Finalizada em: 31/03/2022

parte única.

Achei que, de todas as pessoas, eu não seria a escolhida.
Rachel dizia o tempo todo que estava certo, que eu não tinha lido errado, mas eu não sabia no que acreditar: na minha melhor amiga ou no email muito bem detalhado da Louis Vitton me convidando para participar do maior desfile de verão da temporada na Califórnia.
Eu mesma, que tinha lançado apenas uma coleção pela Vladpik e de repente, boom! Redes sociais fervendo de seguidores e vendas altíssimas.
Não dava pra acreditar. Mas no fim, dei um jeito de fazer isso e começar a arrumar as malas.
E aqui estava eu, pousando em Miami, pronta para um final de semana onde eu precisaria fingir que não era uma novata completa.
Quando vi o carro particular me esperando, junto com pelo menos duas pessoas separadas pra me acompanhar até o hotel, falando o tempo inteiro sobre cronogramas e mais papéis, Rachel pareceu ter percebido isso direto da Inglaterra pra me mandar uma mensagem dizendo: “Está começando, não é? Cara, está começando! Sua carreira e seu futuro como granfina!
Ok, era patético pensar isso, mas toda a produção era realmente maior do que eu esperava.
Cruzei os braços quando me vi sozinha desde que cheguei. As janelas davam para o mar de South Beach. O calor era insuportável no térreo, mas ali de cima, a brisa entrava por cada poro das paredes. Disseram que eu podia pedir o que bem quisesse para comer. Disseram que eu poderia sair para jantar em qualquer lugar, igualmente. Mesmo que, com tanta liberdade, eu me sentisse estranhamente presa — e também estranhamente nervosa.
Observei de novo minha pasta de rascunhos com os looks que tinham inspirado aquela coleção, um deles em especial adornado de asas negras. Era verão, mas aquela minha marca registrada: o preto, a obscuridade e a visão maluca e bonita da morte. Por esse motivo, levei aquilo como hobby por tanto tempo. Quem ousaria entender meu conceito? Quem compreenderia a arte de uma garota essencialmente emo, que gosta de criar looks sombrios, mas que estranhamente combinam com qualquer ocasião?
Bem, era assim que as revistas e os críticos me descreviam, mas não posso dizer que estavam totalmente errados.
O desfile não me assustava. Muito pelo contrário, ele fazia meu peito queimar em expectativa. Mas outra coisa também mantinha minha pele acesa, mesmo que fosse praticamente impossível de acontecer.
Aproveitei as últimas horas antes do primeiro evento para rabiscar algumas coisas no ambiente novo e ver se algo legal aparecia. Esmaguei várias folhas de papel na lata de lixo antes de desistir e ir me arrumar. Fora a equipe do próprio evento, eu estava completamente sozinha: sem Rachel, sem Zack e ninguém que me deixasse confortável o suficiente para enfrentar aquela noite não apenas como profissional, mas como uma garota normal que ama moda.
Era fácil elaborar a questão do meu ciclo social: eu podia emanar esse lado emo lúgubre, com minhas roupas inteiramente pretas e minha maquiagem pesada, mas tinha muitos amigos. Eu saía e me divertia ouvindo pop e country, e gostava de drinks doces com frutas. Mas confesso que meus amigos estavam restritos apenas nos limites da Inglaterra, em especial Londres. Esse círculo não se estendia para as outras partes do mundo. Quer dizer…
Aparentemente, tenho um amigo aqui. Um amigo que certamente sabia que eu estava aqui, mas não havia dito nada. E no fundo, isso me frustrava mas, pensando bem, não fazia ideia de como me comportaria se o visse.
Na última vez que isso aconteceu, ele ainda era um garoto, e eu mais nova ainda. Não que fosse exatamente muito mais velho, mas existiam pessoas que tinham muito mais idade nos olhos do que qualquer outra coisa. Era algo que você pegava apenas encarando-o por alguns segundos: o lugar dele não era parado, criando raízes. Era voando, indo embora. Um perfeito nômade que gostava de descobrir coisas.
Um nômade muito gato que sabia perfeitamente usar essas armas pra se dar bem.
Esperava que, se o visse essa noite, minha falta de jeito e minhas pernas desajeitadas não matassem o resto da minha dignidade.



