Prelude
Eu não consigo pensar em outra expressão que possa definir minha situação nesse momento. Escondida no meu closet, depois de entrar sorrateiramente em casa pelos fundos, apenas para ver um maldito videoclipe. Como eu cheguei a esse ponto? Em um dia eu estava encontrando um vídeo qualquer, e hoje estou completamente viciada em qualquer coisa que possa envolver Bangtan Sonyeondan. É um pesadelo e ao mesmo tempo uma benção.
Há mais ou menos um ano, eu tenho escondido da maior parte do mundo, que sou uma A.R.M.Y.: Adorable Representative M.C for Youth (Adoráveis Apresentadores Representantes da Juventude). Há um ano, eu venho chorando, sorrindo, votando e lutando no exército de fãs de sete garotos à prova de balas. Não posso dizer que é um trabalho fácil, mas também não posso dizer que quero deixar essa vida de lado.
É como um vício. Em um momento, você só experimenta. Acha que está sobcontrole, que você pode parar quando quiser e que não está te afetando. Você vai aumentando as doses, como se um vídeo ou uma música só, não fosse o suficiente. Você quer mais. Alguns dias sem uma foto, sem notícias ou um tweet, parecem a mais violenta e terrível abstinência. Quando dá por si, está tentando aprender coreografias em frente ao espelho, fica tentando identificar o que eles dizem, tentando cantar e por fim, já está gastando todo seu dinheiro com materiais, conteúdo exclusivo, ingressos de shows. Uma foto sequer faz seu coração disparar, as mãos suarem e você imagina todo um futuro perto de alguém que sequer esbarrou com você na vida.
Esse é o fundo do poço. É onde eu estou quando nos referimos à BTS. Na escuridão de cinco metros quadrados, entre um monte de cabides e sapatos, me escondendo até mesmo dos empregados, esperando por “Blood, Sweat and Tears”, a música que será lançada um dia antes do novo álbum, “Wings”, sair.
Os últimos dias foram difíceis. Anúncios de solos no álbum, um monte de short films individuais, uma live com saudações no feriado de Chuseok, um trailer com J-Hope dançando maravilhosamente, as fotos do novo conceito, a tracklist, um teaser que conseguiu me dar arrepios, um preview show com explicação sobre as músicas e uma música dedicada a nós, fãs. Eu ainda estou me perguntando como sobrevivi. Não me lembro de estar tão nervosa desde minha primeira apresentação oficial com a flauta.
11h59min.
É isso, é agora. Só faltam alguns segundos. Eu preciso respirar fundo, me acalmar. Preciso de toda minha atenção para isso. Preciso estar completamente focada. Respira, inspira. Okay. Eu estou calma. Preparada. Tudo bem, eu não estou, mas posso fingir.
12h00m.
Saiu. Agora eu só preciso me manter firme durante todos os… seis! Nossa, seis minutos! Okay. Eu consigo. Vai ficar tudo bem. É só dar play.
First Act
- Baek YooNa? - A professora me chamou em um tom grosseiro. Droga, me distraí de novo. - Quantas vezes teremos que repetir a peça devido ao erro das flautas transversas? - Ela perguntou, fazendo JunHo e DoYoung me olharem com raiva. Olhei para os outros colegas da banda, todos cansados, querendo ir pra casa e eu era o que os estava impedindo.
- Desculpe, professora. Não irá acontecer outra vez. - Eu respondi, curvando-me em respeito.
- Mais um erro e você fica além do horário para praticar. Estamos entendidas?
- Sim, professora. - JiSoo, sentado ao piano, me lançou um olhar piedoso e sinalizou um "fighting" antes que a professora fizesse a contagem do início outra vez.
***
Eu gostaria de dizer que não errei mais a peça e que todos pudemos ir para a casa no horário de sempre. Pena que não foi o que aconteceu. Ainda estou na sala de música, a escola praticamente vazia, se não fosse pelos poucos alunos sendo castigados e professores trabalhando além do horário.
Depois que todos foram embora, agradecendo aos céus que a professora se cansou dos meus erros idiotas, eu consegui tocar toda a peça. Sem um erro sequer. Duas vezes. Seria cômico, se não fosse trágico, mas eu dou crédito ao método que eu mesma desenvolvi para conseguir: recompensas.
Se eu tocasse pelo menos duas vezes sem errar, poderia entrar no fancafe e ver o que os meninos tinham postado hoje, ler algumas teorias sobre o MV. O que posso dizer? Funcionou. Tão bem, que já faz mais de dez minutos que estou lendo as postagens. Também já olhei o twitter e salvei algumas fotos.
- Você não devia estar praticando? JiSoo disse que a professora te deixou de castigo hoje. - HyunJi entrou na sala, assustando-me quando eu estava prestes a entrar no V App para assistir “Blood Sweat and Tears” de novo.
- Você me assustou! Não sabe bater? - Eu reclamei, bloqueando o telefone. - E você? O que está fazendo aqui?
- Discuti com o professor de matemática quando ele me chamou ao quadro para fazer o exercício. Estou responsável pela limpeza da sala até o final do trimestre. - Ela deu de ombros. Yoo HyunJin é minha melhor amiga, mas eu juro que não a entendo. Por que estudar nessa escola tão elitista e rígida, quando ela é o completo oposto disso? Nossos pais são ricos, podem pagar qualquer escola que ela queira, inclusive no exterior, por que essa? - O que aconteceu com você hoje? É a flautista principal e JiSoo disse que você estava errando notas básicas.
- Eu estava distraída. - Peguei minha flauta novamente. Eu ainda estava de castigo e faltava pouco mais de uma hora para acabar o horário.
- Distraída com o quê? - Ela perguntou e eu só dei de ombros.
Eu perguntei a HyunJi o que ela achava de BTS uma vez. A reação não foi das melhores.
"- Você sabe o que eu acho desses grupinhos fabricados. Para mim, eles só são estimuladores de hormônios adolescentes que farão chefes obsessivos lucrarem fortunas. Infelizmente, não dá pra gostar disso. Por quê?
- Nada. Ouvi umas meninas comentando no banheiro, fiquei curiosa. Só se ouve música clássica lá em casa, lembra?
- Eu já quis te apresentar rock, Yoona. Você se recusou. Inclusive, os japoneses."
Depois dessa resposta, eu nunca mais falei nada com ela. Eu não precisava de mais uma pessoa para julgar minhas escolhas. Meus pais já eram o suficiente. Eles faziam isso muito bem.
- Você sabe que pode me contar qualquer coisa, não sabe? - Ela disse e eu despertei, olhando-a. - Somos amigas desde os 7 anos. Eu posso ouvir qualquer coisa sua. - Eu dei um sorriso amarelo.
- De verdade, não é nada, HyunJin. Eu só estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo.
- Mas você não está distraída assim desde hoje. Faz semanas que você não conversa direito, que vive nesse celular, quase não faz mais nada com a gente. Estamos estranhando, Yoona. - Eu a olhei, estranhando.
- JiSoo falou alguma coisa?
- Ele falou que você anda dispersa, só isso. Que não sabe o motivo, mas me disse para conversar com você. Nós só queremos você bem. - Eu sentia a preocupação nas palavras dela, mas sabia que ela também não entenderia.
- Tudo bem, HyunJi. Eu estou bem, só muito pressionada. É nosso último ano, os recitais ficam cada vez mais difíceis, minhas notas caíram um pouco... - Ela revirou os olhos.
- Ah claro, esqueci que a "senhorita número um" agora é a "senhorita número dois" da escola. Fala sério, Yoona. Dois pontos não são tão ultrajantes assim. - Eu sorri leve.
- Meus pais não acham isso. - Eu disse simples. - Mas deixa isso pra lá. Eu preciso voltar a praticar. O festival está chegando e se eu errar mais do que já estou errando, os meus companheiros de orquestra vão me matar e a flauta vai estar transversa na minha garganta.
- Deve ser uma morte horrível. – Ela fez uma careta e eu ri. - Eu também preciso separar o lixo. Malditas funções matemáticas. - Ela levantou, indo em direção à saída, enquanto eu posicionava a flauta novamente. - YooNa? - Eu a olhei. - Fighting! - Eu sorri, vendo-a sair.
Eu gostaria de ter com quem falar sobre isso na vida real, mas isso é difícil quando se estuda em uma escola específica para musicistas clássicos. Yoo HyunJi também é pianista, por livre e espontânea pressão dos pais - ela foi obrigada a aprender a tocar um instrumento desde criança. A maioria aqui foi obrigado também. Todos temos um momento de "estar de saco cheio", que são rapidamente esquecidos depois que pais ameaçam cortar mesadas ou cartões de crédito. Temos vidas fúteis demais para não seguirmos os padrões de filhinhos ricos da alta sociedade. Um bando de mimados com colheres de prata em nossas bocas desde que aprendemos a comer. Eu não posso ser hipócrita e dizer que não faço parte desse grupo, porque faço. Talvez um pouco menos fútil que os demais, mas ainda dentro da gaiola de ouro.
