Capítulo Único
Altos e baixos, chegadas e partidas, olá e adeus. Te deixar partir foi minha melhor e minha pior decisão. Me trouxe enorme paz até o momento que lembrei que continuaria tendo que te ver no trabalho toda semana pelos meses seguintes.
— Bom dia, Julia. - a porta da minha sala abriu e você entrou com as mãos nos bolsos, relaxado como se não estivesse adentrando território inimigo.
Toda vez a mesma coisa, a mesma piada e a mesma tentativa de me irritar logo de manhã. Parabéns, você sempre consegue.
— Para de se fazer de idiota porque esse personagem não combina contigo, . É “Iulia”, não “Julia”. O J tem som de I, inferno. Você sabe muito bem disso.
— Sei. E ignoro. - sorriu.
Filho da puta.
Então, como todas as quartas-feiras, você puxou uma cadeira e sentou-se antes mesmo que eu pudesse te oferecer como parte do protocolo que pessoas educadas deveriam seguir, prendeu o cabelo em um rabo de cavalo qualquer e folheou documentos na minha mesa que sequer estavam destinados a você.
— Como anda a obra? - perguntou, sem largar o envelope azul-marinho que abria.
— Essa semana começa a construção da segunda torre. A primeira está bem adiantada.
— Hm. Sua irmã vai casar? Legal. - mostrou o envelope que segurava decorado com arabescos dourados - Aqui tem dois convites, pretende ir sozinha?
— Com licença, isso não é da sua conta. - arranquei o bendito envelope das suas mãos e guardei-o em uma gaveta qualquer.
— É, pretende. Assim como ser idiota não combina comigo, você também não tem cara de quem vai ser a velha dos gatos, Julia. Eu poderia ir com você, sabe? Mas você me expulsou da sua casa, da sua vida e blá-blá-blá. - rolou os olhos.
— Cala essa boca, pelo amor de Deus. - te entreguei o capacete amarelo e rumei para a porta na esperança de que você me seguisse calado.
Preto combina tanto com você, . Se tornou a cor que eu mais detesto porque me lembra automaticamente do belo contraste entre sua pele pálida e o tecido escuro. Novamente de preto da cabeça aos pés, você faz com que eu pragueje dia e noite a graciosidade do caimento dos seus muitos blazers no seu corpo.
Sempre que posso, me distraio com trabalho. Não aceito que me chamem de workaholic pois estar na paz da minha casa tem grande valor para mim. Ou tinha, até que deixei você entrar e espalhar suas coisas por todos os cantos. Mesmo após termos terminado seja lá o que tivemos, volta e meia ainda encontro pequenos pedaços seus para trás e os guardo em uma caixa que juro que porei fogo um dia. Um prendedor de cabelo, um isqueiro, um chaveiro quebrado, anotações em russo e em coreano, o cartão do último buquê de flores que você me deu; todos esperando o dia que meu espírito incendiário me fará consumir tudo em chamas e dar definitivamente adeus às memórias que criamos no curto e intenso mês em que fomos um casal. Era hora de me afundar em questões profissionais novamente e, assim, silenciar meus pensamentos que teimavam em circundar sua imagem. Cada passo até o último andar do prédio em obras foi milimetricamente pensado. Um após o outro, fazendo o máximo de barulho possível para ignorar sua voz logo atrás de mim. Agradeci aos céus por não poder ver o momento em que os raios de sol refletiram no seu cabelo escuro como o breu assim que saímos do elevador de carga e alcançamos o ar livre. Seria lindo. Você é lindo, . Mais um motivo pelo qual te odeio.
— Pelo visto o que temos de mais interessante por aqui hoje é o imperdível içamento da piscina da cobertura. - bateu palmas. - Onde estão os repórteres para televisionar esse momento grandioso?
— Nossa, engraçadão você, né?
— Você costumava achar que sim. Ou era só um charme para me arrastar para sua cama, Julia?
— “Iulia”!
— Vou entender como um “sim”.
Então você fez o movimento mais errado possível: apoiou suas mãos nos meus ombros e falou bem próximo ao meu pescoço.
— Adoraria voltar a frequentá-la.
— Coloque o capacete. Não me responsabilizo se um bloco de concreto acabar voando em você. - respirei fundo e, com bastante esforço, consegui controlar o arrepio que me percorreu antes que o rubor alcançasse as bochechas e entregasse o efeito que você tinha (e ainda tem) sobre mim.
───※ ·❆· ※───
Corta para trinta minutos depois. Nós dois sozinhos no primeiro apartamento 100% pronto, o 101. Mobiliado para servir como showroom aos possíveis compradores, impecavelmente bonito. Você deveria estar se gabando de seu talento como arquiteto e designer de interiores, mas sua boca estava ocupada demais colada na minha. É, eu falhei de novo.
