Última atualização: 11/08/2018

Capítulo 1

No início, quando era mais nova, eu me sentia como um cãozinho na vitrine do petshop todas as vezes que um casal aparecia no orfanato. Não que eu tenha entrado em uma loja focada em venda de animais – não fiz isso nem quando tive a oportunidade –, mas imagino que as pessoas entrem nesses locais e escolhem o gato, o cachorro, o coelho que mais apetece. O mais fofinho. O mais bonitinho. O que parece mais obediente, ou o mais sapeca, e então paga para leva-lo para casa.

As coisas não parecem ser diferentes aqui onde vivi e cresci.

Os casais aparecem junto da assistente social, as funcionarias da casa também dão todo o suporte durante a visita e em algum momento existe a seleção do perfil da criança que eles vão adotar – a criança que vão chamar de filho ou filha, aquela que em algum momento também vai reconhece-los como mamãe e papai. Claro, deve rolar toda a coisa de identificação – uma vez escutei uma mulher falar pro marido, toda emocionada, que aquele era um encontro de almas –, mas verdade seja dita, esse processo é uma via de mão única.

Por que acho isso?

Bem. Você já viu um bebê ter direito de escolha, ou falar que adorou aquelas pessoas que querem leva-lo pra casa? Eu nunca vi. E esse é o perfil das crianças que realmente são adotadas nessa birosca. Nenéns, ou no máximo uns 2, 3 anos. Por esse motivo a sensação de cachorrinho na vitrine do petshop ficou apenas lá na infância, quando tinha 6. Nos primeiros meses, achava que existia a possibilidade de ser uma escolhida. Assim que percebi que somente as bolinhas que choravam o dia inteiro eram levadas, parei de me enxergar como uma cachorrinha sem pedigree.

Ao me dar conta de que não existiria mãe e pai no meu futuro, vi que eu era apenas eu.

. Desse jeitinho. Sem sobrenome.

Mas ei, não sinta pena -- pra começo de conversa, não preciso da sua dó. Eu sequer queria uma mãe ou um pai. Eu não estava sozinha, afinal. e todos os outros com mais idade estavam comigo. Aqui nós tínhamos a nossa própria família.

***


“Quem seremos hoje?”, ele perguntou pela manhã, no refeitorio. Mastigava um pedaço de pão com manteiga enquanto falava. É, tem alguns costumes nojentos vez ou outra. Típico de um moleque de 16 anos.

“Hmmm, uma dupla de pinschers", vi o casal do dia adentrar a porta do espaço onde fazíamos as refeições. Eles eram familiares, embora não tenha dado tanta atenção assim. Voltei a olhar para o irmão que a vida tinha dado para mim – o que nós tínhamos sim se encaixava em ‘encontro de almas', já que ambos encarávamos nossa relação daquele jeito. Não me sentia mais como um animal em exposição, muito menos, então hoje usávamos aquilo como ingredientes para piada. “Quando olharem pra gente começamos a latir movidos pela força do ódio! Au au au auauauau", comecei a imitar o que seria um pequeno cachorro que é metade raiva e metade tremedeira. riu, atirando um pedaço de pão em mim.

As funcionárias nem se importavam mais com aquilo. Tínhamos feito tantas coisas que quebravam as regras de comportamento ditadas pelo orfanato; atirar um pedaço de pão não era nada.

E estava rindo. Para mim era aquilo que importava, então danem-se as regras.

Acabamos sendo interrompidos pelo chamado da dona Elza, no entanto. Eu realmente pensei que tínhamos ultrapassado essa fase das broncas por pouca coisa, mas quando vi a surpresa tomar a expressão de ao olhar para ela, que estava acompanhada do casal do dia, percebi que ela não estava chamando a nossa atenção. Ela estava chamando o meu amigo para ir até eles.

“São os meus padrinhos", ele explicou antes de se levantar.

Arqueei as sobrancelhas. Oh sim. Por isso eram familiares, então.

Apesar de crianças crescidas não serem adotadas, é comum sermos apadrinhados por casais que não querem adotar, mas estão dispostos a contribuir com nossa formação. É assim que alguns de nós conseguem estudar em escolas particulares, por exemplo. Todos temos direito a vagas no ensino público – durante o período regular, pelo menos. Faculdade são outros quinhentos –, mas quando casais como esse aparecem, nossas chances de obter um aprendizado de qualidade são bem maiores. tem os padrinhos dele. Eu também tenho os meus.

