Capítulo Único
“São Paulo, 13 de abril de 2019
Querido Alguém,
Achei que deveria por em palavras o que minha boca é incapaz de formular. Quer dizer, pensamentos são formados por linguagem, certo? Sem a linguagem, nossa mente seria apenas uma massa cinza. Pensamos porque sabemos nos comunicar. Se é o caso, por que não sou capaz de formular meus próprios pensamentos sobre o que sinto por você? Por que eu sinto essa massa cinzenta mesmo que eu saiba como me comunicar? Eu estou me formando para ser comunicadora, eu deveria saber me comunicar, mas por que é tão difícil quando se trata de você?”
Balancei minha cabeça e bufei. Não deveria ser tão difícil assim escrever uma carta. Maldito seja Waldir Quadros por nos fazer escrever uma carta como trabalho. Pensei que havíamos deixado gêneros textuais no ensino médio!
- Eu acho que vou tirar um 10 nesse trabalho. - comentou ao meu lado. Espreitei seu computador e revirei os olhos ao perceber que ele já havia acabado sua carta.
- Eu acho que vou zerar. - Resmunguei ao recostar-me na cadeira, fazendo um barulho infernal.
- Como você tira nove nas provas e não consegue fazer uma carta? A era tecnológica acabou com o romantismo.
- Você escreveu uma carta para o presidente o xingando, isso é romantismo? - Arqueei a sobrancelha ao passo que apenas deu de ombros.
- Levando em conta a inclinação política do professor, não acho que isso vá ser um problema. - Mordi o canto dos lábios. não estava errado, eu só precisava escrever algo que fosse entreter meu professor o suficiente para que ele me desse uma boa nota. Não era complicado.
- Vou estudar um pouco na biblioteca, já volto. Ah, Miguel mandou mensagem.
- Hmmm, o Miguel? É sobre ele que você está escrevendo? - Fuzilei quando ele tentou bisbilhotar sobre meus ombros - Calma, tigresa.
- Te encontro no espaço estudantil depois?
- Claro, como sempre. Vou comprar biscoitos e comemos juntos. - Assenti e sorri para meu amigo. se tornou um amigo incrível. No início do ano, tentara me beijar em uma festa, mas mesmo quando disse que não, continuamos amigos.
Coloquei a alça da mochila sobre meu ombro esquerdo e me pus a caminhar pelos corredores da universidade enquanto respondia Miguel no chat. Ele era um homem incrível, fazia psicologia e gostava dos Beatles, mas eu estava me cansando rapidamente dos rumos das nossas conversas.
Olhei para a carta em minha mão mais uma vez e senti vontade de gritar. Minha inspiração havia desaparecido, deixando apenas um traço mísero de criatividade com nome e sobrenome. Mas eu me recusava a aceitar que minha mente apenas liberava a inspiração para escrever sobre ele.
Fui em direção à biblioteca e sentei-me à mesa com um dos pés meio frouxo. A minha favorita. Sequer me importava com o barulho que fazia, já havia achado uma maneira de fazê-la ficar parada. Por isso gostava tanto dela. A sensação de conseguir consertar momentaneamente algo que todos evitavam.
Franzi o cenho ao encarar a página parcialmente escrita. O professor provavelmente acharia que eu tenho doze anos e estava escrevendo para meu primeiro amor. Bem, não estaria completamente equivocado. Arrepiei ao lembrar dos olhos dele e amaldiçoei o dia em que ele havia se tornado tão importante para mim ao ponto de apenas lembrar dele já se tornar a melhor parte do meu dia.
- Talvez eu devesse escrever esse negócio brega. - Murmurei para mim mesma.
Ao começar a escrever, percebi minha mente me trair ao passo que minhas memórias voltavam para ele. Para nossos momentos juntos.
A primeira vez em que o vi, tínhamos quinze anos. Ele havia entrado na minha escola e era bolsista, assim como eu. Sabia disso porque bolsistas não eram vistos com bons olhos em um dos melhores colégios da cidade. Mas ele fazia parecer ser legal. E era.
- Oi, você também é bolsista? - Ele se aproximou de mim com um sorriso enorme. A pele escura e os olhos castanho mel me deixaram estranhamente confusa. Será que usava lentes? E por que aquele garoto aleatório estava falando comigo? Encarei minhas amigas, elas o encaravam com um tom zombeteiro e soube que mais tarde eu estaria lascada.
- Sou sim. Você é o novo bolsista, não é? , eu acho. - Cocei o antebraço com o olhar baixo. Ele não pareceu incomodado com minha aparente timidez.
- Sim. - Abriu um largo sorriso - A tia da administração chamou a você e a mim para irmos até a secretaria. - Levantei a cabeça rapidamente com os olhos arregalados. Será que haviam descoberto que eu havia escrito um poema na porta do banheiro? - Você não fez nada de errado. - me assegurou com um sorriso de aparelho.
- Vai logo, estamos curiosas! - Avalon praticamente me empurrou. O olhar que carregava era tão cheio de piadas, de brincadeiras, que temi voltar. Elas provavelmente diriam que éramos um casal. E eu não estava pronta para lidar com aquilo.
Segui um pouco mais atrás de , as mãos dentro do bolso frontal do moletom. Devo admitir, não queria ser vista com ele. Ser bolsista sozinha já era motivo de piadas e olhares tortos, mas dois bolsistas juntos? Não, não. Dois bolsistas negros juntos?
- Está muito quente, você não está com calor? - Questionou virando-se para trás com um sorriso. Neguei e aprumei-me mais ainda em meu moletom. Chegamos até a secretaria amarelo gritante, algo que sempre odiei, e entramos.
- Ah, meus dois gênios! - Exclamou Clemilde, a tia principal da secretaria. Ela sorriu e se colocou em pé em um pulo. Acenei para as outras funcionárias com um sorriso.
- Boa tarde. - Cumprimentei. me encarou, mas não retribuí o olhar - O que está acontecendo? - Virei-me para Clemilde com curiosidade - Fiz algo de errado?
- Não, não. Gostaria de fazer uma proposta a vocês dois. Como sabem, nossa escola passa a propaganda na televisão, certo? O que acham de vocês dois fazerem parte? - Tentei não demonstrar nada, mas devo ter falhado, porque Clemilde se adiantou - Não vamos fazer hoje. Precisamos falar com seus pais, assinar alguns termos, coisa burocrática. - Assegurou-me, mas eu não estava tranquila.
Eu apareceria na TV? Minha mãe provavelmente tentaria deixar meu cabelo natural, mas ficaria horrível!
- Não quero. - Interrompi a pobre mulher enquanto ela ainda falava, um desconforto quase visceral subindo por meu corpo. Queria sair dali.
- Posso perguntar por quê? - Clemilde pareceu confusa.
- Eu não sou muito ligada nessas coisas. - Afirmei, o que não era mentira. Só de pensar em estar em frente à câmera apenas para ser caçoada depois maldosamente por meus colegas já me dava náuseas - Não sou carismática o suficiente. - Dei a desculpa esfarrapada.
A verdade é que amava estar na frente da câmera falando. Meu sonho era me tornar âncora do jornal de televisão.
- Mas você só vai precisar estar sentada com alguns amigos conversando, vamos tirar algumas fotos. Depois, uma imagem sua andando em direção à sala. Esse tipo de coisa. Você não vai precisar falar.
Clemilde realmente estava tentando me convencer, mas o enjoo continuava na beira do estômago.
- Obrigada pela oportunidade, mas eu realmente não quero. - Afirmei finalmente - Desculpa. Boa tarde, gente. - Despedi-me rapidamente e saí pelas portas de vidro mais rápido do que poderia ser considerado normal. Provavelmente me chamariam ao escritório da psicóloga no dia seguinte. De novo.
Fui em direção ao banheiro com o coração ainda acelerado. Mas fui parada por antes de alcançar a porta.
- Ei, está tudo bem? - Perguntou ao tocar de leve meu moletom azul escuro. Encarei sua mão e ele se afastou prontamente - Desculpa.
- Tudo bem. E sim, está tudo ok. Só não quero fazer uma propaganda para essa escola. - Afirmei.
- Você não gosta daqui? - perguntou levemente surpreso.
Ele era do mesmo ano que eu, mas de outra sala. Estávamos no segundo semestre letivo do segundo ano do ensino médio. Ele havia chegado há um mês. Eu estava aqui há cinco anos.
- Você gosta? - Questionei. assentiu firmemente - Mas você é bolsista. - Não foi minha intenção, mas meu comentário saiu em tom leve de desdém. percebeu, pois fechou a cara.
- E daí? Você também é. Algum problema com isso? - Cruzou os braços com uma carranca. Senti-me uma idiota.
- Não, não é por isso! Mas bolsistas geralmente não têm boas experiências aqui, . - Corrigi-me e ele pareceu aceitar rapidamente. Hm, que garoto fácil de convencer.
- Ah, mas isso em qualquer lugar, não é? Eu digo, nós. - Apontou com o indicador para nós dois.
- O que quer dizer? - Perguntei com o cenho franzido.
- Ué, a gente é preto.
- Eu nunca passei dificuldade por ser preta. - Afirmei, mas algo em minha voz fez com que arqueasse a sobrancelha.
- Tem certeza?
- Não quero falar sobre isso. - Desconversei com um murmúrio - O único motivo para eles nos chamarem é para mostrar que existem negros aqui, você sabe disso, não é? - Perguntei em tom mais baixo. Andei com ele para um pouco mais longe. Várias pessoas passavam ao nosso redor, e agradeci por sermos aparentemente invisíveis naquele momento.
- Sei. - suspirou - Mas também é positivo para nós! - Ele exclamou com um sorriso - Podemos mostrar que mesmo pretos, estamos em um lugar desses. A mensalidade é três paus por mês, . Eu não sei você, mas eu não tenho grana para pagar essa mensalidade.
- Nem me fala. - Respondi, mas estava um pouco mais aliviada. Ouvi-lo pronunciar meu nome em tom animado fez com que eu sorrisse.
- Viu só? É esse sorriso que a gente precisa mostrar na propaganda. - Tentei morder o lábio para conter o sorriso que tentava rasgar meu rosto, mas fui incapaz de controlá-lo. fez um high five comigo e me acompanhou de volta até a secretaria. Faríamos aquele comercial juntos.
- ? - Olhei para cima e encarei parado em minha frente com os braços cruzados.
- Meu Deus! Esqueci totalmente de ir para o espaço estudantil. - Sussurrei. Duas pessoas ao meu lado nos encararam e levantei-me apressadamente, acompanhando para fora da biblioteca - Desculpa mesmo. - Comentei em alta voz quando já estávamos devidamente do lado de fora.
Andamos juntos pelo estacionamento descoberto.
- Eu pensei que algo tivesse acontecido, mas cheguei lá em cima e você estava praticamente viajando enquanto encarava uma estante. - Ele soltou uma risada e deu de ombros - Você estava pensando no que escrever?
- Sim, algo do tipo. Ah, vamos mesmo ao samba hoje à noite? - sorriu e assentiu.
- Obviamente, querida. Está livre às nove, certo? - Assenti - Então, vamos. O resto do pessoal também vai?
- Acho que não. - Lamentei com um suspiro - A maioria tem aula. Nós é que somos as ovelhas negras que matam aula para ir tomar cerveja e dançar.
- E digo que somos os mais corretos! - Exclamou - Além do mais, nós estamos adiantados na matéria.
- Isso não é desculpa para matar aula. - Argumentei. Odiava faltar aula. Mas havia uma falta por mês reservada ao samba da faculdade. Cinco institutos se juntavam para uma roda de samba toda sexta. Não seria diferente hoje.
- Claro que é! Além do mais, ainda vamos à festa com todo o pessoal hoje à noite. Vai ser bom demais. - piscou sonhador - Ei, me espera aqui? Vou ao banheiro.
Observei-o ir para longe com seus cabelos loiros balançando, entrando no prédio ao lado. Comecei a sorrir ao lembrar de todas as rodas de samba às quais fomos. Era a minha sexta favorita do mês. Sabia que a de também. também amava o samba.
- Sua mãe te levou a uma roda de samba? - Perguntei estupefata a enquanto jogava outra pipoca na boca. Ele deu de ombros.
- Foi bem divertido. Ela, na verdade, começou uma roda de samba lá no bar dela. Eu só precisei ir visitá-la e já estava no meio daquilo tudo.
havia tirado o aparelho naquele dia. Estava tão feliz. Disse que finalmente poderia comer maçãs sem medo. Fomos comemorar comendo pipoca e muitas balas que grudam no dente. Estávamos sentados em frente ao cinema enquanto esperávamos o filme começar.
- Você, tipo, dançou com alguém? - Questionei encarando um grupo de amigos que passava. Desviei o olhar rapidamente. arqueou a sobrancelha e seguiu meu olhar.
- Achou algum deles bonito?
- Você não respondeu a minha pergunta. - Retruquei e enfiei uma mão enorme de pipoca na boca.
- Você vai comer a pipoca inteira antes do filme começar. - Ele suspirou ao ver meu estado. Sua pipoca estava praticamente intocada - E vai querer comer a minha depois.
- Isso é mentira! - Exclamei com o cenho franzido - Além do mais, você pode dizer que não, se isso te incomoda. - Dei de ombros. olhou para o chão e riu.
- Como se isso fosse te impedir.
- Responda a minha pergunta. Você dançou com alguém? Quero saber dos detalhes!
- Dancei. - Ele sorriu e passou a mão na nuca - Ela era bem legal.
- Qual o nome da coitada? - Questionei e tomei um gole de refri para enxaguar a pipoca. Senti meu estômago revirar. Talvez fosse melhor parar com a pipoca.
- Belinha.
- Isso é nome de cachorro. - Murmurei. riu alto e deixou cair algumas pipocas no chão, agachando-se e pegando-as em seguida, mas sem parar de rir.
- Cara, que maldade. - Ele retrucou. Dei de ombros. Não sabia porque estava agindo daquela maneira. Na realidade, Belinha era um apelido fofo para meninas fofas - Você gostaria dela.
- Ah, é? Por quê?
- Ela gosta de One Direction. - Aprumei-me na cadeira. Eles haviam conversado tanto ao ponto de ele saber uma informação daquelas? Tentei esconder o desconforto.
- É, então ela é bem legal.
- E você?
- O quê?
- Achou um daqueles caras bonitos? - Voltou com sua pergunta, mas eu já havia esquecido dos rostos dos garotos que passaram por nós.
- Não. Eu, na verdade, fiquei receosa. - Fui honesta e assentiu. Não precisava dizer mais nada.
Nos últimos dois meses, eu havia recebido a carta de um admirador secreto. Os meninos da minha sala começaram a questionar entre si quem havia sido. E todos chegaram à conclusão de que quem quer se fosse, estava se enfiando em um buraco. Pois eu, com todo o respeito, como disseram eles, não era o tipo de ninguém dali.
Eu havia chorado com minhas amigas no banheiro. Avalon chorou junto comigo, as mãos delicadas limpando minhas lágrimas. Minhas outras amigas me abraçaram, levaram-me até o cinema, compraram pipoca, chocolate branco (meu favorito) e tentaram me mimar. Havia funcionado, mas por algumas semanas, ao deitar, somente me vinha à mente os risos e a maldade no olhar deles.
- Descobriu algo sobre seu admirado? - Questionou tentando desconversar. Neguei com a cabeça.
- Eu acho que era brincadeira de mau gosto deles. Prefiro não pensar nisso, , de verdade. - Ele assentiu.
- Sinto muito.
- Eu sei. - Sorri e tomei outro gole - Estou acostumada, não fique preocupado. Na realidade, não me afeta mais.