Baek YooNa, 17 anos, toco flauta transversa desde que consigo me lembrar e sou herdeira de uma rede de empresas no ramo de tecnologia. Essas são as únicas coisas que consigo pensar quando tenho que falar de mim mesma para as pessoas. O que elas dizem e pensam depois disso é total responsabilidade delas.
O que eu acho de mim mesma?
Eu acredito ser somente o que esperam que eu seja. Talvez seja uma coisa meio depressiva de se dizer, mas torna-se inevitável quando você cresceu agindo dessa maneira. Como flautista, eu tenho que ser a melhor. Saber cada nota, ler cada partitura, saber a hora certa de mexer cada dedo e a maneira certa do sopro, além da expressão serena. Como herdeira, eu tenho que ser exemplar. Não causar problemas, não ser escandalosa, nem desinteressada. Ser humilde na medida correta, ajudar causas, interessar-me pelos negócios e dar meu máximo para tornar-me alguém digna de assumir o lugar do meu pai na empresa, ou elegível o suficiente para me casar com alguém que cumpra esse papel. Tornar-me alguém que as pessoas tenham como modelo. Fazer parte da elite. Sempre. E sorrir.
O que eu acho de tudo isso? Cansativo. É exaustivo estar sempre tentando ser uma pessoa projetada e nunca passar de um projeto, sempre precisando melhorar, sempre precisando de ajustes, nunca sendo bom o suficiente. Tirando todos os rótulos, talvez eu até fosse alguém normal ou algo que chegasse o mais perto disso possível.
Quem eu gostaria de ser?
Baek YooNa, 17 anos, uma adolescente nervosa com os exames e indecisa com qual faculdade fazer. Alguém que consegue andar de metrô e comer comida de rua sem ouvir um enorme sermão sobre isso. Que toca um instrumento por hobby, e não como obrigação. Uma ARMY que sonha em encontrar com seus ídolos, como qualquer outra. Na verdade, só poder ouvir algo além de música clássica e melódica já seria o êxtase. Parece tão simples, não é? Eu bem gostaria que fosse.
Voltei à flauta, soprando as notas da peça que apresentaríamos em um mês. Eu gosto de ser flautista. Gosto do som melódico e metálico, gosto de produzi-lo e do olhar da plateia toda vez que toco. Como se fosse algo divino, mágico, emocionante. Olhares brilhantes, às vezes até algumas lágrimas, a sensação de que o que eu estou fazendo tocou o coração de alguém... Ter a impressão de que eu a estou praticamente hipnotizando com uma simples melodia, é o que me faz continuar tocando. Sentir-se valorizado por algo que você faz é uma das coisas mais almejadas, não? Não se abre mão disso quando se conquista algo assim. Ser flautista me proporciona isso. Por mais maluco que esses pensamentos possam ser. Devo estar parecendo uma maníaca. Ficar na escola além do horário deve fazer isso com meus neurônios.
Como se fosse programado, o sinal tocou, avisando o fim do horário de castigo. Meu telefone tocou no minuto seguinte. O ahjussi conseguia ser assustadoramente pontual.
- Alô-ou. – Disse em uma voz fofa, rindo em seguida.
- Senhorita, já estou aguardando no estacionamento. – Ele respondeu em seu tom sério, mas protetor. Kang Gookhwan ahjussi estava em nossa família há mais tempo que eu pudesse imaginar. Era como ter um avô me levando a todos os lugares que eu precisasse, apesar de toda a seriedade e jeito turrão de um homem do sudeste. Ele sempre foi uma das poucas pessoas com quem eu conseguia ter mais de 10 minutos de conversa sadia dentro dos limites da minha casa.
- Claro que está, ahjussi. O senhor é tão pontual, que me pergunto se tem sangue britânico. Certeza que nasceu em Yeongchon? – Eu brinquei, ouvindo um pequeno riso nasalado do outro lado da linha.
- Ficarei feliz em mostrar meus registros de nascimento assim que possível, senhorita. Por enquanto, a estou aguardando para levá-la para casa. – Ele caprichou no sotaque, como sempre fazia quando estava nervoso, ou queria me fazer rir.
- Já estou descendo, ahjussi. Obrigadinha. – Voltei a brincar com um tom infantil, ouvindo a risada dele antes de desligar. Limpei a flauta, coloquei-a no estojo e juntei minhas coisas, caminhando pela escola praticamente vazia até o estacionamento. Era hora de voltar para casa.
***
- Você sabe que está sendo irracional, ahjussi. Não tem como seu bias ser o Suga. Você só está dizendo isso porque ele é de Daegu. - Eu disse enquanto ele estacionava em frente a casa.
- Como você pode ter tanta certeza, senhorita?
- Porque eu vejo o olhar do senhor quando eu mostro as fotos do Jimin. - Eu disse rindo e ele bufou, resmungando qualquer coisa que eu não pude identificar, antes de sair do carro. Eu sempre tinha que esperá-lo abrir a porta para mim. Minha mãe fazia questão. Eu podia falar de BTS com o Ahjussi e, apesar dele não entender nada, guardava segredo. Ele só sorria e me deixava ouvir as músicas no carro. Isso o fazia conhecer e cantar algumas delas também. "Boy in Luv" principalmente. Acho que é a favorita dele.
- Discutiremos isso amanhã, à caminho da escola, senhorita. - Ele encerrou o assunto assim que abriu a porta. - Por agora, terá que se contentar com a minha resposta e enfrentar seus pais. Parece que não estão nada felizes com suas horas extras na escola. - Eu saí do carro e respirei fundo, já imaginando o discurso que teria que enfrentar, antes mesmo do jantar.
- Ahjussi, algum dia eu conseguirei ser só uma garota normal? - Perguntei encarando a arquitetura exuberante da casa onde vivo durante toda a minha vida. Sei que tenho uma vida privilegiada, uma vida que muitos sonham em ter. Mesmo assim, não posso deixar de imaginar como seria ter uma vida completamente diferente da que tenho. Uma na qual quem sou importe mais do que o que tenho.
- Ninguém nesse mundo é normal, senhorita. Não engane a si mesma. - Ele respondeu, fazendo-me encará-lo. - Seja lá o que a senhorita considere "normal", pode ter certeza de que também há controvérsias. Portanto, - ele bagunçou minha franja em um gesto carinhoso. - não destrua muitos neurônios. Você irá precisar deles no futuro. - Por isso eu o adoro. Ahjussi sempre tem algo sábio a dizer, com seu sotaque carregado e sua preocupação latente. - Agora vá. Seus pais a esperam.
- Obrigada, Ahjussi. - Eu disse antes de caminhar em direção a casa. Estava na hora de enfrentar meus pais e seus discursos repetitivos sobre como a herdeira de um conglomerado deve se comportar. Acho que eu poderia até recitá-los de cor. Eu os ouvia toda vez que pisava fora da linha que eles desenharam para mim. Os limites da minha gaiola de ouro.
Entrei na sala de estar, vendo meu pai escorado na lareira desligada, enquanto minha mãe estava sentada no sofá, com sua postura perfeita. Oh, ótimo. Os dois uniram-se para fazer isso. Merda.
- Estou em casa. - Cumprimentei, da maneira mais educada possível.
- Finalmente, não é mesmo? - Papai começou, seu tom bastante frio, como a sinfonia que tocava baixo ao fundo, como trilha sonora desse momento. “Inverno”, de Vivaldi, parecia dramático o bastante para mim. - Você pode imaginar como nos sentimos ao receber a notícia de que você estava retida na escola? Que tinha prejudicado todo o ensaio por estar desatenta? - Nossa, como as notícias correm rápido! Mais rápido do que os allegros de Vivaldi, eu diria.
- Eu só errei algumas notas… - Eu disse, arrependendo-me em seguida. Devia só ter ficado calada, como sempre.
- O problema não está em errar algumas notas, mas toda uma peça por estar distraída, YooNa. Onde você estava com a cabeça? Musicistas são conhecidos por sua concentração. Como isso pode ter faltado, principalmente em uma peça que você conhece? - Os acordes do largo estavam começando e eu só conseguia olhar para o tapete refinado da sala. Eu nunca entendi porque só tocava música clássica na minha casa. Quando questionei isso aos meus pais (eu devia ter por volta de cinco, seis anos), eles me deram todo um discurso sobre os benefícios da música clássica e como ela é soberana sobre todos os outros estilos musicais. Eu odiava isso, mas nunca pude discuti. Eu não fui criada para isso, fui criada para sorrir e acenar, ser o tipo de filha perfeita que toca flauta e faz balé. Nem sei como eles me deixaram sair do balé. - Você sequer está nos ouvindo, Baek YooNa?!?! - Papai perguntou e eu despertei dos meus devaneios.
