Capítulo Único
Ele está deitado e respira profundamente, e eu sinto uma vontade maluca de comemorar este e cada um dos seus suspiros. Eles aliviam a minha dor, ao adiar o pior, apesar de também doer demais esta inevitável constatação de que o pior está por vir.
Estou perdendo meu pai. Ele vai partir e não há nada mais que eu ou qualquer pessoa, mesmo os médicos especialistas que contratamos, possa fazer.
Observo as paredes brancas do quarto de hospital, tentando não encará-lo e não pensar em como tudo está desmoronando à minha volta. Mas as paredes não fazem muito por mim. Elas me fazem viajar até 1995, quando eu era apenas um menino, de castigo em um quarto de paredes igualmente brancas, procurando manchas na pintura para me distrair.
- , meu filho - ele dizia, entrando no quarto, em algum momento que, para mim, parecia uma eternidade inteira, depois da hora em que me deixara ali, sem televisão, videogame ou qualquer brinquedo que realmente me interessasse -, pode ir jogar agora.
- Ok - eu respondia, sem olhar nos olhos dele. Desenhava com a ponta do dedo o contorno de uma mancha próxima ao rodapé, fingindo não me importar.
- Você entendeu que o que fez foi errado... Certo, ? - indagava e eu ficava calado. - Precisa entender, meu filho. E entender que, quando fazemos coisas erradas, isso traz consequências.
Eu não entendia na época quem ele era e que papel teria em minha vida. Eu o chamava de papai, mas ainda não sabia o que era ser um pai de fato.
Eu não compreendia por que precisava ficar de castigo, mesmo que ele tentasse explicar que a punição era consequência das minhas escolhas erradas. Não podia imaginar que deveria a ele, e à educação que me deu, tudo o que me tornaria, tantos anos depois.
Hoje sou um homem, mas devo confessar que estou me sentindo como uma criança. Sozinho com ele, neste quarto sem cores, vendo sua pele perder a cor, o antigo brilho de seus olhos sempre escondido pelas pálpebras, sou pequeno de novo. Não quero deixá-lo partir, mesmo que saiba que talvez seja o melhor para ele. Acho que não conseguirei suportar.
Peço silenciosamente que ele não vá embora. Não ainda. Não me deixando mais solitário que nunca!
- Você não pode pegar os brinquedos das outras crianças, .
- Não pode ir pra escola sem fazer o dever de casa.
- Tem que obedecer a professora.
- Não pode mexer nas coisas da sua avó.
- Precisa estudar pra prova.
Eu o odiava quando me repreendia! Queria que ele fosse só aquele que comprava os presentes que eu pedia, no meu aniversário e no Natal, que jogava bola comigo no quintal, assistia aos meus desenhos favoritos comigo e me ajudava a treinar golpes de judô.
Porém o tempo havia passado e a raiva ficara para trás. Ele se tornara meu herói, meu melhor amigo, meu maior exemplo.
Eu tinha entendido que tudo que ele fizera, desde os castigos e do uso de palavras duras até as brincadeiras, as longas viagens de carro para pescarmos juntos, as tardes de verão me ensinando a andar de bicicleta e skate, eram gestos de amor.
Meu pai e eu tínhamos perdido a minha mãe quando eu tinha apenas dois anos de idade. Ele largara o emprego que tinha, em uma multinacional, e utilizara seu conhecimentos de administração de empresas para abrir um negócio caseiro, para poder me criar, ao invés de me deixar com uma de minhas avós ou com babás.
- Ele é meu filho. É minha responsabilidade - minhas avós costumavam me contar que era o que ele respondia, quando se ofereciam para cuidar de mim.
Ele sabia que, se não me ensinasse, provavelmente a vida o faria. E a vida seria ainda mais dura, com toda a certeza! Nenhuma pessoa estaria me colocando no meu devido lugar por amor, como ele fizera.