E era verdade. No último mês, havia esquecido completamente daquele assunto. Não valia a pena. Estávamos a apenas dois meses dos vestibulares. A viagem de formatura já havia acontecido. Somente eu, e mais algumas pessoas não havíamos ido. A rotina de cursinho online, escola e todo o estresse não me permitia sequer pensar em futilidades daquelas. Só queria acabar o ano em paz e fazer o curso dos meus sonhos.
- O filme vai começar em dez minutos, vamos? - se colocou em pé em um salto e pegou meu refrigerante sem minha permissão, mas não me importei.
Ele estava muito alto. Deveria estar chegando a um metro e oitenta. Já estava chegando aos dezoito anos, era quase um ano mais velho que eu. Eu faria dezessete no final do ano, após o primeiro vestibular. Ele havia começado a ir para a academia ano passado, pouco tempo depois de ter entrado na escola. E havia se tornado seu consolo em meio ao estresse, ele havia dito. Isso e o time de futebol.
- Você vai me ver jogar? - Ele perguntou quando subimos aos nossos lugares. Penúltima fileira, cadeiras 11 e 12. Sempre o mesmo. Fiquei feliz em saber que poderia cooperar com meu vício em ter sempre as coisas pequenas constantes. Pelo menos nunca havia se incomodado.
- Claro que vou! - Exclamei. Senti muito sal na boca e percebi que havia acabado praticamente com toda a pipoca. Havia poucas pessoas no cinema conosco. Era quatro e meia da tarde, afinal de contas. Inclusive, nós dois deveríamos estar estudando.
- Não se atrase, . - Ele sorriu e piscou. Encarei seus lábios rapidamente, mas voltei o olhar para a tela do cinema, meu corpo inteiro tentando compreender o que estava acontecendo. Peguei meu celular e abri no aplicativo do ciclo menstrual. Hm, não estava no período fértil, então o que estava acontecendo? - Ah, e depois vamos à roda de samba? Quero te apresentar ao pessoal que conheci. Sério, você vai amar! Todo mundo é tão legal e tão diferente. Não sei explicar.
Ele havia feito novos amigos?
- Claro, vamos. - Eu não estava animada com a ideia, mas poderia tentar. Afinal de contas, era importante para ele, então era importante para mim - E eu nunca me atraso. - Ralhei com ele.
- Sim, eu sei. - deu de ombros e começou a comer sua pipoca assim que os trailers começaram. Inclinei-me para mais perto dele e enfiei a mão no seu balde de pipoca - Ei! Eu falei que era para você não comer toda a sua pipoca antes do filme começar!
- Eu sei disso. Mas a sua pipoca é mais gostosa que a minha. - Sussurrei, apesar de não haver ninguém próximo a nós dois.
- É a mesma pipoca, . - Ele bufou. Encarei-o e percebi o quanto estávamos próximos. Seu braço estava totalmente encostado ao meu. Ele desviou o olhar da tela e me encarou de volta. Senti-me em uma bolha. Meu corpo inteiro parecia travado e eu não sabia o que fazer. Entretanto não precisei fazer nada. continuou a me encarar pelo que pareceu uma eternidade, mas eu não me incomodei - Sua boca está sangrando. - Ele comentou repentinamente com o olhar assustado.
Passei a mão pelos lábios e arquejei ao perceber que o sal havia machucado minha boca que já estava levemente ressecada.
- Já volto. - Murmurei e levantei-me rapidamente, descendo as escadas em direção ao corredor. Meu coração estava acelerado e o sangue que manchava meus lábios não era nada se comparado ao desespero que senti ao perceber que gostava de .
Passei o lápis sobre o lábio e encarei o professor parado à frente da sala. Estávamos ao fim da primeira aula. O professor de Design Editorial I decidira usar o laboratório hoje. Observei meu computador e bufei quando percebi que ele estava prestes a abandonar este mundo. E isso significava que eu precisaria comprar outro. Arrepiei ao lembrar que havia saído de meu antigo emprego há duas semanas e que precisava achar algo logo. As contas não se pagariam sozinhas.
- Você está com a cara azeda. - murmurou ao meu lado. Encarei-o de soslaio.
- Estou pensando nas contas.
- Cruzes. - Ele fez o sinal da cruz. Eu ri. era um ótimo amigo - Vai conseguir pagar as coisas esse mês? - Assenti.
- Tenho o suficiente para dois meses. Mas preciso de um emprego logo. - Admiti e cruzei os braços.
- Você consegue. Confio em você. - Abri um sorriso largo. tem sido meu melhor amigo desde que entramos nesse lugar. Meus outros amigos estavam em suas respectivas aulas com seus professores, eram os amores da minha vida, mas não tínhamos tantas aulas juntos quanto eu gostaria. Quando fomos liberados pelo professor, corri ao banheiro para trocar de roupa. Coloquei a saia que minha mãe havia feito para mim. As estampas africanas circulavam meu corpo junto com o top preto. Encarei-me no espelho e arrumei meus cabelos crespos com o pente garfo que guardava em minha bolsa. Arrumei o batom vermelho e saí rapidamente. me encarou com os olhos arregalados.
- Meu Deus, você está uma verdadeira… musa grega? Acho que isso é pouco. - Sorri com o elogio de .
- Obrigada. - Agradeci com o sorriso e cruzei meu braço ao dele, descendo as rampas com um semblante leve.
A Freire que sentia vergonha de sua herança havia ficado no ensino médio. E eu agradecia muito à liberdade que a faculdade me dera. Depois de entrar aqui e perceber que eu vivia em uma pequena bolha, decidi que não queria mais ser a mesma menina de quinze anos que odiava seu próprio corpo, cabelo, cor. E a mudança havia sido muito mais natural do que eu imaginava.
- Seu namorado vem? - Questionei enquanto atravessávamos a rua para esperar pelo circular que nos levaria até o instituto de engenharia. A roda de hoje seria lá. Mês passado havia sido na biologia.
- Não. Ele foi para casa, está cansado.
Quando chegamos ao ponto da engenharia, senti algo dentro de mim reclamar. Um nervosismo repentino me tomou.
- Está tudo bem? - perguntou preocupado - Se quiser, podemos ir embora.
- Não, não. Está tudo certo. - Assegurei - Foi só um mal-estar.
Estávamos há três horas no samba e eu estava mais suada do que poderia imaginar ser capaz de suar. havia dançado comigo e rodado por todo o chão asfaltado ao som de nossas músicas favoritas.
- Por que não viemos aqui antes? - Perguntei quando nos sentamos à mesa com seus outros amigos. Vivian, Belú, Fagner e Belinha estavam tomando seus refrigerantes com um sorriso. Menos Belinha, pois era maior de idade. Ela tomava uma long neck.
- Isso aqui é incrível, não é? - Vivian questionou com um sorriso enorme.
- Eu amei. Vocês também são incríveis. - Limpei meu suor da testa com um guardanapo. Tinha certeza de que minha maquiagem estava borrada, mas mal me importava. sorria para mim.
- Eu falei…
- Não começa, . - Ameacei com um tom brincalhão - Só te dou um desconto hoje porque você fez o gol da vitória. - piscou para mim e me mandou um beijo. Se ele soubesse o quanto esses pequenos gestos me fazem gostar dele ainda mais...
- Quer dançar? - Fagner me convidou e sorri. Ele tinha o black power mais lindo que eu já havia visto. Aceitei seu convite e fui com ele para um canto mais afastado da roda.
Eu não conhecia a música que o grupo tocava, mas dancei mesmo assim. Fagner me girou e me guiou de um lado para o outro. Virei-me de costas para ele em um momento e senti suas mãos puxarem nossos quadris. Por incrível que pareça, a sensação não me intimidou. Eu sequer me reconheci naquela hora.
Quando a música acabou, permaneci agarrada ao corpo de Fagner. Sua boca se direcionou ao meu ouvido e senti um arrepio me percorrer da cabeça aos pés.
- Você é linda pra caramba. - Sussurrou. Senti minhas bochechas ameaçarem ficarem rubras.
- Você também. - Respondi sem saber o que dizer. Fagner riu e me virou para si. Encarei-o e meus braços se apoiaram em seus ombros. Nossos olhares se conectando, mas não consegui sustentar por muito tempo. Fagner levantou meu queixo e se aproximou. Senti uma antecipação em minha barriga quando ele se aproximou para me beijar, mas fui tomada por uma ansiedade grande demais. Afastei-me rapidamente.
- Desculpa. - Murmurei - Eu não gosto de beijar em público. - Afirmei. Fagner assentiu. Não parecia chateado.
- Mas você queria me beijar? - Questionou. Assenti, mas não era verdade. Quer dizer, eu acho que não era.
- Você é realmente gato pra caramba. - Fagner riu e passou a mão por meu ombro.
- Obrigada, princesa. - Beijou minha bochecha rapidamente quando chegamos perto da mesa. e Belinha haviam sumido.
Uma sensação ruim se apoderou de mim. Eles deveriam estar se beijando em algum lugar. Segurei o aperto na garganta. Eu não tinha direito nenhum de me sentir mal. Então, por que me sentia?
não gostava de mim, obviamente, e eu tentava ao máximo lidar com meus sentimentos desde que assumira, há duas semanas, que eu gostava dele. Eu havia me afastado, sabia disso. também sabia, mas não havia questionado nada.
- Onde está? - Perguntei como quem não quer nada enquanto tomava um gole do refri.
- Não sei. Ele e Belinha foram juntos. - Um sorriso malicioso tomou conta do rosto de Fagner.
- Garoto ligeiro. - Ele riu e os outros o acompanharam, mas eu não consegui rir. Foi mais forte do que eu.
- Vou ao banheiro. - Anunciei e agradeci a oferta de companhia das meninas para irem comigo, mas disse que iria ligar para minha mãe. Ela deveria estar preocupada.
Caminhei para dentro do bar familiar e acenei para a mãe de . Dona Figueiredo estava no balcão ajudando. Era uma cozinheira de mão cheia. Era sócia do bar e havia chamado os grupos de samba para tocar toda sexta há quase um ano, mas nunca havia deixado participar. Dizia que ele pegaria gosto fácil por tudo aquilo e negligenciaria seus estudos.
Passei os olhos por todo o interior, mas não vi os dois. Balancei a cabeça e controlei meu instinto de ciúmes. Odiava me sentir daquele jeito, insegura. Eu não sou ciumenta, mas a sensação de que poderia estar beijando Belinha simplesmente me fez querer chorar.
- Calma. - Acalmei a mim mesma quando entrei no banheiro. Comecei a ouvir alguns barulhos vindo de uma das cabines e arregalei os olhos ao perceber que eram beijos.
Nossa, no meio do banheiro?
Balancei a cabeça e comecei a lavar as mãos e passar água na nuca. Sequei minhas mãos e permaneci em silêncio. O barulho da cabine também havia sumido. Será que eu estava ouvindo coisas?
Tive minha resposta quando vi Belinha sair da cabine primeiro. Seus olhos arregalaram em minha direção, ao passo que me senti pronta para sair correndo. Eu sabia quem sairia atrás dela. E aquilo quase me dilacerou.
- Está tudo limpo? - Surpreendi-me ao ouvir uma voz feminina atrás dela e uma garota branca dos olhos verdes sair.
Eu havia visto essa mesma menina do outro lado da roda junto com alguns adultos. Abri a boca e fechei algumas vezes.
- Por favor, não conte a ninguém. - Belinha se adiantou.
- Mas não tenho o que contar. - Assegurei-a com um sorriso - Fique tranquila. Eu só-
- Achou que fosse ? - Questionou com a sobrancelha arqueada. A menina loira passou por nós duas e saiu do banheiro, mas não sem antes fitar os olhos de Belinha com um sorriso.
- Como você sabe? - Perguntei debilmente. Belinha deu de ombros.
- Eu só percebi. Toda vez que eu e ele íamos dançar, você ficava toda estranha. Mas eu entendo, é um gato. - Piscou para mim e lavou as mãos na pia ao meu lado. Talvez estivesse apenas ganhando tempo.
- Vocês dois não ficaram? - Perguntei com toda a coragem que ainda me restava.
- Não. - Riu pelo nariz - Ele é gato, mas não é meu tipo. - Arqueou a sobrancelha para mim e assenti.
- Ele é o meu. - Confessei e encostei a cabeça contra os azulejos.
- Eu acho que ele gosta de você. - Ela secou as mãos.
- Não, ele é assim com todo mundo. Digo, ele é sociável, divertido, engraçado. Fala até com a parede, se possível. Ele é um amor com todos. - Belinha assentiu.
- Pode ser. Não sei dizer, conheço-o há pouco tempo. Mas desejo toda a sorte para você. - Sorriu - E obrigada por manter segredo. Ainda não estou pronta para contar a eles. - Olhou para a porta atrás de nós.
- Fica tranquila. - Assegurei.
- Não sei se eu deveria dizer isso… - Ela iniciou - Ai, já que comecei, vou dizer. Mas ele viu você e Fagner dançando. Acho que todos vimos - Ela riu levemente - E saiu.
Processei aquela informação. Talvez ele quisesse apenas um pouco de ar.
- Obrigada. - Agradeci a informação.
Voltamos juntas pelo bar. não estava em lugar nenhum.
- Vou falar com a senhora Figueiredo. - Disse a ela e desviei-me até o guichê. A pele negra da mãe de era ainda mais linda quando ela usava amarelo, seu uniforme. Sorri para ela - A senhora viu ?
- Ele subiu. Deve estar no quartinho lá em cima, querida. Não me avisou o porquê, apenas subiu. Pode subir se quiser, apenas não demore. - Advertiu e assenti - E diga a ele que se for para deixar os amigos sozinhos e ficar de frescura, nunca mais o trago para cá. - Agora parecia mais séria. Subi as escadas na lateral do balcão ao abrir a pequena porta de madeira.
Estava totalmente no escuro, já que o quartinho também estava com a porta fechada. Tropecei em um degrau e xinguei quando meu joelho atingiu o chão. Subi o restante dos degraus e bati à porta.
- Pode entrar! - Ouvi a voz de e segurei a maçaneta, tentando ver se estava no local certo.
O quartinho estava escuro, a luz não estava acesa. Do lado direito, uma cama de solteiro se estendia. Do lado esquerdo, havia uma pequena escrivaninha cheia de papéis e com uma cadeira giratória em frente. No extremo norte do quarto, estava virado para a janela aberta. Adaptei meus olhos por algum momento até perceber que a luz da lua atravessava a janela facilmente. Sua enormidade enchendo o quarto de uma luz sombria e gélida, mas que não combinava com o calor instalado ali. Senti que começaria a suar.
- Por que está aqui em cima? - Perguntei me aproximando.
virou para me encarar.
- Achei que fosse minha mãe.
- Ela pediu que eu viesse e te mandasse descer. - Confidenciei. Não sorri, não demonstrei calor ali, eu estava sentindo uma bomba de sentimentos explodindo em mim.
- Eu já vou. Pode descer também, . Só quis ficar um pouco sozinho.
Permaneci em silêncio, sem saber exatamente como proceder. Quando se virou e percebeu que eu ainda estava ali, apenas suspirou e me chamou com a mão. Aproximei-me lentamente até parar ao seu lado. No andar de baixo, vi algumas pessoas sentadas na calçada em mesas redondas. Riam e conversavam mais afastados do som do samba, que ainda atingia meus ouvidos, mas agora abafado pela porta fechada.
Apoiei-me no parapeito da janela e encarei a lua lá em cima. As estrelas brilhavam ao redor dela, parecia uma dança incrível e majestosa pela qual eu ansiava poder ver mais, mas a poluição não ajudava. Uma brisa gelada atingiu meu rosto.