Isso eu já acho bacana, sabe? É um trabalho de boa ação e é meio esquisito ser o projeto social de alguém, não nego, mas pelo menos nossas chances de conseguir uma vaga em uma universidade federal são maiores já que nossa base em um colégio particular é muito melhor. Não é garantido que vamos conseguir, mas as chances aumentam, considerando o ensino meia boca que o governo oferece – posso falar com propriedade, já que antes de ser apadrinhada, aos 12, eu ia para o colégio público mais próximo do orfanato. É diferente.

Vi de longe, cumprimentando o casal. Eles pareciam felizes em vê-lo e eu era tão grata pela existência daqueles dois quanto era pelo dos meus próprios padrinhos. Eles bancavam os estudos do meu melhor amigo. Nós dois conseguiríamos a aprovação em medicina veterinária na federal graças a essas pessoas.

***


“É tão estranho te ver quietinha, só sentada e estudando", Emilia comentou assim que entrou no dormitório que compartilhávamos com outras seis meninas de 8 a 17 anos.

O orfanato não nos oferece muitas atividades. Em verdade, é uma casa com capacidade para comportar todos nós, com a diferença de que nossa sala de jantar é um refeitório e quem costuma controlar a programação da TV são nossos cuidadores. A TV é aberta, então não é como se tivéssemos muitos canais à disposição, mas com a chegada da smart TV – uma das melhores doações que já recebemos, diga-se de passagem – e da Netflix, nossas possibilidades aumentaram e é aí que os funcionários entram em cena, no controle. Nem todas as séries e filmes são apropriados para os mais novos, então não é como se nós, os mais velhos, tivéssemos muitas opções. Um porre, mesmo que compreensivel.

Como sumiu desde o café, não tinha muita coisa pra fazer além de estudar.

“É o que tem pra agora", dei de ombros.

Voltei a prestar atenção para a apostila de História, contendo o sono. Matérias teóricas são chatas demais!

Emilia, por sua vez, abriu seu lado no guarda-roupa e começou a dobrar algumas peças. Ela estava prestes a se tornar maior de idade. Logo iria embora.

É por isso que preciso estudar – e muito.

Nós nos preocupamos com o futuro duas vezes mais do que um adolescente com vida normal. Não vamos ficar no orfanato pra sempre, mesmo se não formos adotados, como é o caso de Emilia e, em breve, o meu e de também. Aos 18 seremos encaminhados para as repúblicas, que é uma espécie de abrigo. São cerca de 5 jovens em cada casa. Quem banca as despesas básicas é o governo, mas em geral estaremos por nossa conta. Nada de funcionárias tentando fazer as vezes de mães postiças ou alguém preparando a comida e lavando nossos lençóis. Seremos nós por nós. Se não precisar me preocupar com a mensalidade da faculdade, já vai ser um passo e tanto.

“Será que vão ter duas vagas na sua república quando eu e formos liberados?” Quebrei o silêncio.

“Não tenho a menor ideia", ela respondeu às minhas costas. “Mas eu espero que sim.”

Eu também iria torcer para aquilo.

***


“Quem diria que algo assim ia acabar acontecendo...”, escutei dona Elza falar baixinho com alguém que ainda não sabia quem era. Do que ela está falando?

Em minha defesa, não estava naquele corredor com a intenção de bisbilhotar a conversa de ninguém – eu só estava indo até a cozinha para beber água! –, mas quando alguém parece que está prestes a compartilhar alguma informação secreta é lógico que eu paro para escutar. Sou curiosa por natureza. Taurina, sabe? Nem sei se curiosidade é uma característica de touro, mas aparentemente signo justifica tudo, então...

“Pois é, menina", a outra pessoa concordou. Era dona Julia, a assistente social. “Adoção tardia não é algo comum – ver um adolescente de 16 anos recebendo uma proposta dessas, então, é mais incrível ainda.”

Arregalei os olhos, prendendo a respiração.

Quem?!

“Esse casal apadrinhou assim que ele chegou aqui. O menino tinha apenas quatro anos. Confesso que pensei que a adoção aconteceria naquela época mesmo, mas como eles permitiram que o garoto crescesse e se desenvolvesse aqui dentro, acreditei que só iriam acolhe-lo quando ele completasse 18. Tô bem surpresa.”

