Capítulo Único
A camada de azul-cerúleo estava quase secando.
“Merda”, Draco chiou entre os dentes enquanto revirava o estoque, espalhando tubos de tinta por todo o chão do atelier.
Harry bufou, levantando-se da cadeira em que Draco tinha demorado meia hora para convencê-lo a posar. Com um aceno, Draco sumonou todas as caixas do armário de uma só vez.
“Só um minuto. Eu juro que tenho um restinho aqui em algum lugar, só preciso-”
“Podemos fazer isso em outro momento”, Harry o cortou, com o celular em mãos. Todos os malditos tubos estavam vazios ou secos. Cada. Um.
“Você sempre diz isso, mas aí nunca-”
“Depois. Tenho uma papelada gigante me esperando no escritório, e Shacklebolt acaba de marcar uma reunião de última hora.”
“Mas é domingo, e o nosso-” Draco abandonou as caixas para interceptar Harry no caminho da porta. “Minha mãe vem jantar conosco hoje, ou você esqueceu?”
“Narcisa vai entender, é trabalho”, Harry retrucou, contornando Draco e seguindo até a saída sem desviar os olhos do email que estava redigindo.
“Harry?”
Nenhuma resposta além do sino da porta.
Draco M. Potter – 17h
Se a Bulstrode’s estiver aberta, traga branco-titânio, por favor.
Te amo.
“Tem certeza?”
Era a terceira vez que sua mãe o perguntava se estava tudo bem. Draco costumava ser extremamente habilidoso em ocultar suas emoções; habilidade esta que, sem dúvidas, salvou sua vida durante a Guerra. Mas Narcisa Malfoy não era o tipo de pessoa que precisava de legilimência para saber que algo estava incomodando seu filho.
“É só que-”
Ele nunca tinha reclamado de Harry antes, não com Narcisa. Desabafos bêbados com Pansy pela rede de flu eram uma coisa; ambos sabiam que as reclamações de Draco não passavam daquilo, que ele nunca agia sobre a mágoa e que Pansy jamais levaria as dores do amigo pro lado pessoal. Afinal, falar mal de Potter era quase uma tradição de infância entre eles.
Mas com Narcisa… Como mãe, isso com certeza abalaria a pouca relação que ela tinha com Harry, certo? E se ela passasse a odiá-lo? Draco não podia arriscar que suas únicas duas referências de família de repente passassem a não se cumprimentar no Natal por sua culpa.
“Querido,” Narcisa segurou sua mão, acariciando-a. “Você não tem que se abrir comigo se não quiser, mas precisa expor seus sentimentos para alguém.”
“Não é nada, mãe.” Ele levantou-se, servindo-lhe mais sobremesa, como se não pudesse fazer o mesmo do conforto do seu assento. “Harry está trabalhando muito, e eu… Bom, eu sinto falta de companhia.”
Narcisa o observou atentamente entre cada garfada de torta de melaço, mas não tentou cutucar o assunto mais a fundo.
“E, claro, tem o fato de que eu não consigo imaginar como vou aguentar mais um ano inteiro dependendo de vocês para absolutamente qualquer coisa que eu precise fora dessa casa”, Draco ofereceu, sabendo que a melhor maneira de evitar um assunto delicado é trazer outro ainda mais delicado à mesa. “Ou que o nosso aniversário de três anos está chegando e eu não consigo finalizar o bendito quadro que pretendia dá-lo de presente, e, Merlin, estou prestes a pedir ao Blaise que passe no Gladrags e traga uma gravata qualquer. Inclusive, a senhora ouviu que abriram uma Hermès no Beco Diagonal? Sem dúvidas Harry acharia um lenço muito mais útil do que uma pintura, do jeito que ele volta ensopado quando corre, ou ao menos nossas toalhas de rosto agradeceriam. Mas como eu poderia escolher qualquer coisa só por fotos quando tenho que considerar a textura e- UM ANO sem sair desse lugar assombrado, como eu vou-”
“Draco.” Narcisa interrompeu-o, lançando um feitiço calmante que, surpreendentemente, o envolveu em calor e uma ausência de pensamentos que, de fato, o fez sentir melhor, ainda que seu discurso tenha sido apenas uma estratégia de distração. Tem certeza?, seu subconsciente questionou, uma faísca de desconfiança infiltrando sua lógica. “O tempo voa, querido.”