- Você beijou Fagner? - questionou com a voz baixa. Tão baixa que precisei de um momento para assimilar sua pergunta.
- Não. - Admiti e encarei minhas mãos ainda mais enegrecidas pelo contraste com a escuridão ao nosso redor. permaneceu em silêncio - Por quê? - Questionei. Precisava saber se teria chances. Precisava saber se eu teria que me forçar a esquecê-lo ou não. Estava unicamente nas mãos de . E aquilo me assustava.
- Porque vocês pareciam bem próximos. - Ele deu de ombros. Assenti.
- É, ele é legal.
- Gostou de vir aqui? - Perguntou agora um pouco mais relaxado.
- Sim! Muito. Obrigada, de verdade. Era justamente a distração que eu precisava antes dos vestibulares. - assentiu.
- Espero que minha mãe nunca abra mão da sociedade. Quero que meus filhos possam crescer por aqui. - Abri um sorriso enorme ao imaginar os possíveis filhos de - E espero que você possa trazer seus filhos também. Aí nossos filhos vão crescer amigos.
- Eu gosto disso. Amizade de segunda geração. - assentiu e me empurrou levemente com o cotovelo.
- Coisa de filme.
- Gosto disso.
- Você já falou isso. - provocou, agora me encarando de frente. Virei-me para encará-lo. Ali estava, mais uma vez, o momento como no cinema.
A luz da lua contra seu rosto o deixava parcialmente coberto. Mas assustei-me ao perceber que poderia descrevê-lo, desenhá-lo perfeitamente no escuro. Mesmo sem vê-lo inteiramente, sabia exatamente como ele era. Onde cada traço estava. Cada belo e maravilhoso traço.
- Você está me encarando. - Ele murmurou, mas seus olhos também traçavam cada detalhe do meu rosto.
- Desculpa. - Disse e continuei a encará-lo. Estávamos em um jogo de olhares em que eu definitivamente sairia campeã - Você nessa posição daria uma foto incrível. - Confessei e sorriu.
- Você também. Eu estava pensando a mesma coisa. - Sorri de volta - Eu gosto de você, .
Encarei-o em total choque. Nada havia me preparado para aquilo. Levei mais tempo para responder do que o imaginado, pois começava a se afastar de mim.
- Eu também. - A frase saiu de mim como um soco. Como se admitir houvesse sido uma batalha da qual saí vitoriosa. Meu orgulho sequer importava. Nada além do que havia me dito importava - Eu gosto de você. - Afirmei antes que eu pudesse ter a chance de voltar atrás. Eu sabia que era uma covarde e reviraria aquela cena inteira antes de dormir.
me encarou ainda mais furtivamente, se possível, e aproximou-se mais uma vez. Dessa vez, sua mão foi para a minha cintura. Encostei minha cabeça contra a superfície metálica da janela atrás de mim. colocou sua outra mão em meu pescoço, seu polegar fazendo carinho em minha bochecha com um sorriso.
- Você é perfeita, . - Ele sussurrou e beijou minha bochecha. Cerrei os punhos em antecipação. Estava nervosa e ansiosa. Meu corpo inteiro estava em combustão e o samba ao meu redor parecia longe demais. Tudo estava longe demais.
- Você parece uma explosão de estrelas, sabia? - Soltei o elogio mais débil que consegui emular. Vimos um vídeo na aula de geografia sobre a explosão das estrelas e eu mostrei a assim que saí da sala. Queria compartilhar a coisa mais linda que já havia visto. E ele entendeu minha referência. Por mais infantil e sem noção que fosse, abriu um sorriso ainda maior.
Seu rosto se aproximou do meu, meu corpo inteiro atraído pelo dele. Quando seus lábios aproximaram timidamente dos meus, segurei a barra de sua camisa com força, como se me prender a ele fosse fazer aquilo parecer mais real.
Beijar foi a experiência mais inusitada e mais estranha que já tive. Não sabia como reagir, como fazer aquilo tudo, mas ele me ensinou pacientemente. Colocou minhas mãos em seu pescoço, e aprofundou o beijo. As revistas teen estavam muito enganadas. Beijar era muito mais do que um jogo rítmico.
Todas as estrelas se alinharam sobre nós, o céu girava ao nosso redor e gritamos fogo puro em uma noite tão monótona. Ele transformou tudo em explosão estrelar. E nunca desejei tanto ser atingida pela poeira cósmica que me cercava.
Sua mão tornou-se mais desesperada, segurou minha coxa e levantou um pouco minha perna, tomando ainda mais espaço entre nossos corpos. Puxei-o para mais perto, meus suspiros enchendo o ar ao nosso redor. Segurei a barra seu shorts e arquejei quando ele beijou minha clavícula, os beijos subindo e descendo em meu pescoço, deixando um frio fantasmagórico quando abandonava um local, apenas para queimar no seguinte.
- Sua mãe. - Um lampejo de consciência atravessou minha mente - Ela disse que não demorássemos. Ela vai desconfiar. - Segurei a mão de quando ela começava a subir mais próxima ao meu sutiã. Encarei-o ofegante e ele sorriu, dando-me outro beijo rápido.
- Eu não ligo, . - Seu cabelo estava bagunçado, os lábios tomados por um inchaço que eu sabia ser causado por mim. Aquela era cena mais sexy que eu já havia visto. E eu já tinha assistido muitos filmes de romance antes.
- Eu ligo. - Ralhei, mas a seriedade não chegou aos meus olhos e me rendi mais uma vez ao seu beijo.
Joguei a cabeça para trás e observei a lua de relance. Tive a impressão de que poderia ter piscado para mim. E eu queria que fosse verdade, porque minha nova patrona havia se tornado a memória constante de que os beijos de eram meus guias durante as noites mais escuras.
O som do samba encheu meus ouvidos mais uma vez. Os alunos ao meu redor bebiam e dançavam. Alguns estavam no canto se beijando sem qualquer pudor. Desviei o olhar e encarei a roda de samba. A maioria dos alunos estava ao redor do grupo jovem. Dessa vez, era o grupo de samba da psicologia. Tocavam Jorge Aragão no momento em que chegamos.
- Vamos pegar cerveja. - me guiou até o bar improvisado da atlética.
Pegamos nossas bebidas e fomos em direção a alguns amigos de da engenharia naval. Deixei-me dançar ali, os goles de cerveja ao pouco relaxando meu corpo tenso pelo dia agitado.
Um aluno da psicologia me puxou para dançar e guiei nossos passos, meus pés sambando contra o chão duro. Sorri para ele e afastei-me quando a música chegou ao fim, voltando para .
- A playlist de hoje está muito boa. - Comentei com ele. Um sorriso enorme cobria meu rosto e acompanhou minha alegria.
- Vamos dançar? Eu também amei a playlist!
colocou sua mão em minha cintura, da mesma forma que fazíamos das outras vezes. Rimos enquanto nossos pés dançavam sem exatamente serem guiados conscientemente. Giramos algumas vezes, nossos sorrisos direcionados um ao outro. Balancei meu cabelo e rebolei, ao passo que meu amigo me puxou para perto, nossos quadris balançando juntos ao som do pagode.
me lançou sozinha para frente e me acompanhou de longe, as mãos batendo ao som do ritmo e incentivando meus pés a o seguirem. Foi o que fiz. A música acabou e nos acabávamos de rir, até que olhei para o canto extremo, um local próximo à roda com uma grande quantidade de homens parados.
- O que houve? - me encarou com preocupação latente.
- Nada. Apenas pensei ter visto alguém. - Desconversei e desviei o olhar para seguir meu amigo.
Ele estava ali. estava ali. Após dois anos, ele estava no mesmo espaço que eu.
- Conseguimos! - Gritei abraçada a enquanto ria desesperadamente.
Finalmente havíamos feito nossa matrícula presencial na faculdade de nossos sonhos. Ele em engenharia naval, e eu em jornalismo. Estávamos na semana do trote e era a primeira vez que nos víamos desde que foi anunciado que havíamos passado na segunda fase.
Eu havia ido para Brasília com minha mãe, a fim de visitar meus parentes. E estava no Rio de Janeiro com sua família.
Não namorávamos. Eu havia pedido a ele que não tivéssemos nenhum compromisso no momento, pelo menos verbalizado, pois minha mãe não aceitaria até que eu completasse meus dezoito anos. Ou seja, apenas no final do primeiro ano letivo da faculdade. havia compreendido, apesar de não concordar muito. Aquilo bastou por um momento.
Mas ele havia voltado estranho da viagem. Não estava tão presente. E eu ignorei aquilo por um certo tempo. Estava feliz demais com o que estava acontecendo ao nosso redor.
- Conseguimos, preta. - Ele sorriu e me deu um beijo inesperado.
Por um segundo, achei que tudo estivesse normal. Agarrei-me a ele e andamos abraçados por todo o campus no dia de folga. Nos encontraríamos apenas para a festa que haveria à noite. Voltei aos meus novos colegas de curso e passamos o restante do dia juntos. e eu trocávamos algumas mensagens ao longo do tempo, mas eu estava focada no que acontecia naquele momento.
A sensação de ser a primeira aluna da família em uma universidade pública pipocou meu peito com um sentimento de felicidade imensa que mal cabia em mim. E aproveitei meu momento. Só torcia para que também estivesse aproveitando.
Quando chegamos à festa no final da noite, sorri ao vê-lo de longe. Estava com alguns colegas. Mas meu sorriso morreu ao vê-lo fumando. Franzi o cenho. Mandei uma mensagem e pedi que viesse falar comigo.
“Estou ocupado, .”
Foi a resposta dele. Arqueei a sobrancelha e observei quando seu olhar encontrou o meu. Ele deu mais um trago em seu cigarro e soltou a fumaça em minha direção. Fui tomada por uma onda de revolta e me aproximei dele.
- Podemos conversar? - Questionei ao sorrir para os amigos dele, tentando não torcer o nariz com o cheiro do cigarro.
- Claro, preta. - Ele jogou a bituca no cinzeiro prostrado no chão e seguiu atrás de mim.
- Desde quando você fuma? - Questionei - Você disse que odiava cigarro.
- Agora eu gosto, ué. - Deu de ombros. Afastei-me um pouco.
- , sabe o quanto cigarro acabou com a vida do meu pai e da minha mãe.
- Eu não sou seus pais. - Retrucou raivoso - Meu Deus, ! Você sempre faz isso. Fica me julgando e eu acabo cedendo.
- Julgando? - Questionei sem entender - Você próprio foi quem me disse que o cigarro era o mal da humanidade. E isso foi há menos de cinco meses. Por que está agindo dessa maneira?
- Porque, - Ele me encarou com o olhar mais indiferente que eu poderia receber - Eu estou mudando, assim como você está.
- Óbvio que estamos mudando!
- Então por que não aceita as minhas mudanças? O cigarro é só uma delas, . - Disse como se não fosse nada. E para ele poderia não ser, mas ele sabia sobre a história da minha família. Sabia da história da própria família dele - Eu não sei se isso entre nós vai funcionar. - Ele admitiu. Encarei-o completamente estupefata.
- Você está fazendo isso para poder se ver livre de mim e beijar outras meninas? - A pergunta que rondava minha mente pareceu mais sóbria e forte.
- Não é isso, … É só que, eu não sei, eu quero aproveitar a minha vida universitária. É o momento mais importante de nossas vidas. Eu mal consigo lidar com o drama que está rolando comigo, imagina ter outro com você.
Permaneci em choque ao encará-lo. Mal parecia a pessoa com quem eu convivi durante dois anos.
- Eu trago drama demais para a sua vida? - Vociferei. Àquele ponto, sequer me importava com como eu pareceria.
- Não você. Nós dois. Qualquer relacionamento traz uma carga que eu não estou pronto para carregar. Que eu não quero carregar. Você sequer tem coragem de me apresentar à sua mãe. Não quero estar com alguém que não sabe o que quer.
- Quer saber? Tudo bem. Você está no seu direito. - Levantei as mãos para o alto. O ódio subia até meus olhos e percebi quando quase vacilou - Eu não posso te forçar a nada, não quero te forçar a nada. Não poderia. Espero somente que saiba, , você estragou tudo. Você acabou de estragar qualquer relacionamento que poderíamos ter. Eu falei sobre você para a minha mãe semana passada - Um vislumbre de choque cruzou os olhos de , mas não deixei que ele falasse - Eu disse que estava apaixonada e que queria namorar com você antes dos meus dezoito porque por você valeria a pena. Mesmo que isso implicasse minha família perturbando o meu juízo. - Lágrimas teimosas tentavam subir por meus olhos, mas as segurei - Você está dando desculpas esfarrapadas para justificar seu egoísmo. Porque eu sei que você me ama, então por que diabos está agindo como um bebê? Quando esse seu surto infantil acabar, você vai se arrepender e eu não estarei aqui.
- , eu-
- Chega, . - Falei rapidamente - Eu não quero mais ouvir uma palavra sua. Você já deu seu recado. E eu já te dei o meu. Você, nesse momento, me dá nojo. - Virei-me de costas e caminhei decidida até meus novos colegas.
, um dos meninos que havia me acolhido, perguntou o que estava acontecendo. Expliquei-lhe rapidamente que havia terminado meu rolo com . E ele disse que iria comigo até o metrô se eu quisesse companhia. Neguei. Queria continuar ali. Era a minha semana de caloura. Eu aproveitaria. E eu não levaria o drama de comigo. Ele não era obrigado a carregar meu drama, mas muito menos eu era obrigada a carregar aquele surto egoísta dele.
E por isso, naquela noite, tornei-me uma que eu nunca pensei ser capaz de me tornar.
- É ele? - finalmente me perguntou quando eu terminei minha terceira cerveja. Assenti.
- Pois é. Ele próprio. Eu não imaginei que ele fosse estar aqui. - Dei de ombros. E não imaginava. Estava no meu terceiro ano da faculdade e nunca o havia visto pessoalmente depois daquele dia. Nossos círculos de amigos não eram os mesmos. Eu não gostava de festas universitárias, então nunca o encontraria. Ele amava.
- Você está com raiva?
- Não. - Admiti com honestidade - Já faz dois anos que aquilo aconteceu. Nós simplesmente não somos mais parte da vida um do outro. - Dei de ombros - E isso me afetava, mas agora não mais. Não tem motivo para isso. Eu já me relacionei com outros caras, ele já deve ter se relacionado com outras mulheres. Acontece.
- Você parece madura demais falando sobre isso. Nem parece a menina que eu conheci na calourada.
- Pois é. Nós mudamos muito em dois anos, né? - Ri bobamente e tomei outro gole de cerveja.
- Acho que já deu de bebida, querida. - Ele pegou a cerveja da minha mão e estendeu uma garrafa d’água. Virei o conteúdo de uma vez e passei um pouco de água na nuca.
- Eu quero dançar! Amo essa música! - Exclamei e o puxei novamente para dançar. Sentia meu quadril infinitamente mais solto do que antes. O efeito da bebida me libertando um pouco mais da vergonha que já era minha amiga mais íntima. O som de “Cobertor de orelha” da Turma do Pagode ecoava nos pandeiros e nas vozes.
sambava ao meu lado, nossos passos já eram praticamente sincronizados. Cantei a música animadamente. Todos os alunos ao nosso redor pareciam também amar essa música, pois logo formávamos um coro alto gritando a letra. Mais uma vez, deixei que o corpo de grudasse ao meu e rebolei minha cintura contra a sua. Senti sua mão girar o meu corpo e tropecei levemente, sendo amparada pelos braços fortes de meu amigo, que me puxou para perto.