Encarei o nada.

. Aquele casal queria levar . Sei que ele não vai aceitar, mas mesmo assim... saber que existem duas pessoas dispostas a leva-lo embora é no mínimo chocante. Consigo entender o espanto das duas.

Mesmo com as pernas um tanto fracas pelo susto, mudei a rota. Apesar de estar com a garganta mais seca do que nunca, abandonei a ideia de ir beber água e segui para o dormitório que compartilhava com outros meninos. Queria ouvir aquela história com as palavras dele e, principalmente, ajuda-lo a pensar em como recusar aquilo.

Como se diz ‘não’ para seus padrinhos? E se eles decidem abandonar o apadrinhamento? Quem iria pagar a escola de ?!

***


“Toc toc", falei sem de fato bater na madeira da porta. estava deitado em sua cama, os olhos presos no teto em completo estado de reflexão. Conseguia imaginar seus sentimentos. Ele não estava em uma situação simples.

Mas eu estava ali. Eu sempre estaria ali para segura-lo, ser apoio. não estava sozinho.

“Vem cá”, ele pediu, abrindo espaço para que eu me deitasse ao seu lado. Era uma cama de solteiro, então não era muita coisa, mas foi o suficiente para que eu conseguisse encaixar meu corpo ao lado do dele e deitasse a cabeça em seu peito. Já fizemos isso antes várias e várias vezes – antes era mais confortável, afinal éramos menores, mas ainda dava certo. “Você já tá sabendo, né?”, perguntou. me conhecia melhor do que ninguém. Só fico quieta desse jeito quando sei que algo está acontecendo. Limitei-me a assentir com um movimento da cabeça.

Ele sabe que as paredes tem ouvidos nesse orfanato e na maioria das situações esses ouvidos eram os nossos.

“Como você tá?”, perguntei baixinho. Senti seus ombros se erguerem, como quem diz ‘não sei'.

“Foi um baque, não vou negar. Não tava esperando. Mas ao mesmo tempo fiquei feliz."

Ergui o corpo em um movimento ligeiro, encarando-o. Como assim, feliz?!

, como assim feliz? E se eles abandonarem o apadrinhamento quando você disser que não?!”

desviou os olhos dos meus. Silêncio.

Mano do céu. Isso não está acontecendo.

...”, até mesmo eu fiquei espantada com a falta de força em minha voz.

“Você sabe quem eles são, . São mais do que meras pessoas que pagam os meus estudos. Eles eram amigos próximos dos meus pais”, sua voz fraquejou. Não era um costume falarmos sobre nossos pais biológicos, até porque a maioria aqui sequer tinha lembranças deles – quando tinha, não estava disposto a realmente lembrar e disso eu entendia. Era o meu caso –, mas a história de era diferente. Ele só veio pra cá porque um homem bêbado, que estava com o pé enterrado no acelerador do carro, tirou a vida de sua família e não havia qualquer parente para ficar com sua guarda. Uma criança sem avós, sem tios ou primos. tinha 5 anos e estava na creche quando tudo aconteceu. Diferente de muitos nesse orfanato, ele tinha nome e sobrenome próprios apesar de todos os pesares. “Eles... eles queriam ter me adotado naquela época mesmo, mas não tinham estabilidade financeira pra isso. Nenhum juiz teria entregado a minha guarda para um casal que não tinha nem casa própria e vivia de aluguel, aos trancos e barrancos; pagar os meus estudos era o máximo que eles conseguiam, mas agora é diferente, a situação deles melhorou. Agora é possível...”

Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Sentei no colchão, gelada.

, nós temos sonhos. Nós temos planos”, isso ele não lembrava?

“Eu ser adotado não altera nenhum deles. Pelo contrário, até colabora. Lá fora eu vou ter mais acesso na busca por um lugar bacana pra você morar, eu-"

Interrompi. “Pra eu morar?! , nós planejamos morar JUNTOS", ele já estava me excluindo da vida dele. Céus, o que é que estava acontecendo com a cabeça daquele menino?!

“Seja realista. Nós vamos ter 18 anos quando você sair daqui. Com certeza vamos estar desempregados, porque eu pretendo focar apenas nos estudos pra passar pra veterinária, na federal -- nosso sonho, lembra? Nós não vamos morar juntos de imediato.”