Em minha defesa, foi você quem me agarrou. O mea culpa foi não ter te impedido. Sabia que você tentaria algo do tipo (sempre tenta) e mesmo assim não pude evitar. Algo no seu beijo não permite que eu viva em paz enquanto não o provar mais uma vez. Conheço todos os centímetros do seu corpo e mesmo assim não me vejo satisfeita. Preciso de mais, está além do meu controle. Você é meu vício.
Inteligentemente planejado, porque assim você o fez, a porta trancou tão logo quanto passamos por ela. As cortinas fecharam-se ao apertar de um botão. A luz acendeu sozinha e com o pressionar de um touchscreen a iluminação transformou-se numa suave penumbra. Me pergunto se você planejou aquele apartamento exatamente para momentos “delicados” assim. Tudo estava no lugar certo, na hora certa, exceto por você e eu, porque esse “nós” que insistimos em não deixar morrer é um grande erro.
Sabe, , eu tentei. Tentei conhecer outros caras desde que terminei com você, alguns eram legais, com um papo maneiro, me tratavam bem, mas eles não tinham os seus olhos bonitos, nem o seu sorriso doce ou esse tom debochado que pontua suas frases. Você me tornou exigente demais. Eles não eram , jamais seriam.
Rapidamente seu blazer estava no chão e os botões da minha blusa tinham sido abertos. Deitada sob os lençóis brancos daquela cama que ninguém usaria, senti o roçar do seu cabelo na minha pele quando você se aproximou para beijar o delineado dos meus seios através da renda do sutiã. Por breves momentos me vi rendida às carícias que meu corpo tanto implorava para ter de volta, presa na imensidão do seu olhar buscando o meu, correspondendo aos seus toques e, suspirando o seu nome. Nunca seria o suficiente. Só de sentir sua boca buscando a minha, toda e qualquer resistência caía por terra. A chave para desligar a voz insistente na minha mente que segue me convencendo (ou tentando convencer) que jamais funcionaríamos juntos é o gosto do seu beijo.
Eu sabia que era apaixonada por você e que a paixão sempre tinha altos e baixos; e foi exatamente nessa descida que perdi o controle novamente. Seus dedos brincaram com a barra da minha calça e eu levantei os quadris de modo que você entendesse minha concessão e tivesse maior acesso ao que tanto desejava. Por mais que fizesse esforço para negar, inevitavelmente sou sua e me desvencilhar das amarras que nos prendem um ao outro tem dado muito, muito trabalho. Desde que nos separamos, percebi que, por mais incrível que pareça, somos muito apegados ao que nos faz sofrer e isso torna o processo de despedida cada vez mais difícil, pois não queremos nos ver órfãos das nossas queixas. Reclamar de você me é tão usual e tão comum que deixar de fazê-lo tornaria meus dias mais insossos. Você tem razão quando diz que eu penso demais. Temos um condomínio para entregar, não garanto que terei tempo para levar todas essas questões para a terapia. Rezo para que até lá não seja tarde demais e ainda haja alguma esperança de viver sem a sua sombra nos meus pensamentos.
Beijos, toques, a sua voz no meu ouvido e o calor do seu corpo junto ao meu eram inebriantes. Felizmente Deus demonstra piedade até mesmo àqueles que não merecem, e, para me livrar de uma grande enrascada na qual eu me meteria de cabeça caso levasse isso alguns minutos à frente, um celular tocou. O meu ou o seu, não importava. Ouvir o tilintar do ringtone foi como escutar a voz do Senhor dizendo “Para de fazer merda, minha filha. Se apruma”. Imediatamente larguei tudo sem olhar para trás, levantei da cama deixando os lençóis amarrotados e o descompasso dos meus batimentos como únicas provas de que segundos antes eu estava consumindo minha droga favorita, da qual jurei manter distância: .
───※ ·❆· ※───
Uma semana depois daquele dia, você estava de volta ao meu escritório. Dessa vez, encontrou outra secretária no lugar da familiar Dolores, que estava de férias. Ela não te deixou entrar sem ser anunciado como a anterior fazia. Perguntou seu nome, consultou minha agenda para descobrir que você não tinha um horário agendado (nunca teve) e estava tentando entrar na minha sala confiando única e exclusivamente no seu charme. Costumava funcionar, uma pena para você Dolores estar de férias e eu estar fora do escritório naquele dia. Como Giordana bem te informou, eu não aparecia para trabalhar há seis dias, passando esse tempo em home office. Estava doente, ela te disse. Então você questionou o motivo de o grande e importante arquiteto fodão não saber que a engenheira responsável estava doente, como se alguma explicação lhe fosse devida. Sim, eu soube de tudo. Tão logo quanto você se retirou cabisbaixo, frustrado e ligeiramente puto, Gio me ligou para contar. Menos de uma hora se passou até que o porteiro do condomínio onde moro entrasse em contato para comunicar que você tinha estado lá à minha procura e acrescentar com certa preocupação o quão revoltado o rapaz de cabelos compridos parecia estar.