- Acho que já deu. - ralhou e assenti. Uma leve dor de cabeça me atingiu e sentei-me no sofá que haviam trazido para fora do espaço estudantil. Deitei a cabeça contra o estofado e pensei que talvez já soubesse o que escrever para o professor.
Escreveria sobre como amar foi a experiência mais criativa que meu cérebro poderia processar. As sensações de amor foram tão intensas quanto as de desolação. O mesmo amor doía de felicidade, doía de tristeza. Apenas não sabia como formular aquilo tudo sem parecer uma louca que não superou o ex.
Abri os olhos e fui tomada de melancolia pura quando a lua gigante pareceu me abraçar pessoalmente. Exatamente como no dia em que me beijou pela primeira vez. Tentei me recordar de outros beijos, outros abraços, mas somente o dele me vinha à mente. Era sempre o beijo dele que pairava sobre meus lábios quando minha mente se permitia viajar. Era sempre ele. Sempre seria ele.
Há dois anos o mesmo beijo me assombrava, levava-me à loucura e me fazia achar que jamais seria capaz de encontrar outro beijo como o dele. E isso só me fez sentir raiva de mim mesma. Ele havia me esquecido, por que então eu não conseguia esquecê-lo? Um peso gigante parecia esmagar meu corpo, afundar-me até que a lua me engolisse. Era o peso de ter sido deixada para trás e não conseguir alcançá-lo.
Fechei os olhos cansados, estava decidida a ir embora. Não precisava da memória de que eu não havia superado . Eu não precisava daquilo. estava dentro do espaço estudantil, provavelmente pegando mais água. Eu apenas o esperaria voltar e iria embora. Não queria ir para festa nenhuma. Abri os olhos mais uma vez, a fim de procurá-lo, e quase gritei assustada quando observei parado à minha frente.
- Desculpa te assustar.
Ouvir a voz dele após tanto tempo causou em meu corpo reações químicas às quais eu não estava acostumava. Sua voz estava rouca, funda e adulta. Desviei meu olhar de seu maxilar perfeitamente demarcado e voltei a fechar os olhos, como se aquilo fosse impedir meu coração de permanecer acelerado em meu peito.
- Posso me sentar? - Sua voz foi ouvida após alguns momentos em silêncio, quebrados apenas pelo som do samba.
- Ainda vivemos em um país livre. - Comentei secamente e permaneci de olhos fechados e a cabeça apoiada contra o estofado. Esperava que chegasse logo.
- É, por enquanto. - Ele comentou e permaneceu em silêncio, mas eu estava vividamente consciente de sua presença.
Não havia como não estar.
O corpo de ocupava boa parte do sofá pequeno. Os ombros largos, as coxas grossas e o tronco forte, tudo isso cooperava para que fosse um dos caras mais bonitos que eu já vi. E isso me fazia apenas tentar odiá-lo um pouco mais. Mas eu falhara miseravelmente.
- Como você está? - Ele perguntou. Abri o olho direito e o encarei de soslaio.
- Bem e você?
- Bem.
Resolvi permanecer em silêncio. Se não há o que ser dito, prefiro não dizer. E não diria.
- Não sabia que você estava namorando. - Forcei-me a encará-lo após sua constatação.
- Qual foi, cara? - Perguntei exasperada.
- Ué, só ‘tô dizendo. - Ele levantou as mãos em sua defesa. Agora, sentados um de frente para o outro, percebi o quão mais alto que eu ele era.
- Não, eu não estou namorando. - Falei com a sobrancelha arqueada - Não que seja da sua conta.
- E não é. - Ele afirmou.
Senti-me voltar ao momento em que ele havia dito aquelas palavras duras para mim. E não sentia mais raiva alguma, mas sabia que teria que tomar cuidado com o que diria. Não deixaria saber a influência que ainda tinha sobre mim.
- Bem, agora que sua curiosidade foi sanada, pode voltar para seus amigos. - Apontei para os homens parados atrás da roda.
- Queria falar contigo. - Ele apoiou o braço contra o sofá - E pedir desculpas.
E estava ali. Por muito tempo pensei em como seria quando ele me pedisse desculpas por todas as bobagens que disse. Nos primeiros meses, sonhei que ele me tomaria nos braços e que me beijaria novamente. Depois, comecei apenas a desejar que ele se desculpasse e voltasse para sua vida normal. Agora, sequer pensava que seria possível ouvir um pedido daqueles vindo de sua boca.
- Pelo quê? - Instiguei e encarei minhas unhas.
- Por tudo.
- Tudo é muita coisa. - Encarei-o.
- Por ter te machucado. Por ter diminuído seu amor por mim. Por ter agido como uma criança quando a sua amizade era a coisa mais importante do mundo para mim. Peço desculpas, de verdade. - Assenti em silêncio, processando suas palavras. E senti um peso sair de meus ombros.
- Você já estava perdoado antes de sequer pedir desculpas. - Disse com um sorriso triste - Eu não sou uma pessoa rancorosa, . Você já descarregou o peso dos ombros, fica tranquilo.
- Não fiz isso por minha causa. - Ele arqueou a sobrancelha - Não foi para minha própria consciência. Eu errei. Estou pedindo desculpas pelo meu erro.
- Hm. Ok. - Permaneci encarando seus olhos e dei uma risada fraca - Estou me sentindo infinitamente mais leve. Bem, estou indo embora. Foi bom falar contigo. - Preparei para me levantar quando segurou meu pulso.
- Posso te pedir um favor antes de você ir?
- Pode pedir, mas não posso prometer que vou cumprir. - Ele pareceu ponderar, mas suspirou.
- Só quero dançar uma música com você. E depois te deixo em paz.
Eu permaneci em silêncio. As consequências que viriam a partir das minhas próximas palavras poderiam ser mortais para mim. Poderiam levar meu coração ao extremo da saudade. Eu sabia que aquilo não era certo.
- Uma só.
E mesmo sabendo que eu me arrependeria daquilo, não tinha outra escolha. Meu coração não me deu outra saída.
- Espera aí. - Ele comemorou e saiu andando apressadamente até a roda de samba. Observei que ele sussurrava com um dos homens de dread assim que a música anterior acabou.
Encarei minhas próprias mãos para esconder a vergonha quando percebi que “Procura no Google” da Turma do Pagode começou a ter seus primeiros acordes tocados.
Balancei a cabeça com um sorriso confuso quando puxou meu corpo para cima e me levou para dançar.
Observei aparecer e sinalizei para ele que esperasse um pouco. O meu amigo apenas concordou com um aceno.
- Não encoste muito em mim. - Murmurei quando sua mão segurou minha cintura. Automaticamente, senti seu toque afrouxar - E não tente nenhuma gracinha.
O tronco de estava coberto por uma camiseta preta que mostrava facilmente seus bíceps de laboratório (vulgo academia), as coxas grossas estavam cobertas por uma calça jeans. Controlei o impulso que meu corpo emitiu para grudar meu corpo ao dele.
- Eu não sou bom com palavras. - Ele sussurrou próximo ao meu resto - E sei que você ama esses caras, então acho que talvez eles possam expressar um pouco melhor o que eu sinto.
Permaneci em silêncio por um tempo, a letra da música abraçando meu corpo, minha mente.
“Prometo não falar seu nome,
mas cê vira assunto
O mundo conspira pra gente tá junto”
- Pode me segurar direito. - Cedi e um sorriso enorme cruzou o rosto de . Encostei meu rosto ao peito dele, sentindo seu coração tão acelerado quanto o meu. Ele estava ali, mas eu não sabia por quanto tempo.
- Eu sinto tanto a sua falta, . - Ele admitiu baixinho contra meu ouvido - Eu sinto tanto por ter agido como uma criança mimada.
- Sim, você agiu.
- Me dá uma chance de ser minha amiga, por favor?
“Eu já 'tô prevendo meu arrependimento
E pra evitar qualquer sofrimento
Já tô concordando antecipado
Tentei me afastar, mas 'tô errado”
- Não sei, … - Admiti, parando de me segurar a ele para encará-lo - Você me machucou de verdade.
- Eu sei. - Os olhos de expressavam dor que eu não esperava enxergar - Eu sinto muito. - Observei alguns traços de lágrimas surgirem em seus olhos e tentei esconder meu choque - Te machucar foi a pior coisa que eu já fiz. Eu sinto tanto.
- Eu preciso mais do que palavras.
- Eu sei. - Ele segurou uma mecha do meu cabelo e rodou em seus dedos. Fechei os olhos por um instante, sua mão pairando tão próxima ao meu rosto quente - E por isso eu quero uma chance do zero. Eu quero uma chance de te mostrar o que mudou de dois anos para cá.
- Como sei que você mudou de verdade?
- Você não mudou nesses últimos dois anos, ? - Meu apelido em seus lábios pareceu o doce mais sacana possível. Segurei o impulso de querer montar em cima dele e beijá-lo. Estava ficando fisicamente sufocante não o poder tocar.
- Mudei. Sim, você tem um ponto. - Admiti a contragosto. A música já havia mudado, as pessoas ao nosso redor já começavam a ir para as festas no campus. Eu sabia que meus amigos e também nos estavam esperando para irmos. Eu havia prometido que iria - , por favor, prometa que não vai agir daquela maneira de novo. Eu não tenho mais idade para lidar com aquilo. - riu pelo nariz e assentiu.
Percebi que nossos corpos se moviam com a música, mesmo que não soubéssemos qual era.
- Eu prometo, preta. - Um arrepio cruzou meu corpo. E percebeu, pois, seu semblante fechou e seu rosto encarou o meu com faíscas pairando por seu olhar.
- Você não tem o direito de me chamar assim, . - Murmurei, mas minha voz parecia um fiapo. Minhas pernas estavam prestes a virar geleia. Como se, de repente, meu corpo inteiro estivesse muito mais do que consciente da presença de .
A ponta de seus dedos estava contra minha cintura coberta pela saia, o rosto curvado em direção ao meu, os olhos focados no meu rosto, o sorriso tomando minha visão completamente. E ali percebi que meu amor por não havia sumido, havia se modificado, amadurecido, mas ainda estava ali. Tão imenso e presente quanto a lua pairando acima de nós dois. Por vezes, parecia sumir, ofuscado por uma luz momentânea cheia de gases químicos que fazia parecer que a luz do luar jamais voltaria. Mas ela estava ali. O tempo todo, esperando para aparecer.
- Por que depois de tanto tempo? - Perguntei após colocar minha mão contra seus ombros.
- Eu demorei demais. - Ele admitiu e passou o polegar por minha bochecha. Fechei os olhos. Estava caindo nas graças dele, mas meu coração estava estranhamente em paz com isso - Estava com medo. Medo de você me rejeitar. Achei que havia te superado e isso havia sido o suficiente para achar que me desculpar faria apenas mais mal do que bem. - Deu de ombros - Mas eu nunca te esqueci. Nunca. Nunca fui a um pagode sem te procurar. Assistir ao jornal à noite sempre foi difícil, porque sempre me lembrei do quanto você desejava ser âncora.
- Eu te disse isso quando viramos amigos. - Murmurei - Já tinha até esquecido.
- Eu não esqueci, . - Ele assegurou - Eu nunca vou ser capaz de te esquecer. Sei que posso viver sem você, esses dois anos me mostraram isso, mas agora, mais do que nunca, eu tenho certeza de que eu não quero viver sem você.
Desvencilhei-me do corpo de e permaneci levemente distante, meu corpo reclamando da falta de carinho e dengo que ele me oferecia, mas aquilo tudo me impedia de pensar.
- Você escolheu viver sem mim, mas me forçou a viver sem você. É bem diferente. - Comentei ao encará-lo - Eu nunca quis isso. E você precisa entender que você fez uma bagunça com meu coração - Admiti - E que isso me mata porque eu fui rejeitada e mesmo assim não consegui te deixar. - Senti meu peito doer - E eu nunca mais quero te perder se você decidir ficar. Por favor, se você for embora, não nutra esse sentimento.
- Eu prometo.
- Então - Estendi a mão com um sorriso enorme - Amigos. É um prazer te ter de volta no clube dos Neguinhos Bolsistas. - riu ao apertar minha mão.
- É um prazer estar de volta, preta.
Ele me puxou para um abraço e senti como se as explosões estelares estivessem voltando para casa. Para meu peito. De onde nunca deveriam ter saído.
Quando, no dia seguinte, me chamou para irmos tomar sorvete, caminhei decidida a deixar tudo para trás. Como já havia me empenhado em dois anos a deixar. Ao vê-lo sorrir e me dar um beijo na bochecha, senti como se realmente não valesse a pena guardar toda a mágoa que eu achava ser capaz de manter dentro de mim. Simplesmente não valia a pena.
havia crescido, havia se arrependido, e aquilo mostrou muito sobre o garoto orgulhoso que ele costumava ser. O garoto que preferia mudar a situação inteira para parecer certo, tudo isso para não pedir desculpas.
- Por favor, diga que você assistiu ao Spiderverse, . - Ele suplicou quando colocamos nosso papo em dia. explicara que, naquele verão em que estava longe, descobriu que seu pai havia engravidado uma amiga de mamãe, e que aquela situação inteira havia feito mal a ele. E ele não quis contar. Absorveu tudo para si e simplesmente me afastou. E aquilo havia custado nossa relação. Toquei sua bochecha e tirei um pedaço de casquinha de sorvete que estava ali. Senti que poderia explodir de amor novamente, mas não contei a ele. Ainda não estava inteiramente pronta, e não me senti mal com aquilo. Não há mal em não estar pronta. Cada passo seria tomado com precaução por amor a nós dois, por amor ao meu coração emocionado que insistia em se jogar de um precipício sem realmente se importar com o que o esperava.
E me esperaria. Eu sabia que sim. Nós estávamos destinados a nos encontrarmos toda noite, quando o sol se pusesse e a luz da lua voltasse a nos fragilizar com seu esplendor melancólico.
“São Paulo, 13 de abril de 2019
Querido Alguém,
Achei que deveria por em palavras o que minha boca é incapaz de formular. Afinal de contas, você diz ser péssimo com palavras, mas é capaz de emular as mais doces palavras de amor e as mais duras palavras de ressentimento. A mesma boca que disse me amar, também disse querer me afastar.
Você foi como a explosão de estrelas que invadiu meu pequeno universo. Você foi como aquela luz que eu implorei para ter mais uma vez a me iluminar.
E isso me trucidou. Você fez com que a colisão de planetas parecesse algo lindo, ao invés de assustador. Talvez seja o efeito de estar apaixonada pela lua. O brilho frio que esconde o calor tremendo calor solar.
Então, escrevo a ti, Lua, para saber se poderia devolver meu coração. Pois ele é teu. Sempre foi teu. E toda noite, apenas tive a impressão de tê-lo emprestado por ti.
Achei que pudesse controlar a posse da Lua sobre meu lado esquerdo do peito, mas, ó Lua, foi apenas ilusão pensar por algum segundo sequer que eu tinha domínio sobre meu próprio coração quando ele por inteiro pertence a você.
Então, apenas um pedido faço, que cuide bem dele, que o continue a assombrá-lo com as sombras da beleza das noites de verão, que teus adornos sejam meus companheiros enquanto eu viver. Porque, Lua, sou apenas pó estrelar esperando para ser segurado por ti em um beijo doce e lunar.
O beijo da Lua é o que eu espero, é com o que eu sonho.”