Vi tudo embaçado, o peito apertado. Limpei a garganta.

“Então é isso. Você vai embora e pronto.”

“Eu quero que você entenda que isso é o melhor pra mim. É o melhor pra gente", o melhor pra mim é te ter por perto, idiota.

Ele tocou meu ombro. Me afastei. Ele bufou. “, a nossa vida aqui é limitada demais. Nós saímos pra ir à escola e pronto. Eu não quero continuar vivendo em regime semi-aberto quando posso ter o mundo.” Nós costumávamos dizer que um era o mundo do outro. “Eu não vou te deixar. Vou vir aqui sempre!”

“Vai ser feliz então, ", respondi, seca, levantando-me e ignorando seu chamado para me parar – se quisesse mesmo que eu ficasse, teria levantado a bunda da cama e segurado meu braço. Apenas deixei o quarto.

Vai lá ser adotado e brincar de casinha com dois estranhos, traíra.



Capítulo 2

As datas comemorativas não passam em branco, no orfanato. Lá dentro eles fazem o possível para termos uma infância normal. Graças às doações, sempre tinha ovos de chocolate na Páscoa, e brinquedos diversos no dia das crianças e Natal. Naquele ano, nossa primeira Páscoa juntos, eu e ganhamos ovos da Trakinas e obviamente ignoramos todo o doce, focando nos brinquedinhos que vinham dentro deles. Para ele, um relógio falso. Onde deveria ter ponteiros e números, era a carinha da bolacha. Os olhos esguichavam água. Para mim, uma almofada que fazia som de peido quando alguém sentava em cima.

É claro que iríamos pregar peças nos outros usando o meu brinde.

“Aqui, me dá”, o de 6 anos pediu, enchendo o treco e colocando na cadeira onde dona Elza costumava ficar, no refeitório. Sentamos em uma das mesinhas mais próximas à dela quando o almoço foi servido, e não demos a menor atenção para a comida quando ela foi servida. Éramos dois pingos de gente encarando a diretora do orfanato, aguardando ansiosamente o momento em que ela sentaria.

O pum foi sonoro!

Começamos a rir imediatamente, fazendo high-five sem nem disfarçar. Claro que fomos pegos. Aquela também foi nossa primeira advertência juntos.

***


Não havia piscina no orfanato – a casa era bem simples, na verdade –, mas de tempos em tempos alguns clubes da cidade abriam suas portas para que nós, crianças abandonadas, tivéssemos uma tarde divertida em dias ensolarados. Eram os melhores dias. Amava correr nas quadras de areia, jogar queimada com o sol torrando a pele e às vezes até arriscávamos um vôlei ou três cortes. A única parte que eu não aproveitava era a piscina.

Aos 8 anos, cansou de deixar esse detalhe passar batido.

“Por que você nunca entra na água?”, ele perguntou, assistindo nossos irmãos se jogarem na imensidão azul claro sem qualquer cuidado, para o desespero das tias que estavam lá pra tomar conta de todos.

“Não gosto.” Não queria falar.

“Ninguém não gosta de piscina.”

“Bom, eu não gosto.”

“Mas por quê?!”

Espaço. não conhecia o significado disso – não comigo.

“Você é muito chato.”

“Isso não vai diminuir minha vontade de saber porque você não gosta de piscina.”

Lembro de olhar para ele pelo canto dos olhos, carrancuda. Se fosse outra pessoa, já teria ficado de castigo por responder aos gritos e bem grossa, mas era . Nós estávamos juntos desde que ele chegou no orfanato. No fundo, conseguia entender a curiosidade, principalmente quando eu já sabia a história dele e ele não tinha a mais pálida ideia da minha.

Suspirei, rendida.

“Vem comigo.”

Não conhecia aquele clube como a palma da minha mão – bem diferente de como me sentia no orfanato. A gente sabia todas as passagens secretas e não secretas daquele lugar –, mas não era difícil encontrar um espaço deserto já que todos, sem exceção, estavam se esbaldando na piscina sob os olhos atentos das tias. Assim que tive certeza de que ninguém nos pegaria de surpresa, me voltei para , que me olhava com sede de respostas. Crianças conseguem ser extremamente curiosas e futriqueiras. Aos 8 anos, nós não temos noção do peso das informações que podem ser jogadas em nosso colo.

não tinha, mas tenho comigo que ele iria querer saber mesmo se tivesse.