Não sei se ele vai aguentar esperar até lá, Draco não respondeu.
Ao invés disso, ele recolheu os pratos e os talheres de Harry, ainda intocados na mesa.
A domiciliar não era um problema no começo do casamento. Por Circe, era praticamente uma bênção.
Potter tinha testemunhado em todos os julgamentos de Comensais; em alguns colaborando para a prisão perpétua dos réus, e em outros, como o dos Malfoy, dando tudo de si para amenizar a pena. Lucius levou o beijo, por mais que a Ordem defendesse que a sanção fosse ultrapassada e desumana; Draco cinco anos de prisão domiciliar; e Narcisa um ano de exílio – a pena mais leve, por não ter tomado a Marca.
“Eu nunca estive tão feliz por te livrar de Azkaban”, Potter exclamou na primeira vez que Draco mergulhou de cabeça entre suas pernas. Eles estavam bêbados na Mansão, sozinhos, depois que os aurores tinham revirado mais uma série de cômodos aleatórios que Draco não tinha tido tempo de revistar depois que se tornou o senhor e prisioneiro da propriedade.
“Ainda não entendo o porquê”, Draco admitiu semanas depois, ofegante, enquanto encaravam o teto, pernas trançadas em sua cama.
“Vocês não tinham escolha. Talvez seu pai, mas até ele não merecia… enfim.”
Potter tinha o costume de acaricir o seu cabelo depois do sexo. Tão loiro, ele dizia.
Draco não sabia que estavam namorando quando a proposta veio.
“Eu já tenho passado todas as noites aqui, de qualquer forma”, foi todo o romantismo que Harry ofereceu.
Draco concordou, sem revelar quantas vezes tinha fantasiado esse cenário. Alguns meses depois, eles assinaram os papéis num almoço especial servido no jardim para Narcisa, Pansy, Blaise, Granger e Weasley.
Harry odiava ser auror – não que ele admitisse isso em voz alta, com todas as palavras –, mas a verdade estava lá, escondida nas entrelinhas. Se alguém apenas prestasse atenção na maneira como ele falava do escritório, dos casos, dos colegas de trabalho, o desprezo em sua voz quando mencionava a desorganização da instituição como um todo. E Draco ouvia.
Harry também odiava ser usado pela mídia, e era exatamente esse o seu papel na Força. Com apenas três anos de casa, Shacklebolt tinha mexido os pauzinhos para promovê-lo a auror-chefe, cargo que significava acima de tudo mostrar o rosto de reunião em reunião, entrevista em entrevista, assegurando o Ministério de que a opinião pública soubesse que a Grã-Bretanha bruxa estava mais segura e imbatível que nunca. Como se tivesse sido algum dia.
Draco ouvia.
“Como foi o dia?” Ele costumava esperar na porta para recepcionar o marido. Recolhia seu casaco e prosseguia a massagear-lhe as costas, o que geralmente quebrava todas as reservas em Harry, que, sem pensar, começava a falar. E a fala levava ao toque, e o toque ao calor, e o calor ao refrigério, e o refrigério à paz que ambos necessitavam.
Até o dia em que Harry parou de falar.
“Você, pintor?” Pansy tinha indagado, um ar irônico em sua voz, quando Draco anunciou seu novo hobby.
“Parkinson, você está menosprezando meus talentos?”
“O Draco que eu conheço jogou uma lata de tinta na cara do professor com sete anos de idade, porque, e eu cito”, ela fez um sinal de aspas com a mão, “‘Um Malfoy não tem tempo pra se sujeitar a essas frivolidades’. Então, a pergunta na verdade é: desde quando você não menospreza qualquer forma de arte?!”
“Bom, tempo é o que eu mais tenho agora, não é mesmo?” Ele retrucou, antes de caírem na gargalhada.
A pintura veio como uma válvula de escape, quase um esporte. Harry liberava endorfina correndo todas as manhãs; Draco se trancando no atelier da Mansão e descontando nas pinceladas toda sua frustração.
A prisão tinha sido suportável enquanto ele tinha a atenção de Harry. Merlin, talvez todo o caralho da Guerra teria sido mais suportável se ele tivesse tido a atenção de Harry. Mas agora que Draco passava a maior parte do tempo sozinho, mesmo quando acompanhado, cada segundo era infernal. As paredes desse lugar não o assombravam mais apenas com as memórias do sangue de cada pessoa que tinha sido assassinada ali, mas também com a saudade de todas as vezes que ele tinha sido empurrado contra elas, mãos insistentes no seu corpo, língua por todo lado, dentes…
O sexo tinha perdido a frequência. As conversas quase não existiam mais.