Num período de três horas, recebi trinta e seis mensagens, vinte e oito SMS e dezenove ligações, todas advindas do mesmo contato: P. (arquiteto). Durante um tempo houve um emoji de coração ao lado do seu nome, hoje em dia deveria dar graças por eu não ter excluído-o e te bloqueado para sempre. É, nunca tive coragem.
— Quando pessoas que abusam de drogas ou álcool perdem o controle sobre si mesmas e reconhecem que precisam de ajuda, elas vão para clínicas de reabilitação, certo? Entenda que estou num processo semelhante, permanecendo bem longe de você, . - Quando me cansei de ignorar suas ligações e finalmente atendi, fui direto ao ponto.
— Mas que porra, Julia! Você some do nada, manda dizer que está doente e nem uma mensagem avisando? Desde aquele dia você está fugindo de mim.
— Te devo explicações desde quando? - Sentada de frente para o Mediterrâneo assistindo um casal quase na nossa idade trocar tenras carícias de frente para o mar, fui atingida em cheio por memórias de um passado recente e indesejado, no qual já estivemos em situação parecida, apaixonados sem pensar no que seria do dia seguinte.
— O que você tem? Onde está? Não estou pedindo muito, só quero saber que está bem. - antes exaltada, sua voz retornou ao tom calmo de sempre com certo esforço. Não adianta gritar com um cão que rosna, não é mesmo? Deixe-o se acalmar primeiro e depois se aproxime. Muito bem.
— Estou doente de amor, . Preciso de um tempo sozinha para ter condições de trabalhar contigo por mais alguns meses sem vir a surto. - Lá estava o jovem casal, transbordando amor como um dia eu fiz por um certo de expressão tranquila na mesma areia morna. - Você sabe onde estou, não precisa de esforço para adivinhar. Mas não venha até mim, me dê espaço. Por favor, . Me dê espaço.
— Tudo bem. Melhoras. - sem mais delongas, você desligou e se manteve afastado pelos dias que se seguiram, até que eu deixasse a Grécia.
───※ ·❆· ※───
Não nos víamos pessoalmente há três semanas, desde que retornei à Itália. Minha irmã se casou e, como esperado por todos, fui à cerimônia sozinha e sequer fiquei para a festa. As reuniões semanais para vistoria da obra passaram a ser por videoconferência e previamente agendadas pela minha secretária, surpreendentemente por iniciativa sua. Esperava que uma hora ou outra você desse as caras como se nada tivesse acontecido, da mesma forma como apareceu no dia seguinte ao nosso término; contudo, isso nunca aconteceu. Quebrando todas as expectativas e frustrando o meu coração acostumado a doses mínimas, porém constantes, do seu jeito irritante, você pediu que um colega assumisse o projeto e se retirou da minha vida de vez, rompendo o único laço que nos restava. É confuso conceber um mundo em que tenho o que mais desejo - paz - e, ao mesmo tempo, me sinto tão vazia porque você não faz mais parte dele. Sem despedida, sem aviso, sem um último beijo para guardar em minha memória a sensação gostosa de abrir os olhos e me deparar com a pinta da sua bochecha que te dá um ar quase angelical.
Se a rehab não funcionou, agora teria de encarar a realidade dura como ela é e eu que me virasse. Te afastei com a certeza, lá no fundo, que você sempre voltaria e fui pega no meu próprio jogo. Os dias passam e você seguiu longe, enquanto eu representava bem a personagem durona que criei, trabalhando como nunca, trancada em casa em todas as oportunidades de descanso, encolhida sozinha à noite lutando contra memórias que machucam impiedosamente. Todas as vezes que um cliente importante pedia para ver o showroom, o apartamento 101, eu pedia que qualquer outra pessoa guiasse a visita, porque aquela cama guardava recordações que deveriam ser enterradas no mais profundo da minha alma.
Terminamos a obra e no dia da entrega das chaves travei na porta do salão de eventos. Lucca, o arquiteto que te substituiu, me esperava no púlpito e sabe Deus o que ele fez para explicar ao público, aos compradores e aos investidores que a engenheira não apareceria depois de uma curta mensagem implorando que ele desse continuidade sem mim. Não conseguia. Não podia. Era para ser você no lugar dele, era para estarmos colhendo juntos os louros do projeto que nos dedicamos tanto para dar vida. Cada viga, cada detalhe era fruto, também, do seu talento e a glória deveria ser dada a quem realmente fez com que o Acquamarine saísse do papel e alcançasse os céus como o belo condomínio residencial que era.
De roupa social e tudo dei as costas e rumei à cafeteria mais próxima, aquela com estantes cheias de livros antigos, o terror dos alérgicos à poeira. Minha intenção era passar o resto do dia desaparecida por entre as estantes com xícaras consecutivas de café na minha frente enquanto adiantava alguma coisa do próximo projeto a ser construído. Na fila, respondia o e-mail da arquiteta que trabalharia comigo, Valentina, uma mocinha simpática um tanto quanto inexperiente. O projeto dela era limpo e conciso, mas faltava algo, um quê de sutileza.