- Sim, senhor. – Respondi quase que em automático. – Eu sinto muito.
- Sente mesmo? – Mamãe, que não tinha dito nada até agora, disse antes de jogar vários papéis na mesa de centro. Meus olhos foram atraídos, automaticamente para os cabelos alaranjados de J-Hope. Oh não. – É isso que tem distraído você, não é? Você está deixando que essas modinhas adolescentes tomem seu tempo?
- Por que a senhora mexeu no meu armário? – Perguntei em um tom baixo, os olhos vagando entre as fotos.
- Eu sou a sua mãe. Qual o problema de mexer em seu closet? O closet que seu pai pagou para ser feito, que eu enchi com todas as suas roupas! – Ela disse, sem nenhum cuidado, como se eu tivesse pedido por qualquer uma dessas coisas. – Não te devo explicações, mas eu estava colocando o Valentino que encomendei para a apresentação lá, quando me deparo com essas coisas coladas nas paredes. O que você tem pensado, Baek YooNa? Acha que ouvir essas músicas e idolatrar esses meninos como se eles fossem deuses, vai trazer alguma coisa de bom para você? Pois não vai! Não mesmo. Acha que eles irão ensiná-la como gerenciar a empresa ou sequer reconhecer que você existe? Por que você é tão tola? – Meus olhos ardiam, mas eu me recusava a derramar lágrimas na frente deles. – Eu não sei como você se tornou essa pessoa! – Minha mãe disse como se realmente me conhecesse. Olhando de fora, pode até parecer, mas é praticamente impossível conhecer alguém com quem não há convivência. Se eu vejo meus pais por mais de cinco horas por dia, acho que é muito. Como essas pessoas podem sequer se considerar pais?
Nós já fomos tão próximos quando eu era mais nova. Onde tudo isso se perdeu?
- É só isso? – Perguntei, ouvindo minha voz falhar e sentindo-me a maior das idiotas por isso. Uma fraca.
- Está de castigo a partir de hoje. Irá cumprir seu castigo na escola e vir direto para casa. Seu dinheiro semanal será diminuído e o cartão suspenso. – Papai foi quem deu o ultimato. Eu sequer fazia ideia do por que estava sendo castigada. Por ficar de castigo na escola? Por gostar de algo que não tenha árias? – Além disso, entregue seu celular. Vai ficar sem ele também.
- O QUÊ? – Levantei de uma só vez. O celular era minha fonte de informação sobre meus meninos. Twitter, fancafe, V App, Youtube! OH MEU DEUS, MINHAS MÚSICAS. Como eu me manteria atualizada sem meu telefone?!
- Você ouviu. Seu acesso ao computador também será restrito. Já tiramos o notebook do seu quarto. E se você for racional o suficiente, saberá que não irá adiantar discutir comigo e com sua mãe, YooNa.
- Por que vocês estão me tratando assim? Por que me castigar assim por algo tão trivial? – Eu cheguei a perguntar. Eu sabia que poderia piorar a situação, mas eu não conseguia entender. Simplesmente não fazia sentido aos meus olhos.
- Você não saber o porquê já é razão suficiente para fazer isso. - Papai deu a pior desculpa do mundo. - Agora entregue seu telefone e vá para seu quarto. Pedirei aos criados que levem seu jantar. Seu castigo começa hoje mesmo. - Olhei ambos nos olhos, ainda segurando minhas lágrimas. Como eles não enxergavam o quanto isso estava me machucando? Eles não se importavam?
Desliguei meu celular e o entreguei a mamãe, subindo as escadas sem soltar mais nenhuma palavra. Fui direto para o meu quarto, deixando que as lágrimas correrem pelo meu rosto assim que fechei a porta. Sentada no carpete, abraçando meus joelhos e chorando sobre eles, eu só conseguia pensar em como eu estava sendo injustiçada. Eu só queria ser como as outras pessoas da minha idade. Eu não deveria? Por que eu preciso ser como uma boneca de porcelana, que obedece a tudo, a todos, sempre agindo como se fosse melhor do que outras pessoas? Nem sei se estou chorando de tristeza, raiva ou frustração. Eu só consigo me sentir péssima. Eu nem mesmo sou uma péssima filha. Eu me esforço nos estudos, nunca me meti em nenhuma confusão, eu sempre tento ser a filha da qual eles podem se orgulhar. Parece não ser o suficiente. Do que adianta todo o dinheiro, roupas de grife, joias e essas coisas, se eu continuo me sentindo como se fosse sempre insuficiente? Eu me odeio por não conseguir parar de chorar.
Minha mente praticamente me leva de volta para a cena das imagens dos meninos sendo jogada na mesa de centro. Eu nunca achei que seria doloroso ver meras fotos serem tão maltratadas. Era ridículo, mas eu não pude evitar. Lembrei o momento no qual ouvi BTS pela primeira vez. Honestamente, não é tão difícil ouvi-los quando são um grupo tão popular atualmente. Assim como não é difícil ouvir qualquer outro grupo feminino ou masculino que esteja em alta nas paradas. Você escuta em lojas no shopping, em carros parados no semáforo, ou no engarrafamento. Dá para escutar até saindo dos fones de ouvido dos meus colegas de escola. Ainda assim, eu nunca tinha me atentado até “Silver Spoon”. Uma das meninas do sexto ano estava cantando essa música no banheiro, enquanto arrumava o cabelo. A letra parecia tão... real. Como se ela estivesse falando sobre mim, como se alguém soubesse exatamente o que eu pensava. Pesquisei, encontrei a música, ouvi todo o CD e desde então, há um ano, eu tenho acompanhado os sete em tudo o que consigo. Tem sido, literalmente, “o momento mais bonito na vida”. Eu consigo me transportar por alguns segundos, consigo esquecer um pouco toda essa realidade esmagadora e pensar que – por mais bizarro que isso possa parecer – não estou sozinha. Eles me fazem acreditar que mesmo em momentos ruins, as coisas podem melhorar.
É loucura? Quero dizer, minha mãe tem razão, eles sequer me conhecem! Como eu pude deixar que sete caras entrassem e mudassem tanta coisa dentro de mim? Isso é ruim, não é? Ainda assim, como pode ser tão bom? Mesmo que eu saiba que ter um amor platônico tão forte assim não é nada saudável, lá no fundo (e nem tão fundo assim), eu sei que não consigo parar. Não consigo evitar a forma como eles me fazem sentir. Alegria, força, compreensão, companheirismo... Eu consigo encontrar tudo aquilo tem faltado através das músicas. E mesmo que eu precise ouvir escondido, contar com a empatia do ahjussi e usar meu – agora confiscado – celular, ainda vale à pena. É como um prazer vergonhoso do qual não consigo escapar nunca. Honestamente, eu não faço nenhuma questão.
Sequei as lágrimas remanescentes e levantei do chão, olhando o quarto ao redor. Minha gaiola de ouro. Seria bom conseguir fugir disso por algum tempo. Ser só uma adolescente normal, agindo sem me preocupar tanto assim. Seria como um paraíso. Olhei para a escrivaninha, praticamente vazia sem o computador, vendo um dos poucos cadernos de partitura que eu tinha. Eu nunca tive muita coragem de compor uma música, muito menos de mostrá-la a alguém, mas me lembro de fazer anotações e alguns rascunhos. Sentei-me no banco acolchoado, começando a folhear o caderno que – até então – eu nem sabia que estava ali. Eu parecia ter arrancado muitas folhas e tinham anotações nos cabeçalhos e rodapés das páginas que não faziam o menor sentido. Acho que sou mais confusa do que pareço. Continuei folheando, como se encarasse uma menina um pouco mais imatura que eu, mas com os mesmos sentimentos, as mesmas frustrações. Eu me pergunto por quanto tempo irei aguentar me sentir assim.
Quase terminando o caderno, encontrei uma das poucas páginas que tinham alguma informação realmente relevante. Algo que parecia ser uma composição, já que tinham várias notas riscadas, substituídas e escritas de um jeito esquisito. Com certeza minha letra não era uma das melhores coisas sobre mim. No topo da página, um nome conhecido e meio bizarro: Pied Piper.
Eu conhecia a história do Flautista de Hamelin, eu a ouvi diversas vezes na escola, chegamos a fazer um trabalho sobre a lenda na aula de inglês. Não sei por que, nem quando eu tinha escrito aquilo, muito menos o motivo de colocar esse título na música. Revisando as quatro notas repetidas durante toda a página em casas diferentes, elas pareciam se encaixar em uma melodia mais dinâmica, não tão lenta. Onde está minha flauta?