Hesitei por alguns segundos, as mãos presas à barra da camiseta que estava usando – uma das melhores doações de todas, uma blusa laranja que representava o Acampamento Meio-Sangue, em Percy Jackson. É , uma voz sussurrou em minha cabeça. Você pode confiar nele.

Fiquei de costas, erguendo a camisa, então.

Não sei qual foi a expressão de ao ver as marcas em minhas costas. Apenas escutei ele falar meu nome, baixinho. “...”

“É por isso”, respondi simplesmente, voltando a me cobrir com o tecido. Eu ainda lembrava do cinto de couro queimando minha pele e de como os golpes eram fortes, pesados – causaram cicatrizes, não é mesmo? –, mas tentei agir como se não passasse de marcas causadas por um tombo qualquer. Dei de ombros. “Só não quero que os outros vejam.”

“Eu- Quem?”, ele quis saber, depois de engolir em seco. A sede de não passava.

“O marido da mulher que me colocou no mundo”, desviei os olhos do dele, sorrindo sem humor. “Todos temos um motivo pra estar aqui, . Ele batia em mim e nela. Ela cansou. Fui deixada na porta do orfanato quando tinha quatro anos, e ela foi detida dias depois por abandono. Conseguiu fugir e ninguém a encontrou dessa vez”, fugir foi mais fácil, me largar também. Dei de ombros mais uma vez. “Tô bem melhor aqui do que lá.”

Foi então que ele me puxou pra um abraço, enterrando o rosto na curva do meu pescoço com o ombro. Ainda tínhamos a mesma altura, naquela idade, então não foi difícil conseguir esse feito. Aquela foi a primeira vez em que me senti verdadeiramente segura.

***


Aos 13 os hormônios já faziam seus trabalhos em nossos organismos. começou a espichar de uma hora pra outra – homem é pior que mato, cara! – e a mudança na voz foi hilária, parecia que ele carregava um pato rouco preso na garganta. Volta e meia me pegava rindo quando ele abria a boca. “Para de rir, garota!”, ele reclamava, irritado. “Não é engraçado!”

Graças aos céus não era babaca como eu.

Digo isso porque, veja bem, não era só o corpo dele que estava em processo de mudanças.

“Tem alguma coisa na sua bunda”, ele falou baixinho quando saímos para a hora do recreio, na escola. Àquela altura nós estávamos estudando juntos. Fui apadrinhada aos 12 e meus padrinhos, um casal de moços, acatou ao meu pedido de ir para o mesmo colégio que estudava desde os 6.

“Por que você olhou pra minha bunda?!”, exclamei, exasperada.

“Para de dar a doida”, ele pediu, ainda falando no mesmo tom. “É uma mancha vermelha. Vai ao banheiro.”

Puta merda, foi a única coisa na qual consegui pensar. me deu cobertura durante todo o caminho, andando alguns passos atrás de mim para que ninguém mais reparasse na sujeira.

Já tínhamos passado pelas aulas de sistema reprodutor, em biologia, e presenciei situações semelhantes com as meninas mais velhas no orfanato. Eu sabia o que estava acontecendo mesmo que não tivesse passado por aquilo ainda. Quero dizer, não é como se eu tivesse pensado que tava com uma doença gravíssima quando encontrei minha calcinha toda manchada de vermelho, no banheiro da escola. Eu sabia que aquilo era sangue e que ele ia escorrer por dias seguidos, todo mês, sabe-se lá por quantos anos. Eu tinha menstruado.

“Ei”, chamei por , que estava na porta do banheiro à minha espera. “Vai na enfermaria e pede um absorvente?” Se bobear as bochechas do menino ficaram tão vermelhas quando a parte de trás da minha calça. “, por favor!”, exclamei. “Quanto mais eu andar, mais vai sangrar e mais eu vou me sujar. Pede lá, vai.”

Aquilo foi suficiente para que ele tirasse o casaco que estava usando, entregasse para mim e desse as costas. Também já tinha visto os meninos fazerem aquilo para as amigas. Um casaco para amarrar na cintura e esconder a mancha que tomou todo o jeans. Não demorou para que ele voltasse com o pacotinho, mais roxo do que jamais tinha visto na vida.

era isso, o meu parceiro.

