da nossa família nos esperou ou decidiu nos acordar. Deviam estar muito ocupados pensando nos waffles de gengibre que John faz. Não gosto muito de waffles, mas os deles tenho que concordar: são mesmo divinos. Apesar de ter perdido o café da manhã de Natal e a abertura dos presentes, não me importei muito. A manhã com foi tão divertida que me fez esquecer do resto.
No almoço, a refeição começa por volta de uma da tarde. Somos quase vinte além de mim, , Rubi, Pete, Luca, Isabel, John, Philip, June, mamãe e papai se contarmos alguns tios e primos meus que chegaram há pouco tempo (com exceção de uma tia e um tio, que tiveram um brunch de Natal em outro lugar e, provavelmente, só aparecerão para a sobremesa). Com uma ceia dessas é impossível não vir. Estamos oferecendo salada de batata, pudim de sorvete e manteiga de conhaque. Frios e frango, camarão, ostras, outras saladas e, claro, o próprio pudim de Natal da minha bisa que mamãe deixou guardado na geladeira.
O almoço é com certeza mais animado que o jantar de ontem. Idealizo que é esse o tipo de Natal que todo mundo deveria ter pelo menos uma vez na vidam e que tenho sorte de poder desfrutar disso todos os anos. Beber com Amélie e Sabrina no pub é divertido, mas não é isso aqui. Posso beber com elas o resto do ano inteiro; voltar para cá ressignificou o Natal para mim.
À tarde, depois de abrirmos os presentes, mamãe, papai, Isabel e John decidem seguir sua tradição favorita: minha família caipira do oeste do Tennessee e os pais de se reúnem para jogar BINGO no porão de uma igreja no centro da cidade que não recebe nem sinal de celular. Os prêmios são sempre muito estranhos: sacolas cheias de produtos de higiene de hotel (usados, é claro), porta-papel higiênico, fita adesiva, bichos de pelúcia empoeirados, facas enferrujadas, brinquedos para uma refeição feliz e uma amostra de fralda para adultos (sem uso, é claro). Mesmo que os prêmios sejam, literalmente, lixo, é o passatempo favorito deles. Já Rubi decide passar um tempo com Pete e Luca para estrear a bicicleta nova que ele ganhou do meu pai.
Estou no meu quarto apreciando a vista da janela quando a cabeça de surge ali. Franzo a testa quando ele se apoia no batente e pula para dentro do meu quarto. No mesmo instante, sou transportada para o momento em que éramos adolescentes e ele costumava aparecer assim. Quer dizer, meu pai e John eram melhores amigos. Papai adorava , mas ele sempre teve muito ciúmes de mim e de Rubi. Era uma luta para sair de casa depois das oito quando o evento envolvia garotos.
Ficávamos a noite inteira comendo fast-food e dirigindo pelas ruas de Henderson no carro que pegava escondido de seu pai. Quando eu não podia sair, ele entrava pela janela do meu quarto e assistíamos filmes até de madrugada.
— Oi — ele fala quando seus pés atingem o chão do meu quarto.
— Oi. Jeito legal de entrar.
Ele sorri e eu aproveito para admirá-lo. Seus cabelos estão molhados, e isso indica que ele deve ter acabado de sair do banho. usa um moletom preto velho do Led Zeppelin com jeans e tênis; creio que deve estar morrendo de frio.
— Quis relembrar os velhos tempos — ele se joga na minha cama e apoia as mãos atrás da cabeça. — Achei que você tivesse ido para o Bingo.
— Infelizmente eu perdi grande chance de jogar o Bingo de Natal na Igreja Metodista com os nossos pais — finjo arrependimento enquanto ele ri. — Quem sabe no Natal que vem?
— Está livre então, amour?
Amour. Eu nunca vou me acostumar com isso.
Ergo uma sobrancelha para ele.
— O que tem em mente?
balança uma chave para mim e me faz trocar de roupa. Coloco uma bota UGG, um casaco mais frio, cachecol e uma touca. Faço ele colocar uma das minhas toucas para não sair com o cabelo molhado. Ele nem precisa dizer o que quer fazer, pois só andar por aí é o bastante para nós dois.
— Seu pai te emprestou? — pergunto quando saímos da minha casa e vejo o mesmo Corvette Stingray 1971 azul que pertence a seu pai. É um carro bonito e clássico; eu sempre adorei o modelo e a cor.
— Não. — responde, entrando no banco do motorista enquanto eu abro a porta do passageiro. — Ele me deu.
— Sério?
confirma enquanto coloca o cinto.
— Presente de Natal.
— Sempre achei que ele amasse mais esse carro do que si mesmo.
— E amava, mas, de acordo com ele, para iniciar uma mudança, todo homem precisa de um carro.