Os flashes eram absurdos. Era como se gritassem “que se dane que você mal consegue manter os olhos abertos” pra você. A luz vinha em sequências nada espaçadas e tive certeza que o sorriso que estavam captando de mim era claramente de desespero. E eu nem estava passando pelo tapete principal, caramba.
Digo, eu não era modelo e nem nada. Me produzi exatamente do mesmo jeito de sempre: minhas botas brilhantes, minha saia longa com fenda e a blusa curta até o meio do abdome, detalhada com mangas bufantes. Tudo inteiramente preto, mesmo que o resto das pessoas abusasse do laranja e do verde fluorescente. Verão, dã. Mas ficou claro o quanto meu nome estava maior do que pensei quando entrei no tapete e recebi perguntas desvairadas sobre o que esperar da coleção de verão Black ATT (All the Time) que era o nome dos conjuntos de biquínis e saídas de praia no melhor estilo dama de preto, mas que tinha virado uma febre entre as garotas — e os garotos, por assim dizer.
Eles não esperaram muito por uma resposta, porque logo fui arrastada pela produção para dentro da arena que, aparentemente, estava sofrendo um atraso por causa de um problema com botões de outra empresa e de outra coleção — botões, vê se pode! Bufei e andei até o camarim, fazendo o trabalho que sempre fiz, mas agora um pouco hesitante por fazê-lo com quem eu não conhecia: orientar os responsáveis pela triagem das roupas, medidas e organização dos modelos para entrarem nas passarelas.
Eu sei, eu provavelmente deveria estar sentada em frente à passarela junto com os CEOs e mais gente rica e blogueiras famosas para apenas assistir o que já criei. Mas simplesmente não posso e não seria exatamente assim: sou uma novata, para todos os efeitos. Preciso que tudo saia perfeito para que o Giorgio Armani, ou Donatella Versace olhe para minhas criações e queira tirar qualquer casquinha depois, e eu subiria o queixo naquela minha posição profissional e aceitaria uma reunião.
O trabalho no backstage era mais fácil: eu praticamente fiquei parada enquanto os problemas chegavam até mim e, sério, como pude pensar que em um desfile desse tamanho não haveria tantos problemas? Uma garota chamada Anne, um pouco baixa e completamente aflita, se virou e entrou em minha sala separada no momento em que eu acabava de consertar um ponto no vestido na área da coxa de uma modelo que devia ter 1,80 de altura.
! — arfou ela, os olhos um tanto arregalados. Lentamente, ergui os olhos e juntei as sobrancelhas.
— Algum problema? — perguntei enquanto gesticulava para a outra garota sair e tomar seu lugar lá fora. Deviam faltar apenas 30 minutos para o início do desfile. E teoricamente, aquela garota era a última.
— Parece que temos um modelo a mais.
Estreitei os olhos, segurando nas pontas da fita métrica rodeada pelo meu pescoço.
— Não temos, não — peguei uma pequena faixa de cabelo que havia deixado em cima da mesa, fazendo um rabo de cavalo. O glamour desaparecia completamente num evento daqueles — A produção disse que fez a seleção de modelos, e me passaram a relação de números corretamente, como…
— Eu sei, eu sei, mas esse cara era uma das grandes aquisições que a Vladpik tinha conseguido no início, ele tinha agenda e horário livre, mas recusou. E agora aceitou o convite de última hora, ele já chegou e está com a roupa, só precisa de um ajuste. Não vai demorar, . Precisamos desse cara.
Endireitei o corpo, baixando os ombros enquanto passava alguns fios soltos para trás das orelhas. Eu também esperava que as pessoas daqui fossem do tipo de querer tudo na mão e no momento delas, mas por que raios alguém iria aceitar o trabalho de última hora se já tivesse recusado? E por que tínhamos que nos curvar às ordens de Vossa Majestade? Que falta de timing, as pessoas tinham horários.
— Ok, onde ele está? — suspirei, derrotada.
— Venha comigo. Ele está na ala privada do camarim.
Franzi o cenho e a garota já deixava a sala. Como assim privada? A única sala privada era a minha naquele camarim, e outra pessoa…
Andei atrás dela com pressa, sem pensar nisso com urgência, até me virar onde tinha dito e ver quem estava ali.
Ah, merda.
Isso não podia estar acontecendo.
Aquele sorriso canalha também não podia estar acontecendo.
— Bom te ver, señorita.
Franzi os lábios automaticamente. Ah, não. Não! Por que ele sempre tinha que me chamar assim?