“Não é sua culpa”, Pansy tentava confortá-lo, “ele só está sendo marionete Deles até hoje.”
E Draco sabia que ela estava certa, ele sabia, mas não conseguia tirar da mente a noção de que talvez ele também só piorasse a situação.
“E aí ele chega em casa toda noite procurando sossego, e quem encontra? Isso mesmo, um maldito Comensal da Morte, com quem, por algum motivo maluco, ele aceitou se casar.”
“Decidiu, Draco. Você não forçou ninguém a nada, pelo contrário. Partiu dele.”
Então ele pinta, primeiro quadros pequenos, depois painéis inteiros, tapeçarias e até paredes. E em todas as suas pinturas, embora ninguém repare, ele conta a sua história.
Draco estava sentado à mesa, posta com vinhos, queijos, e carnes das mais diversas, às seis. O retrato, finalmente finalizado depois de meses, estava no seu quarto, embalado em papel pardo junto a uma carta em cima da cama. Harry deveria ter chegado às cinco.
Draco encarava a porta quando a maçaneta girou. Harry estava sem casaco.
“O que é isso tudo?”, ele perguntou, acenando para a mesa. Era a primeira palavra que dirigia a Draco em três dias. “Bom, o banquete veio em boa hora, eu estou faminto.” Possivelmente o maior número de palavras que ele dirigia a Draco em semanas.
Harry não parecia um jovem de 22 anos, Draco observou, não pela primeira vez, enquanto ele se servia. Suas mãos eram calejadas como a de um trabalhador braçal, decorada por cicatrizes que Draco conhecia muito bem. Seu olhar carregava o peso de muitas gerações. Seu cabelo – bem, seu cabelo era o mesmo caos de sempre, mas já eram perceptíveis alguns fios cinzentos aqui e ali. Era curioso, todavia, saber tanto sobre uma pessoa e, ao mesmo, não ter ideia do que se passa na sua cabeça.
“Me diz que eu estou errado”, Draco sussurrou, apenas audível o suficiente para que Harry o escutasse no silêncio da sala de jantar.
“Hm?”, ele respondeu, sem erguer o olhar de seu prato.
Draco respirou fundo por um momento.
“Me diz que não estamos apenas prolongando o inevitável.”
Finalmente, Harry levantou a cabeça, e seus olhos se encontraram. Nenhuma voz ousou quebrar a quietude, contudo, então Draco continuou.
“Eu não espero que você se lembre do nosso aniversário. Circe, até hoje eu não espero poder afirmar em alto e bom som que somos casados, caso você mude de ideia, mas eu espero, Harr-” Contra a sua vontade, algumas lágrimas teimaram em escorrer pelo seu rosto. Com uma mão, secou-as furiosamente. “Potter... Por alguma razão insana e que talvez eu não tenha o menor direito de invocar, ainda espero que o mínimo que eu mereça seja uma pessoa que esteja comigo porque quer estar, e não apenas porque me tolera.”
“Draco-” Harry disse, mas nada seguiu.
Depois do que pareceram horas esperando por algo, qualquer coisa, uma súplica que fosse, Draco levantou-se da mesa e se retirou determinadamente até o quarto. Sem usar a varinha, lançou o quadro no canto mais fundo do guarda-roupa e se jogou na cama, deixando o choro tomá-lo por inteiro.
O som de um pincel numa tela pode variar. Às vezes é como passar manteiga num pão, macio, escorregadio, confortável. Às vezes é como se barbear, bruto, cortante, quase agressivo. Draco estava familiarizado com toda a extensão de sons que a pintura poderia proporcionar, mas acordou rodeado por um som tão diferente e, no entanto, tão reconhecível, que ele só podia descrever como: alguém está destruindo uma das minhas telas novinhas, e eu juro por Merlin que vou matar o filho da puta.
Com os olhos entreabertos, a teoria se confirmou, mas com ela veio uma enxurrada de lembranças da noite anterior. Harry estava sentado na beira da cama, observando Draco com uma paleta em mãos e uma camiseta toda manchada que expunha os músculos do seu braço. Draco só conseguia odiar o bastardo em triplo. Por destruir seu material de pintura, por destruir seu material de pintura enquanto vestido daquele jeito, e por destruir seu material de pintura enquanto vestido daquele jeito no meio das ruínas de um casamento que ele estava prestes a abandonar a qualquer momento.