***


“Que raio de advertência foi essa?!”, ele praticamente berrou assim que saí da diretoria.

“Ai, essa escola é tão careta!”, reclamei, seguindo para o corredor. veio em meu encalço, o semblante fechado. “A professora de educação física me flagrou beijando o Otávio, e mandou nós dois virmos conversar com a diretora. Ridículo. Absolutamente ridículo.” A gente nem podia dar o primeiro beijo em paz que já vinha uma professora recalcada incomodar. Se ela não beija o problema é dela, é só não atrapalhar os beijantes.

“Escola não é lugar pra esse tipo de coisa”, ralhou. Parei de andar imediatamente, olhando para ele com a maior interrogação estampada na minha cara. Como assim não estava concordando comigo?! “É isso mesmo, . Você não tem nada eu ficar se beijando com esses caras aqui dentro, não.”

Quem é , pra ele?!

“Eu vou beijar onde eu quiser, oxe!”, afrontei. Onde já se viu ser peitada daquele jeito? Já bastava ter escutado sermão da diretora. Não tava ali pra ouvir sermão de , não. “E você deveria fazer o mesmo. Aposto que dar uns beijos vai te deixar menos estressado.”

Ele ficou sem olhar pra mim por quase dois dias, depois disso. Entendi foi nada.

***


Com 15 anos, comecei a entender.

No orfanato existe o que chamamos de toque de recolhida. Nada de ficar andando pela casa depois das dez da noite. Nesse horário, todos precisamos estar devidamente acomodados em seus dormitórios.

Olha bem pra minha cara de quem respeitava isso.

Pelo menos uma vez por semana eu e combinávamos de nos encontrar na dispensa da cozinha, à noite. Sob a iluminação porca daquele cômodo, jogávamos dominó, bozó e até jogo da memória – o que fazíamos não era importante. O ponto era que nos sentíamos muito rebeldes sem causa por quebrar aquela regra do orfanato e, principalmente, passar um tempo sozinhos, o que era raro dentro de casa e até na escola. Sempre tinha alguém junto, exceto ali.

“Você continua ficando com o Breno?”, ele perguntou do nada, enquanto eu embaralhava as cartinhas do jogo da memória no chão. Sim, Breno. Otávio era coisa do passado.

“Que nada. Ele é muito babão.”

arqueou as sobrancelhas.

“Pensei que você estivesse gostando dele.”

Tentei não rir tão alto. Foi difícil.

“Tá doido?! Se eu estivesse, acho que eu teria te contado, né”, não existem segredos aqui. Ao menos eu achava que não. Ali, naquele momento, meio que fiquei na dúvida. “Você me conta tudo, ?”

Ele pendeu a cabeça pro lado, pensativo. Gelei. “Não tenho nada pra esconder de você, então sim.”

Fiquei desconfiada. Pensando bem, naquela hora, percebi que nunca tinha parado para conversar sobre garotas comigo. Nenhuma. Nenhuminha.

, você já beijou?”

“Não”, ele respondeu, seco.

Ai, caraca. Nunca beijou – a gente já tinha 15 anos! –, nunca falou sobre meninas...

, você é gay?!”, atirei as cartas na mesa. “Assim, você sabe que pode confiar em mim pra falar, caso seja. Não tem problema nenhum, sério mesmo. As pessoas são escrotas, mas eu tô aqui e eu juro que sento a mão na cara de quem ousar-“

, cala a boca”, ele soltou, com cara de tédio. “Eu nunca beijei e isso não significa que eu seja gay. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, e você tá sendo bem babaquinha em sair supondo as coisas tendo esse embasamento”, ai, como gosta de falar difícil. “Eu sinto atração por meninas, já senti vontade de beijar, só nunca encontrei abertura pra me aproximar. Ela nunca deu esse tipo de espaço.”

Ela nunca deu esse tipo de espaço. As palavras ecoaram em minha cabeça e meu queixo quase abriu uma cratera no chão. Havia alguém. estava gostando de alguém.

... quem?”, soltei, ainda espantada com a boa nova que foi jogada no meu colo. Silêncio. “, você acabou de falar que não tem nada pra esconder de mim. Como assim você tá afim de uma pessoa e agora se recusa a contar quem é?!” Que, que aquele menino tinha na cabeça?