, esse é…
— Sei quem ele é — murmurei, sentindo a bochecha corar como uma estúpida. Como se eu tivesse que estar preparada, tivesse que prever uma coisa dessas. Que baboseira.
Eu não disse que ganhava dinheiro com a beleza? Era disso que eu estava falando.
Fui para o lado dele, agarrando a fita métrica e encarando a garota como se deixasse claro que era seguro que me deixasse sozinha ali. Quando ela se retirou, me virei para ele sem dizer uma palavra, observando sua roupa completa com um estalar de língua. Era quase como o look principal da noite: o casaco brilhante aberto, mostrando o peito e o abdome nus. A calça social preta. E o grande colar de prata descendo por seu tórax brilhante, a magia do glitter e a vibe do verão.
Fala. Sério.
Meu olhar adejou de seu pescoço para os pontos do casaco em suas costas, e em momento nenhum queria que ele me pegasse encarando demais. Não queria que visse o quanto eu estava nervosa e ainda um pouco surpresa.
— Vamos fingir que não nos conhecemos? — perguntou, em sua voz aveludada de sempre.
— Não estou fingindo nada, eu disse que te conheço — puxei a costura vários centímetros para baixo, me esforçando para me concentrar apenas naquilo.
Ele riu de maneira divertida, e mesmo estando atrás dele, era tão visível que me deu arrepios.
— Não nos vemos há um bom tempo. Quanto seria? Sete anos?
— Seis.
Ele assentiu, abrindo um pouco os braços quando os toquei para ajustar. Eram os mesmos que eu me lembrava. Que foi? Pode perguntar a qualquer uma, era impossível esquecer braços que eram fortes e delicados ao mesmo tempo, mesmo que não fizesse muito sentido.
— Bastante tempo. Como você anda?
— Estou bem, na medida do possível.
Passei para a frente, agora consertando os benditos botões que tinham começado isso tudo. Como a mulher fraca que sempre fui, olhei para ele por um instante. Alguma coisa no rosto de estava apreensivo. Me lembrou um pouco dos rostos assustados que se vê ao redor daquele lugar, um rosto que indicava totalmente o medo de falhar ou um que já enxergava o erro antes mesmo de ser tomado.
Era o mesmo rosto que tinha quando foi embora, há seis anos.
— Isso é bom. Você não mudou nada. Mesmo sem as mechas no cabelo, ainda parece a mesma.
Minha respiração saiu desregulada por um momento. Foi como se eu sentisse marimbondos em minha pele. Esse cara só podia estar de brincadeira ou eu era idiota o suficiente de me permitir sentir essas coisas depois de tanto tempo.
Por fim, me recompus bem rápido e limpei a garganta antes de responder:
— Não sei se isso é muito bom, na verdade. E você? Por onde andou?
— Andei por todos os lugares. — deu de ombros — Aproveitei cada céu azul. Criei memórias. Me distraí.
Soltei uma risada nasalada.
— Você disse mesmo que ia se distrair — balancei a cabeça. Há muito, muito tempo, essa foi a desculpa que li naquele maldito bilhete ao lado da cama.
— É. Foi exatamente o que eu fiz. O que ainda faço.
— E para onde foi se distrair?
— Tailândia. Conhece os templos budistas?
— Foi tirar um tempo sabático como as protagonistas de comédia romântica? — perguntei com ironia, agora deslizando os dedos para muito perto de seu peito. O segredo era fazer um esforço para não olhar demais. Sua risada fez com que ele tremesse na região e foi quase como ser pega em flagrante.
— Na verdade, não. Mas fui fazer uma oração.
Arqueei as sobrancelhas em surpresa.
— Fez uma oração?
— Isso te assusta?
— Para quem se dizia um cético total…
— Ninguém fica cético a vida toda. Ainda mais depois que algumas coisas desafiam toda a lógica que você depositou no mundo — ele esboçou uma careta de desgosto, fruto de várias e várias sessões de frustração, pensou eu.
— Então… O que pediu? — agora eu parecia estar enrolando algo que não devia ser enrolado, mas o tom de sua voz sonhadora e distante sempre me deixava curiosa para o que quer que quisesse contar.
— Fui pedir uma outra chance — respondeu simplesmente. E olhou diretamente para mim quando fez — Não especifiquei tempo, mas… Foi o que eu pedi.
