Finalizada em: 25/06/2020

Capítulo Único


sentia o líquido viscoso e quente escorrendo das costas de enquanto a carregava no colo, o mais rápido que podia até alcançar a mansão de .
Ela respirava com dificuldade nos braços dele, escondendo o rosto no peito de . A mulher não tinha menor noção do que falava ou deixava de falar — completamente alterada pela dor de quase ter as asas arrancadas.
Os olhos de ardiam com as lágrimas que queriam escorrer. Ele um dia fora o que os humanos chamavam de “anjos”, uma criatura que nem ela: nascida na natureza, com grandes asas de penas brancas tocando o chão. Ele se lembrava claramente da dor de tê-las arrancadas quando fora banido por uma profecia que nunca se tornara realidade — a de que ele arrancaria as asas dela.
Todo o ódio que recebera jamais poderia mudar o fato de que fora sua melhor amiga — e, por mais que ela fosse condicionada a odiar o monstro que ele tinha se tornado, o extremo oposto dela, nunca conseguiu odiá-la.
Nunca. Jamais a odiaria. O coração dele doía toda noite, lágrimas escorriam pelos olhos dele pensando no que perdera; no que jamais poderia tocar novamente. era como um cristal: puro demais para as mãos sujas de sangue de um vampiro como ele.
Mas, ao ver a floresta queimando, sabia que algo acontecera. Largando tudo para trás, abriu suas grandes asas de morcego — negras e brilhantes, resistentes como couro — e voou o mais rápido que podia.
estava coberta em piche, ajoelhada no chão, com correntes amarradas em suas asas, chorando por clemência para não tê-las arrancadas. Aquele era o retrato da ganância dos humanos.
Eram somente mais algumas mortes para as mãos de , nada demais. , o único político daquele inferno de cidade em que viviam, fora o único humano que se tornara amigo dela e certamente ajudaria. Afinal, era por conta das negociações dele que o lugar que um dia chamara de lar fora atacado.
— Eu preciso de ajuda! — entrou a passos largos na mansão, deixando um rastro de sangue e piche. chegou preocupado, ajeitando os óculos redondos no rosto e parando em choque ao ver aquela cena junto com os empregados. — AGORA!
E iniciou-se a comoção para salvá-la.
Entretanto, quando fez menção de colocar sobre uma cama para que um médico começasse a ajudá-la, as asas dela começaram a se desprender mais ainda das costas. A moça gemeu, chorando cada vez mais em seu estado de quase sono.
— As asas dela não vão aguentar. — O médico declarou sombriamente. — Vamos precisar arrancá-las.
— Não. — a deixou com cuidado na cama, distanciando os homens que queriam se aproximar. — Pode deixar que eu faço isso.
Afinal, ele já tinha sido punido por aquela profecia horrível. O mínimo que podia fazer era torná-la realidade.