Eu tenho uma flauta na escola e uma em casa, minha favorita. Isso evita que eu fique carregando peso todos os dias e ainda preservava a Dóris (sim, eu tenho um nome para ela) e eu amo essa flauta. Vovó me deu antes de falecer, há três anos. Ela tem ramos de flores de cerejeira em gravura nas chaves e no porta-lábio, além das minhas iniciais gravadas na coroa. Dóris é 3S (Super Solid Silver) e fabricada pela Sankyo. Vovó a encomendou da última vez que esteve em Sayama, no Japão, especialmente para meu aniversário. Foi um dos melhores presentes que já ganhei.
Comecei a melodia, ainda sentindo minha respiração falhar um pouco, por chorar tanto. Meu diafragma precisa relaxar, mas eu preciso saber que melodia é essa. Meus dedos tocavam as chaves, buscando sincronizar a canção que minha eu do passado, tentou montar sem muito sucesso. Mesmo tendo apenas quatro notas bases, ela ainda parece meio crua. Falta alguma coisa. Algo que eu ainda não consegui identificar. Soprei mais algumas vezes, tentando ajustar o que eu lia no papel, sem muito sucesso. Eu odiava ficar intrigada. Odiava não entender algo.
Continuei tentando e anotando possíveis mudanças e, até mesmo rascunhei uma letra. Não sei quanto tempo fiquei ali, sentada enquanto tocava, até não conseguir mais manter meus olhos abertos.
Interlude
- Bom dia. Sim, ela irá comigo. Estou trabalhando em algo e o senhor sabe como acho o som dela diferenciado da flauta que tenho na escola. - Eu respondi enquanto entrava no carro, colocando a mochila de lado e abraçando o pequeno estojo de Dóris.
- Não temos muitas opções hoje, senhorita. - Ouvi a voz do meu amigo motorista quando encostei a cabeça no apoio do banco e fechei os olhos. - Mas eu separei aquela música de “Carmen” que você gosta. Aquela do amor como pássaro rebelde. - Eu não respondi nada. Não conseguia sequer raciocinar. Fiquei até muito mais tarde do que deveria acordada, trabalhando na música que encontrei em meu antigo caderno de partitura. - Podemos ouvir “Fígaro” também… - Ele ainda não tinha dado partida no carro e estava realmente tentando arrancar qualquer comentário de mim. Sabia o quão chateada eu estaria depois do que aconteceu ontem. Ele me conhecia como ninguém. - Eu lamento muito, menina. Gostaria de poder ajudá-la de alguma maneira, mas infelizmente não posso. Seus pais deixaram terminantemente proibido que você ouvisse qualquer coisa que não fosse clássica. - Foi quando alguns acordes começaram a tocar, mas não parecia ser “Habanera” ou “Fígaro”. Com meus olhos ainda fechados, tentei me concentrar em identificar a melodia e alguns segundos depois, eu sabia exatamente que música estava soando tão melancólica no piano: “Boy Meets Evil”.
- Ahjussi! - Eu o olhei pelo retrovisor, sentindo meus olhos arderem.
- Nem me olhe assim! É música clássica. Puro piano. - Ele abriu um enorme sorriso e eu não consegui evitar em derramar algumas lágrimas. - Não fique assim, ok? Não há nada que não possa ser resolvido se você olhar por outro ponto de vista.
- Obrigada, Ahjussi. Muito obrigada. - Agradeci com todo o meu coração, voltando a fechar os olhos e deixando-me envolver pelo som suave e doloroso de uma das minhas músicas favoritas no novo álbum. Imagens de J-Hope dançando inundavam minha mente, deixando-me levemente mais alegre.
Talvez o dia não fosse tão ruim, afinal.
Second Act
- Hey, o que é isso? - HyunJi me perguntou em meio a cochichos para que a professora não nos escutasse. - Por que você não respondeu minhas mensagens hoje de manhã?
- Não estou com o telefone. Meus pais confiscaram. Junto com o PC, o cartão e metade do dinheiro das despesas. - Eu respondi no mesmo tom de voz, desviando minha atenção do caderno por alguns minutos.
- ELES O QUÊ? - HyunJi se alterou, fazendo a sala inteira olhar para nós, e eu só fingi que não estava conversando com ela. - Desculpe, professora! Ainda não acredito que os japoneses fizeram isso. Uns imbecis mesmo, a senhora não acha? - Ela tentou melhorar as coisas, mas acho que ela não teve muito sucesso. Principalmente porque olhei para o quadro e o nome do Rei Sejong estava lá, indicando que ainda estávamos no início da dinastia Joseon e não tinha nada de japoneses na matéria ainda. - Mas, por favor, continue. - A professora, por algum milagre, decidiu não tomar nenhuma atitude e continuou a aula, enquanto minha melhor amiga não tirava os olhos de mim. - Eles te colocaram de castigo por quê?
- Porque eu fiquei de castigo na escola. - Explicar dessa forma seria bem mais fácil do que explicar tudo.
- YooNa, isso é loucura! Como eles podem deixar você incomunicável? E se te acontecer alguma coisa?
- Como algo vai acontecer comigo se eu não tenho nenhum tipo de vida social, HyunJi? E independente de qualquer lugar que eu vá, o ahjussi me leva, então...
- Eu não tô acreditando nisso. Você não tem nenhum amor próprio, não é possível. Não acredito que aceita que eles façam todas essas coisas com você sem nem tentar argumentar. - Ela sussurrava, mas eu sabia que se pudesse, estaria me batendo. Eu não gostaria de apanhar da HyunJi. O pai dela é mestre em Taekwondo, ela praticamente nasceu chutando.
- O que você quer que eu faça?
- Eu sei lá! - Ela gritou, erguendo as mãos e deixando a professora nitidamente irritada.
- As duas. Para fora. Quero vê-las depois da aula. - Bufei e quando HyunJi abriu a boca para argumentar, eu a impedi.
- Cala a boca e vamos logo. - Eu a empurrei para fora da sala com todos os nossos materiais.
- Tá vendo? É disso que eu estou falando! Você não reage a nada, YooNa! Aceita e abaixa a cabeça como um cachorrinho assustado! - Ela reclamava enquanto caminhávamos para o meu armário. - Estou falando sério! Parece que você nem quer reagir! - Ela estava começando a me irritar. - Reclama tanto dos mimados dessa escola, mas você é como eles. Abaixa a cabeça para os papais só pra não perder as regalias que tem. Não duraria um dia no mundo real.
- CHEGA! - Eu gritei com ela, empurrando-a. - Eu não aguento mais você! Não aguento mais sua mania ridícula de achar que é melhor que todo mundo, que todos se submetem enquanto você é a rebelde sem causa. Mas, adivinhe só, HyunJi: você é tão hipócrita quanto nós. Reclama e bate no peito pra dizer que faz o que quer, mas seu telefone é de última geração, suas roupas, tudo o que você usa foi comprado com o dinheiro dos seus pais que você diz repudiar tanto. - Eu recolhi todas as minhas coisas, pronta pra sair. - Então, me desculpe se eu prefiro me manter calada ao invés de mostrar minha idiotice pro mundo, como você faz. - E saí. Eu precisava sair dali o mais rápido que eu pudesse. HyunJi estava me sufocando, meus pais, minha casa, a escola estava me sufocando. Eu sabia como sair dali. Tinha visto os alunos mais rebeldes fazendo isso diversas vezes, pelas mais diversas razões. Atrás da biblioteca, um fundo falso escondia uma saída para um beco muito distante do portão da escola, onde a vigilância era constante. Eu podia sair por ali.
Alguns inspetores estranharam me ver fora da sala de aula, mas eu apenas indiquei a biblioteca, o que pareceu fazer bastante sentido para eles. Eu vivia lá, afinal. Mas meu objetivo era outro. Eu precisava fugir. Fugir da escola, dos meus pais, de mim mesma. Eu estava exausta. Eu queria correr, pra longe, sair de onde eu estava, se possível, de quem eu sou. Eu dei mais alguns passos oscilantes até à saída secreta, tentando meu máximo para não ser vista e acabar denunciando o lugar, apesar de eu achar que sempre souberam. Ao abrir a pequena passagem, cheguei a olhar para trás. Eu não devia sair da escola. Já estava de castigo por errar no ensaio da orquestra. Já estava de castigo em casa pelo mesmo motivo e por BTS. Eu não precisava de mais “ocorrências”, certo? Segurei o estojo no qual eu levava Dóris com mais força, passando os dedos pelas pétalas de cerejeira bordadas.