— Dois expressos duplos. - a pessoa atrás de mim pediu ao caixa. Estava tão distraída que sequer notei que minha vez havia chegado, porém foi impossível não reconhecer a voz que falava. - Presta atenção, Julia.
“Julia”, com J.
Queria virar as costas para ter certeza de que era você, como se fosse provável que outro ser vivo se referisse a mim no mesmo tom e com a mesma piada sem graça. Congelei. As pernas não respondiam ainda que tentasse me mover; a voz não saía, mesmo que quisesse gritar o seu nome; só conseguia manter os olhos arregalados em surpresa. Vi você passar na minha frente, pagar pelos cafés e indicar ao rapaz onde deveria deixar o pedido depois de pronto, segurar meu braço e guiar-me até uma mesa no canto, como uma mera espectadora da minha própria vida, sem reação. Uma boneca de pano sendo carregada pelo ventríloquo.
Não sei mensurar quanto tempo se passou até que eu voltasse a mim e te encarasse nos olhos com o espanto de quem vê uma assombração.
— O que faz aqui? - perguntei com a voz visivelmente trêmula. Merda.
— O mesmo que você, tomando um café. Se bem que você deveria estar na inauguração do Acquamarine, não é? - conteve o sorriso.
— Lucca está lá, não sou tão necessária. - aceitei a xícara que o garçom me oferecia, segurando-a com as duas mãos. O calor da louça com café fresco e fumegante era agradável às minhas palmas geladas e tremelicantes.
— Ele fez um bom trabalho, pelo visto. - bebeu seu café com a mesma enervante tranquilidade quase inabalável de todos os dias. - Que bom. Você também parece estar bem, fico feliz.
— Estou um caco. - comentei como quem diz que o céu está nublado. - Não durmo, não saio de casa, só trabalho. Ah, e adotei um gato.
O seu cabelo estava maior do que a última vez que o vi, bem cuidado como de costume.
— O primeiro passo para se tornar a velha dos gatos foi dado, não há volta. Já disse que esse papel não combina com você. - inclinou a xícara em minha direção como quem propõe um brinde - Qual o nome dele?
Permanentemente de preto da cabeça aos pés, até com roupas mais despojadas você parecia feito de cera de tão pálido.
— . - respondi e no mesmo instante senti o rubor tomar minhas bochechas. , o diminutivo de . Patetica e inconsequentemente escolhido na sôfrega tentativa de preencher o vazio incômodo do meu peito.
A expressão de orgulho que tomou conta do seu rosto era óbvia. Sim, eu continuava a pensar em você o tempo inteiro.
— Belo nome.
— Por que você sumiu? - questionei antes que a coragem me faltasse.
— Precisava de tempo para mim e não queria atrapalhar sua rehab misturando-a com a minha. Sei quando sou indesejado, Julia.
— Nunca foi. Não de minha parte. - te encarar era complicado e doloroso. Todos os músculos do meu corpo estavam tensionados.
— Não era o que parecia.
— Meu problema nunca foi diretamente você.
— Então por que terminamos?
A pergunta de um milhão de dólares. Uma hora ela seria feita, por mais que tentasse evitá-la.
— Porque eu estava perdendo o controle. Desde o primeiro beijo naquele jantar de fim de ano tudo saiu de controle. Rápido demais. - passei as mãos pelo pescoço, tentando trazer alguma calma à confusão que me cercava.
— Pensei que estava feliz enquanto estávamos juntos. Pelo menos era o que aparentava. - deu de ombros, perdendo o olhar por milésimos no fluxo de pedestres na calçada do outro lado da vitrine da cafeteria.
— Estava! - disse com convicção pela primeira vez desde o início daquela conversa. - O problema é exatamente este. Você começou a mexer com o meu coração e algumas feridas antigas foram reabrindo, entende?
— Não, não entendo. - cruzou as mãos à frente do corpo, como um psicanalista que ouve atentamente as confissões do paciente no divã.
— É o seguinte. - tomei fôlego, me preparando para mergulhar nas profundezas de mim mesma - Você trouxe luz para os meus dias, fez meu coração bater rápido como há muito tempo ninguém fazia. Me fez acreditar que eu merecia ser amada.
— E o que há de errado nisso?
— Eu não mereço, .
— Bobagem. - carregou a voz de tédio e revirou os olhos.
— Você não avisou que iria me virar de cabeça para baixo em menos de um mês. Não era o momento certo.
— E quando seria? Quando estivéssemos longe um do outro, nos tratando como estranhos que se limitam a trocar mensagens de feliz aniversário e boas festas? Isso é o que somos atualmente.