Ultimamente, eu não pensava muito em como costumava fazer há anos atrás. Quando fazia, era sempre para ficar feliz e, em seguida, triste e frustrada de novo, e esse tanto de coisa não ajuda em nada uma pessoa a seguir em frente. Mas eu tinha de admitir que conhecia cada traço e vibração de seus vários tons de voz, e aquele tom que usava para falar comigo naquele momento era algo muito louco e diferente que nunca sequer ouvi.
O fardo de saber disso me fez erguer as costas imediatamente e quebrar aquele contato visual viciante que só ele conseguia fazer.
— Bom, tudo certo por aqui. Eu vou nessa, obrigada pela sua participação.
Desviei o olhar dele e comecei a me virar para ir embora, direto para a parede de vidraças.
, espera. — parei imediatamente quando ele chamou. Trinquei os dentes, querendo simplesmente correr, mas virei o rosto em perfil e esperei — Ainda somos amigos, não é?
Prendo a respiração. Não sei o que responder. Simplesmente não sei. Amigos podem ser amigos depois de uma noite daquelas? Amigos conhecem o gosto dos outros amigos? E amigos vão embora no dia seguinte, mesmo sabendo disso?
Não faço ideia. Mas mesmo assim, dou um sorrisinho curto e balanço a cabeça que sim, por que como negaria uma coisa dessas? Não era legal dizer que tal pessoa não é sua amiga, independente da situação.
E por tudo que passamos, era difícil e ridículo dizer uma coisa dessas.
— Claro, . Somos amigos.
Ele franziu os lábios de um jeito estranho, mas assentiu e sorriu logo em seguida.
— Gosto de saber disso, señorita. Te vejo na passarela.



Eu disse que os planos de era desbravar o mundo, mas não esperava que tivesse ficado tão famoso nesse processo.
Eu sabia de seus trabalhos esporádicos como modelo e que também construía casas no Haiti duas vezes por ano, mas fala sério, fora isso o cara era um mistério total. Não aparecia na mídia, não morava mais de 3 meses em um lugar e só sabia que estava em Miami por causa de uma marcação no Instagram em uma foto de um amigo de longa data. Não duvido nada que morava em um hostel ou qualquer coisa dessas que não precise de mudanças pesadas e que tenha café da manhã, não importa quanto dinheiro ele tinha.
Naquela noite da after party, sua presença era um tanto dolorosa pra mim. Todos os olhos estavam decididamente sobre ele e sua performance na passarela mais cedo. E ele teve apenas uma troca de roupas. Mas usava as minhas roupas. E eu sabia que minha caixa de e-mails estava lotada apenas pelas várias notificações de Rachel.
Eu ainda não tinha engolido aquela história completamente.
Ele estava ali, bebendo e conversando com um cara de terno qualquer, sorrindo daquele jeito animado que eu me lembrava. Aí estava uma situação de merda também: tudo me fazia lembrar. De qualquer coisa. Me transportava para o passado em uma nostalgia ridícula, e eu precisava me desvencilhar disso imediatamente.
O calor era absurdo até mesmo à noite. No melhor estilo Miami, as tendas montadas em Hollywood Beach em um espaço muito amplo e particular estava lotado do mesmo jeito. A brisa marinha da noite me fazia sentir perto do mar mesmo sem estar, como se o espaço entre nós fosse algo tangível. Mas tinha algo de penoso nessa beleza noturna; não sei se era aquela bebida que me deixava com o semblante meio dormente ou se eu estava com um vazio esquisito no peito, como se sentisse solidão mesmo no meio de tanta gente.
Bufei, me virando para pegar outra bebida com bastante gelo. Rachel estava certa, eu só sobreviveria a esse final de semana com margaritas.
— O teor de álcool dessa coisa é maior do que você pensa — disse a voz dele bem atrás das minhas costas, assim que surrupiei um drink bem bonito com um limão na borda.
Me virei em sua direção, arqueando uma das sobrancelhas e bebendo um gole do que quer que seja aquilo, que percebi estar longe de ser uma margarita.
— Ótimo. É exatamente o que eu estava procurando — fiz uma careta ao falar. Ele deu um sorriso de canto.
— Está sozinha, não é?
Pareceu uma pergunta, mas não soava bem como uma pergunta. Apenas dei de ombros e tentei não parecer tão afetada. Esperava que ele entendesse que eu estava traçando uma linha entre nós dois e ponto final.