Minutos depois estamos andando, com Peter Schilling tocando no rádio. Eu observo seu perfil enquanto ele dirige. gosta muito de dirigir, de guiar, de deixar uma mão no volante e a outra sobre proteção em cima de mim. Fico um bom tempo o observando, e ele não se importa ou se envergonha. Ele diz que eu o encarar é uma das suas coisas preferidas no mundo. Lembro da conversa que tive com Rubi nessa semana e percebo que a estrada que não segui parece muito boa agora, e ela sempre me leva a ele e a minha cidade natal. Começo a me perguntar se podia ter isso todos os dias, essa mesma harmonia e serenidade. Essa sensação de estar completamente cheia e de ser amada.
A vida toda tenho manipulado todo mundo que um dia já se apaixonou por mim para se apaixonar por mim, e, apesar disso, me fazer uma boa mentirosa também me fez um ser humano impossível de amar. E acho que é por isso que nunca consegui me acostumar com o jeito de me chamar de amour. O sentimento dele é verdadeiro e único. Uma coisa rara de se achar na vida.
Nós dirigimos até a casa do lago que pertence aos avós de . Está muito frio para ficar do lado de fora, então, entramos. Percebo que ele planejou tudo quando tira do carro cartas de baralho, um fondue encomendado do restaurante mais charmoso de Henderson e chocolate quente. Nós sentamos no tapete da sala, enrolados no mesmo cobertor de frente para a lareira.
— Tem certeza que ninguém vai aparecer aqui?
— Absoluta. Meus avós estão fazendo um cruzeiro, e mesmo se alguém aparecesse, não estamos fazendo nada de mais — sorrio e me aninho no seu peito, me abraça um pouco mais forte. — Pelo menos por enquanto.
Dou risada e um tapa leve no seu braço.
— Como é lá?
— Lá? — franzo a testa.
— A Cidade dos Anjos.
— É... inspiradora — suspiro, olhando para o fogo. No verão, a Califórnia é tão quente quanto essas labaredas.
— Aposto que você tem muitos amigos — ele me solta, distribui o chocolate em duas xícaras e me entrega uma.
— Mais ou menos. Eu não sou a pessoa mais sociável do mundo, esqueceu? — o empurro pelo ombro, e ri, porque, entre nós dois, ele sempre foi o mais acessível e carismático, enquanto eu era impaciente e rabugenta. Para ele, era mais fácil fazer amigos. — Eu tenho alguns. Sabrina e Amélie são as mais próximas, mas costumo conversar e sair de vez em quando com o pessoal do estúdio.
— E como são? O povo da costa oeste?
— Para de falar como se eles fossem algum tipo de alienígena, .
— Desculpa, é que eu não confio em quem usa tanta loção de bronzeamento.
— Eles são legais, comem o dobro de fast-food que uma pessoa comum comeria e são viciados em basquete como qualquer cidadão americano — digo, me lembrando de quantos jogos dos Lakers a Amélie me arrastou para assistir. Ela gosta do esporte, mas também ama foder com atletas, por isso está sempre tentando acompanhar as ligas. — Bem, eles me chamam de observadora. Isso particularmente não é verdade.
— Mas você é.
— Não sou não! As pessoas são tão fáceis de ler. Sangramos emoções do mesmo jeito que bebemos nosso café — levo a xícara à boca e olho para . — Ninguém parece notar, no entanto. Eles estão ocupados demais bebendo seus próprios malditos cafés — rosno no final da frase, e claro que percebe.
—Ei! Isso foi específico demais — ele alisa a minha bochecha. — Tá tudo bem?
— Tá sim, é que… Filho da puta a gente vai encontrar em todo lugar, não é?
— Viu? A minha teoria sobre o povo da costa oeste é válida.
— Agora eu estou em um novo projeto. É uma nova série, estou muito animada para começar. Não foi assim no começo. Eles me contrataram como roteirista, mas eu não estava bem produzindo isso, por isso tive alguns problemas com o estúdio no início. Principalmente com aquele roteirista nojento do Barnny.
— Ele era o seu chefe?
— Não, fomos contratados para trabalharmos juntos. Seríamos co-roteiristas, mas ele me tratava como uma assistente. Agora o projeto é inteiramente meu, está previsto para sair no segundo semestre do ano que vem.
— Quero spoilers!
— Eu não sei se você merece — comento. — Sabrina está escrevendo um livro. Se der tudo certo e eu for bem sucedida com a série, você vai poder saber tudo que aconteceu nos mínimos detalhes quando ela lançar.
— Não quero saber pelo livro da Sabrina — ele tira a xícara das minhas mãos e as segura. — Quero saber por você.
— Jura?
— Claro. Eu sou o seu helper, esqueceu?