Eu fui entendendo este amor e o amando cada vez mais também. Um amor construído ao longo dos últimos trinta anos e que será cada vez maior, mesmo que me falte a sua presença. Eu entendo isso, mas mesmo assim dói! Mesmo assim eu pareço sangrar na alma, o mesmo sangue que seu corpo derramou nos últimos dias e que tentamos repor, com a ajuda da tecnologia.
Não há transfusão para a minha hemorragia. Sinto como se nada fosse estancá-la. Queria conversar com ele sobre tudo o que está acontecendo em minha vida e, justamente agora, mesmo que ele me escute, não me dará qualquer resposta. Vou ter que buscar palavras que usou em outros momentos similares para suportar.
A porta do quarto se abre e alguém entra. Não olho para a pessoa, imaginando que é mais uma das infermeiras com mais um dos muitos medicamentos que os médicos estão usando para controlar as dores do meu pai. Sorrio ironicamente, pensando que roubar alguma morfina talvez fosse uma boa ideia.
Então sinto uma mão pousar suavemente em meu ombro. Levanto o olhar e vejo que quem entrou no quarto foi a última pessoa que eu esperava que fosse até ali.
- Como você tá, ? - me pergunta, baixinho. - Existe alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
- Esquecer essa merda de divórcio - respondo, sem conseguir ser sutil. Foi ela quem perguntou, afinal. E a resposta verdadeira não pode ser outra.
- Não é hora pra gente conversar sobre isso - ela diz, sentando-se ao meu lado. Ela deve ter razão quanto a não ser o melhor momento para discutirmos (de novo!) sobre tornar nossa separação definitiva, mas, se continua tão certa do que quer, não consigo entender sua presença no hospital.
- E o que você tá fazendo aqui? - indago, sem conseguir me conter. Devo soar grosseiro, ainda mais considerando que ela está sendo gentil, mas não ligo! Não quero sua gentileza ou piedade.
- Eu amo seu pai, - ela diz e sei que não é mentira. - Amo você também... E me preocupo.
- Me ama? - Tento segurar a mão dela, mas ela escapa.
- Eu sempre vou amar você - afirma. - Você sempre vai ser o pai do meu filho...
- Desculpa, Rach. Eu sei que você veio com a melhor das intenções, mas eu não posso lidar com isso agora, ok? - reclamo. - Você sabe que eu não quero ser só o pai do seu filho.
Eu amo muito nosso Nate e quero ser para ele tudo que meu pai foi para mim. Se eu conseguir ser a metade, farei um ótimo trabalho! Mas é a mulher da minha vida, e não consigo me conformar de ter estragado tudo! Será mesmo que estraguei tudo?
- Você prefere que eu vá embora, então? - questiona ela, levantando-se do sofá.
- Eu prefiro que você fique. Que você volte pra minha vida! - Seguro o rosto dela entre as mãos. - Pode não ser o momento certo pra falar disso, mas eu preciso de você, meu amor! E não é porque o meu pai está...
Ela me abraça e eu não sei se está com pena de mim apenas ou se ainda posso ter esperança de consertar as coisas, mas prefiro apostar na segunda opção.
Sei que terei que aceitar, se ela tiver deixado de me amar, mas não vou desistir sem lutar. Não vou desistir sem mostrar a ela o quanto a amo e que podemos recomeçar, sem repetir nossos erros. Afinal, eu aprendi com o guerreiro que está deitado próximo a nós, se despedindo, mas não ser ter batalhado muito, e não antes da certeza do dever cumprido.
Eu aprendi com ele a perseverar e aprendi com ele a amar. Com um professor assim, tenho que ter aprendido alguma coisa que possa me salvar!
Por isso, eu sinto esperança de que a minha sangria vai estancar, mesmo quando a dele piora, alguns dias depois, e sua alma iluminada enfim deixa seu corpo.
Já não me sinto oprimido pelas paredes totalmente brancas do quarto de hospital, enquanto seguro sua mão. Sorrio, como se estivessem projetadas nelas imagens de nós dois à beira do lago, fazendo pique-nique, dele ajeitando a minha gravata, antes de eu entrar na igreja para me casar com , da primeira vez em que ele viu o rostinho do neto...