Querido Alguém,
Achei que deveria por em palavras o que minha boca é incapaz de formular. Quer dizer, pensamentos são formados por linguagem, certo? Sem a linguagem, nossa mente seria apenas uma massa cinza. Pensamos porque sabemos nos comunicar. Se é o caso, por que não sou capaz de formular meus próprios pensamentos sobre o que sinto por você? Por que eu sinto essa massa cinzenta mesmo que eu saiba como me comunicar? Eu estou me formando para ser comunicadora, eu deveria saber me comunicar, mas por que é tão difícil quando se trata de você?”
Balancei minha cabeça e bufei. Não deveria ser tão difícil assim escrever uma carta. Maldito seja Waldir Quadros por nos fazer escrever uma carta como trabalho. Pensei que havíamos deixado gêneros textuais no ensino médio!
- Eu acho que vou tirar um 10 nesse trabalho. - comentou ao meu lado. Espreitei seu computador e revirei os olhos ao perceber que ele já havia acabado sua carta.
- Eu acho que vou zerar. - Resmunguei ao recostar-me na cadeira, fazendo um barulho infernal.
- Como você tira nove nas provas e não consegue fazer uma carta? A era tecnológica acabou com o romantismo.
- Você escreveu uma carta para o presidente o xingando, isso é romantismo? - Arqueei a sobrancelha ao passo que apenas deu de ombros.
- Levando em conta a inclinação política do professor, não acho que isso vá ser um problema. - Mordi o canto dos lábios. não estava errado, eu só precisava escrever algo que fosse entreter meu professor o suficiente para que ele me desse uma boa nota. Não era complicado.
- Vou estudar um pouco na biblioteca, já volto. Ah, Miguel mandou mensagem.
- Hmmm, o Miguel? É sobre ele que você está escrevendo? - Fuzilei quando ele tentou bisbilhotar sobre meus ombros - Calma, tigresa.
- Te encontro no espaço estudantil depois?
- Claro, como sempre. Vou comprar biscoitos e comemos juntos. - Assenti e sorri para meu amigo. se tornou um amigo incrível. No início do ano, tentara me beijar em uma festa, mas mesmo quando disse que não, continuamos amigos.
Coloquei a alça da mochila sobre meu ombro esquerdo e me pus a caminhar pelos corredores da universidade enquanto respondia Miguel no chat. Ele era um homem incrível, fazia psicologia e gostava dos Beatles, mas eu estava me cansando rapidamente dos rumos das nossas conversas.
Olhei para a carta em minha mão mais uma vez e senti vontade de gritar. Minha inspiração havia desaparecido, deixando apenas um traço mísero de criatividade com nome e sobrenome. Mas eu me recusava a aceitar que minha mente apenas liberava a inspiração para escrever sobre ele.
Fui em direção à biblioteca e sentei-me à mesa com um dos pés meio frouxo. A minha favorita. Sequer me importava com o barulho que fazia, já havia achado uma maneira de fazê-la ficar parada. Por isso gostava tanto dela. A sensação de conseguir consertar momentaneamente algo que todos evitavam.
Franzi o cenho ao encarar a página parcialmente escrita. O professor provavelmente acharia que eu tenho doze anos e estava escrevendo para meu primeiro amor. Bem, não estaria completamente equivocado. Arrepiei ao lembrar dos olhos dele e amaldiçoei o dia em que ele havia se tornado tão importante para mim ao ponto de apenas lembrar dele já se tornar a melhor parte do meu dia.
- Talvez eu devesse escrever esse negócio brega. - Murmurei para mim mesma.
Ao começar a escrever, percebi minha mente me trair ao passo que minhas memórias voltavam para ele. Para nossos momentos juntos.
A primeira vez em que o vi, tínhamos quinze anos. Ele havia entrado na minha escola e era bolsista, assim como eu. Sabia disso porque bolsistas não eram vistos com bons olhos em um dos melhores colégios da cidade. Mas ele fazia parecer ser legal. E era.
- Oi, você também é bolsista? - Ele se aproximou de mim com um sorriso enorme. A pele escura e os olhos castanho mel me deixaram estranhamente confusa. Será que usava lentes? E por que aquele garoto aleatório estava falando comigo? Encarei minhas amigas, elas o encaravam com um tom zombeteiro e soube que mais tarde eu estaria lascada.
- Sou sim. Você é o novo bolsista, não é? , eu acho. - Cocei o antebraço com o olhar baixo. Ele não pareceu incomodado com minha aparente timidez.
- Sim. - Abriu um largo sorriso - A tia da administração chamou a você e a mim para irmos até a secretaria. - Levantei a cabeça rapidamente com os olhos arregalados. Será que haviam descoberto que eu havia escrito um poema na porta do banheiro? - Você não fez nada de errado. - me assegurou com um sorriso de aparelho.
- Vai logo, estamos curiosas! - Avalon praticamente me empurrou. O olhar que carregava era tão cheio de piadas, de brincadeiras, que temi voltar. Elas provavelmente diriam que éramos um casal. E eu não estava pronta para lidar com aquilo.
Segui um pouco mais atrás de , as mãos dentro do bolso frontal do moletom. Devo admitir, não queria ser vista com ele. Ser bolsista sozinha já era motivo de piadas e olhares tortos, mas dois bolsistas juntos? Não, não. Dois bolsistas negros juntos?
- Está muito quente, você não está com calor? - Questionou virando-se para trás com um sorriso. Neguei e aprumei-me mais ainda em meu moletom. Chegamos até a secretaria amarelo gritante, algo que sempre odiei, e entramos.
- Ah, meus dois gênios! - Exclamou Clemilde, a tia principal da secretaria. Ela sorriu e se colocou em pé em um pulo. Acenei para as outras funcionárias com um sorriso.
- Boa tarde. - Cumprimentei. me encarou, mas não retribuí o olhar - O que está acontecendo? - Virei-me para Clemilde com curiosidade - Fiz algo de errado?
- Não, não. Gostaria de fazer uma proposta a vocês dois. Como sabem, nossa escola passa a propaganda na televisão, certo? O que acham de vocês dois fazerem parte? - Tentei não demonstrar nada, mas devo ter falhado, porque Clemilde se adiantou - Não vamos fazer hoje. Precisamos falar com seus pais, assinar alguns termos, coisa burocrática. - Assegurou-me, mas eu não estava tranquila.
Eu apareceria na TV? Minha mãe provavelmente tentaria deixar meu cabelo natural, mas ficaria horrível!
- Não quero. - Interrompi a pobre mulher enquanto ela ainda falava, um desconforto quase visceral subindo por meu corpo. Queria sair dali.
- Posso perguntar por quê? - Clemilde pareceu confusa.
- Eu não sou muito ligada nessas coisas. - Afirmei, o que não era mentira. Só de pensar em estar em frente à câmera apenas para ser caçoada depois maldosamente por meus colegas já me dava náuseas - Não sou carismática o suficiente. - Dei a desculpa esfarrapada.
A verdade é que amava estar na frente da câmera falando. Meu sonho era me tornar âncora do jornal de televisão.
- Mas você só vai precisar estar sentada com alguns amigos conversando, vamos tirar algumas fotos. Depois, uma imagem sua andando em direção à sala. Esse tipo de coisa. Você não vai precisar falar.
Clemilde realmente estava tentando me convencer, mas o enjoo continuava na beira do estômago.
- Obrigada pela oportunidade, mas eu realmente não quero. - Afirmei finalmente - Desculpa. Boa tarde, gente. - Despedi-me rapidamente e saí pelas portas de vidro mais rápido do que poderia ser considerado normal. Provavelmente me chamariam ao escritório da psicóloga no dia seguinte. De novo.
Fui em direção ao banheiro com o coração ainda acelerado. Mas fui parada por antes de alcançar a porta.
- Ei, está tudo bem? - Perguntou ao tocar de leve meu moletom azul escuro. Encarei sua mão e ele se afastou prontamente - Desculpa.
- Tudo bem. E sim, está tudo ok. Só não quero fazer uma propaganda para essa escola. - Afirmei.
- Você não gosta daqui? - perguntou levemente surpreso.
Ele era do mesmo ano que eu, mas de outra sala. Estávamos no segundo semestre letivo do segundo ano do ensino médio. Ele havia chegado há um mês. Eu estava aqui há cinco anos.
- Você gosta? - Questionei. assentiu firmemente - Mas você é bolsista. - Não foi minha intenção, mas meu comentário saiu em tom leve de desdém. percebeu, pois fechou a cara.
- E daí? Você também é. Algum problema com isso? - Cruzou os braços com uma carranca. Senti-me uma idiota.
- Não, não é por isso! Mas bolsistas geralmente não têm boas experiências aqui, . - Corrigi-me e ele pareceu aceitar rapidamente. Hm, que garoto fácil de convencer.
- Ah, mas isso em qualquer lugar, não é? Eu digo, nós. - Apontou com o indicador para nós dois.
- O que quer dizer? - Perguntei com o cenho franzido.
- Ué, a gente é preto.
- Eu nunca passei dificuldade por ser preta. - Afirmei, mas algo em minha voz fez com que arqueasse a sobrancelha.
- Tem certeza?
- Não quero falar sobre isso. - Desconversei com um murmúrio - O único motivo para eles nos chamarem é para mostrar que existem negros aqui, você sabe disso, não é? - Perguntei em tom mais baixo. Andei com ele para um pouco mais longe. Várias pessoas passavam ao nosso redor, e agradeci por sermos aparentemente invisíveis naquele momento.
- Sei. - suspirou - Mas também é positivo para nós! - Ele exclamou com um sorriso - Podemos mostrar que mesmo pretos, estamos em um lugar desses. A mensalidade é três paus por mês, . Eu não sei você, mas eu não tenho grana para pagar essa mensalidade.
- Nem me fala. - Respondi, mas estava um pouco mais aliviada. Ouvi-lo pronunciar meu nome em tom animado fez com que eu sorrisse.
- Viu só? É esse sorriso que a gente precisa mostrar na propaganda. - Tentei morder o lábio para conter o sorriso que tentava rasgar meu rosto, mas fui incapaz de controlá-lo. fez um high five comigo e me acompanhou de volta até a secretaria. Faríamos aquele comercial juntos.
- ? - Olhei para cima e encarei parado em minha frente com os braços cruzados.
- Meu Deus! Esqueci totalmente de ir para o espaço estudantil. - Sussurrei. Duas pessoas ao meu lado nos encararam e levantei-me apressadamente, acompanhando para fora da biblioteca - Desculpa mesmo. - Comentei em alta voz quando já estávamos devidamente do lado de fora.
Andamos juntos pelo estacionamento descoberto.
- Eu pensei que algo tivesse acontecido, mas cheguei lá em cima e você estava praticamente viajando enquanto encarava uma estante. - Ele soltou uma risada e deu de ombros - Você estava pensando no que escrever?
- Sim, algo do tipo. Ah, vamos mesmo ao samba hoje à noite? - sorriu e assentiu.
- Obviamente, querida. Está livre às nove, certo? - Assenti - Então, vamos. O resto do pessoal também vai?
- Acho que não. - Lamentei com um suspiro - A maioria tem aula. Nós é que somos as ovelhas negras que matam aula para ir tomar cerveja e dançar.
- E digo que somos os mais corretos! - Exclamou - Além do mais, nós estamos adiantados na matéria.
- Isso não é desculpa para matar aula. - Argumentei. Odiava faltar aula. Mas havia uma falta por mês reservada ao samba da faculdade. Cinco institutos se juntavam para uma roda de samba toda sexta. Não seria diferente hoje.
- Claro que é! Além do mais, ainda vamos à festa com todo o pessoal hoje à noite. Vai ser bom demais. - piscou sonhador - Ei, me espera aqui? Vou ao banheiro.
Observei-o ir para longe com seus cabelos loiros balançando, entrando no prédio ao lado. Comecei a sorrir ao lembrar de todas as rodas de samba às quais fomos. Era a minha sexta favorita do mês. Sabia que a de também. também amava o samba.
- Sua mãe te levou a uma roda de samba? - Perguntei estupefata a enquanto jogava outra pipoca na boca. Ele deu de ombros.
- Foi bem divertido. Ela, na verdade, começou uma roda de samba lá no bar dela. Eu só precisei ir visitá-la e já estava no meio daquilo tudo.
havia tirado o aparelho naquele dia. Estava tão feliz. Disse que finalmente poderia comer maçãs sem medo. Fomos comemorar comendo pipoca e muitas balas que grudam no dente. Estávamos sentados em frente ao cinema enquanto esperávamos o filme começar.
- Você, tipo, dançou com alguém? - Questionei encarando um grupo de amigos que passava. Desviei o olhar rapidamente. arqueou a sobrancelha e seguiu meu olhar.
- Achou algum deles bonito?
- Você não respondeu a minha pergunta. - Retruquei e enfiei uma mão enorme de pipoca na boca.
- Você vai comer a pipoca inteira antes do filme começar. - Ele suspirou ao ver meu estado. Sua pipoca estava praticamente intocada - E vai querer comer a minha depois.
- Isso é mentira! - Exclamei com o cenho franzido - Além do mais, você pode dizer que não, se isso te incomoda. - Dei de ombros. olhou para o chão e riu.
- Como se isso fosse te impedir.
- Responda a minha pergunta. Você dançou com alguém? Quero saber dos detalhes!
- Dancei. - Ele sorriu e passou a mão na nuca - Ela era bem legal.
- Qual o nome da coitada? - Questionei e tomei um gole de refri para enxaguar a pipoca. Senti meu estômago revirar. Talvez fosse melhor parar com a pipoca.
- Belinha.
- Isso é nome de cachorro. - Murmurei. riu alto e deixou cair algumas pipocas no chão, agachando-se e pegando-as em seguida, mas sem parar de rir.
- Cara, que maldade. - Ele retrucou. Dei de ombros. Não sabia porque estava agindo daquela maneira. Na realidade, Belinha era um apelido fofo para meninas fofas - Você gostaria dela.
- Ah, é? Por quê?
- Ela gosta de One Direction. - Aprumei-me na cadeira. Eles haviam conversado tanto ao ponto de ele saber uma informação daquelas? Tentei esconder o desconforto.
- É, então ela é bem legal.
- E você?
- O quê?
- Achou um daqueles caras bonitos? - Voltou com sua pergunta, mas eu já havia esquecido dos rostos dos garotos que passaram por nós.
- Não. Eu, na verdade, fiquei receosa. - Fui honesta e assentiu. Não precisava dizer mais nada.
Nos últimos dois meses, eu havia recebido a carta de um admirador secreto. Os meninos da minha sala começaram a questionar entre si quem havia sido. E todos chegaram à conclusão de que quem quer se fosse, estava se enfiando em um buraco. Pois eu, com todo o respeito, como disseram eles, não era o tipo de ninguém dali.
Eu havia chorado com minhas amigas no banheiro. Avalon chorou junto comigo, as mãos delicadas limpando minhas lágrimas. Minhas outras amigas me abraçaram, levaram-me até o cinema, compraram pipoca, chocolate branco (meu favorito) e tentaram me mimar. Havia funcionado, mas por algumas semanas, ao deitar, somente me vinha à mente os risos e a maldade no olhar deles.
- Descobriu algo sobre seu admirado? - Questionou tentando desconversar. Neguei com a cabeça.
- Eu acho que era brincadeira de mau gosto deles. Prefiro não pensar nisso, , de verdade. - Ele assentiu.
- Sinto muito.
- Eu sei. - Sorri e tomei outro gole - Estou acostumada, não fique preocupado. Na realidade, não me afeta mais.