No ensino médio, eu costumava criar peças para o teatro da escola. sempre as lia primeiro antes de eu mostrar para a professora. Ele era o meu helper, sempre me ajudando e dando opiniões sinceras sobre o que eu escrevia.
— Nunca.
Novamente ficamos bem à vontade. Dou um sorriso, completamente derretida, e o puxo para um beijo. É, eu nunca deixei de amar esse cara. Sou completamente apaixonada por ele.
E mesmo o mais bonito dos amores dói quando um temporizador regula o seu tempo.
❄️❄️❄️
De madrugada eu acordo, porque meu voo é em poucas horas e não posso entrar no avião usando pijamas. Vou até o meu antigo quarto para fazer uma última troca de roupa: blusa de gola alta preta, jaqueta branca, jeans e botas pretas de salto alto nos pés. Separo um gorro, porque com esse frio nunca é demais. Guardo o meu pijama na mala e a fecho. É a última coisa que precisava guardar. Suspiro ali em cima mesmo e saio do quarto arrastando a mala de rodinhas e a minha bagagem de mão.
Meu plano era sair de fininho, para não ter que lidar com a tristeza da despedida, mas acabo acordando mamãe. Ela acorda todo mundo e diz que não vou a lugar nenhum sem antes compartilhar com eles um abraço caloroso de despedida. Primeiro eles tentam me convencer a ficar até o ano-novo, e, depois de dizer que não dá, Eleonor me faz prometer vir no próximo feriado. E dessa vez é diferente, porque estou ansiosa para voltar.
— Pai — digo antes que ele pegue as chaves do carro. — Tem como o senhor não me levar dessa vez? — peço e ele balança a cabeça, já ponderando sobre o motivo de eu ter pedido isso. Eles ficam esperando na sala enquanto vou até a casa de .
Entre domingo e segunda, e eu falamos sobre a minha vida em Los Angeles, mas em momento algum falamos sobre a hora em que eu iria embora. Nada que disséssemos me faria decidir, porque nunca tive dúvidas de voltar para lá. Permanecer seria insistir em espaços que não me cabem mais e escolher outros ao invés de mim, e eu definitivamente não posso mais me negligenciar dessa forma, mas também não posso cometer os mesmos erros de antes. Por isso não titubeio em tocar a campainha da casa dele. A porta se abre segundos depois. Eu o olho meio espantada; é como se ele soubesse que eu ia aparecer aqui nesse exato segundo ou tivesse tido a mesma ideia.
— Oi.
— Oi.
Meu sorriso acompanha o dele, e sinto como se estivéssemos na mesma sintonia.
— Posso ajudar, ? — ele se apoia no batente e questiona, depois de todo esse meu silêncio.
— Bem, estou precisando de um motorista. Conhece alguém com carro? De preferência um Corvette azul?
— Talvez eu conheça. Quanto a moça pretende pagar?
descruza os braços e, no segundo seguinte, está me segurando pela cintura. Seu corpo tão perto do meu é tão bom que começo a achar loucura ir embora e deixar tudo isso aqui. Levo minhas mãos até sua nuca conforme nossos rostos vão se aproximando.
— Hm, não sei. O que o motorista cobra?
Ele ri e roça os lábios nos meus.
— Me lembre de nunca responder uma coisa dessas na frente do Luca.
— Anotado — digo antes de beijá-lo de volta.
De certo modo, fico aliviada. Era para ser um momento triste e tenso, mas está agindo da melhor maneira possível. Não duvido que ele esteja triste, eu também estou; ele só não está demostrando.
Minutos depois, estamos todos na calçada. São três horas da manhã, e até os pais de se levantaram para se despedir, mesmo de pijamas.
— Eu sabia que ia dar tudo certo — Rubi diz para mim depois de um abraço.
Dessa vez, optei pelo Aeroporto Internacional de Memphis. É mais perto do que ir até Nashville, e, considerando que ainda vai ter que voltar, achei a melhor opção quando comprei a passagem da volta. São quase duas horas de carro, então posso dizer que eu e vamos ter um tempo a mais juntos.
— Você acha que vamos precisar abastecer? — ele pergunta quando pegamos a rodovia principal.
— Acho que você deve abastecer na volta, só para garantir.
— Vai ser estranho voltar sem você — ele admite e eu mordo o lábio inferior, olhando para a rua. O sol está quase raiando, mas ainda está escuro. — Mas fico feliz que você está feliz.
— Isso significa muito pra mim, .
Ele tira a mão da marcha para segurar a minha por cima da minha coxa, e eu aperto os seus dedos.
— Não fique achando que vai se livrar de mim por tanto tempo. Eu pretendo te visitar em breve.
É impossível não sorrir.