Enquanto as paredes se colorem de lembranças, me despeço e ficamos ambos em paz.
Estou perdendo meu pai. Ele vai partir e não há nada mais que eu ou qualquer pessoa, mesmo os médicos especialistas que contratamos, possa fazer.
Observo as paredes brancas do quarto de hospital, tentando não encará-lo e não pensar em como tudo está desmoronando à minha volta. Mas as paredes não fazem muito por mim. Elas me fazem viajar até 1995, quando eu era apenas um menino, de castigo em um quarto de paredes igualmente brancas, procurando manchas na pintura para me distrair.
- , meu filho - ele dizia, entrando no quarto, em algum momento que, para mim, parecia uma eternidade inteira, depois da hora em que me deixara ali, sem televisão, videogame ou qualquer brinquedo que realmente me interessasse -, pode ir jogar agora.
- Ok - eu respondia, sem olhar nos olhos dele. Desenhava com a ponta do dedo o contorno de uma mancha próxima ao rodapé, fingindo não me importar.
- Você entendeu que o que fez foi errado... Certo, ? - indagava e eu ficava calado. - Precisa entender, meu filho. E entender que, quando fazemos coisas erradas, isso traz consequências.
Eu não entendia na época quem ele era e que papel teria em minha vida. Eu o chamava de papai, mas ainda não sabia o que era ser um pai de fato.
Eu não compreendia por que precisava ficar de castigo, mesmo que ele tentasse explicar que a punição era consequência das minhas escolhas erradas. Não podia imaginar que deveria a ele, e à educação que me deu, tudo o que me tornaria, tantos anos depois.
Hoje sou um homem, mas devo confessar que estou me sentindo como uma criança. Sozinho com ele, neste quarto sem cores, vendo sua pele perder a cor, o antigo brilho de seus olhos sempre escondido pelas pálpebras, sou pequeno de novo. Não quero deixá-lo partir, mesmo que saiba que talvez seja o melhor para ele. Acho que não conseguirei suportar.
Peço silenciosamente que ele não vá embora. Não ainda. Não me deixando mais solitário que nunca!
- Você não pode pegar os brinquedos das outras crianças, .
- Não pode ir pra escola sem fazer o dever de casa.
- Tem que obedecer a professora.
- Não pode mexer nas coisas da sua avó.
- Precisa estudar pra prova.
Eu o odiava quando me repreendia! Queria que ele fosse só aquele que comprava os presentes que eu pedia, no meu aniversário e no Natal, que jogava bola comigo no quintal, assistia aos meus desenhos favoritos comigo e me ajudava a treinar golpes de judô.
Porém o tempo havia passado e a raiva ficara para trás. Ele se tornara meu herói, meu melhor amigo, meu maior exemplo.
Eu tinha entendido que tudo que ele fizera, desde os castigos e do uso de palavras duras até as brincadeiras, as longas viagens de carro para pescarmos juntos, as tardes de verão me ensinando a andar de bicicleta e skate, eram gestos de amor.
Meu pai e eu tínhamos perdido a minha mãe quando eu tinha apenas dois anos de idade. Ele largara o emprego que tinha, em uma multinacional, e utilizara seu conhecimentos de administração de empresas para abrir um negócio caseiro, para poder me criar, ao invés de me deixar com uma de minhas avós ou com babás.
- Ele é meu filho. É minha responsabilidade - minhas avós costumavam me contar que era o que ele respondia, quando se ofereciam para cuidar de mim.
Ele sabia que, se não me ensinasse, provavelmente a vida o faria. E a vida seria ainda mais dura, com toda a certeza! Nenhuma pessoa estaria me colocando no meu devido lugar por amor, como ele fizera.
Eu fui entendendo este amor e o amando cada vez mais também. Um amor construído ao longo dos últimos trinta anos e que será cada vez maior, mesmo que me falte a sua presença. Eu entendo isso, mas mesmo assim dói! Mesmo assim eu pareço sangrar na alma, o mesmo sangue que seu corpo derramou nos últimos dias e que tentamos repor, com a ajuda da tecnologia.