Um dos diversos significados das flores de cerejeira é “viver o presente sem medo”. Esse costumava ser o lema dos samurais, há muito tempo no Japão, e costumam associá-lo às sakuras pelo fato delas não permanecerem floridas por muito tempo. Ou seja, se não aproveitarmos o agora, ele voa e se perde bem diante de nós, assim como as pétalas das cerejeiras. Eu não sei se vovó me deu a flauta e o estojo com essa intenção, mas era a única coisa que eu conseguia ouvir agora. Se Dóris pudesse falar, seria como se estivesse me dizendo “Viva!” e eu a seguiria.
Foi exatamente o que eu fiz.
***
Eu não sabia muito bem onde estava. Essa, talvez, seja uma desvantagem de andar sempre com um motorista. Mesmo assim, eu não estava nem um pouco preocupada, assustada, ou qualquer coisa do tipo. Eu tinha dinheiro o suficiente para voltar para casa, mas eu não queria. Eu não podia abrir mão de tanta… liberdade. Eu passei praticamente todo o dia no Rio Han, praticando com a flauta, vendo crianças e cachorros brincando. Vendo o movimento ininterrupto da Seul que eu não conhecia. Uma cidade que parecia bem mais alegre, mais desinibida, mais agitada. Era como ver um outro lado de uma mesma moeda.
Agora, já noite, as ruas do centro pareciam viver uma constante festa, de tão iluminadas. Estivera em Seul diversas vezes, em qualquer horário, e nunca a tinha visto dessa maneira. O que mudou?
- Você quer mais acompanhamentos? - A garçonete me perguntou enquanto trazia outra porção de carne. Eu estava muitíssimo feliz enquanto comia o bulgogi que eu mesma grelhava.
- Posso ter um pouco mais de pajeori? E folhas de perilla, por favor. - Pedi, tentando conter minha felicidade. Acho que não tive muito sucesso, visto que a garçonete riu e voltou à cozinha para pegar o que eu tinha pedido. O restaurante estava movimentado, o que conseguia me deixar ainda mais alegre. Provavelmente eu estava parecendo louca, comendo sozinha e sorrindo, enquanto todos comiam em grupo, mas eu nem conseguia descrever a felicidade que estava sentindo. Acho que essa é a coisa mais idiota do mundo. Estar feliz porque estou comendo o que eu quero, sozinha, sem regras definidas, ou tendo que manter a etiqueta, ou qualquer coisa. Essas pessoas devem fazer isso o tempo todo. Procurei pela garçonete, pronta para pedir mais arroz, quando a vi sair de uma das salas fechadas do restaurante, completamente corada, sorrindo como se tivesse ganhado muito dinheiro.
Por um momento, me lembro dos meus pais. Será que eles já deram falta de mim? Será que sequer pensaram em sair para procurar ou só… estão me esperando porque sabem que eu vou voltar? Espero não ter prejudicado demais o ahjussi. Ele não teve culpa nenhuma e espero que meus pais vejam isso. Isso é, se eles perceberam. Provavelmente ainda não tiveram tempo de notar, já que eu só chegaria da escola em mais ou menos uma hora. Quando eles percebessem, provavelmente ficariam furiosos e teriam a certeza de mandar céus e terra me encontrarem, apenas para poderem me dizer que isso não era comportamento de uma herdeira. Meu estômago embrulha só de imaginar, então prefiro nem pensar nisso. Prefiro aproveitar meu bulgogi.
***
Acho que nunca comi tanto na vida.
Não me lembro de ter uma refeição dessas em anos! A Ahjumma que me perdoe, eu amo a comida dela, mas não há sabor como esse. O sabor da liberdade. Paguei minha conta e perguntei à senhora no caixa se poderia usar o banheiro. Ela me indicou e enquanto eu lavava minhas mãos, me lembrei dos meus pais novamente. Talvez fosse hora de voltar para casa. Eu sabia que teria que voltar em algum momento. Eu não sou iludida o suficiente para achar que a vida simplesmente vai se transformar em algodão doce e caramelos. Eu tenho que voltar para casa e enfrentar a fúria dos meus pais. Voltar para a escola e me resolver com Yoo HyunJi. Falei todas aquelas coisas horríveis, mas ela não merecia aquilo. Pelo menos não da maneira que eu disse.
Reuni minhas coisas, olhei no espelho mais uma vez e saí do banheiro, levando um susto gigantesco. Droga!
Ele está aqui. Eu deveria saber que o Ahjussi saberia onde me encontrar.
Eu não faço ideia de como ele fez isso, mas eu não podia deixá-lo me pegar. Agachei e fui andando pelas mesas, fugindo do olhar atento do meu amigo que me descrevia para a garçonete. Desculpa, Ahjussi. Prometo que compenso no futuro. Abri a porta do restaurante com pressa, sem notar que o sininho faria barulho. Droga, eu teria que correr.
- Senhorita! - Foi como o tiro de partida para que as minhas pernas reagissem e eu só saísse correndo dali o mais rápido possível. Eu corria e corria, a mochila batendo nas minhas costas, desviando do maior número de pessoas possível. Eu só precisava conseguir me misturar na multidão para escapar outra vez. Por mais que eu estivesse pensando em voltar para casa, por mais que eu devesse, não era o que eu queria agora. Não nesse minuto. Eu não ouvia mais a voz do Ahjussi atrás de mim, assim como o número de pessoas ficava cada vez maior ao meu redor. Quando não o vi mais, me encostei em uma parede tentando recuperar o fôlego. Minhas mãos tremiam mesmo que apoiadas nos meus joelhos e eu sentia meu rosto quente pelo esforço. Droga, eu sou péssima com exercícios. Eu respirava fundo, inspirando e expirando, tentando recobrar as forças. Acho que dez minutos bastam.
Depois de conseguir me acalmar, eu sabia que tinha pouco tempo e precisava ser sábia quanto a decidir o último lugar para visitar antes de voltar para casa. Preciso saber quanto de dinheiro ainda tenho na bolsa e guardar um pouco para o táxi. Ao tirar a mochila de um ombro, e abrir o zíper, foi como se meu coração simplesmente caísse aos meus pés.
Dóris.
Eu a esqueci no restaurante enquanto fugia do Ahjussi!
E essa é a segunda vez no dia que terei que correr. Desta vez, para salvar Dóris ao invés de salvar a mim mesma.
FICA CALMA DÓRIS, EU ESTOU VOLTANDO!
***
Eu agradecia aos céus por ainda lembrar do caminho de volta ao restaurante. Ainda não consigo acreditar que fui burra o suficiente para esquecer minha preciosa flauta no banheiro! Eu sou muito estúpida mesmo. Entrei e a garçonete me cumprimentou, olhando-me com certa surpresa.
- Você saiu correndo! Aquele senhor disse que estava procurando você a mando dos seus pais. – A Ahjumma do balcão me questionou, desconfiada, e eu tentei abrir meu melhor sorriso.
- Sim, imo! Mas eu esqueci uma coisa minha aqui no banheiro, por isso voltei. – Ela ergueu uma sobrancelha pra mim, como se desconfiasse. – Se importa se eu for checar? Obrigada! – Nem esperei ela responder, só segui até o banheiro, pronta para recuperar minha pobre flauta, quando notei que ela não estava lá. Saí pronta para descrever o estojo à senhora do restaurante, quando tive um leve lapso da sala reservada da qual eu vira a garçonete saindo antes. Eu poderia enfartar a qualquer momento.
Kim Taehyung, mais conhecido como V, membro do Bangtan Soneyondan, a.k.a. meu grupo favorito no mundo inteiro, estava com Dóris.
A garçonete fechou a porta novamente, olhando-me e ficando tão admirada quanto eu. Ela, provavelmente, estava pensando um milhão de probabilidades onde eu chamaria repórteres, fanbases, faria um escândalo para vê-los, desmaiaria e provavelmente mancharia o nome do restaurante para sempre. Minha mente, nesse momento, só conseguia pensar em duas coisas: 1) BTS está a poucos metros de mim e eu sequer consigo mexer as pernas, 2) Como raios Dóris foi parar com Taehyung?
- Senhorita… - A garçonete me chamou atenção, tentando me tirar do transe. - Não podemos revelar a privacidade dos clientes, peço que, por favor, tenha isso em mente. - Eu sequer conseguia formar frases nesse momento, imagina fazer qualquer outra coisa. Assenti e ela respirou fundo, como se estivesse aliviada.
- Desculpa, mas… - Eu consegui sussurrar. – Ele está com algo que me pertence...
- Ahn? – A menina me encarou como se eu estivesse maluca. Honestamente, eu estava concordando com ela.
- Meu estojo, minha flauta. Está com eles. – Eu apontei para a porta e ela praticamente me olhou como se eu fosse muito pretensiosa de sequer pensar em entrar ali. – Pode buscar para mim? – Perguntei e ela olhou para porta e para mim novamente.
- Eu não consigo falar com eles. – Ela começou a ficar terrivelmente vermelha e eu a entendi no mesmo minuto. Eles devem ser tão lindos a ponto de intimidar qualquer um.