— Não sei lidar com coisas boas, . Que merda, não é culpa sua. Eu sou assim porque sou quebrada, ferrada, fodida. - bati na mesa - Só presto para trabalhar. Se alguém me trata com um pouquinho de carinho, começo a criar caraminholas na minha cabeça e achar que é sacanagem.
— Nunca foi sacanagem, Julia. - “Iulia”. Finalmente você pronunciou corretamente. - Eu te amei, e te amo, porque você é encantadora, inteligente, maneira para cacete. Até descabelada e de pijama. Me afastar de você foi uma merda! Ou cortava pela raiz ou nunca conseguiria.
O espaço do café se resumiu àquela mesa e às nossas cadeiras. Todos os outros clientes desapareceram num piscar de olhos para que houvesse única e exclusivamente nós dois e todos os sentimentos que pusemos na mesa juntamente com as xícaras de café, agora frio.
— Você se tornou um vício. Não só pelas sensações, pelo beijo, pelo sexo ou o que mais fosse. Sem você por perto, o dia era chato e tudo parecia errado. Esse foi o sinal que precisava terminar ou me tornaria cada vez mais dependente.
— Então é isso? Você se recusa a ser feliz? - perguntou sério.
Silêncio. Não havia o que ser dito.
Você ergueu a mão acenando para o garçom que poderia levar sua xícara, tinha chegado ao fim.
— Vou embora. Acho que ouvi tudo que precisava.
— Desculpa, . - busquei seu olhar pela última vez enquanto você se levantava. - Agora é para valer, terminamos. E para fazer isso funcionar preciso aprender novamente a te odiar.
— É necessário?
— Infelizmente sim. Não quero saber como você está ou em que projeto está trabalhando, vou evitar esbarrar contigo e espero que faça o mesmo. - Me ajeitei na cadeira tentando impor alguma convicção. Me sentia pequena estando sentada e você em pé ao meu lado, me encarando de cima. - Obrigada por tudo, mas somos meros conhecidos agora, certo?
Então você se abaixou ficando na altura dos meus olhos e me roubou um beijo. Um selinho rápido, mas firme. E, meu Pai do Céu, tudo girou novamente. Meus pulmões esqueceram-se que respirar era uma ação independente da minha vontade; sufoquei.
— Você ouviu alguma coisa do que eu disse? - balbuciei.
Com o característico caminhar relaxado, você me deu as costas e deixou a cafeteria sem meias palavras, deixando-me para trás confusa, balançada e ligeiramente atônita. Acompanhei seus passos à distância, vendo-o sair pela porta. O “eu te amo” seguia preso na minha garganta, impedindo a passagem do ar. Já na calçada, você tocou a vitrine com o carinho que tocava minha pele, piscou o olho, sorriu fracamente e me deixou.
— Bom dia, Julia. - a porta da minha sala abriu e você entrou com as mãos nos bolsos, relaxado como se não estivesse adentrando território inimigo.
Toda vez a mesma coisa, a mesma piada e a mesma tentativa de me irritar logo de manhã. Parabéns, você sempre consegue.
— Para de se fazer de idiota porque esse personagem não combina contigo, . É “Iulia”, não “Julia”. O J tem som de I, inferno. Você sabe muito bem disso.
— Sei. E ignoro. - sorriu.
Filho da puta.
Então, como todas as quartas-feiras, você puxou uma cadeira e sentou-se antes mesmo que eu pudesse te oferecer como parte do protocolo que pessoas educadas deveriam seguir, prendeu o cabelo em um rabo de cavalo qualquer e folheou documentos na minha mesa que sequer estavam destinados a você.
— Como anda a obra? - perguntou, sem largar o envelope azul-marinho que abria.
— Essa semana começa a construção da segunda torre. A primeira está bem adiantada.
— Hm. Sua irmã vai casar? Legal. - mostrou o envelope que segurava decorado com arabescos dourados - Aqui tem dois convites, pretende ir sozinha?
— Com licença, isso não é da sua conta. - arranquei o bendito envelope das suas mãos e guardei-o em uma gaveta qualquer.
— É, pretende. Assim como ser idiota não combina comigo, você também não tem cara de quem vai ser a velha dos gatos, Julia. Eu poderia ir com você, sabe? Mas você me expulsou da sua casa, da sua vida e blá-blá-blá. - rolou os olhos.
— Cala essa boca, pelo amor de Deus. - te entreguei o capacete amarelo e rumei para a porta na esperança de que você me seguisse calado.
Preto combina tanto com você, . Se tornou a cor que eu mais detesto porque me lembra automaticamente do belo contraste entre sua pele pálida e o tecido escuro. Novamente de preto da cabeça aos pés, você faz com que eu pragueje dia e noite a graciosidade do caimento dos seus muitos blazers no seu corpo.