Não há transfusão para a minha hemorragia. Sinto como se nada fosse estancá-la. Queria conversar com ele sobre tudo o que está acontecendo em minha vida e, justamente agora, mesmo que ele me escute, não me dará qualquer resposta. Vou ter que buscar palavras que usou em outros momentos similares para suportar.
A porta do quarto se abre e alguém entra. Não olho para a pessoa, imaginando que é mais uma das infermeiras com mais um dos muitos medicamentos que os médicos estão usando para controlar as dores do meu pai. Sorrio ironicamente, pensando que roubar alguma morfina talvez fosse uma boa ideia.
Então sinto uma mão pousar suavemente em meu ombro. Levanto o olhar e vejo que quem entrou no quarto foi a última pessoa que eu esperava que fosse até ali.
- Como você tá, ? - me pergunta, baixinho. - Existe alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
- Esquecer essa merda de divórcio - respondo, sem conseguir ser sutil. Foi ela quem perguntou, afinal. E a resposta verdadeira não pode ser outra.
- Não é hora pra gente conversar sobre isso - ela diz, sentando-se ao meu lado. Ela deve ter razão quanto a não ser o melhor momento para discutirmos (de novo!) sobre tornar nossa separação definitiva, mas, se continua tão certa do que quer, não consigo entender sua presença no hospital.
- E o que você tá fazendo aqui? - indago, sem conseguir me conter. Devo soar grosseiro, ainda mais considerando que ela está sendo gentil, mas não ligo! Não quero sua gentileza ou piedade.
- Eu amo seu pai, - ela diz e sei que não é mentira. - Amo você também... E me preocupo.
- Me ama? - Tento segurar a mão dela, mas ela escapa.
- Eu sempre vou amar você - afirma. - Você sempre vai ser o pai do meu filho...
- Desculpa, Rach. Eu sei que você veio com a melhor das intenções, mas eu não posso lidar com isso agora, ok? - reclamo. - Você sabe que eu não quero ser só o pai do seu filho.
Eu amo muito nosso Nate e quero ser para ele tudo que meu pai foi para mim. Se eu conseguir ser a metade, farei um ótimo trabalho! Mas é a mulher da minha vida, e não consigo me conformar de ter estragado tudo! Será mesmo que estraguei tudo?
- Você prefere que eu vá embora, então? - questiona ela, levantando-se do sofá.
- Eu prefiro que você fique. Que você volte pra minha vida! - Seguro o rosto dela entre as mãos. - Pode não ser o momento certo pra falar disso, mas eu preciso de você, meu amor! E não é porque o meu pai está...
Ela me abraça e eu não sei se está com pena de mim apenas ou se ainda posso ter esperança de consertar as coisas, mas prefiro apostar na segunda opção.
Sei que terei que aceitar, se ela tiver deixado de me amar, mas não vou desistir sem lutar. Não vou desistir sem mostrar a ela o quanto a amo e que podemos recomeçar, sem repetir nossos erros. Afinal, eu aprendi com o guerreiro que está deitado próximo a nós, se despedindo, mas não ser ter batalhado muito, e não antes da certeza do dever cumprido.
Eu aprendi com ele a perseverar e aprendi com ele a amar. Com um professor assim, tenho que ter aprendido alguma coisa que possa me salvar!
Por isso, eu sinto esperança de que a minha sangria vai estancar, mesmo quando a dele piora, alguns dias depois, e sua alma iluminada enfim deixa seu corpo.
Já não me sinto oprimido pelas paredes totalmente brancas do quarto de hospital, enquanto seguro sua mão. Sorrio, como se estivessem projetadas nelas imagens de nós dois à beira do lago, fazendo pique-nique, dele ajeitando a minha gravata, antes de eu entrar na igreja para me casar com , da primeira vez em que ele viu o rostinho do neto...
Enquanto as paredes se colorem de lembranças, me despeço e ficamos ambos em paz.