“Você sabia que ronca mais do que eu?” Harry disse, olhando fixamente em seus olhos.
Draco estava determinado a ficar calado, mas nem toda a raiva do mundo dava a Harry o direito de ferir sua honra. Draco arremessou um travesseiro em seu rosto e se arrependeu de imediato, quando um pouco da tinta da paleta encostou na fronha.
“Merda, esse é o enxoval da minha tataravó!”, ele esbravejou, pegando o travesseiro de volta e lançando Scourgify o mais rápido possível – feitiços de limpeza nunca eram totalmente eficientes, especialmente em tecidos antigos. “E eu não ronco!”
Harry começou a rir, como se tudo estivesse bem, não só com a maldita fronha.
Draco levantou-se para usar o banheiro, deixando que o silêncio entre eles se estendesse por alguns minutos, cômodo. Era como eles tinham convivido pelos últimos dois anos.
“Eu não te tolero”, Harry anunciou enquanto Draco escolhia uma camisa do outro lado do quarto. Ele paralisou, camisa em mãos, estômago revirado.
Harry começou a caminhar até ele, devagar, e, a cada passo, Draco queria correr e desaparecer, para qualquer lugar que não fosse essa prisão. Esse cemitério onde a única coisa boa em sua vida tinha começado, e onde ela também, como tantas almas antes, estava irremediavelmente fadada a morrer. Ele queria nunca ter aceitado que os aurores entrassem nessa casa – que Potter entrasse nessa casa –, e no seu corpo e… Talvez se Draco tivesse morrido durante a guerra, talvez se fosse ele que tivesse escorregado no incêndio, e não Crabbe, talvez se o seu pai não tivesse-
“Eu não te tolero”, Harry repetiu, dessa vez segurando em sua cintura e fazendo com que um arrepio se instalasse sob a pele de Draco, como uma tatuagem. “Eu te amo.”
Draco queria acreditar, mas talvez ele nunca tenha entendido como Harry podia sequer desejá-lo, que dirá-
Harry contornou seu corpo até que estivessem frente a frente.
“A Guerra acabou comigo, Draco. Não só no passado, ela continua…”
“E eu sou só mais um lembrete do quão fodida toda essa situação é. O Comensal que te espera em casa, na casa onde os seus amigos foram torturados, inclusive, e como você vai descansar comigo ao seu lado e-"
Harry levou um dedo à sua boca, calando Draco.
“Não! Não! Draco… você é a única coisa boa que eu ainda tenho, por que diabos eu me casaria com você se- Merlin, se não fosse por você, talvez eu já teria-”
“Se libertado?” Draco propôs, porque era o mais lógico, porque fazia sentido, porque não era plausível imaginar um mundo em que Harry Potter sairia sem qualquer tipo de prejuízo sem um Malfoy em sua vida. Mas quando os lábios capturaram os seus, Draco não conseguia mais pensar no que era lógico.
“Eu vejo você”, Harry sussurrou entre beijos. “Cada minuto de dedicação. Eu só estou tão exausto que… tenho medo que você olhe nos meus olhos e perceba, medo de te trazer mais problemas quando você já tem tantos-”
“Você é um idiota”, Draco respondeu, sentindo-se como se mil centauros tivessem sido tirados de suas costas. “Eu quero você e tudo o que vem junto, Potter.”
“Mesmo se eu for uma bagunça?” Harry se afastou um pouco, apenas o suficiente para olhar em seus olhos.
“Por Cerci, você sempre foi uma bagunça”, Draco provocou. Por um segundo, seus olhos tingidos de lágrimas se quebraram num sorriso. “Eu quero tudo”, assegurou.
Harry beijou seus olhos. “E eu sei o nosso aniversário, seu dramático.”
Draco encarou-o furioso, sua boca em formato de O, como se dissesse: como ousa?!
“Não é minha culpa se você acha que nos casamos no dia que eu me mudei pra cá, quando tivemos uma cerimônia perfeitamente okay meses depois- ei!”
Draco o empurrou até a cama, sem a menor gentileza. “Já que eu não tenho um marido romântico, demando um bom tratamento na cama.”
“É uma proposta… tolerável”, Harry retrucou, e Draco calou-o sentando em seu colo.