****


Abrindo os olhos, respirou fundo ao notar que se encontrava na poltrona do próprio apartamento; uma taça de sangue quase escorregando dos dedos para se estilhaçar no felpudo tapete branco. Ele sabia que tinha sido uma péssima ideia colocar aquele tapete lá.
— Que memória inesperada... — Ele suspirou passando uma das mãos pelos cabelos e jogando a cabeça para trás, fechando os olhos novamente.
estava no quarto dele, dormindo placidamente. Ele conseguia ouvir qualquer tipo de ocorrência no local e, se qualquer ser pensasse em atacá-la em um momento de vulnerabilidade como aquele, o estrangularia antes que pudesse pensar em fugir.
Toda a ocorrência das asas de levou à queda de um castelo de cartas político que nem ele, nem poderiam ter previsto. Por intolerâncias políticas e puro ódio, ela se transformara gradualmente em um anjo caído — antes um cristal até chegar ao estado de .
Ele não podia negar. Algo em seu próprio coração sentiu uma dor terrível ao ver que um anjo como ela se tornara um monstro que nem ele. Mas as circunstâncias não foram a favor de uma existência plena e feliz como esperado: passou pelo fogo, pela dor e pelo sangue — até se encontrar à beira da escuridão eterna.
Sim, sempre se lembraria daquilo. Meses antes, ela estava morrendo nos braços dele. Covardemente atacada pelo homem que dilacerara as asas dela e originalmente queria colocá-las em seu gabinete político.
Os olhos dela eram feitos de puro ódio, tomando a decisão consciente de se tornar que nem para finalmente ter sua vingança contra seu inimigo.
podia fazer tudo, menos dar lições de moral.
Foi com lágrimas, dor e ódio por si mesmo que ele mordera o pescoço dela e dera de beber do próprio sangue para que ela deixasse de ser qualquer coisa pura e boa nesse mundo — foi à contragosto que a levou ao inferno junto com ele.
Mas, sim, ele era a última criatura do mundo que poderia julgar. Como poderia julgar pecados que ele mesmo cometera? não tinha moral alguma para dizer qualquer coisa, somente podia dar a o que ela queria.
Ouvindo um pequeno grunhido e os lençóis se remexendo na cama, finalmente se levantou, deixando a taça de cristal sobre a pia da cozinha. Descalço, andou calmamente até o quarto, de maneira silenciosa e imperceptível.
Apoiando-se levemente ao batente da porta no escuro, notou que ainda dormia. Daquela maneira, ela podia parecer novamente o anjo que ele inicialmente conhecera um dia — a luz da lua do início da noite iluminando levemente a pele dela na escuridão.
Aproximando-se, contemplava se ela pensava o mesmo dele. Se no próprio sono ele se parecia com aquele anjo sorridente que um dia fora, com suas grandes asas de penugem branca. Antes que a avareza dos homens pudesse machucá-los como fizera.
se sentou no chão ao lado de , apoiando as costas contra a cama. Vagarosamente, pegou os dedos gélidos dela nos próprios — mantendo aquela mão tão delicada envolta na sua, que parecia tão grande. Aquilo o fez sorrir inconscientemente. Ele não sabia quando nem o porquê surgira aquele sentimento de sempre querer tê-la por perto e não deixar que mais nada de ruim acontecesse. Talvez quando a carregara, ou quando arrancara as asas da amiga; talvez quando a transformara em um vampiro como ele, ou quando finalmente a vira dormindo daquela maneira.
Ou talvez fosse uma junção de todas aquelas situações.
Todas as boas garotas vão para o inferno, ele ouvira uma vez — mas não quisera acreditar. Com a mão dela entre os dedos dele, observando-a dormindo com as costas expondo a cicatriz terrível que sobrara do que um dia foram as asas de anjo de , suspirou. Talvez aquela frase fosse realidade.
— Hmmm... — Ele a ouviu grunhindo mais uma vez, porém os olhos dela se abriram, brilhando levemente em vermelho no escuro do quarto. — Boa noite, .
A voz dela era um murmúrio aveludado e cristalino na noite que se iniciava, fazendo-o sorrir.
— Boa noite, . — E a voz dele não era mais alta que um sussurro, apesar do tom grave. — Dormiu bem?
— Uhum... — Ela fechou os olhos novamente, espreguiçando-se levemente sem soltar a mão dele. — Preciso me acostumar com o horário ainda.
— Você tem uma eternidade pra pegar o jeito. Não se preocupe. — respondeu lentamente, brincando com os dedos dela. — Não precisamos fazer nada com pressa.
abriu os olhos novamente, observando em silêncio por alguns momentos. Também tinha que se acostumar com aquela nova realidade.
— Você ainda se culpa. — Ela disse repentinamente, franzindo um pouco as sobrancelhas. — Não?
— Acho que nunca vou deixar de me culpar um pouco. — Ele deu um pequeno sorriso como resposta, porém sem abaixar a cabeça ou parecer arrependido dos próprios atos.
— Hmmm... Acho que temos uma eternidade pra nos acostumar com isso. — respondeu silenciosamente, traçando o desenho da mão de com o dedo indicador. O tempo parecia parado e ela não teria pressa.
— Você tá com fome, não? — Ele perguntou sem tirar os olhos das mãos de ambos, aproveitando o toque dela. Sentira falta daquilo; algo que jamais poderia ter se ela ainda fosse um anjo nas florestas agora tão distantes para ambos.
— Um pouco... — A moça suspirou, finalmente se sentando na cama e procurando pela própria blusa. ergueu uma camiseta preta na direção dela, uma peça de roupa dele.
— Ainda dói? — Ele se levantou enquanto ela vestia a blusa, levantando em seguida para parecer que usava um vestido. sorriu com aquela imagem.
— Não faz sentido, mas sim. As cicatrizes machucam. — Com isso, começou a segui-lo até a cozinha, ambos com passos leves que sequer faziam barulho contra o chão gélido de mármore.
— Vai passar. Principalmente quando você desenvolver asas novas. — escolheu uma garrafa do próprio estoque, pegando uma taça de cristal para e enchendo-a do viscoso líquido vermelho que precisavam para viver. Vendo que ela tinha um pequeno sorriso reprimido nos lábios, somente ergueu uma sobrancelha para questioná-la.
— O deve ficar revoltado quando o Hospital relata as doações de sangue desaparecidas. — Ela explicou enquanto se apoiava na ilha de mármore na cozinha e observava enquanto guardava a garrafa.
— Ele precisa de nós. É um mal necessário. — deu de ombros, fazendo-a dar uma pequena risada enquanto pegava o fino cristal entre os dedos. — Além de que não vai reclamar de algo que a mantém viva. Ele se importa com você.
— Eu sei. — deu um sorriso carinhoso em resposta, observando o tampo da ilha. observava sem ciúmes ou inveja: sabia o tipo de amizade que ela tinha com e, tendo caído plenamente até o inferno, não teria qualquer maneira de ficar com ele. Gostava de saber que ela tinha pelo menos um amigo naquele mundo que tirara tudo dela. — No que você está pensando?
— Em como fico feliz de saber que você não está sozinha. — cruzou os braços, apoiando-se preguiçosamente no balcão da cozinha. Os lábios dela brilhavam com o sangue recém tomado.
— Ah, sim... — Ela deu uma pequena risada, deixando o copo sobre a ilha. Tinha tomado metade e a sede já não raspava no fundo da garganta. — Além do , toda deusa tem que ter seu demônio, não?
apontou rapidamente para enquanto falava, fazendo-o dar uma breve risada e abaixar a cabeça. Sim, toda deusa precisava de um demônio — principalmente quando a situação ficava tão ruim que os seres humanos precisavam se lembrar do próprio lugar no mundo. Levantando novamente a cabeça, ele mal percebera que ela se aproximara.
— E fico feliz de que o meu é você. — sussurrou, aproximando-se cada vez mais até roçar os lábios nos de e ter as mãos dele em volta da cintura dela.
— Qualquer inimigo que você tiver, não importa a classificação... — respondeu em um murmúrio quase inaudível, sentindo os lábios aveludados dela em cada palavra que falava. — Eu estarei aqui.
E o beijo deles poderia ser eterno.