— Claro que sim. Preciso tirar todo esse ódio que você tem pela costa oeste de dentro de você.
— Se prepare, vai ser uma tarefa difícil.
— Acho que consigo dar conta. Lidar com é a minha especialidade.
— Não se ache tanto. Conheço todos os seus truques.
Trocamos uma risada leve. Ele solta a minha mão para poder mudar a marcha e eu encaro a estrada.
— Bem, obrigada por me levar.
— Faço qualquer coisa por você, .
Eu levo as mãos à boca, tentando esconder o meu sorriso. Alguns dias atrás essa frase nem seria possível. E agora estamos aqui.
— Eu não mereço você — solto de repente, afastando o cabelo emaranhado de meus olhos.
— Como você se atreve a dizer isso? — ele responde, sem fôlego, sem desviar os profundos olhos azuis do mar focados na estrada.
— É a verdade. Você é tão incrível e atencioso, e alguém como eu não merece alguém como você — garanto a ele. é muito puro e muito doce para amar a bagunça que sou eu.
— Por favor, não me faça parar esse carro para te provar o contrário. Você sabe que eu faria, .
— Sim, eu sei.
Uma hora e meia depois estamos chegando em Memphis, e liga o GPS para não errarmos o caminho do aeroporto. O sol já apareceu quando paramos no estacionamento. vai comigo fazer o check-in, depois ficamos sentados em um banco por alguns minutos até a hora de embarcar. Ficamos conversando e dividimos o fone de ouvido. Eu e tiramos algumas fotos, pois, de acordo com ele, não tiramos nenhuma e era necessário renovar o nosso acervo. Uma delas vira papel de parede do meu celular.
Vamos de mãos dadas até a área do meu portão de embarque. Paramos um pouco antes para não atrapalhar a passagem, e, desanimada, eu encaro . É a hora da despedida.
— De alguma maneira, nós vamos sempre nos despedir, não é? — ele diz com falso humor, segurando as minhas mãos.
— É. Eu acho que sim.
Ele solta uma das minhas mãos e enfia no bolso da jaqueta. Tira de lá a polaroid do nosso beijo. É a minha cópia, que eu nem percebi que ficou com ele.
— Essa é a nossa melhor foto.
— E não é?
Logo em seguida, ele me beija, ali na frente de todo mundo. Seguro a foto e guardo comigo. encosta a testa na minha e murmura:
— Eu amo você, .
Não me chama atenção ele dizer que me ama, o que realmente me prende é que a maneira como ele falou foi igual a todas as outras.
Olho nos olhos dele e, pela primeira vez no dia, vejo a melancolia nos olhos de . E há um momento aqui. Apesar da declaração, nossos olhares são mútuos, e o significado por trás deles também. Não vou pedir para ele me esperar, assim como ele também não vai me pedir para ficar.
— Eu sei, eu sei. Eu também te amo, .
A voz irritante no alto-falante nos atrapalha. É a chamada do meu voo, e vejo que não dá mais para enrolar. Eu e damos um último abraço apertado e me afasto dele, indo em direção à porta de embarque. Não olho para trás, mas sinto os olhos dele em mim até que eu suma de sua vista.
Na fila do raio-X, vou pensando em tudo que aconteceu. Acredito que, assim como Van Gogh, eu também encontrei o meu caminho. Nós dois encontramos o amor, mas nem sempre você consegue ter os dois.
Eu e compartilhamos uma história que acho que nunca vai acabar.
Não foi falta de amor, mas sim falta de compromisso nele – nos encontramos na pior hora e eu não soube como lidar com tanta intensidade na época. Hoje já estou mais madura quanto a isso. Eu amo , sempre amarei, e voltar para Los Angeles significa abandonar a cama mais aconchegante que já conheci. Sofrer com a ausência da única alma que me conhece o suficiente para saber quais sorrisos estou fingindo. É continuar passando pelas ruas de L.A., ver as coisas e pensar sempre: “Oh, o gostaria disso”, e, lá no fundo, ter a esperança de ele fazer a mesma coisa comigo. Significa ficar longe de alguém que me faz feliz, me faz rir. De alguém esperto, diferente, um pouco lerdo e estranho, mas com um sorriso que tem a capacidade de fazer o meu dia.
Eu vou, mas, dessa vez, o único coração que sei que estou partindo é o meu.
E de alguma forma estranha, isso me conforta.
Fim
Nota da autora: Se você leu até aqui, espero realmente que tenha gostado. Foi o maior ficstape que eu já escrevi e gostei muito de compartilhar cada detalhe com vocês. Entrem no grupo do facebook pra acompanhar minhas outras fanfics e convido você a lerem meus outros trabalhos no FFOBS. ❤️❤️❤️
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