— Como pode ter certeza disso?
— Você geralmente bebe qualquer coisa quando está nervosa. Principalmente em lugares novos e sem nenhum conhecido.
Dei uma risada falsa, balançando os dedos.
— Tenho muitos conhecidos aqui, .
— Eu sou apenas um, señorita.
Trinquei os dentes por aquele pronome de novo. Revirei os olhos, bebendo mais um gole farto daquilo que era forte demais.
— Você sempre está se colocando no centro da linha.
— Quero dizer que você me conhece. Então não precisa se sentir tão deslocada.
— Por que acha que eu te conheço? — levantei uma sobrancelha em desafio. Que se dane, eu já estava em um ponto alegre demais para falar qualquer coisa — Desde que me viu hoje você me olha e fala como se tivéssemos nos encontrado ontem pela esquina, mas não é assim. Faz anos, . Não sei se ainda te conheço. Algo estava acontecendo na sua vida esse tempo todo e eu não faço ideia, mas está tudo bem, eu já superei. Mas não quer dizer que te conheço hoje.
Ele fechou a cara minimamente, tão sutil que precisei piscar os olhos algumas vezes e reparar bem. Até mesmo seu rosto completamente incomodado sabia ser discreto. Isso tornava ainda mais difícil saber o que ele estava pensando.
— Algo estava começando na minha vida naquela época, mas creio que não precisa ter grande importância agora. Eu também já superei.
Quis dizer alguma coisa, mas nada saiu. Seu tom era tão sério que me paralisou. Não quis nem perguntar os reais motivos daquele maxilar cerrado.
Mas eu ainda não entendia. tinha desaparecido. Bom, pelo menos da minha vida. Uma mensagem aqui e outra lá não eram de grande valia pra quem não planejava voltar. Era como se tivesse jogado tudo fora, anos e anos de amizade, por causa de uma noite não planejada.
Uma noite perfeita, mas inesperada. Perdi as contas de quantas vezes me culpei por causa disso.
Mas eu e minha língua não aguentaríamos ficar paradas por tanto tempo.
— O seu nome é bem grande na Dior, fiquei sabendo. Na Gucci também. Você chegou longe, . Por que aceitou desfilar pra minha marca?
— Porque é a sua marca. — ele respondeu simplesmente, como se a questão fosse óbvia. Fiquei sem saber o que dizer de imediato — Sempre acreditei nela, lembra? Disse que você ia avançar, alcançar grandes coisas e aqui estamos.
Bem, era verdade, ele tinha dito aquilo mesmo, mas com tudo que aconteceu, esqueci disso vários dias depois.
— Não sabia que tinha falado sério naquela época.
— Sempre falei sério com você, .
— Então é por isso que você falava tão pouco — dei uma piscadinha, bebendo mais um gole enquanto arrancava uma risada de escárnio dele. Era o mínimo que ele podia fazer: aceitar as verdades sobre suas atitudes sem argumentar contra. Ele tinha sido o cara a acordar bem antes do amanhecer e cair fora, não eu.
Outra sombra irregular se amontoou ao redor de seus olhos e ele depositou sua própria bebida na mesa, inclinando a cabeça na direção da saída.
— Quer tentar fazer uma coisa legal?
Engoli em seco. O pedido era sincero e não vi nenhuma gota de segundas intenções, ainda que meu corpo vibrasse ali mesmo, perto dele. Quis perguntar o que ele pretendia, mas sabia que minha língua me trairia e eu gaguejaria como uma idiota, então apenas levantei os ombros, como se não fizesse diferença.
— Tudo bem, não estou fazendo nada mesmo — falei, e ele riu. Foi melhor do que gaguejar. Em seguida, seguimos para fora, para a brisa estonteante e as luzes noturnas do corredor de pedras na areia.
Agora afastados o suficiente, ele parou em frente à margem, inspirando pesadamente e expirando de forma lenta. Era uma imagem de paz. Fiquei imaginando se ele fazia isso todas as noites, desde que morava aqui.
E então, estendeu uma mão para mim e disse, de forma dócil:
— Dança comigo.
Esse cara só podia estar de brincadeira.
— Sério? Isso é ridículo.
— Então vamos ser ridículos mais uma vez. Pelos velhos tempos.