“Merda”, Draco chiou entre os dentes enquanto revirava o estoque, espalhando tubos de tinta por todo o chão do atelier.
Harry bufou, levantando-se da cadeira em que Draco tinha demorado meia hora para convencê-lo a posar. Com um aceno, Draco sumonou todas as caixas do armário de uma só vez.
“Só um minuto. Eu juro que tenho um restinho aqui em algum lugar, só preciso-”
“Podemos fazer isso em outro momento”, Harry o cortou, com o celular em mãos. Todos os malditos tubos estavam vazios ou secos. Cada. Um.
“Você sempre diz isso, mas aí nunca-”
“Depois. Tenho uma papelada gigante me esperando no escritório, e Shacklebolt acaba de marcar uma reunião de última hora.”
“Mas é domingo, e o nosso-” Draco abandonou as caixas para interceptar Harry no caminho da porta. “Minha mãe vem jantar conosco hoje, ou você esqueceu?”
“Narcisa vai entender, é trabalho”, Harry retrucou, contornando Draco e seguindo até a saída sem desviar os olhos do email que estava redigindo.
“Harry?”
Nenhuma resposta além do sino da porta.
Draco M. Potter – 17h
Se a Bulstrode’s estiver aberta, traga branco-titânio, por favor.
Te amo.
“Tem certeza?”
Era a terceira vez que sua mãe o perguntava se estava tudo bem. Draco costumava ser extremamente habilidoso em ocultar suas emoções; habilidade esta que, sem dúvidas, salvou sua vida durante a Guerra. Mas Narcisa Malfoy não era o tipo de pessoa que precisava de legilimência para saber que algo estava incomodando seu filho.
“É só que-”
Ele nunca tinha reclamado de Harry antes, não com Narcisa. Desabafos bêbados com Pansy pela rede de flu eram uma coisa; ambos sabiam que as reclamações de Draco não passavam daquilo, que ele nunca agia sobre a mágoa e que Pansy jamais levaria as dores do amigo pro lado pessoal. Afinal, falar mal de Potter era quase uma tradição de infância entre eles.
Mas com Narcisa… Como mãe, isso com certeza abalaria a pouca relação que ela tinha com Harry, certo? E se ela passasse a odiá-lo? Draco não podia arriscar que suas únicas duas referências de família de repente passassem a não se cumprimentar no Natal por sua culpa.
“Querido,” Narcisa segurou sua mão, acariciando-a. “Você não tem que se abrir comigo se não quiser, mas precisa expor seus sentimentos para alguém.”
“Não é nada, mãe.” Ele levantou-se, servindo-lhe mais sobremesa, como se não pudesse fazer o mesmo do conforto do seu assento. “Harry está trabalhando muito, e eu… Bom, eu sinto falta de companhia.”
Narcisa o observou atentamente entre cada garfada de torta de melaço, mas não tentou cutucar o assunto mais a fundo.
“E, claro, tem o fato de que eu não consigo imaginar como vou aguentar mais um ano inteiro dependendo de vocês para absolutamente qualquer coisa que eu precise fora dessa casa”, Draco ofereceu, sabendo que a melhor maneira de evitar um assunto delicado é trazer outro ainda mais delicado à mesa. “Ou que o nosso aniversário de três anos está chegando e eu não consigo finalizar o bendito quadro que pretendia dá-lo de presente, e, Merlin, estou prestes a pedir ao Blaise que passe no Gladrags e traga uma gravata qualquer. Inclusive, a senhora ouviu que abriram uma Hermès no Beco Diagonal? Sem dúvidas Harry acharia um lenço muito mais útil do que uma pintura, do jeito que ele volta ensopado quando corre, ou ao menos nossas toalhas de rosto agradeceriam. Mas como eu poderia escolher qualquer coisa só por fotos quando tenho que considerar a textura e- UM ANO sem sair desse lugar assombrado, como eu vou-”
“Draco.” Narcisa interrompeu-o, lançando um feitiço calmante que, surpreendentemente, o envolveu em calor e uma ausência de pensamentos que, de fato, o fez sentir melhor, ainda que seu discurso tenha sido apenas uma estratégia de distração. Tem certeza?, seu subconsciente questionou, uma faísca de desconfiança infiltrando sua lógica. “O tempo voa, querido.”
Não sei se ele vai aguentar esperar até lá, Draco não respondeu.