- Eu preciso das minhas coisas. Não posso voltar sem elas. – Eu até entendia essa menina, mas eu não posso simplesmente deixar Dóris com o BTS. – Eu vou até lá. – Disse dando o primeiro passo, mas a menina segurou meu braço.
- Você não pode! – Ela parecia tão desesperada quanto eu. – Não pode entrar lá assim! Vai gerar uma confusão imensa, cliente!
- Não posso ir embora sem a Dóris! – Eu me soltei dela e fui direto para a porta, alguns clientes olhando para mim, curiosos. Respirei fundo e abri a porta, devagar, vendo-os sentados, sorrindo, comendo e bebendo normalmente, com alguns membros da equipe em outra mesa. Todos ficaram em silêncio, olhando-me e tentando identificar o que a garota com o uniforme do ensino médio estava fazendo.
- Estudante? – Um dos membros da equipe perguntou, mas eu não conseguia falar nada. Nem sequer me mover. Eu estava completamente paralisada pela beleza daqueles homens. Em toda a minha vida, eu nunca imaginei vê-los tão de perto, eu nunca imaginei que eles seriam tão lindos. Namjoon estava bem na ponta da mesa, os nossos olhos se encontravam de tempos em tempos. Eu poderia morrer ali mesmo. – Estudante? O que você está fazendo? - Eu olhei para a pessoa que falou comigo, parecendo despertar do transe que eles tinham causado em mim. Yoongi no canto da mesa de boné, perto do Hobi, Jin e Jungkook de frente para os dois. Eu não conseguia parar de olhá-los.
- Você está bem? – Jimin, que também estava na ponta da mesa, me olhava parecendo preocupado. Eu ainda não conseguia falar nada, mas ao ver meu estojo bordado com cerejeiras na mão de Taehyung, me lembrei do meu real motivo ali.
- Dóris! – Dei alguns passos para entrar na sala, sendo imediatamente impedida por um segurança.
- Vamos pedir que a senhorita se retire. – Um deles disse, em um tom forte e determinado.
- Mas ele está com as minhas coisas. – Minha flauta, meu caderno de partitura, as anotações que eu passei o dia fazendo, estavam em posse deles agora. – Eu preciso muito das minhas coisas.
- Quem pegou suas coisas? – Outro staff perguntou e por eu levemente me lembrar dele, creio que seja o Hyunsoo manager, que um dia se apresentou com Jimin e Jungkook. Apontei para Taehyung, em seu lindo casaco branco, sentado entre Jimin e Hobi.
- Você pegou as coisas dela? – J-Hope perguntou e eu pude sentir meu coração disparar.
- Não, hyung! – Taehyung respondeu. – Eu nem conheço ela!
- Se você não pegou, como a Dóris está com você? – Eu disse e todos olharam de mim para Taehyung, confusos.
- Quem é Dóris? – Jin perguntou e Jungkook comeu mais um pedaço de carne, atento ao que todos diziam.
- Você pegou o animal de estimação de alguém? – Foi a vez de Hobeom manager perguntar, um pouco raivoso. Oh, Deus, eu sabia quem eram os integrantes da equipe, eu precisava de limites quando se tratava de BTS.
- O quê? Não! – Ele negou veementemente, visivelmente nervoso. – Claro que não, hyung!
- Senhorita, espero que isso não seja só um truque para entrar nessa sala. Nós podemos processá-la. – Hobeom manager disse outra vez, e eu olhei para os meninos. Eu provavelmente estava mesmo parecendo a mais louca de todas.
- É melhor a senhorita se retirar. – Outro segurança se pôs na minha frente.
- Eu não posso sair daqui sem a Dóris! – Eu praticamente chorei. – Só preciso que ele me devolva ela!
- Mas quem raios é Dóris? – Yoongi perguntou meio nervoso e eu poderia jurar que tinha me tornado uma poça, bem ali na porta.
- Eu não estou acreditando nisso... Essa menina deve ser louca. – Um outro staff disse, enquanto alguns concordavam.
- Você é uma ARMY querendo um autógrafo, é isso? Uma foto? Isso vai fazê-la ir embora com uma desculpa melhor do que essa? – Hyunsoo manager perguntou e então eu percebi o quão maluca eu estava parecendo ali. Meus olhos arderam em lágrimas e eu soube que deveria ir embora. Com ou sem a Dóris. Não acredito que minha flauta favorita, dada de presente pela minha avó, seria levada pelos garotos que eu mais admiro no mundo. Não acredito que é a primeira – e provavelmente única – vez que eu os encontro e pareço uma dessas fãs malucas que cortam o cabelo dos idols e grudam neles como se fossem parasitas. Não que eu não quisesse grudar em Namjoon como chiclete, mas eu sabia que tudo tinha limites. Eu, mais do que ninguém, sabia como era sentir-se preso sem realmente estar. Expectativas, idealizações, pessoas que acreditam que devemos ser assim ou assado. Era estranho pensar que os responsáveis por me salvar disso todos os dias, estavam sentindo-se ameaçados por mim. Eu sequer imagino o que eles devem passar todos os dias.
- Desculpe. - Segurei minhas lágrimas e curvei-me em respeito. – Nunca foi a minha intenção, desculpe. – Eu dava passos para trás, sentindo as lágrimas escaparem, mas sem coragem de sequer ficar ereta. Eu estava envergonhada demais.
- Ahn... Eu achei isso no banheiro faz algum tempo. É disso que você está falando? – A voz do líder soou pela primeira vez em meus ouvidos e meu coração imediatamente reagiu a ele. Isso mesmo, é seu favorito, coração. Contenha-se. Levantei meu olhar, encontrando o estojo que vovó me dera, e então me curvei novamente, assentindo ainda envergonhada.
- Então Dóris é a flauta? – Hobi perguntou, desacreditado. Sim, eu concordo. Sou ridícula.
- Desculpe. Por favor, me perdoem. – Eu estava chorando sem querer, completamente envergonhada.
- Você se importa de tocar para nós? – Namjoon perguntou e foi a vez de todos o encararem como se ele fosse completamente maluco.
- Ahn? – Eu me ergui surpresa, sem entender a pergunta.
- Encontrei uma partitura, junto com a flauta. Você toca...? Desculpa, como você se chama mesmo? – Ele perguntou e o manager bufou atrás dele, voltando para a cadeira.
- Yoona. Baek Yoona. – Eu me curvei outra vez, mas voltando a ficar ereta em seguida.
- Namjoon... – Hobeom manager disse meio que em tom de alerta.
- Por favor, hyung. – Ele pediu um minuto. – Alguns minutos. Só isso. Eu assumo a responsabilidade por isso. – Meus olhos arregalaram ao ouvi-lo dizer isso, mas eu tentei não desmaiar. Jin e Jungkook voltaram a comer, junto com Suga, enquanto os outros ainda me encaravam. – Você pode tocar, Yoona? Queria a flauta de volta, teve a coragem de entrar aqui e nos enfrentar. Parece que isso é importante demais para que você simplesmente a deixe aqui e vá embora. Pode dividir essa melodia com a gente? – Ele perguntou, supereloquente, e eu só confirmei novamente o porquê do meu coração ter escolhido ele. Minhas mãos ainda estavam instáveis e eu não fazia ideia do que fazer, mas assenti.
- Okay. – Ele puxou um banco avulso e colocou na cabeceira da mesa, indicando-o para que eu me sentasse. Jimin me deu um sorriso simpático e voltou a comer, assim como os outros, não que isso tenha me deixado mais calma.
- Eu... Eu posso não tocar muito bem. – Eu consegui dizer, ainda com os olhos baixos, montando Dóris. – Desculpa. Eu...
- Você pode ficar tranquila. A pior parte já passou. Já sabemos que você não é uma stalker maluca, então tudo bem. – Taehyung se pronunciou, parecendo mais calmo.
- Verdade. Fique tranquila, Yoona-ssi. – Jimin reforçou e eu só conseguia olhar para minha flauta. – Quer uma trouxinha? Você prefere alface ou perilla? – Eu neguei. Não conseguiria nem beber água agora. Okay, ficar calma. Preciso só ficar calma. Eu posso fazer isso. Eu consigo.
Eu não vou conseguir.
Eu vou conseguir.
Fiquei na posição, segurando a flauta da maneira correta, apoiando minha boca e olhando a partitura em meu colo. Eu posso fazer isso. Comecei a soprar a primeira nota, mas foi um fracasso. Jungkook riu, deixando-me mais nervosa. O líder o cutucou e ele sussurrou um pedido de desculpas. Respirei fundo novamente e voltei a tentar, passando da primeira nota, mas desafinando a segunda. Eu estou nervosa demais.