Suas palavras me pegaram de surpresa e então, de repente, lá estava eu, parada feito uma idiota enquanto cultuava os traços elegantes de e a memória de sua cabeça inclinada enquanto me chamava para dançar daquele mesmo jeito há anos atrás, depois de uma aula terrível da faculdade ou só quando eu dizia que estava triste com alguma coisa. Aquele tipo de atitude que foi se repetindo e repetindo até que eu perdesse o sono, e não me apaixonar por ele não estava mais sob meu domínio.
E assim, é claro que revirei os olhos e peguei em sua mão.
Todo o episódio caótico com ia sendo minado de minha mente à medida que nossos pés erravam um no outro, e fui obrigada a largar as botas de lado, assim como toda a integridade da minha saia e ele já havia feito a mesma coisa há muito. Era uma atmosfera que tinha me esquecido que ele era capaz de proporcionar, e tudo piorou depois das doses de tequila que um garçom muito bem apessoado, vestido de bermuda e colar havaiano, foi deixar especialmente para nós dois.
Merda, estávamos sendo claramente observados por uma festa inteira e eu nem conseguia ligar pra isso.
Quando comecei a literalmente rir de qualquer coisa e trocar os pés, sabia que já estava totalmente alucinada. Todas as minhas respostas seriam voláteis, mas sinceras. Eu seria capaz de contar toda a verdade que estava guardando esse tempo todo, e isso era uma droga.
Quando sua mão se apertou ao redor de mim, percebi com excitação o quanto nossos corpos se encaixavam e o quanto isso era um fato. Ainda nos movimentávamos, agora bem devagar, enquanto eu ria de estar com os pés sujos e a cabeça zonza do álcool, mas estar ali com parecia algo muito mais sonhador e irreal.
— Você está ainda mais linda do que eu me lembrava — disse em sua voz abafada e sedosa, apertando as mãos mais ainda em minha cintura, perdendo a pose tão formal que adquiriu naquele dia inteiro e se utilizando da nossa linguagem íntima própria.
— Você sempre disse que eu era bonitinha. — fiz uma careta — Isso não era muito animador.
Ele soltou uma risada alta, encostando nossas testas.
— Que bom que acreditou. Era o intuito.
— Seu intuito era me afastar e sumir como um espírito naqueles caminhos de corpos?
Ele deu de ombros, descontraído.
— Foi mais difícil do que eu pensei.
— Por que? O que você…
— Eu não podia ficar. — respondeu na frente, afrouxando o aperto em mim, ficando um tanto mais sério a cada segundo — Não naquela época. Não com os problemas da minha família, com as perdas que vieram depois, com a minha mente uma bagunça. Eu não seria bom pra você. Ainda acho que não sou. Mas então ouvi que você chegaria e… não consegui. Não pude ficar parado de novo.
Pisquei os olhos, me afastando um pouco. Toda a dúvida e confusão do mundo estavam ali agora, estacionadas no meu rosto.
— O que houve? — perguntei em um fio de voz.
Ele pegou uma mecha do meu cabelo e colocou-a para trás enquanto sorria gentilmente de canto, como quem não queria tocar no assunto, mas não o negaria para mim.
— Meu pai tinha perdido tudo na França. Ele tomou as piores decisões na bolsa de valores e achou que seria melhor tirar a própria vida depois disso. De início, eu não estava muito preocupado com ele, sabe… O cara sempre foi um babaca. Mas minha mãe sim era uma preocupação, e ela arcou com as consequências até… Tomar a mesma atitude que ele — ele deu de ombros de forma triste, mas não desviou os olhos do meu — Embora eu tenha dito que resolveria a situação. Que trabalharia muito e devolveria o mínimo de paz pra nossa vida. Acho que ela não confiou em mim.
Abri a boca pra falar, mas não sei exatamente o que diria. Tudo em mim soava como triste, triste, triste.
— Eu sinto muito — foi o que consegui esboçar. De repente, entendi tudo. Não parecia mesmo provável que me ligaria enquanto estava passando por um caos que nunca nem pensei em passar.
O sorriso dele veio acompanhado de mais um abraço desengonçado comigo, e então eu não sentia mais nenhum sentimento ruim emanando dele, como se realmente tudo o que aconteceu naqueles anos tivesse sido resolvido em seu interior, e ficado completamente para trás.
— Obrigado. Por ter me dado a chance de me explicar — disse em meu ouvido, erguendo a cabeça para olhar em meu rosto.
— Essa era a chance que pediu na oração? — zombei, estreitando os olhos.