Ao invés disso, ele recolheu os pratos e os talheres de Harry, ainda intocados na mesa.
A domiciliar não era um problema no começo do casamento. Por Circe, era praticamente uma bênção.
Potter tinha testemunhado em todos os julgamentos de Comensais; em alguns colaborando para a prisão perpétua dos réus, e em outros, como o dos Malfoy, dando tudo de si para amenizar a pena. Lucius levou o beijo, por mais que a Ordem defendesse que a sanção fosse ultrapassada e desumana; Draco cinco anos de prisão domiciliar; e Narcisa um ano de exílio – a pena mais leve, por não ter tomado a Marca.
“Eu nunca estive tão feliz por te livrar de Azkaban”, Potter exclamou na primeira vez que Draco mergulhou de cabeça entre suas pernas. Eles estavam bêbados na Mansão, sozinhos, depois que os aurores tinham revirado mais uma série de cômodos aleatórios que Draco não tinha tido tempo de revistar depois que se tornou o senhor e prisioneiro da propriedade.
“Ainda não entendo o porquê”, Draco admitiu semanas depois, ofegante, enquanto encaravam o teto, pernas trançadas em sua cama.
“Vocês não tinham escolha. Talvez seu pai, mas até ele não merecia… enfim.”
Potter tinha o costume de acaricir o seu cabelo depois do sexo. Tão loiro, ele dizia.
Draco não sabia que estavam namorando quando a proposta veio.
“Eu já tenho passado todas as noites aqui, de qualquer forma”, foi todo o romantismo que Harry ofereceu.
Draco concordou, sem revelar quantas vezes tinha fantasiado esse cenário. Alguns meses depois, eles assinaram os papéis num almoço especial servido no jardim para Narcisa, Pansy, Blaise, Granger e Weasley.
Harry odiava ser auror – não que ele admitisse isso em voz alta, com todas as palavras –, mas a verdade estava lá, escondida nas entrelinhas. Se alguém apenas prestasse atenção na maneira como ele falava do escritório, dos casos, dos colegas de trabalho, o desprezo em sua voz quando mencionava a desorganização da instituição como um todo. E Draco ouvia.
Harry também odiava ser usado pela mídia, e era exatamente esse o seu papel na Força. Com apenas três anos de casa, Shacklebolt tinha mexido os pauzinhos para promovê-lo a auror-chefe, cargo que significava acima de tudo mostrar o rosto de reunião em reunião, entrevista em entrevista, assegurando o Ministério de que a opinião pública soubesse que a Grã-Bretanha bruxa estava mais segura e imbatível que nunca. Como se tivesse sido algum dia.
Draco ouvia.
“Como foi o dia?” Ele costumava esperar na porta para recepcionar o marido. Recolhia seu casaco e prosseguia a massagear-lhe as costas, o que geralmente quebrava todas as reservas em Harry, que, sem pensar, começava a falar. E a fala levava ao toque, e o toque ao calor, e o calor ao refrigério, e o refrigério à paz que ambos necessitavam.
Até o dia em que Harry parou de falar.
“Você, pintor?” Pansy tinha indagado, um ar irônico em sua voz, quando Draco anunciou seu novo hobby.
“Parkinson, você está menosprezando meus talentos?”
“O Draco que eu conheço jogou uma lata de tinta na cara do professor com sete anos de idade, porque, e eu cito”, ela fez um sinal de aspas com a mão, “‘Um Malfoy não tem tempo pra se sujeitar a essas frivolidades’. Então, a pergunta na verdade é: desde quando você não menospreza qualquer forma de arte?!”
“Bom, tempo é o que eu mais tenho agora, não é mesmo?” Ele retrucou, antes de caírem na gargalhada.
A pintura veio como uma válvula de escape, quase um esporte. Harry liberava endorfina correndo todas as manhãs; Draco se trancando no atelier da Mansão e descontando nas pinceladas toda sua frustração.
A prisão tinha sido suportável enquanto ele tinha a atenção de Harry. Merlin, talvez todo o caralho da Guerra teria sido mais suportável se ele tivesse tido a atenção de Harry. Mas agora que Draco passava a maior parte do tempo sozinho, mesmo quando acompanhado, cada segundo era infernal. As paredes desse lugar não o assombravam mais apenas com as memórias do sangue de cada pessoa que tinha sido assassinada ali, mas também com a saudade de todas as vezes que ele tinha sido empurrado contra elas, mãos insistentes no seu corpo, língua por todo lado, dentes…
O sexo tinha perdido a frequência. As conversas quase não existiam mais.