- Namjoon, ela não vai conseguir com toda essa pressão psicológica. – Suga disse, me defendendo de alguma maneira. Aquilo me fez tentar outra vez. Eu queria conseguir. Mesmo desafinando, segui a melodia até o fim, recebendo palmas, mesmo que eu soubesse que tinha sido um desastre.
- O que você acha? – Kim Namjoon perguntou diretamente para Yoongi, que assentiu. Eu olhei de um para o outro, sem entender nada. – Hobah? – Ele também assentiu.
- Acho que funciona. Você tinha razão. – Ele disse, comendo mais uma colher de arroz em seguida. Eu não estava entendendo nada.
- Eu... posso ir? – Perguntei, meio que sussurrado, mas levei um susto quando RapMonster levantou da mesa, limpando as mãos e procurando pelo casaco.
- Antes, você precisa vir a um lugar comigo, Baek Yoona-ssi.
- Você é workaholic, hyung. Isso faz mal para a saúde. – Taehyung disse, sorrindo, enquanto comia mais um pedaço de carne.
- Não seja muito exigente, Namjoon-ah! – Jin disse sorrindo e eu juro que estava tentando entender toda essa conversa.
- Vou mandar uma mensagem para o PDnim, avisando que você está indo. – Jimin pegou o telefone e simplesmente começou a digitar, enquanto eu ainda estava tentando guardar Dóris em segurança.
- Obrigado. – Namjoon abriu a porta, ainda me olhando. – Vamos?
***
- Pode entrar. – Ele me indicou o caminho para que eu entrasse no estúdio. Okay, eu não podia surtar. Eu não posso. Preciso respirar fundo e agir normalmente. Por que eu estava aqui, com Namjoon, às oito da noite, enquanto meus pais não fazem ideia de onde estou? Namjoon quer minha melodia. Foi o que ele explicou, o mais simples que conseguiu, do restaurante para a sede da BigHit, que eu descobri ser bem perto dali. – Basicamente, enquanto não sabíamos de quem era o estojo, procuramos informações e descobrimos sua música. Eu e o Yoongi hyung achamos interessante, mas foi frustrante ao mesmo tempo. Não poderíamos usá-la sem a autorização do compositor. Seria plágio. – Ele explicou. – Mas então, você voltou. Como se tivesse atendido meu chamado para que pudéssemos nos aprofundar na música. – Ele parecia tão animado. Falar sobre música parecia deixá-lo radiante. Era muito bonito de se ver. - E mesmo que parecesse meio obsessiva e parecesse que ia nos atacar, o que seria sem sentido com nossos seguranças ali, só pude perguntar sobre a melodia e torcer para que você não rejeitasse a proposta. Ainda estou torcendo, na verdade.
- Eu... – Eu não sabia o que dizer. Nunca achei que a música seria boa o suficiente para isso. – Eu não sei o que dizer... Ahn, eu acho que não posso...
- Não? – Ele ficou visivelmente decepcionado.
- Não, não! Não me leve a mal, por favor. Não é isso... Eu sou menor de idade. Não posso assinar nenhum documento cedendo os direitos da música para vocês. – Eu suspirei. – E meus pais? Nossa, eles não assinam. Nem pensar.
- Nossa, que hostilidade. “Nem pensar”? – Ele repetiu, completamente sem graça.
- Ahn... Eu nem sei como explicar. Vamos dizer que eles não entendem a própria filha e só posso fazer o que eles querem, quando eles quiserem, como eles quiserem. São desvantagens de ser uma herdeira. Mas isso são detalhes que não tem importância nenhuma para você. O foco aqui é...
- Espera. – Ele me interrompeu. – Você é uma herdeira? – Eu assenti. – E mesmo assim seus pais não te deixam fazer o que você quiser? Eles são do tipo que querem que você siga os passos deles?
- Eles são do tipo que querem que eu seja perfeita. Independente se for pelos passos deles ou não. – Eu resmunguei, passando a mão pelos cabelos. Não sei por que eu estava conversando isso com Namjoon, mas a conversa só parecia fluir. Como se eu pudesse falar qualquer coisa com ele. – Eu preciso dar exemplo, ser irrepreensível, ser modelo para outras pessoas, mas eles nunca me perguntaram o que eu queria. Nunca me consultaram ou sequer disseram que eu poderia estar fazendo um bom trabalho. – Eu dei de ombros. – Acho que nunca importou muito o quê eu quero.
- E o que você quer, Yoona-ssi?
- Eu quero conseguir ser mais do que só o que esperam. Quero ser reconhecida por quem eu sou, aqui dentro. Mais do que alguém que vai herdar uma fortuna. Mais do que uma flautista. Mais do que só alguém que serve para algum fim. – Eu respirei fundo e fechei os olhos. – É revoltante e, ao mesmo tempo, desanimador.
- Por isso o nome da música? – Ele perguntou e eu voltei a abrir os olhos.
- Desculpe?
- Por isso a música é Pied Piper? É como você acha que o flautista se sentiu quando se recusaram a pagá-lo? – Ele perguntou e eu tentei pensar nisso com mais cuidado. Eu não tinha pensado nisso... Será que era isso que minha eu do passado queria dizer? – Bom, pelo menos é o que parece. Que, assim como ele, você quer ser reconhecida, quer que as pessoas reconheçam seus esforços. Inclusive seus pais. É o que a maioria de nós quer, na verdade. - Ele tinha razão, fazia todo sentido.
- Seria o paraíso. - Ele me olhou, confuso. - Você sabe, sermos reconhecidos por algo. Se fôssemos reconhecidos por tudo o que fazemos, apreciados por isso, seria o paraíso. Vocês ainda têm seus fãs, os prêmios, algum reconhecimento acaba chegando, mesmo que a mesma quantidade de ódio também chegue. - Eu disse um pouco triste. - Ainda assim, seria ótimo ser mais do que Rap Monster, líder do Bangtan Sonyeondan e rapper, não? - Ele riu, sem graça.
- Você tem toda razão. - Os olhos dele encontraram os meus, fixando-se neles por alguns segundos. Eu senti minhas bochechas esquentarem, mas não conseguia evitar. Ele me deixava nervosa. Fechei os olhos por alguns instantes, desviando o olhar para meu estojo.
- Você pode ficar com a música. - Eu disse, simples, mudando de assunto.
- O quê?
- Quero que você fique com a melodia. Mesmo que não a use, mesmo que mude tudo, pode ficar com a melodia. - Eu tirei o caderno cheio de anotações do estojo e o estendi para Namjoon.
- Não posso fazer isso. Não posso simplesmente…
- Eu não tenho nenhuma outra cópia disso. Absolutamente tudo está nesse caderno. Eu não irei voltar atrás na minha decisão. E se você quiser, posso assinar um termo dizendo que abro mão dos direitos, a próprio punho. Isso deve contar alguma coisa. - Eu estava determinada a fazer aquilo.
- Não… Acabamos de falar sobre reconhecimento e você quer abrir mão dele? Para mim? Não. - Ele tentou argumentar, mas eu estava preparada.
- Todos os dias, vocês me dão forças. É através das músicas do BTS que eu consigo seguir, dia após dia. É através de vocês que eu me esforço para enxergar o lado positivo, sempre. Acredite em mim, abrir mão dessa melodia para vocês, não pagaria nem um por cento de todas as coisas que ganho de vocês todos os dias. Completamente vale à pena. - Eu disse e me pus de pé, pronta para sair. Eu precisava voltar para a realidade.
- Eu… Eu realmente acho que não deveria estar fazendo isso, mas… Obrigado. - Ele riu, sem graça, olhando do caderno para mim com certa admiração. Eu, provavelmente, estava vermelha. Droga.
- Não precisa agradecer, nem nada assim. - Eu dei de ombros, olhando para a ponta dos meus sapatos. - Acho melhor eu ir…
- Um minuto. - Ele disse enquanto apoiava o caderno na mesa de som. - Deixe que eu pague pela música, pelo menos.
- Eu não preciso de dinheiro, Namjoon-ssi. Pelo contrário. - Eu respondi, sorrindo, e voltei a olhá-lo. Ele estava olhando para mim. Estava prestes a fechar os olhos novamente, quando ele segurou meu rosto, erguendo-o.
- Não feche os olhos. Não ainda. - Ele deu um passo mais perto e eu poderia jurar que meu coração era um trem desgovernado. - Eu sei que isso é errado, até perigoso, mas não consigo evitar. Sequer consigo lidar comigo mesmo agora. Faz sentido? - Eu assenti de leve, porque eu também não conseguia pensar direito agora. - Você pode me rejeitar, Yoona. Eu gostaria que não o fizesse, mas você pode me afastar. Você tem escolha.
- Quentes… - Eu disse e ele me olhou, confuso. - Suas mãos… São quentes, confortáveis. - Eu sussurrei como se estivesse contando um segredo e Namjoon sorriu, parecendo tímido.