“Tá me dando sono. Na próxima vez que viermos aqui, eu conto tudo”, garantiu. Parecia que ele tinha levado duas chineladas, uma em cada bochecha, tamanha a vermelhidão ali. Já tinha entendido que tinha um grau de timidez um tanto elevado, mas ainda não tinha presenciado uma situação em que ela ficou tão evidente.

Naquela noite não preguei os olhos. Na escola conversava com a Clara, com a Laura, com a Gabi, mas ele não combinava com nenhuma delas e nem eram tão próximos assim pra que nascesse algum sentimento. Mas e se- Jesus Cristo, se não eram as meninas do colégio, era alguém do orfanato. Sim, ali era possível. A convivência era constante, morávamos todos sob o mesmo teto.

Me senti esquisita.

A ideia de andando de mãos dadas com alguém dali não era confortável. Se fosse um dos nossos, resolvesse investir e por acaso fosse correspondido, não existiria mais tempo pra gente. Ele iria querer ficar mais junto dessa menina, é óbvio. Ia andar de mãos dadas, ia trocar beijinhos e sabe-se lá mais o quê – não ia ser difícil esconder esse tipo de coisa. sabia quebrar as regras tanto quanto eu, e nós nos encontrávamos sempre que possível à noite sem que ninguém nem desconfiasse.

Céus.

Será que a gente ia continuar se vendo assim quando ele começasse a namorar? Eu não queria perder o meu amigo, nem os costumes que tínhamos um com o outro.

No dia seguinte, levantei da cama com o pior humor do mundo.

***


Não conseguimos escapar ao longo daquela semana – e justo ela pareceu se arrastar como uma lesma. É sempre assim, né. Quando a gente quer que o tempo passe rápido, ele não passa. Incrível. Parece até piada. Mas se eu soubesse o que nos levaria para a dispensa de novo, teria evitado aquele dia com todas as forças do meu coração. O assunto ‘de quem gosta’ ficou completamente em segundo plano, terceiro até.

No orfanato tudo o que nós temos é um aos outros e as perdas geralmente acontecem quando alguém é adotado ou quando se completa 18 anos, porque não existem escolhas, nesses casos. Desde que tinha chegado, há dez anos, eu nunca tinha perdido ninguém realmente querido e logo quando aconteceu, não foi por motivo de adoção. Tia Tina, a moça que cuidava da cozinha, já estava com uma idade bastante avançada. ‘Agora ela vai descansar’, foram com essas palavras que dona Elza encerrou o discurso sobre a partida da tia Tina. Tia Tina virou estrelinha.

Além de ser a responsável pela comida, ela era a maior fonte de mimo que nós tínhamos. Sempre que estava cortando frango assado, liberava algumas provinhas do peito, para beliscarmos antes do almoço. Fazia os doces preferidos dos aniversariantes do dia e cuidava muito para que tivéssemos refeições gostosas, mas ainda assim saudáveis. Tia Tina tinha um sorriso lindo e trazia consigo todo o jeito de vó – não que eu tivesse tido vó em algum momento, mas ela era minha referência.

Tia Tina era incrível.

se sentia da mesma forma sobre ela.

Não precisamos combinar nada no dia que ficamos sabendo sobre a partida. Apenas fomos para a dispensa no horário de sempre, e nos abraçamos assim que nos encontramos. Sem palavras, sem nada, apenas nos sentamos no chão. Ele com as costas contra a parede, eu entre suas pernas, as minhas costas apoiadas em seu tronco. Continuamos abraçados, sentindo a realidade nos envolver com uma força brutal. sabia como era aquilo, perder alguém de uma hora pra outra – se doía em mim, eu não conseguia imaginar como estava sendo pra ele.

”, chamei, baixinho. Ele indicou que estava ouvindo com um murmuro. “Eu vou sempre estar aqui pra você. Não é uma promessa”, promessas são feitas para garantir o duvidoso. Eu não tinha dúvida nenhuma do que tava falando. “É uma constatação. É um fato.”

“E eu pra você”, sussurrou, me apertando mais contra seu corpo com a voz ligeiramente embargada.

Nós não tínhamos casa – não com a certeza de que seríamos colocados pra fora quando completássemos 18 anos –, nós estávamos sob um teto temporário, então a premissa de que lar é onde os nossos corações estão cabe muito melhor em pessoas como e eu. O meu estava ali, nas mãos dele. Eu não queria sair daquele abraço nunca mais.