E era verdade. No último mês, havia esquecido completamente daquele assunto. Não valia a pena. Estávamos a apenas dois meses dos vestibulares. A viagem de formatura já havia acontecido. Somente eu, e mais algumas pessoas não havíamos ido. A rotina de cursinho online, escola e todo o estresse não me permitia sequer pensar em futilidades daquelas. Só queria acabar o ano em paz e fazer o curso dos meus sonhos.
- O filme vai começar em dez minutos, vamos? - se colocou em pé em um salto e pegou meu refrigerante sem minha permissão, mas não me importei.
Ele estava muito alto. Deveria estar chegando a um metro e oitenta. Já estava chegando aos dezoito anos, era quase um ano mais velho que eu. Eu faria dezessete no final do ano, após o primeiro vestibular. Ele havia começado a ir para a academia ano passado, pouco tempo depois de ter entrado na escola. E havia se tornado seu consolo em meio ao estresse, ele havia dito. Isso e o time de futebol.
- Você vai me ver jogar? - Ele perguntou quando subimos aos nossos lugares. Penúltima fileira, cadeiras 11 e 12. Sempre o mesmo. Fiquei feliz em saber que poderia cooperar com meu vício em ter sempre as coisas pequenas constantes. Pelo menos nunca havia se incomodado.
- Claro que vou! - Exclamei. Senti muito sal na boca e percebi que havia acabado praticamente com toda a pipoca. Havia poucas pessoas no cinema conosco. Era quatro e meia da tarde, afinal de contas. Inclusive, nós dois deveríamos estar estudando.
- Não se atrase, . - Ele sorriu e piscou. Encarei seus lábios rapidamente, mas voltei o olhar para a tela do cinema, meu corpo inteiro tentando compreender o que estava acontecendo. Peguei meu celular e abri no aplicativo do ciclo menstrual. Hm, não estava no período fértil, então o que estava acontecendo? - Ah, e depois vamos à roda de samba? Quero te apresentar ao pessoal que conheci. Sério, você vai amar! Todo mundo é tão legal e tão diferente. Não sei explicar.
Ele havia feito novos amigos?
- Claro, vamos. - Eu não estava animada com a ideia, mas poderia tentar. Afinal de contas, era importante para ele, então era importante para mim - E eu nunca me atraso. - Ralhei com ele.
- Sim, eu sei. - deu de ombros e começou a comer sua pipoca assim que os trailers começaram. Inclinei-me para mais perto dele e enfiei a mão no seu balde de pipoca - Ei! Eu falei que era para você não comer toda a sua pipoca antes do filme começar!
- Eu sei disso. Mas a sua pipoca é mais gostosa que a minha. - Sussurrei, apesar de não haver ninguém próximo a nós dois.
- É a mesma pipoca, . - Ele bufou. Encarei-o e percebi o quanto estávamos próximos. Seu braço estava totalmente encostado ao meu. Ele desviou o olhar da tela e me encarou de volta. Senti-me em uma bolha. Meu corpo inteiro parecia travado e eu não sabia o que fazer. Entretanto não precisei fazer nada. continuou a me encarar pelo que pareceu uma eternidade, mas eu não me incomodei - Sua boca está sangrando. - Ele comentou repentinamente com o olhar assustado.
Passei a mão pelos lábios e arquejei ao perceber que o sal havia machucado minha boca que já estava levemente ressecada.
- Já volto. - Murmurei e levantei-me rapidamente, descendo as escadas em direção ao corredor. Meu coração estava acelerado e o sangue que manchava meus lábios não era nada se comparado ao desespero que senti ao perceber que gostava de .
Passei o lápis sobre o lábio e encarei o professor parado à frente da sala. Estávamos ao fim da primeira aula. O professor de Design Editorial I decidira usar o laboratório hoje. Observei meu computador e bufei quando percebi que ele estava prestes a abandonar este mundo. E isso significava que eu precisaria comprar outro. Arrepiei ao lembrar que havia saído de meu antigo emprego há duas semanas e que precisava achar algo logo. As contas não se pagariam sozinhas.
- Você está com a cara azeda. - murmurou ao meu lado. Encarei-o de soslaio.
- Estou pensando nas contas.
- Cruzes. - Ele fez o sinal da cruz. Eu ri. era um ótimo amigo - Vai conseguir pagar as coisas esse mês? - Assenti.
- Tenho o suficiente para dois meses. Mas preciso de um emprego logo. - Admiti e cruzei os braços.
- Você consegue. Confio em você. - Abri um sorriso largo. tem sido meu melhor amigo desde que entramos nesse lugar. Meus outros amigos estavam em suas respectivas aulas com seus professores, eram os amores da minha vida, mas não tínhamos tantas aulas juntos quanto eu gostaria. Quando fomos liberados pelo professor, corri ao banheiro para trocar de roupa. Coloquei a saia que minha mãe havia feito para mim. As estampas africanas circulavam meu corpo junto com o top preto. Encarei-me no espelho e arrumei meus cabelos crespos com o pente garfo que guardava em minha bolsa. Arrumei o batom vermelho e saí rapidamente. me encarou com os olhos arregalados.
- Meu Deus, você está uma verdadeira… musa grega? Acho que isso é pouco. - Sorri com o elogio de .
- Obrigada. - Agradeci com o sorriso e cruzei meu braço ao dele, descendo as rampas com um semblante leve.
A Freire que sentia vergonha de sua herança havia ficado no ensino médio. E eu agradecia muito à liberdade que a faculdade me dera. Depois de entrar aqui e perceber que eu vivia em uma pequena bolha, decidi que não queria mais ser a mesma menina de quinze anos que odiava seu próprio corpo, cabelo, cor. E a mudança havia sido muito mais natural do que eu imaginava.
- Seu namorado vem? - Questionei enquanto atravessávamos a rua para esperar pelo circular que nos levaria até o instituto de engenharia. A roda de hoje seria lá. Mês passado havia sido na biologia.
- Não. Ele foi para casa, está cansado.
Quando chegamos ao ponto da engenharia, senti algo dentro de mim reclamar. Um nervosismo repentino me tomou.
- Está tudo bem? - perguntou preocupado - Se quiser, podemos ir embora.
- Não, não. Está tudo certo. - Assegurei - Foi só um mal-estar.
Estávamos há três horas no samba e eu estava mais suada do que poderia imaginar ser capaz de suar. havia dançado comigo e rodado por todo o chão asfaltado ao som de nossas músicas favoritas.
- Por que não viemos aqui antes? - Perguntei quando nos sentamos à mesa com seus outros amigos. Vivian, Belú, Fagner e Belinha estavam tomando seus refrigerantes com um sorriso. Menos Belinha, pois era maior de idade. Ela tomava uma long neck.
- Isso aqui é incrível, não é? - Vivian questionou com um sorriso enorme.
- Eu amei. Vocês também são incríveis. - Limpei meu suor da testa com um guardanapo. Tinha certeza de que minha maquiagem estava borrada, mas mal me importava. sorria para mim.
- Eu falei…
- Não começa, . - Ameacei com um tom brincalhão - Só te dou um desconto hoje porque você fez o gol da vitória. - piscou para mim e me mandou um beijo. Se ele soubesse o quanto esses pequenos gestos me fazem gostar dele ainda mais...
- Quer dançar? - Fagner me convidou e sorri. Ele tinha o black power mais lindo que eu já havia visto. Aceitei seu convite e fui com ele para um canto mais afastado da roda.
Eu não conhecia a música que o grupo tocava, mas dancei mesmo assim. Fagner me girou e me guiou de um lado para o outro. Virei-me de costas para ele em um momento e senti suas mãos puxarem nossos quadris. Por incrível que pareça, a sensação não me intimidou. Eu sequer me reconheci naquela hora.
Quando a música acabou, permaneci agarrada ao corpo de Fagner. Sua boca se direcionou ao meu ouvido e senti um arrepio me percorrer da cabeça aos pés.
- Você é linda pra caramba. - Sussurrou. Senti minhas bochechas ameaçarem ficarem rubras.
- Você também. - Respondi sem saber o que dizer. Fagner riu e me virou para si. Encarei-o e meus braços se apoiaram em seus ombros. Nossos olhares se conectando, mas não consegui sustentar por muito tempo. Fagner levantou meu queixo e se aproximou. Senti uma antecipação em minha barriga quando ele se aproximou para me beijar, mas fui tomada por uma ansiedade grande demais. Afastei-me rapidamente.
- Desculpa. - Murmurei - Eu não gosto de beijar em público. - Afirmei. Fagner assentiu. Não parecia chateado.
- Mas você queria me beijar? - Questionou. Assenti, mas não era verdade. Quer dizer, eu acho que não era.
- Você é realmente gato pra caramba. - Fagner riu e passou a mão por meu ombro.
- Obrigada, princesa. - Beijou minha bochecha rapidamente quando chegamos perto da mesa. e Belinha haviam sumido.
Uma sensação ruim se apoderou de mim. Eles deveriam estar se beijando em algum lugar. Segurei o aperto na garganta. Eu não tinha direito nenhum de me sentir mal. Então, por que me sentia?
não gostava de mim, obviamente, e eu tentava ao máximo lidar com meus sentimentos desde que assumira, há duas semanas, que eu gostava dele. Eu havia me afastado, sabia disso. também sabia, mas não havia questionado nada.
- Onde está? - Perguntei como quem não quer nada enquanto tomava um gole do refri.
- Não sei. Ele e Belinha foram juntos. - Um sorriso malicioso tomou conta do rosto de Fagner.
- Garoto ligeiro. - Ele riu e os outros o acompanharam, mas eu não consegui rir. Foi mais forte do que eu.
- Vou ao banheiro. - Anunciei e agradeci a oferta de companhia das meninas para irem comigo, mas disse que iria ligar para minha mãe. Ela deveria estar preocupada.
Caminhei para dentro do bar familiar e acenei para a mãe de . Dona Figueiredo estava no balcão ajudando. Era uma cozinheira de mão cheia. Era sócia do bar e havia chamado os grupos de samba para tocar toda sexta há quase um ano, mas nunca havia deixado participar. Dizia que ele pegaria gosto fácil por tudo aquilo e negligenciaria seus estudos.
Passei os olhos por todo o interior, mas não vi os dois. Balancei a cabeça e controlei meu instinto de ciúmes. Odiava me sentir daquele jeito, insegura. Eu não sou ciumenta, mas a sensação de que poderia estar beijando Belinha simplesmente me fez querer chorar.
- Calma. - Acalmei a mim mesma quando entrei no banheiro. Comecei a ouvir alguns barulhos vindo de uma das cabines e arregalei os olhos ao perceber que eram beijos.
Nossa, no meio do banheiro?
Balancei a cabeça e comecei a lavar as mãos e passar água na nuca. Sequei minhas mãos e permaneci em silêncio. O barulho da cabine também havia sumido. Será que eu estava ouvindo coisas?
Tive minha resposta quando vi Belinha sair da cabine primeiro. Seus olhos arregalaram em minha direção, ao passo que me senti pronta para sair correndo. Eu sabia quem sairia atrás dela. E aquilo quase me dilacerou.
- Está tudo limpo? - Surpreendi-me ao ouvir uma voz feminina atrás dela e uma garota branca dos olhos verdes sair.
Eu havia visto essa mesma menina do outro lado da roda junto com alguns adultos. Abri a boca e fechei algumas vezes.
- Por favor, não conte a ninguém. - Belinha se adiantou.
- Mas não tenho o que contar. - Assegurei-a com um sorriso - Fique tranquila. Eu só-
- Achou que fosse ? - Questionou com a sobrancelha arqueada. A menina loira passou por nós duas e saiu do banheiro, mas não sem antes fitar os olhos de Belinha com um sorriso.
- Como você sabe? - Perguntei debilmente. Belinha deu de ombros.
- Eu só percebi. Toda vez que eu e ele íamos dançar, você ficava toda estranha. Mas eu entendo, é um gato. - Piscou para mim e lavou as mãos na pia ao meu lado. Talvez estivesse apenas ganhando tempo.
- Vocês dois não ficaram? - Perguntei com toda a coragem que ainda me restava.
- Não. - Riu pelo nariz - Ele é gato, mas não é meu tipo. - Arqueou a sobrancelha para mim e assenti.
- Ele é o meu. - Confessei e encostei a cabeça contra os azulejos.
- Eu acho que ele gosta de você. - Ela secou as mãos.
- Não, ele é assim com todo mundo. Digo, ele é sociável, divertido, engraçado. Fala até com a parede, se possível. Ele é um amor com todos. - Belinha assentiu.
- Pode ser. Não sei dizer, conheço-o há pouco tempo. Mas desejo toda a sorte para você. - Sorriu - E obrigada por manter segredo. Ainda não estou pronta para contar a eles. - Olhou para a porta atrás de nós.
- Fica tranquila. - Assegurei.
- Não sei se eu deveria dizer isso… - Ela iniciou - Ai, já que comecei, vou dizer. Mas ele viu você e Fagner dançando. Acho que todos vimos - Ela riu levemente - E saiu.
Processei aquela informação. Talvez ele quisesse apenas um pouco de ar.
- Obrigada. - Agradeci a informação.
Voltamos juntas pelo bar. não estava em lugar nenhum.
- Vou falar com a senhora Figueiredo. - Disse a ela e desviei-me até o guichê. A pele negra da mãe de era ainda mais linda quando ela usava amarelo, seu uniforme. Sorri para ela - A senhora viu ?
- Ele subiu. Deve estar no quartinho lá em cima, querida. Não me avisou o porquê, apenas subiu. Pode subir se quiser, apenas não demore. - Advertiu e assenti - E diga a ele que se for para deixar os amigos sozinhos e ficar de frescura, nunca mais o trago para cá. - Agora parecia mais séria. Subi as escadas na lateral do balcão ao abrir a pequena porta de madeira.
Estava totalmente no escuro, já que o quartinho também estava com a porta fechada. Tropecei em um degrau e xinguei quando meu joelho atingiu o chão. Subi o restante dos degraus e bati à porta.
- Pode entrar! - Ouvi a voz de e segurei a maçaneta, tentando ver se estava no local certo.
O quartinho estava escuro, a luz não estava acesa. Do lado direito, uma cama de solteiro se estendia. Do lado esquerdo, havia uma pequena escrivaninha cheia de papéis e com uma cadeira giratória em frente. No extremo norte do quarto, estava virado para a janela aberta. Adaptei meus olhos por algum momento até perceber que a luz da lua atravessava a janela facilmente. Sua enormidade enchendo o quarto de uma luz sombria e gélida, mas que não combinava com o calor instalado ali. Senti que começaria a suar.
- Por que está aqui em cima? - Perguntei me aproximando.
virou para me encarar.
- Achei que fosse minha mãe.
- Ela pediu que eu viesse e te mandasse descer. - Confidenciei. Não sorri, não demonstrei calor ali, eu estava sentindo uma bomba de sentimentos explodindo em mim.
- Eu já vou. Pode descer também, . Só quis ficar um pouco sozinho.
Permaneci em silêncio, sem saber exatamente como proceder. Quando se virou e percebeu que eu ainda estava ali, apenas suspirou e me chamou com a mão. Aproximei-me lentamente até parar ao seu lado. No andar de baixo, vi algumas pessoas sentadas na calçada em mesas redondas. Riam e conversavam mais afastados do som do samba, que ainda atingia meus ouvidos, mas agora abafado pela porta fechada.
Apoiei-me no parapeito da janela e encarei a lua lá em cima. As estrelas brilhavam ao redor dela, parecia uma dança incrível e majestosa pela qual eu ansiava poder ver mais, mas a poluição não ajudava. Uma brisa gelada atingiu meu rosto.
- Você beijou Fagner? - questionou com a voz baixa. Tão baixa que precisei de um momento para assimilar sua pergunta.