— Essa e mais outra — disse enquanto inclinava o nariz para mais perto.
Parei de sorrir. Não, esse cara não podia estar falando sério. Ou podia. Naquele momento, eu desejava que estivesse, mas tinha medo, só medo…
— Eu deveria estar fugindo de você, .
— E eu de você, señorita. Porque sabia que te ver significaria me proibir de fazer o que realmente quero porque não mereço, mas sou egoísta o suficiente pra não dar um passo.
E então ele se aproximou mais. E mais, e mais, mais, mais. E só a ideia de correr já me atormentava como uma coleira.
Deixei que ele me beijasse, fechando os olhos e levantando os pés para sentir o frenesi de seu toque. Cada poro da minha pele se arrepiou e entrou em chamas. E não sei por quanto tempo ficamos assim até que eu me afastasse para respirar e olhasse seu rosto, agora mais iluminado pelo céu que clareava aos poucos, anunciando o amanhecer.
Eu quis gritar. Quis empurrá-lo, dizer que uma história triste não apagaria toda aquela palhaçada de antes, que nada mudaria o fato de que ele foi embora e ficou meses sem entrar em contato, nada seria o suficiente para desfazer essa imagem da minha cabeça.
Mas, no fim, só consegui dizer:
— Meu hotel é perto daqui…
Ele arfou, como se estivesse segurando uma respiração pesada na garganta desde que saiu de casa naquele dia e não me deixou terminar. Simplesmente, agarrou na minha mão e começou a me puxar para longe da música e das luzes, que ainda estavam frenéticas, em direção ao caminho da arquitetura esquisita do Nautilus.



Manhã seguinte não era o termo correto pra quando acordei.
Seria mais para uma tarde, ou o fim dela. Antigamente, eu amava acordar a essa hora, porque não tinha momento do dia em que eu ficava mais desperta do que no momento em que acordava e o céu do fim da tarde era a primeira visão que tinha. Era uma afeição meio a contragosto, porque com a correria da minha vida logo depois, ficava cada vez mais difícil dormir à tarde e acordar naquele horário.
Admirar o céu naquele estado era um sentimento nascido da nostalgia. Mais nostalgia do que afeto de verdade. E, quando acordei com a luz rosada no rosto, olhei para o lado e me vi sozinha, sem minha outra nostalgia.
Não sabia o que sentir de imediato. Não sei nem se tinha algo a que sentir. Só sabia que um gelo intenso desceu por todo o meu estômago e me senti mais triste do que patética, ali, enrolada naquele lençol maravilhoso, como em uma cena repetida de seis anos atrás.
Mas, antes que eu começasse minha crise de choro e minha sessão de autopiedade, pensando em como era idiota por confiar em um cara que já tinha fugido uma vez, ouvi a porta ranger um pouco ao ser aberta, e entrou de costas, segurando algo grande o bastante que tomava seus dois braços.
Fiquei imóvel até que ele respirasse fundo e se virasse para a cama, movendo-se devagar para não fazer barulho.
Ele pareceu levar um susto ao me ver sentada, agarrando o tecido com força nos dedos.
— Ah! Você acordou — disse com um sorriso meigo, depositando as várias sacolas de papelão em cima da mesinha ao lado da janela do chão ao teto, junto com dois cafés — O café da manhã já tinha sido há muito tempo, então fui em busca de alguém que entendesse nossos horários peculiares.
Ele andou até mim, usando um jeans largo e rasgado nos joelhos junto com uma camiseta branca, e devia estar tão lindo daquele jeito com os cabelos ainda bagunçados e tremendo ao vento, que senti como se apenas meu corpo estivesse ali, e minha consciência assistia a tudo isso dos fundos de alguma parede do quarto.
estava ali e trouxe o café da manhã, mesmo que estivesse quase anoitecendo.
Ele então, se sentou ao seu meu lado e tomou meu rosto entre suas mãos, juntando nossas bocas em um beijo apaixonado e que não me deixou dúvidas. Nenhuma dúvida.
— Bom dia, señorita.
Que inferno.
Como eu amava quando ele me chamava assim.




FIM



Nota da autora: Olá! Muito obrigada por ter lido! Não se esquece de deixar um comentário e me dizer o que achou ♡ vocês também podem me achar no instagram onde eu posto rotina de escrita e falo das minhas outras histórias. Até logo ♡

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