Sempre que posso, me distraio com trabalho. Não aceito que me chamem de workaholic pois estar na paz da minha casa tem grande valor para mim. Ou tinha, até que deixei você entrar e espalhar suas coisas por todos os cantos. Mesmo após termos terminado seja lá o que tivemos, volta e meia ainda encontro pequenos pedaços seus para trás e os guardo em uma caixa que juro que porei fogo um dia. Um prendedor de cabelo, um isqueiro, um chaveiro quebrado, anotações em russo e em coreano, o cartão do último buquê de flores que você me deu; todos esperando o dia que meu espírito incendiário me fará consumir tudo em chamas e dar definitivamente adeus às memórias que criamos no curto e intenso mês em que fomos um casal. Era hora de me afundar em questões profissionais novamente e, assim, silenciar meus pensamentos que teimavam em circundar sua imagem. Cada passo até o último andar do prédio em obras foi milimetricamente pensado. Um após o outro, fazendo o máximo de barulho possível para ignorar sua voz logo atrás de mim. Agradeci aos céus por não poder ver o momento em que os raios de sol refletiram no seu cabelo escuro como o breu assim que saímos do elevador de carga e alcançamos o ar livre. Seria lindo. Você é lindo, . Mais um motivo pelo qual te odeio.
— Pelo visto o que temos de mais interessante por aqui hoje é o imperdível içamento da piscina da cobertura. - bateu palmas. - Onde estão os repórteres para televisionar esse momento grandioso?
— Nossa, engraçadão você, né?
— Você costumava achar que sim. Ou era só um charme para me arrastar para sua cama, Julia?
— “Iulia”!
— Vou entender como um “sim”.
Então você fez o movimento mais errado possível: apoiou suas mãos nos meus ombros e falou bem próximo ao meu pescoço.
— Adoraria voltar a frequentá-la.
— Coloque o capacete. Não me responsabilizo se um bloco de concreto acabar voando em você. - respirei fundo e, com bastante esforço, consegui controlar o arrepio que me percorreu antes que o rubor alcançasse as bochechas e entregasse o efeito que você tinha (e ainda tem) sobre mim.
Corta para trinta minutos depois. Nós dois sozinhos no primeiro apartamento 100% pronto, o 101. Mobiliado para servir como showroom aos possíveis compradores, impecavelmente bonito. Você deveria estar se gabando de seu talento como arquiteto e designer de interiores, mas sua boca estava ocupada demais colada na minha. É, eu falhei de novo.
Em minha defesa, foi você quem me agarrou. O mea culpa foi não ter te impedido. Sabia que você tentaria algo do tipo (sempre tenta) e mesmo assim não pude evitar. Algo no seu beijo não permite que eu viva em paz enquanto não o provar mais uma vez. Conheço todos os centímetros do seu corpo e mesmo assim não me vejo satisfeita. Preciso de mais, está além do meu controle. Você é meu vício.
Inteligentemente planejado, porque assim você o fez, a porta trancou tão logo quanto passamos por ela. As cortinas fecharam-se ao apertar de um botão. A luz acendeu sozinha e com o pressionar de um touchscreen a iluminação transformou-se numa suave penumbra. Me pergunto se você planejou aquele apartamento exatamente para momentos “delicados” assim. Tudo estava no lugar certo, na hora certa, exceto por você e eu, porque esse “nós” que insistimos em não deixar morrer é um grande erro.
Sabe, , eu tentei. Tentei conhecer outros caras desde que terminei com você, alguns eram legais, com um papo maneiro, me tratavam bem, mas eles não tinham os seus olhos bonitos, nem o seu sorriso doce ou esse tom debochado que pontua suas frases. Você me tornou exigente demais. Eles não eram , jamais seriam.
Rapidamente seu blazer estava no chão e os botões da minha blusa tinham sido abertos. Deitada sob os lençóis brancos daquela cama que ninguém usaria, senti o roçar do seu cabelo na minha pele quando você se aproximou para beijar o delineado dos meus seios através da renda do sutiã. Por breves momentos me vi rendida às carícias que meu corpo tanto implorava para ter de volta, presa na imensidão do seu olhar buscando o meu, correspondendo aos seus toques e, suspirando o seu nome. Nunca seria o suficiente. Só de sentir sua boca buscando a minha, toda e qualquer resistência caía por terra. A chave para desligar a voz insistente na minha mente que segue me convencendo (ou tentando convencer) que jamais funcionaríamos juntos é o gosto do seu beijo.
Eu sabia que era apaixonada por você e que a paixão sempre tinha altos e baixos; e foi exatamente nessa descida que perdi o controle novamente. Seus dedos brincaram com a barra da minha calça e eu levantei os quadris de modo que você entendesse minha concessão e tivesse maior acesso ao que tanto desejava. Por mais que fizesse esforço para negar, inevitavelmente sou sua e me desvencilhar das amarras que nos prendem um ao outro tem dado muito, muito trabalho. Desde que nos separamos, percebi que, por mais incrível que pareça, somos muito apegados ao que nos faz sofrer e isso torna o processo de despedida cada vez mais difícil, pois não queremos nos ver órfãos das nossas queixas. Reclamar de você me é tão usual e tão comum que deixar de fazê-lo tornaria meus dias mais insossos. Você tem razão quando diz que eu penso demais. Temos um condomínio para entregar, não garanto que terei tempo para levar todas essas questões para a terapia. Rezo para que até lá não seja tarde demais e ainda haja alguma esperança de viver sem a sua sombra nos meus pensamentos.