- Yoona… Desculpe se eu estiver estragando tudo agora. Por favor, me perdoe. - Eu continuava com meus olhos abertos e mergulhando no fundo das íris dele.
- Namjoon-ssi… - Ele resmungou, deixando claro que eu deveria continuar falando. - Por favor, me beije.
Finale
O MV de “DNA” acabou de sair e sei que faltam só mais alguns minutos antes do novo álbum, “Love Youserlf: Her”, ser lançado. Desta vez, não estou dentro do closet, mas sentada em minha escrivaninha, vendo os milhões de tweets que fluem na página, praticamente surtando com tudo o que estava acontecendo.
Nunca mais encontrei o BTS depois daquele dia no restaurante.
Eu apenas me mantive como uma ARMY, dando apoio em tudo o que foi possível nesse último ano. Ainda acho que apenas sonhei com tudo aquilo, apesar de ter parecido tão palpável e real. Outra prova de que isso realmente aconteceu, é a carta que estou segurando nesse momento. Ela foi entregue na escola, com um buquê de smeraldos, uma flor que eu sequer sabia que existia. Perdi a conta de quantas vezes já li essas frases. Elas me diziam muito, apesar de não dizerem nada.
“Olá,
Esperamos que você esteja bem!
Não se assuste, mas Hobi gravou o nome da sua escola (que estava nítido em seu uniforme) e não foi tão difícil encontrá-la. Gostaríamos de agradecer por tudo e, principalmente, pela faixa 5. Você sabe bem por que. Considere como um prêmio para você, um reconhecimento que nós lhe damos com orgulho.
Continuamos torcendo pelos seu sucesso e todos ainda estão ansiosos por ouvi-la tocar mais uma vez. Dessa vez, sem tanto nervosismo!
Esperamos que você goste de tudo e lembre-se de duas coisas.
Primeiro: Love Myself, Love Yourself. Você é incrível e nós pudemos comprovar isso. Caso não confie em si, continue confiando em nós.
Segundo: Quando tudo estiver sufocando você, apenas feche os olhos e concentre-se no som da flauta. As atitudes que você tomar depois de fazer isso, sempre serão acertadas.
RM.
P.S.: Minhas mãos só estarão quentes para você. - NJ”
Eu não entendia o que algumas coisas ali queriam dizer, mas eu sabia de uma: Namjoon estava certo. Seguir minha flauta naquele dia, há um ano, foi uma das melhores decisões que já tomei.
Postlude
- O quê?! Não! - Eu disse ainda assustado, tentando esconder o que eu tinha escrito. - Antes disso, como você entrou aqui sem fazer barulho e por que você está lendo o que eu escrevo por cima do meu ombro?
- Eu fiz um monte de barulho, você que está compenetrado, escrevendo pornografia. - Ele disse, zombando de mim. - Sério, você e ela…
- Não! Nós não fizemos nada. Absolutamente nada. - Eu respondi, assinando a carta e colocando-a no envelope.
- Não é o que parece com você escrevendo isso. - Ele se jogou na poltrona atrás de mim. - Você sabe que se qualquer coisa aconteceu e ela deixar isso escapar, o pessoal de relações públicas vai comer seu fígado…
- Eu sei, eu sei. E eu já disse que não aconteceu nada.
- Desembucha, Namjoon.
- Já falei. Não rolou nada.
- Pra ela saber que suas mãos são quentes, você tem que pelo menos, ter segurado na mão dela e você não faria isso sem motivo. Não comentaria isso na carta sem motivo também. - Eu odiava quando Hobi argumentava comigo. Ele sempre ganhava.
- Olha, não aconteceu nada. Mas não foi por falta de oportunidade. - Eu dei de ombros, como se não fosse nada, mas sentia meu sangue começar a esquentar só em lembrar daquele momento, há um ano.
- Uuuhhhh, Namjoon! - Eu ri do deboche dele. - Logo você, que evita ficar namorando, beijando uma desconhecida. Quem diria.
- Não nos beijamos. - Eu tentei não demonstrar minha decepção, dando de ombros mais uma vez.
- O quê? Não? - Ele veio pra perto. - Ficou inseguro de que ela contasse por aí?
- Não... Ela parecia ter mais medo de saberem que ela nos conheceu, do que o contrário. - Eu cruzei os braços, virando para ele.
- Pelo lance dos pais dela que a gente leu no caderno? - Hobi me lembrou das anotações raivosas de Yoona sobre os pais dela nos odiarem, mas ela não dar a mínima. Nós colocamos isso na música também.
- Sim, acho que sim. De qualquer forma, nem foi tanto pensando se ela falaria ou não. Eu só... Não achei certo. Não era assim que eu queria que acontecesse. Sei lá.
- Você se apaixonou por ela em algumas horas? Isso é loucura, Joonie. - Ele se jogou na poltrona de novo.
- Está louco? Claro que não! Como eu poderia me apaixonar por alguém que eu não conheço? - Eu o repreendi. - Só... Não era assim que devia ser. Se eu a beijasse quando ela me pediu, iria parecer que foi só pela música e não era.
- Ela te pediu pra beijá-la? Que atirada. - Eu ri do comentário aleatório. - Por que você não nos contou antes?
- Não era importante.
- Não? Então por que você está escrevendo um cartão para ela e relembrando aquele momento no P.S.? - Viu como ele é irritante?
Eu não posso dizer que não quis beijar Yoona. Eu quis. Muito.
Mas enquanto as mãos dela seguravam minha camisa e as minhas mãos envolviam o rosto dela, tão próximo do meu, eu soube que não conseguiria tirar ela da minha cabeça se a beijasse. Eu iria ansiar por ela, e nem falo fisicamente. Eu sei que mesmo que seguíssemos nossos caminhos, eu buscaria saber mais dela. Pensamentos, desejos, medos, gostos. Eu ficaria obcecado e eu não queria isso. A opção mais fácil era não torná-la nada além da "garota que nos cedeu à melodia".
Ainda assim, eu estava relembrando o momento em que ela aconchegou o rosto em minhas mãos e pareceu completamente adorável. Eu sabia que era arriscado demais, mas ainda assim, me aproximei dela e a fiz acreditar que a beijaria. Ainda assim, no último instante, desviei para sua testa, puxando-a para um abraço apertado.
- Não posso fazer isso. - Eu disse com o queixo apoiado no cabelo dela.
- Ahn... Desculpa. Mesmo. Eu sou uma idiota. É óbvio que vocês não se relacionam com fãs, muito menos com loucas que acabaram de conhecer. - Ela tentou me empurrar, mas eu a mantive no abraço, rindo leve daquela reação.
- Baek Yoona... Não ache que não quero beijar você. - Disse sem olhar em seus olhos, mas acariciando seu cabelo macio. Eles cheiravam a bulgogi, do restaurante, e eu não conseguia deixar de achar adorável. - Eu quero, mas não vou. Não vou beijar uma menina que acabei de conhecer, não vou me aproveitar de uma menor de idade. Não vou deixar que você tenha essa visão de mim. - Ela voltou a pousar suas mãos sobre minha cintura. - Mas, se no futuro nos encontrarmos por algum motivo, se o destino nos reunir como fez hoje, vou aproveitar a oportunidade e fazer questão de conhecer você. Depois disso, se ainda quiser que eu a beije, eu o farei. O máximo que eu puder. - Beijei seus cabelos mais uma vez e me afastei, completamente sem graça. - Desculpe. Estraguei tudo, certo? - Levantando os olhos do chão carpetado, ela me lançou um sorriso encantador, negando.
- Obrigada por isso. Por ser tão... Inacreditável. - Os olhos dela brilhavam e eu me sentia um idiota. - Eu preciso mesmo ir...
- Ah, é... Quer que eu peça alguém para levar você?
- Só um táxi, por favor. - Eu assenti e a guiei até a saída da empresa, enquanto chamava um táxi pra ela no meu telefone.
- Namjoon? - Hobi me despertou das lembranças.
- Ahn, não sei. Talvez só... só não pensei muito. - Dei de ombros de novo.
- Ou talvez tenha pensado demais. - Ele rebateu e eu juro que qualquer dia, quando eu tiver a razão, irei torturar Jung Hoseok com ela.
- Namjoon hyung! - Jimin entrou no estúdio de repente, cortando o assunto. - O Hobeom hyung quer falar com você.
- Pode entrar, Jimin. Agradeço por bater na porta. - Hobi bagunçou os cabelos dele, que riu sem graça.
- Excuse me. Feliz? - Nós rimos. - Anda, hyung. Ele disse pra você não demorar. Acho que é pra alinhar alguma coisa de um novo CF pra uma companhia grande.
- Okay, vamos. - Levantei e nós o seguimos.
Fim
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