Fim.



Nota da autora: Sim, o plot de all the good girls go to hell é IMENSO e não cabia nas 40 páginas de um ficstape, mas nem se eu tentasse MUITO.
Resolvi, então, pegar toda a história e resumir nessa pequena cena entre os pps, meses após a história principal, como um gostinho do que ela poderia ser.
Muitos personagens e pontos importantes a desenvolver: a pp anjo, o pp vampiro, o amigo político, o chefe da polícia que usa os serviços do vampiro para encobrir coisas não tão corretas de se fazer, o político que quis arrancar as asas da pp, tratados e negociações políticas sobre preservação ambiental, extremismos políticos que levam à intolerância (alô Brasil de 2020), a jornada da pp de anjo para vampiro passando pelos sete pecados capitais, as intrigas políticas, os julgamentos e processos jurídicos, acusações de genocídio...
Mas resolvi trazer somente esse trechinho para vocês, porque não daria para desenvolver tudo nas 40 páginas sem sacrificar absurdamente o desenvolvimento da história e dos personagens. Então peguei alguns pontos principais e decidi colocar como memórias, para dar um contexto e deixar a história deles no ar.
Tenho projetos de juntar tudo isso em um livro e publicá-lo, por isso também resolvi publicar somente uma pequena parte da história. Mas queria saber como seria a recepção e se teriam interesse de ler mais sobre eles e o mundo em que vivem!
(Maior frase “animais fantásticos e onde habitam”)
Desenvolvi com muito carinho, então espero de coração que tenham gostado. Agradeço demais pela leitura e espero encontrá-las em outras fics ou até em um futuro livro!
Beijos!!
Queen of Sun
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AVISO: Essa é uma história original minha, qualquer cópia ou publicação sem a minha autorização é CRIME. Se quiser postar/publicar em outro lugar, estou aberta para conversarmos! Pode me mandar uma mensagem/e-mail!




Nota da beta: Que história linda!! Eu gostaria muito de saber mais sobre os PPs e sobre esse universo que você criou. Será que vem um livro por aí?? Avisa pra gente comprar! <3

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