Beijos, toques, a sua voz no meu ouvido e o calor do seu corpo junto ao meu eram inebriantes. Felizmente Deus demonstra piedade até mesmo àqueles que não merecem, e, para me livrar de uma grande enrascada na qual eu me meteria de cabeça caso levasse isso alguns minutos à frente, um celular tocou. O meu ou o seu, não importava. Ouvir o tilintar do ringtone foi como escutar a voz do Senhor dizendo “Para de fazer merda, minha filha. Se apruma”. Imediatamente larguei tudo sem olhar para trás, levantei da cama deixando os lençóis amarrotados e o descompasso dos meus batimentos como únicas provas de que segundos antes eu estava consumindo minha droga favorita, da qual jurei manter distância: .
Uma semana depois daquele dia, você estava de volta ao meu escritório. Dessa vez, encontrou outra secretária no lugar da familiar Dolores, que estava de férias. Ela não te deixou entrar sem ser anunciado como a anterior fazia. Perguntou seu nome, consultou minha agenda para descobrir que você não tinha um horário agendado (nunca teve) e estava tentando entrar na minha sala confiando única e exclusivamente no seu charme. Costumava funcionar, uma pena para você Dolores estar de férias e eu estar fora do escritório naquele dia. Como Giordana bem te informou, eu não aparecia para trabalhar há seis dias, passando esse tempo em home office. Estava doente, ela te disse. Então você questionou o motivo de o grande e importante arquiteto fodão não saber que a engenheira responsável estava doente, como se alguma explicação lhe fosse devida. Sim, eu soube de tudo. Tão logo quanto você se retirou cabisbaixo, frustrado e ligeiramente puto, Gio me ligou para contar. Menos de uma hora se passou até que o porteiro do condomínio onde moro entrasse em contato para comunicar que você tinha estado lá à minha procura e acrescentar com certa preocupação o quão revoltado o rapaz de cabelos compridos parecia estar.
Num período de três horas, recebi trinta e seis mensagens, vinte e oito SMS e dezenove ligações, todas advindas do mesmo contato: P. (arquiteto). Durante um tempo houve um emoji de coração ao lado do seu nome, hoje em dia deveria dar graças por eu não ter excluído-o e te bloqueado para sempre. É, nunca tive coragem.
— Quando pessoas que abusam de drogas ou álcool perdem o controle sobre si mesmas e reconhecem que precisam de ajuda, elas vão para clínicas de reabilitação, certo? Entenda que estou num processo semelhante, permanecendo bem longe de você, . - Quando me cansei de ignorar suas ligações e finalmente atendi, fui direto ao ponto.
— Mas que porra, Julia! Você some do nada, manda dizer que está doente e nem uma mensagem avisando? Desde aquele dia você está fugindo de mim.
— Te devo explicações desde quando? - Sentada de frente para o Mediterrâneo assistindo um casal quase na nossa idade trocar tenras carícias de frente para o mar, fui atingida em cheio por memórias de um passado recente e indesejado, no qual já estivemos em situação parecida, apaixonados sem pensar no que seria do dia seguinte.
— O que você tem? Onde está? Não estou pedindo muito, só quero saber que está bem. - antes exaltada, sua voz retornou ao tom calmo de sempre com certo esforço. Não adianta gritar com um cão que rosna, não é mesmo? Deixe-o se acalmar primeiro e depois se aproxime. Muito bem.
— Estou doente de amor, . Preciso de um tempo sozinha para ter condições de trabalhar contigo por mais alguns meses sem vir a surto. - Lá estava o jovem casal, transbordando amor como um dia eu fiz por um certo de expressão tranquila na mesma areia morna. - Você sabe onde estou, não precisa de esforço para adivinhar. Mas não venha até mim, me dê espaço. Por favor, . Me dê espaço.
— Tudo bem. Melhoras. - sem mais delongas, você desligou e se manteve afastado pelos dias que se seguiram, até que eu deixasse a Grécia.
Não nos víamos pessoalmente há três semanas, desde que retornei à Itália. Minha irmã se casou e, como esperado por todos, fui à cerimônia sozinha e sequer fiquei para a festa. As reuniões semanais para vistoria da obra passaram a ser por videoconferência e previamente agendadas pela minha secretária, surpreendentemente por iniciativa sua. Esperava que uma hora ou outra você desse as caras como se nada tivesse acontecido, da mesma forma como apareceu no dia seguinte ao nosso término; contudo, isso nunca aconteceu. Quebrando todas as expectativas e frustrando o meu coração acostumado a doses mínimas, porém constantes, do seu jeito irritante, você pediu que um colega assumisse o projeto e se retirou da minha vida de vez, rompendo o único laço que nos restava. É confuso conceber um mundo em que tenho o que mais desejo - paz - e, ao mesmo tempo, me sinto tão vazia porque você não faz mais parte dele. Sem despedida, sem aviso, sem um último beijo para guardar em minha memória a sensação gostosa de abrir os olhos e me deparar com a pinta da sua bochecha que te dá um ar quase angelical.