“Não é sua culpa”, Pansy tentava confortá-lo, “ele só está sendo marionete Deles até hoje.”
E Draco sabia que ela estava certa, ele sabia, mas não conseguia tirar da mente a noção de que talvez ele também só piorasse a situação.
“E aí ele chega em casa toda noite procurando sossego, e quem encontra? Isso mesmo, um maldito Comensal da Morte, com quem, por algum motivo maluco, ele aceitou se casar.”
“Decidiu, Draco. Você não forçou ninguém a nada, pelo contrário. Partiu dele.”
Então ele pinta, primeiro quadros pequenos, depois painéis inteiros, tapeçarias e até paredes. E em todas as suas pinturas, embora ninguém repare, ele conta a sua história.
Draco estava sentado à mesa, posta com vinhos, queijos, e carnes das mais diversas, às seis. O retrato, finalmente finalizado depois de meses, estava no seu quarto, embalado em papel pardo junto a uma carta em cima da cama. Harry deveria ter chegado às cinco.
Draco encarava a porta quando a maçaneta girou. Harry estava sem casaco.
“O que é isso tudo?”, ele perguntou, acenando para a mesa. Era a primeira palavra que dirigia a Draco em três dias. “Bom, o banquete veio em boa hora, eu estou faminto.” Possivelmente o maior número de palavras que ele dirigia a Draco em semanas.
Harry não parecia um jovem de 22 anos, Draco observou, não pela primeira vez, enquanto ele se servia. Suas mãos eram calejadas como a de um trabalhador braçal, decorada por cicatrizes que Draco conhecia muito bem. Seu olhar carregava o peso de muitas gerações. Seu cabelo – bem, seu cabelo era o mesmo caos de sempre, mas já eram perceptíveis alguns fios cinzentos aqui e ali. Era curioso, todavia, saber tanto sobre uma pessoa e, ao mesmo, não ter ideia do que se passa na sua cabeça.
“Me diz que eu estou errado”, Draco sussurrou, apenas audível o suficiente para que Harry o escutasse no silêncio da sala de jantar.
“Hm?”, ele respondeu, sem erguer o olhar de seu prato.
Draco respirou fundo por um momento.
“Me diz que não estamos apenas prolongando o inevitável.”
Finalmente, Harry levantou a cabeça, e seus olhos se encontraram. Nenhuma voz ousou quebrar a quietude, contudo, então Draco continuou.
“Eu não espero que você se lembre do nosso aniversário. Circe, até hoje eu não espero poder afirmar em alto e bom som que somos casados, caso você mude de ideia, mas eu espero, Harr-” Contra a sua vontade, algumas lágrimas teimaram em escorrer pelo seu rosto. Com uma mão, secou-as furiosamente. “Potter... Por alguma razão insana e que talvez eu não tenha o menor direito de invocar, ainda espero que o mínimo que eu mereça seja uma pessoa que esteja comigo porque quer estar, e não apenas porque me tolera.”
“Draco-” Harry disse, mas nada seguiu.
Depois do que pareceram horas esperando por algo, qualquer coisa, uma súplica que fosse, Draco levantou-se da mesa e se retirou determinadamente até o quarto. Sem usar a varinha, lançou o quadro no canto mais fundo do guarda-roupa e se jogou na cama, deixando o choro tomá-lo por inteiro.
O som de um pincel numa tela pode variar. Às vezes é como passar manteiga num pão, macio, escorregadio, confortável. Às vezes é como se barbear, bruto, cortante, quase agressivo. Draco estava familiarizado com toda a extensão de sons que a pintura poderia proporcionar, mas acordou rodeado por um som tão diferente e, no entanto, tão reconhecível, que ele só podia descrever como: alguém está destruindo uma das minhas telas novinhas, e eu juro por Merlin que vou matar o filho da puta.
Com os olhos entreabertos, a teoria se confirmou, mas com ela veio uma enxurrada de lembranças da noite anterior. Harry estava sentado na beira da cama, observando Draco com uma paleta em mãos e uma camiseta toda manchada que expunha os músculos do seu braço. Draco só conseguia odiar o bastardo em triplo. Por destruir seu material de pintura, por destruir seu material de pintura enquanto vestido daquele jeito, e por destruir seu material de pintura enquanto vestido daquele jeito no meio das ruínas de um casamento que ele estava prestes a abandonar a qualquer momento.