- Não. - Admiti e encarei minhas mãos ainda mais enegrecidas pelo contraste com a escuridão ao nosso redor. permaneceu em silêncio - Por quê? - Questionei. Precisava saber se teria chances. Precisava saber se eu teria que me forçar a esquecê-lo ou não. Estava unicamente nas mãos de . E aquilo me assustava.
- Porque vocês pareciam bem próximos. - Ele deu de ombros. Assenti.
- É, ele é legal.
- Gostou de vir aqui? - Perguntou agora um pouco mais relaxado.
- Sim! Muito. Obrigada, de verdade. Era justamente a distração que eu precisava antes dos vestibulares. - assentiu.
- Espero que minha mãe nunca abra mão da sociedade. Quero que meus filhos possam crescer por aqui. - Abri um sorriso enorme ao imaginar os possíveis filhos de - E espero que você possa trazer seus filhos também. Aí nossos filhos vão crescer amigos.
- Eu gosto disso. Amizade de segunda geração. - assentiu e me empurrou levemente com o cotovelo.
- Coisa de filme.
- Gosto disso.
- Você já falou isso. - provocou, agora me encarando de frente. Virei-me para encará-lo. Ali estava, mais uma vez, o momento como no cinema.
A luz da lua contra seu rosto o deixava parcialmente coberto. Mas assustei-me ao perceber que poderia descrevê-lo, desenhá-lo perfeitamente no escuro. Mesmo sem vê-lo inteiramente, sabia exatamente como ele era. Onde cada traço estava. Cada belo e maravilhoso traço.
- Você está me encarando. - Ele murmurou, mas seus olhos também traçavam cada detalhe do meu rosto.
- Desculpa. - Disse e continuei a encará-lo. Estávamos em um jogo de olhares em que eu definitivamente sairia campeã - Você nessa posição daria uma foto incrível. - Confessei e sorriu.
- Você também. Eu estava pensando a mesma coisa. - Sorri de volta - Eu gosto de você, .
Encarei-o em total choque. Nada havia me preparado para aquilo. Levei mais tempo para responder do que o imaginado, pois começava a se afastar de mim.
- Eu também. - A frase saiu de mim como um soco. Como se admitir houvesse sido uma batalha da qual saí vitoriosa. Meu orgulho sequer importava. Nada além do que havia me dito importava - Eu gosto de você. - Afirmei antes que eu pudesse ter a chance de voltar atrás. Eu sabia que era uma covarde e reviraria aquela cena inteira antes de dormir.
me encarou ainda mais furtivamente, se possível, e aproximou-se mais uma vez. Dessa vez, sua mão foi para a minha cintura. Encostei minha cabeça contra a superfície metálica da janela atrás de mim. colocou sua outra mão em meu pescoço, seu polegar fazendo carinho em minha bochecha com um sorriso.
- Você é perfeita, . - Ele sussurrou e beijou minha bochecha. Cerrei os punhos em antecipação. Estava nervosa e ansiosa. Meu corpo inteiro estava em combustão e o samba ao meu redor parecia longe demais. Tudo estava longe demais.
- Você parece uma explosão de estrelas, sabia? - Soltei o elogio mais débil que consegui emular. Vimos um vídeo na aula de geografia sobre a explosão das estrelas e eu mostrei a assim que saí da sala. Queria compartilhar a coisa mais linda que já havia visto. E ele entendeu minha referência. Por mais infantil e sem noção que fosse, abriu um sorriso ainda maior.
Seu rosto se aproximou do meu, meu corpo inteiro atraído pelo dele. Quando seus lábios aproximaram timidamente dos meus, segurei a barra de sua camisa com força, como se me prender a ele fosse fazer aquilo parecer mais real.
Beijar foi a experiência mais inusitada e mais estranha que já tive. Não sabia como reagir, como fazer aquilo tudo, mas ele me ensinou pacientemente. Colocou minhas mãos em seu pescoço, e aprofundou o beijo. As revistas teen estavam muito enganadas. Beijar era muito mais do que um jogo rítmico.
Todas as estrelas se alinharam sobre nós, o céu girava ao nosso redor e gritamos fogo puro em uma noite tão monótona. Ele transformou tudo em explosão estrelar. E nunca desejei tanto ser atingida pela poeira cósmica que me cercava.
Sua mão tornou-se mais desesperada, segurou minha coxa e levantou um pouco minha perna, tomando ainda mais espaço entre nossos corpos. Puxei-o para mais perto, meus suspiros enchendo o ar ao nosso redor. Segurei a barra seu shorts e arquejei quando ele beijou minha clavícula, os beijos subindo e descendo em meu pescoço, deixando um frio fantasmagórico quando abandonava um local, apenas para queimar no seguinte.
- Sua mãe. - Um lampejo de consciência atravessou minha mente - Ela disse que não demorássemos. Ela vai desconfiar. - Segurei a mão de quando ela começava a subir mais próxima ao meu sutiã. Encarei-o ofegante e ele sorriu, dando-me outro beijo rápido.
- Eu não ligo, . - Seu cabelo estava bagunçado, os lábios tomados por um inchaço que eu sabia ser causado por mim. Aquela era cena mais sexy que eu já havia visto. E eu já tinha assistido muitos filmes de romance antes.
- Eu ligo. - Ralhei, mas a seriedade não chegou aos meus olhos e me rendi mais uma vez ao seu beijo.
Joguei a cabeça para trás e observei a lua de relance. Tive a impressão de que poderia ter piscado para mim. E eu queria que fosse verdade, porque minha nova patrona havia se tornado a memória constante de que os beijos de eram meus guias durante as noites mais escuras.
O som do samba encheu meus ouvidos mais uma vez. Os alunos ao meu redor bebiam e dançavam. Alguns estavam no canto se beijando sem qualquer pudor. Desviei o olhar e encarei a roda de samba. A maioria dos alunos estava ao redor do grupo jovem. Dessa vez, era o grupo de samba da psicologia. Tocavam Jorge Aragão no momento em que chegamos.
- Vamos pegar cerveja. - me guiou até o bar improvisado da atlética.
Pegamos nossas bebidas e fomos em direção a alguns amigos de da engenharia naval. Deixei-me dançar ali, os goles de cerveja ao pouco relaxando meu corpo tenso pelo dia agitado.
Um aluno da psicologia me puxou para dançar e guiei nossos passos, meus pés sambando contra o chão duro. Sorri para ele e afastei-me quando a música chegou ao fim, voltando para .
- A playlist de hoje está muito boa. - Comentei com ele. Um sorriso enorme cobria meu rosto e acompanhou minha alegria.
- Vamos dançar? Eu também amei a playlist!
colocou sua mão em minha cintura, da mesma forma que fazíamos das outras vezes. Rimos enquanto nossos pés dançavam sem exatamente serem guiados conscientemente. Giramos algumas vezes, nossos sorrisos direcionados um ao outro. Balancei meu cabelo e rebolei, ao passo que meu amigo me puxou para perto, nossos quadris balançando juntos ao som do pagode.
me lançou sozinha para frente e me acompanhou de longe, as mãos batendo ao som do ritmo e incentivando meus pés a o seguirem. Foi o que fiz. A música acabou e nos acabávamos de rir, até que olhei para o canto extremo, um local próximo à roda com uma grande quantidade de homens parados.
- O que houve? - me encarou com preocupação latente.
- Nada. Apenas pensei ter visto alguém. - Desconversei e desviei o olhar para seguir meu amigo.
Ele estava ali. estava ali. Após dois anos, ele estava no mesmo espaço que eu.
- Conseguimos! - Gritei abraçada a enquanto ria desesperadamente.
Finalmente havíamos feito nossa matrícula presencial na faculdade de nossos sonhos. Ele em engenharia naval, e eu em jornalismo. Estávamos na semana do trote e era a primeira vez que nos víamos desde que foi anunciado que havíamos passado na segunda fase.
Eu havia ido para Brasília com minha mãe, a fim de visitar meus parentes. E estava no Rio de Janeiro com sua família.
Não namorávamos. Eu havia pedido a ele que não tivéssemos nenhum compromisso no momento, pelo menos verbalizado, pois minha mãe não aceitaria até que eu completasse meus dezoito anos. Ou seja, apenas no final do primeiro ano letivo da faculdade. havia compreendido, apesar de não concordar muito. Aquilo bastou por um momento.
Mas ele havia voltado estranho da viagem. Não estava tão presente. E eu ignorei aquilo por um certo tempo. Estava feliz demais com o que estava acontecendo ao nosso redor.
- Conseguimos, preta. - Ele sorriu e me deu um beijo inesperado.
Por um segundo, achei que tudo estivesse normal. Agarrei-me a ele e andamos abraçados por todo o campus no dia de folga. Nos encontraríamos apenas para a festa que haveria à noite. Voltei aos meus novos colegas de curso e passamos o restante do dia juntos. e eu trocávamos algumas mensagens ao longo do tempo, mas eu estava focada no que acontecia naquele momento.
A sensação de ser a primeira aluna da família em uma universidade pública pipocou meu peito com um sentimento de felicidade imensa que mal cabia em mim. E aproveitei meu momento. Só torcia para que também estivesse aproveitando.
Quando chegamos à festa no final da noite, sorri ao vê-lo de longe. Estava com alguns colegas. Mas meu sorriso morreu ao vê-lo fumando. Franzi o cenho. Mandei uma mensagem e pedi que viesse falar comigo.
“Estou ocupado, .”
Foi a resposta dele. Arqueei a sobrancelha e observei quando seu olhar encontrou o meu. Ele deu mais um trago em seu cigarro e soltou a fumaça em minha direção. Fui tomada por uma onda de revolta e me aproximei dele.
- Podemos conversar? - Questionei ao sorrir para os amigos dele, tentando não torcer o nariz com o cheiro do cigarro.
- Claro, preta. - Ele jogou a bituca no cinzeiro prostrado no chão e seguiu atrás de mim.
- Desde quando você fuma? - Questionei - Você disse que odiava cigarro.
- Agora eu gosto, ué. - Deu de ombros. Afastei-me um pouco.
- , sabe o quanto cigarro acabou com a vida do meu pai e da minha mãe.
- Eu não sou seus pais. - Retrucou raivoso - Meu Deus, ! Você sempre faz isso. Fica me julgando e eu acabo cedendo.
- Julgando? - Questionei sem entender - Você próprio foi quem me disse que o cigarro era o mal da humanidade. E isso foi há menos de cinco meses. Por que está agindo dessa maneira?
- Porque, - Ele me encarou com o olhar mais indiferente que eu poderia receber - Eu estou mudando, assim como você está.
- Óbvio que estamos mudando!
- Então por que não aceita as minhas mudanças? O cigarro é só uma delas, . - Disse como se não fosse nada. E para ele poderia não ser, mas ele sabia sobre a história da minha família. Sabia da história da própria família dele - Eu não sei se isso entre nós vai funcionar. - Ele admitiu. Encarei-o completamente estupefata.
- Você está fazendo isso para poder se ver livre de mim e beijar outras meninas? - A pergunta que rondava minha mente pareceu mais sóbria e forte.
- Não é isso, … É só que, eu não sei, eu quero aproveitar a minha vida universitária. É o momento mais importante de nossas vidas. Eu mal consigo lidar com o drama que está rolando comigo, imagina ter outro com você.
Permaneci em choque ao encará-lo. Mal parecia a pessoa com quem eu convivi durante dois anos.
- Eu trago drama demais para a sua vida? - Vociferei. Àquele ponto, sequer me importava com como eu pareceria.
- Não você. Nós dois. Qualquer relacionamento traz uma carga que eu não estou pronto para carregar. Que eu não quero carregar. Você sequer tem coragem de me apresentar à sua mãe. Não quero estar com alguém que não sabe o que quer.
- Quer saber? Tudo bem. Você está no seu direito. - Levantei as mãos para o alto. O ódio subia até meus olhos e percebi quando quase vacilou - Eu não posso te forçar a nada, não quero te forçar a nada. Não poderia. Espero somente que saiba, , você estragou tudo. Você acabou de estragar qualquer relacionamento que poderíamos ter. Eu falei sobre você para a minha mãe semana passada - Um vislumbre de choque cruzou os olhos de , mas não deixei que ele falasse - Eu disse que estava apaixonada e que queria namorar com você antes dos meus dezoito porque por você valeria a pena. Mesmo que isso implicasse minha família perturbando o meu juízo. - Lágrimas teimosas tentavam subir por meus olhos, mas as segurei - Você está dando desculpas esfarrapadas para justificar seu egoísmo. Porque eu sei que você me ama, então por que diabos está agindo como um bebê? Quando esse seu surto infantil acabar, você vai se arrepender e eu não estarei aqui.
- , eu-
- Chega, . - Falei rapidamente - Eu não quero mais ouvir uma palavra sua. Você já deu seu recado. E eu já te dei o meu. Você, nesse momento, me dá nojo. - Virei-me de costas e caminhei decidida até meus novos colegas.
, um dos meninos que havia me acolhido, perguntou o que estava acontecendo. Expliquei-lhe rapidamente que havia terminado meu rolo com . E ele disse que iria comigo até o metrô se eu quisesse companhia. Neguei. Queria continuar ali. Era a minha semana de caloura. Eu aproveitaria. E eu não levaria o drama de comigo. Ele não era obrigado a carregar meu drama, mas muito menos eu era obrigada a carregar aquele surto egoísta dele.
E por isso, naquela noite, tornei-me uma que eu nunca pensei ser capaz de me tornar.
- É ele? - finalmente me perguntou quando eu terminei minha terceira cerveja. Assenti.
- Pois é. Ele próprio. Eu não imaginei que ele fosse estar aqui. - Dei de ombros. E não imaginava. Estava no meu terceiro ano da faculdade e nunca o havia visto pessoalmente depois daquele dia. Nossos círculos de amigos não eram os mesmos. Eu não gostava de festas universitárias, então nunca o encontraria. Ele amava.
- Você está com raiva?
- Não. - Admiti com honestidade - Já faz dois anos que aquilo aconteceu. Nós simplesmente não somos mais parte da vida um do outro. - Dei de ombros - E isso me afetava, mas agora não mais. Não tem motivo para isso. Eu já me relacionei com outros caras, ele já deve ter se relacionado com outras mulheres. Acontece.
- Você parece madura demais falando sobre isso. Nem parece a menina que eu conheci na calourada.
- Pois é. Nós mudamos muito em dois anos, né? - Ri bobamente e tomei outro gole de cerveja.
- Acho que já deu de bebida, querida. - Ele pegou a cerveja da minha mão e estendeu uma garrafa d’água. Virei o conteúdo de uma vez e passei um pouco de água na nuca.
- Eu quero dançar! Amo essa música! - Exclamei e o puxei novamente para dançar. Sentia meu quadril infinitamente mais solto do que antes. O efeito da bebida me libertando um pouco mais da vergonha que já era minha amiga mais íntima. O som de “Cobertor de orelha” da Turma do Pagode ecoava nos pandeiros e nas vozes.
sambava ao meu lado, nossos passos já eram praticamente sincronizados. Cantei a música animadamente. Todos os alunos ao nosso redor pareciam também amar essa música, pois logo formávamos um coro alto gritando a letra. Mais uma vez, deixei que o corpo de grudasse ao meu e rebolei minha cintura contra a sua. Senti sua mão girar o meu corpo e tropecei levemente, sendo amparada pelos braços fortes de meu amigo, que me puxou para perto.