***


Aos 16, nós nunca fomos mal na escola. Nem sempre tirávamos notas tão boas quanto o esperado, muitas foram as vezes em que passei raspando na média, mas aquela prova de química tava fazendo com que nós dois ficássemos loucos. Nem mesmo todos os macetes possíveis sobre tabela periódica estavam sendo suficientes para enfiar aquele conteúdo nas nossas cabecinhas.

“Sem pressão, a gente só precisa entender isso pra conseguir ir bem fazer a prova e virar acadêmicos de veterinária!”

“Claro, claro, sem pressão”, ele riu. Era véspera da prova e nós estávamos sem saber o que fazer.

Quando o professor entregou o resultado dos testes, na semana seguinte, não tivemos coragem de olhar o resultado assim que pegamos os papéis, na sala de aula. Combinamos de olhar ao mesmo tempo na hora da saída, devidamente protegidos embaixo da arquibancada da quadra de esportes. Eu sabia que tinha me ferrado e considerando todo o tempo que dediquei aos estudos, sabia que ia começar a chorar quando visse a nota baixa. Não tava afim de abrir o berreiro na frente de todo mundo – por sorte, entendeu mesmo repetindo que tinha dado tudo certo.

“Nos três”, falei, ainda despreparada pra ver um número abaixo da média.

“Ai, larga de ser besta”, revirou os olhos, tomando o papel da minha mão e virando tanto a minha prova quanto a dele ao mesmo tempo. é o tipo de pessoa que tira o band-aid do machucado em um puxão só.

Ele, 6.2

Eu, 7.6

Nem eu acreditei.

“Mimimi eu me lasqueeeei mimimi eu vou choraaaaar”, ele começou a imitar meu jeito de falar de um jeito extremamente afetado, mas logo abriu um sorriso e me ergueu em um abraço, comemorando mesmo com a nota dele tendo sido tão perto da média, que era 6. “Parabéns, coisinha!”

Eu só sabia rir. Dei-lhe um beijo estalado na bochecha enquanto ele ainda me mantinha erguida, em meio às risadas, e foi ali que o mundo deu uma pausa. me colocou no chão, sorrindo tanto quanto eu. Sabe aqueles sorrisos de orelha a orelha, que até parece exagero ser descrito dessa forma, por ser grande demais? Pois é. Toquei-lhe a bochecha, o mesmo espaço em que eu tinha beijado segundos antes, acariciando. Suas mãos seguraram minha cintura com mais força.

Aconteceu.

Ali, embaixo da arquibancada, colamos nossos lábios um no outro com a certeza de que ninguém iria atrapalhar e com a alegria da nota inundando nossos peitos – havia bem mais do que apenas esse sentimento, eu sei. Eu fui o primeiro beijo de . E isso aconteceu na semana anterior à visita de seus padrinhos.



Epílogo

“Você não vai se despedir dele?”, Emilia perguntou às portas do dormitório. Neguei com a cabeça. “Você sabe que tá sendo imatura, infantil e egoísta, né?”

“Caguei.”

Foi com um revirar de olhos que Emília fechou as portas às suas costas, me largando sozinha – mesmo que sozinha eu já estivesse desde o dia em que deixou claro que iria embora com os amigos de seus pais biológicos. Se queria ser adotado, ótimo. Que seja. Mas não conte com meu apoio.

A vida é mesmo feita de pessoas que ganham seu coração te dando as costas. só seria mais um nome na lista.





FIM



Nota da autora: E assim concluímos mais um ficstape, esse aqui sendo o mais especial que escrevi (me perdoem os outros). Foi um prazer enorme organizar o Beautiful Trauma, e contribuir com esse projeto escrevendo What About Us. Vamos lembrar que os PPs tem apenas 16 anos, e imaturidade faz parte dessa época da vida hahahaha





Outras Fanfics:

Em andamento
In Your Car (Originais)
Questão de Tempo (Restritas/Outros)

Finalizadas
The Royal Wedding (Restritas/Shortfic/Originais)

Ficstapes
03. Everybody Knows (McFLY - Radio:Active)
07. Preocupa Não (Jorge&Mateus)
08. Innocence (Avril Lavigne - The Best Damn Thing)

Music Video MV: Dance, Dance (Rock - Fall Out Boy)


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