“Você sabia que ronca mais do que eu?” Harry disse, olhando fixamente em seus olhos.
Draco estava determinado a ficar calado, mas nem toda a raiva do mundo dava a Harry o direito de ferir sua honra. Draco arremessou um travesseiro em seu rosto e se arrependeu de imediato, quando um pouco da tinta da paleta encostou na fronha.
“Merda, esse é o enxoval da minha tataravó!”, ele esbravejou, pegando o travesseiro de volta e lançando Scourgify o mais rápido possível – feitiços de limpeza nunca eram totalmente eficientes, especialmente em tecidos antigos. “E eu não ronco!”
Harry começou a rir, como se tudo estivesse bem, não só com a maldita fronha.
Draco levantou-se para usar o banheiro, deixando que o silêncio entre eles se estendesse por alguns minutos, cômodo. Era como eles tinham convivido pelos últimos dois anos.
“Eu não te tolero”, Harry anunciou enquanto Draco escolhia uma camisa do outro lado do quarto. Ele paralisou, camisa em mãos, estômago revirado.
Harry começou a caminhar até ele, devagar, e, a cada passo, Draco queria correr e desaparecer, para qualquer lugar que não fosse essa prisão. Esse cemitério onde a única coisa boa em sua vida tinha começado, e onde ela também, como tantas almas antes, estava irremediavelmente fadada a morrer. Ele queria nunca ter aceitado que os aurores entrassem nessa casa – que Potter entrasse nessa casa –, e no seu corpo e… Talvez se Draco tivesse morrido durante a guerra, talvez se fosse ele que tivesse escorregado no incêndio, e não Crabbe, talvez se o seu pai não tivesse-
“Eu não te tolero”, Harry repetiu, dessa vez segurando em sua cintura e fazendo com que um arrepio se instalasse sob a pele de Draco, como uma tatuagem. “Eu te amo.”
Draco queria acreditar, mas talvez ele nunca tenha entendido como Harry podia sequer desejá-lo, que dirá-
Harry contornou seu corpo até que estivessem frente a frente.
“A Guerra acabou comigo, Draco. Não só no passado, ela continua…”
“E eu sou só mais um lembrete do quão fodida toda essa situação é. O Comensal que te espera em casa, na casa onde os seus amigos foram torturados, inclusive, e como você vai descansar comigo ao seu lado e-"
Harry levou um dedo à sua boca, calando Draco.
“Não! Não! Draco… você é a única coisa boa que eu ainda tenho, por que diabos eu me casaria com você se- Merlin, se não fosse por você, talvez eu já teria-”
“Se libertado?” Draco propôs, porque era o mais lógico, porque fazia sentido, porque não era plausível imaginar um mundo em que Harry Potter sairia sem qualquer tipo de prejuízo sem um Malfoy em sua vida. Mas quando os lábios capturaram os seus, Draco não conseguia mais pensar no que era lógico.
“Eu vejo você”, Harry sussurrou entre beijos. “Cada minuto de dedicação. Eu só estou tão exausto que… tenho medo que você olhe nos meus olhos e perceba, medo de te trazer mais problemas quando você já tem tantos-”
“Você é um idiota”, Draco respondeu, sentindo-se como se mil centauros tivessem sido tirados de suas costas. “Eu quero você e tudo o que vem junto, Potter.”
“Mesmo se eu for uma bagunça?” Harry se afastou um pouco, apenas o suficiente para olhar em seus olhos.
“Por Cerci, você sempre foi uma bagunça”, Draco provocou. Por um segundo, seus olhos tingidos de lágrimas se quebraram num sorriso. “Eu quero tudo”, assegurou.
Harry beijou seus olhos. “E eu sei o nosso aniversário, seu dramático.”
Draco encarou-o furioso, sua boca em formato de O, como se dissesse: como ousa?!
“Não é minha culpa se você acha que nos casamos no dia que eu me mudei pra cá, quando tivemos uma cerimônia perfeitamente okay meses depois- ei!”
Draco o empurrou até a cama, sem a menor gentileza. “Já que eu não tenho um marido romântico, demando um bom tratamento na cama.”
“É uma proposta… tolerável”, Harry retrucou, e Draco calou-o sentando em seu colo.