- Acho que já deu. - ralhou e assenti. Uma leve dor de cabeça me atingiu e sentei-me no sofá que haviam trazido para fora do espaço estudantil. Deitei a cabeça contra o estofado e pensei que talvez já soubesse o que escrever para o professor.
Escreveria sobre como amar foi a experiência mais criativa que meu cérebro poderia processar. As sensações de amor foram tão intensas quanto as de desolação. O mesmo amor doía de felicidade, doía de tristeza. Apenas não sabia como formular aquilo tudo sem parecer uma louca que não superou o ex.
Abri os olhos e fui tomada de melancolia pura quando a lua gigante pareceu me abraçar pessoalmente. Exatamente como no dia em que me beijou pela primeira vez. Tentei me recordar de outros beijos, outros abraços, mas somente o dele me vinha à mente. Era sempre o beijo dele que pairava sobre meus lábios quando minha mente se permitia viajar. Era sempre ele. Sempre seria ele.
Há dois anos o mesmo beijo me assombrava, levava-me à loucura e me fazia achar que jamais seria capaz de encontrar outro beijo como o dele. E isso só me fez sentir raiva de mim mesma. Ele havia me esquecido, por que então eu não conseguia esquecê-lo? Um peso gigante parecia esmagar meu corpo, afundar-me até que a lua me engolisse. Era o peso de ter sido deixada para trás e não conseguir alcançá-lo.
Fechei os olhos cansados, estava decidida a ir embora. Não precisava da memória de que eu não havia superado . Eu não precisava daquilo. estava dentro do espaço estudantil, provavelmente pegando mais água. Eu apenas o esperaria voltar e iria embora. Não queria ir para festa nenhuma. Abri os olhos mais uma vez, a fim de procurá-lo, e quase gritei assustada quando observei parado à minha frente.
- Desculpa te assustar.
Ouvir a voz dele após tanto tempo causou em meu corpo reações químicas às quais eu não estava acostumava. Sua voz estava rouca, funda e adulta. Desviei meu olhar de seu maxilar perfeitamente demarcado e voltei a fechar os olhos, como se aquilo fosse impedir meu coração de permanecer acelerado em meu peito.
- Posso me sentar? - Sua voz foi ouvida após alguns momentos em silêncio, quebrados apenas pelo som do samba.
- Ainda vivemos em um país livre. - Comentei secamente e permaneci de olhos fechados e a cabeça apoiada contra o estofado. Esperava que chegasse logo.
- É, por enquanto. - Ele comentou e permaneceu em silêncio, mas eu estava vividamente consciente de sua presença.
Não havia como não estar.
O corpo de ocupava boa parte do sofá pequeno. Os ombros largos, as coxas grossas e o tronco forte, tudo isso cooperava para que fosse um dos caras mais bonitos que eu já vi. E isso me fazia apenas tentar odiá-lo um pouco mais. Mas eu falhara miseravelmente.
- Como você está? - Ele perguntou. Abri o olho direito e o encarei de soslaio.
- Bem e você?
- Bem.
Resolvi permanecer em silêncio. Se não há o que ser dito, prefiro não dizer. E não diria.
- Não sabia que você estava namorando. - Forcei-me a encará-lo após sua constatação.
- Qual foi, cara? - Perguntei exasperada.
- Ué, só ‘tô dizendo. - Ele levantou as mãos em sua defesa. Agora, sentados um de frente para o outro, percebi o quão mais alto que eu ele era.
- Não, eu não estou namorando. - Falei com a sobrancelha arqueada - Não que seja da sua conta.
- E não é. - Ele afirmou.
Senti-me voltar ao momento em que ele havia dito aquelas palavras duras para mim. E não sentia mais raiva alguma, mas sabia que teria que tomar cuidado com o que diria. Não deixaria saber a influência que ainda tinha sobre mim.
- Bem, agora que sua curiosidade foi sanada, pode voltar para seus amigos. - Apontei para os homens parados atrás da roda.
- Queria falar contigo. - Ele apoiou o braço contra o sofá - E pedir desculpas.
E estava ali. Por muito tempo pensei em como seria quando ele me pedisse desculpas por todas as bobagens que disse. Nos primeiros meses, sonhei que ele me tomaria nos braços e que me beijaria novamente. Depois, comecei apenas a desejar que ele se desculpasse e voltasse para sua vida normal. Agora, sequer pensava que seria possível ouvir um pedido daqueles vindo de sua boca.
- Pelo quê? - Instiguei e encarei minhas unhas.
- Por tudo.
- Tudo é muita coisa. - Encarei-o.
- Por ter te machucado. Por ter diminuído seu amor por mim. Por ter agido como uma criança quando a sua amizade era a coisa mais importante do mundo para mim. Peço desculpas, de verdade. - Assenti em silêncio, processando suas palavras. E senti um peso sair de meus ombros.
- Você já estava perdoado antes de sequer pedir desculpas. - Disse com um sorriso triste - Eu não sou uma pessoa rancorosa, . Você já descarregou o peso dos ombros, fica tranquilo.
- Não fiz isso por minha causa. - Ele arqueou a sobrancelha - Não foi para minha própria consciência. Eu errei. Estou pedindo desculpas pelo meu erro.
- Hm. Ok. - Permaneci encarando seus olhos e dei uma risada fraca - Estou me sentindo infinitamente mais leve. Bem, estou indo embora. Foi bom falar contigo. - Preparei para me levantar quando segurou meu pulso.
- Posso te pedir um favor antes de você ir?
- Pode pedir, mas não posso prometer que vou cumprir. - Ele pareceu ponderar, mas suspirou.
- Só quero dançar uma música com você. E depois te deixo em paz.
Eu permaneci em silêncio. As consequências que viriam a partir das minhas próximas palavras poderiam ser mortais para mim. Poderiam levar meu coração ao extremo da saudade. Eu sabia que aquilo não era certo.
- Uma só.
E mesmo sabendo que eu me arrependeria daquilo, não tinha outra escolha. Meu coração não me deu outra saída.
- Espera aí. - Ele comemorou e saiu andando apressadamente até a roda de samba. Observei que ele sussurrava com um dos homens de dread assim que a música anterior acabou.
Encarei minhas próprias mãos para esconder a vergonha quando percebi que “Procura no Google” da Turma do Pagode começou a ter seus primeiros acordes tocados.
Balancei a cabeça com um sorriso confuso quando puxou meu corpo para cima e me levou para dançar.
Observei aparecer e sinalizei para ele que esperasse um pouco. O meu amigo apenas concordou com um aceno.
- Não encoste muito em mim. - Murmurei quando sua mão segurou minha cintura. Automaticamente, senti seu toque afrouxar - E não tente nenhuma gracinha.
O tronco de estava coberto por uma camiseta preta que mostrava facilmente seus bíceps de laboratório (vulgo academia), as coxas grossas estavam cobertas por uma calça jeans. Controlei o impulso que meu corpo emitiu para grudar meu corpo ao dele.
- Eu não sou bom com palavras. - Ele sussurrou próximo ao meu resto - E sei que você ama esses caras, então acho que talvez eles possam expressar um pouco melhor o que eu sinto.
Permaneci em silêncio por um tempo, a letra da música abraçando meu corpo, minha mente.
mas cê vira assunto
O mundo conspira pra gente tá junto”
- Pode me segurar direito. - Cedi e um sorriso enorme cruzou o rosto de . Encostei meu rosto ao peito dele, sentindo seu coração tão acelerado quanto o meu. Ele estava ali, mas eu não sabia por quanto tempo.
- Eu sinto tanto a sua falta, . - Ele admitiu baixinho contra meu ouvido - Eu sinto tanto por ter agido como uma criança mimada.
- Sim, você agiu.
- Me dá uma chance de ser minha amiga, por favor?
E pra evitar qualquer sofrimento
Já tô concordando antecipado
Tentei me afastar, mas 'tô errado”
- Não sei, … - Admiti, parando de me segurar a ele para encará-lo - Você me machucou de verdade.
- Eu sei. - Os olhos de expressavam dor que eu não esperava enxergar - Eu sinto muito. - Observei alguns traços de lágrimas surgirem em seus olhos e tentei esconder meu choque - Te machucar foi a pior coisa que eu já fiz. Eu sinto tanto.
- Eu preciso mais do que palavras.
- Eu sei. - Ele segurou uma mecha do meu cabelo e rodou em seus dedos. Fechei os olhos por um instante, sua mão pairando tão próxima ao meu rosto quente - E por isso eu quero uma chance do zero. Eu quero uma chance de te mostrar o que mudou de dois anos para cá.
- Como sei que você mudou de verdade?
- Você não mudou nesses últimos dois anos, ? - Meu apelido em seus lábios pareceu o doce mais sacana possível. Segurei o impulso de querer montar em cima dele e beijá-lo. Estava ficando fisicamente sufocante não o poder tocar.
- Mudei. Sim, você tem um ponto. - Admiti a contragosto. A música já havia mudado, as pessoas ao nosso redor já começavam a ir para as festas no campus. Eu sabia que meus amigos e também nos estavam esperando para irmos. Eu havia prometido que iria - , por favor, prometa que não vai agir daquela maneira de novo. Eu não tenho mais idade para lidar com aquilo. - riu pelo nariz e assentiu.
Percebi que nossos corpos se moviam com a música, mesmo que não soubéssemos qual era.
- Eu prometo, preta. - Um arrepio cruzou meu corpo. E percebeu, pois, seu semblante fechou e seu rosto encarou o meu com faíscas pairando por seu olhar.
- Você não tem o direito de me chamar assim, . - Murmurei, mas minha voz parecia um fiapo. Minhas pernas estavam prestes a virar geleia. Como se, de repente, meu corpo inteiro estivesse muito mais do que consciente da presença de .
A ponta de seus dedos estava contra minha cintura coberta pela saia, o rosto curvado em direção ao meu, os olhos focados no meu rosto, o sorriso tomando minha visão completamente. E ali percebi que meu amor por não havia sumido, havia se modificado, amadurecido, mas ainda estava ali. Tão imenso e presente quanto a lua pairando acima de nós dois. Por vezes, parecia sumir, ofuscado por uma luz momentânea cheia de gases químicos que fazia parecer que a luz do luar jamais voltaria. Mas ela estava ali. O tempo todo, esperando para aparecer.
- Por que depois de tanto tempo? - Perguntei após colocar minha mão contra seus ombros.
- Eu demorei demais. - Ele admitiu e passou o polegar por minha bochecha. Fechei os olhos. Estava caindo nas graças dele, mas meu coração estava estranhamente em paz com isso - Estava com medo. Medo de você me rejeitar. Achei que havia te superado e isso havia sido o suficiente para achar que me desculpar faria apenas mais mal do que bem. - Deu de ombros - Mas eu nunca te esqueci. Nunca. Nunca fui a um pagode sem te procurar. Assistir ao jornal à noite sempre foi difícil, porque sempre me lembrei do quanto você desejava ser âncora.
- Eu te disse isso quando viramos amigos. - Murmurei - Já tinha até esquecido.
- Eu não esqueci, . - Ele assegurou - Eu nunca vou ser capaz de te esquecer. Sei que posso viver sem você, esses dois anos me mostraram isso, mas agora, mais do que nunca, eu tenho certeza de que eu não quero viver sem você.
Desvencilhei-me do corpo de e permaneci levemente distante, meu corpo reclamando da falta de carinho e dengo que ele me oferecia, mas aquilo tudo me impedia de pensar.
- Você escolheu viver sem mim, mas me forçou a viver sem você. É bem diferente. - Comentei ao encará-lo - Eu nunca quis isso. E você precisa entender que você fez uma bagunça com meu coração - Admiti - E que isso me mata porque eu fui rejeitada e mesmo assim não consegui te deixar. - Senti meu peito doer - E eu nunca mais quero te perder se você decidir ficar. Por favor, se você for embora, não nutra esse sentimento.
- Eu prometo.
- Então - Estendi a mão com um sorriso enorme - Amigos. É um prazer te ter de volta no clube dos Neguinhos Bolsistas. - riu ao apertar minha mão.
- É um prazer estar de volta, preta.
Ele me puxou para um abraço e senti como se as explosões estelares estivessem voltando para casa. Para meu peito. De onde nunca deveriam ter saído.
Quando, no dia seguinte, me chamou para irmos tomar sorvete, caminhei decidida a deixar tudo para trás. Como já havia me empenhado em dois anos a deixar. Ao vê-lo sorrir e me dar um beijo na bochecha, senti como se realmente não valesse a pena guardar toda a mágoa que eu achava ser capaz de manter dentro de mim. Simplesmente não valia a pena.
havia crescido, havia se arrependido, e aquilo mostrou muito sobre o garoto orgulhoso que ele costumava ser. O garoto que preferia mudar a situação inteira para parecer certo, tudo isso para não pedir desculpas.
- Por favor, diga que você assistiu ao Spiderverse, . - Ele suplicou quando colocamos nosso papo em dia. explicara que, naquele verão em que estava longe, descobriu que seu pai havia engravidado uma amiga de mamãe, e que aquela situação inteira havia feito mal a ele. E ele não quis contar. Absorveu tudo para si e simplesmente me afastou. E aquilo havia custado nossa relação. Toquei sua bochecha e tirei um pedaço de casquinha de sorvete que estava ali. Senti que poderia explodir de amor novamente, mas não contei a ele. Ainda não estava inteiramente pronta, e não me senti mal com aquilo. Não há mal em não estar pronta. Cada passo seria tomado com precaução por amor a nós dois, por amor ao meu coração emocionado que insistia em se jogar de um precipício sem realmente se importar com o que o esperava.
E me esperaria. Eu sabia que sim. Nós estávamos destinados a nos encontrarmos toda noite, quando o sol se pusesse e a luz da lua voltasse a nos fragilizar com seu esplendor melancólico.
“São Paulo, 13 de abril de 2019
Querido Alguém,
Achei que deveria por em palavras o que minha boca é incapaz de formular. Afinal de contas, você diz ser péssimo com palavras, mas é capaz de emular as mais doces palavras de amor e as mais duras palavras de ressentimento. A mesma boca que disse me amar, também disse querer me afastar.
Você foi como a explosão de estrelas que invadiu meu pequeno universo. Você foi como aquela luz que eu implorei para ter mais uma vez a me iluminar.
E isso me trucidou. Você fez com que a colisão de planetas parecesse algo lindo, ao invés de assustador. Talvez seja o efeito de estar apaixonada pela lua. O brilho frio que esconde o calor tremendo calor solar.
Então, escrevo a ti, Lua, para saber se poderia devolver meu coração. Pois ele é teu. Sempre foi teu. E toda noite, apenas tive a impressão de tê-lo emprestado por ti.
Achei que pudesse controlar a posse da Lua sobre meu lado esquerdo do peito, mas, ó Lua, foi apenas ilusão pensar por algum segundo sequer que eu tinha domínio sobre meu próprio coração quando ele por inteiro pertence a você.
Então, apenas um pedido faço, que cuide bem dele, que o continue a assombrá-lo com as sombras da beleza das noites de verão, que teus adornos sejam meus companheiros enquanto eu viver. Porque, Lua, sou apenas pó estrelar esperando para ser segurado por ti em um beijo doce e lunar.
O beijo da Lua é o que eu espero, é com o que eu sonho.”
Fim.
Nota da autora: Olá, guapas! Obrigada por terem lido. Esse enredo tem o meu coração todinho hahahaha espero que tenham gostado tanto quanto eu!
Se quiserem mais uma dose, fiquem à vontade para ler minhas outras histórias ;)
Beijinhos e fiquem com Deus.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Se quiserem mais uma dose, fiquem à vontade para ler minhas outras histórias ;)
Beijinhos e fiquem com Deus.