Se a rehab não funcionou, agora teria de encarar a realidade dura como ela é e eu que me virasse. Te afastei com a certeza, lá no fundo, que você sempre voltaria e fui pega no meu próprio jogo. Os dias passam e você seguiu longe, enquanto eu representava bem a personagem durona que criei, trabalhando como nunca, trancada em casa em todas as oportunidades de descanso, encolhida sozinha à noite lutando contra memórias que machucam impiedosamente. Todas as vezes que um cliente importante pedia para ver o showroom, o apartamento 101, eu pedia que qualquer outra pessoa guiasse a visita, porque aquela cama guardava recordações que deveriam ser enterradas no mais profundo da minha alma.
Terminamos a obra e no dia da entrega das chaves travei na porta do salão de eventos. Lucca, o arquiteto que te substituiu, me esperava no púlpito e sabe Deus o que ele fez para explicar ao público, aos compradores e aos investidores que a engenheira não apareceria depois de uma curta mensagem implorando que ele desse continuidade sem mim. Não conseguia. Não podia. Era para ser você no lugar dele, era para estarmos colhendo juntos os louros do projeto que nos dedicamos tanto para dar vida. Cada viga, cada detalhe era fruto, também, do seu talento e a glória deveria ser dada a quem realmente fez com que o Acquamarine saísse do papel e alcançasse os céus como o belo condomínio residencial que era.
De roupa social e tudo dei as costas e rumei à cafeteria mais próxima, aquela com estantes cheias de livros antigos, o terror dos alérgicos à poeira. Minha intenção era passar o resto do dia desaparecida por entre as estantes com xícaras consecutivas de café na minha frente enquanto adiantava alguma coisa do próximo projeto a ser construído. Na fila, respondia o e-mail da arquiteta que trabalharia comigo, Valentina, uma mocinha simpática um tanto quanto inexperiente. O projeto dela era limpo e conciso, mas faltava algo, um quê de sutileza.
— Dois expressos duplos. - a pessoa atrás de mim pediu ao caixa. Estava tão distraída que sequer notei que minha vez havia chegado, porém foi impossível não reconhecer a voz que falava. - Presta atenção, Julia.
“Julia”, com J.
Queria virar as costas para ter certeza de que era você, como se fosse provável que outro ser vivo se referisse a mim no mesmo tom e com a mesma piada sem graça. Congelei. As pernas não respondiam ainda que tentasse me mover; a voz não saía, mesmo que quisesse gritar o seu nome; só conseguia manter os olhos arregalados em surpresa. Vi você passar na minha frente, pagar pelos cafés e indicar ao rapaz onde deveria deixar o pedido depois de pronto, segurar meu braço e guiar-me até uma mesa no canto, como uma mera espectadora da minha própria vida, sem reação. Uma boneca de pano sendo carregada pelo ventríloquo.
Não sei mensurar quanto tempo se passou até que eu voltasse a mim e te encarasse nos olhos com o espanto de quem vê uma assombração.
— O que faz aqui? - perguntei com a voz visivelmente trêmula. Merda.
— O mesmo que você, tomando um café. Se bem que você deveria estar na inauguração do Acquamarine, não é? - conteve o sorriso.
— Lucca está lá, não sou tão necessária. - aceitei a xícara que o garçom me oferecia, segurando-a com as duas mãos. O calor da louça com café fresco e fumegante era agradável às minhas palmas geladas e tremelicantes.
— Ele fez um bom trabalho, pelo visto. - bebeu seu café com a mesma enervante tranquilidade quase inabalável de todos os dias. - Que bom. Você também parece estar bem, fico feliz.
— Estou um caco. - comentei como quem diz que o céu está nublado. - Não durmo, não saio de casa, só trabalho. Ah, e adotei um gato.
O seu cabelo estava maior do que a última vez que o vi, bem cuidado como de costume.
— O primeiro passo para se tornar a velha dos gatos foi dado, não há volta. Já disse que esse papel não combina com você. - inclinou a xícara em minha direção como quem propõe um brinde - Qual o nome dele?
Permanentemente de preto da cabeça aos pés, até com roupas mais despojadas você parecia feito de cera de tão pálido.
— . - respondi e no mesmo instante senti o rubor tomar minhas bochechas. , o diminutivo de . Patetica e inconsequentemente escolhido na sôfrega tentativa de preencher o vazio incômodo do meu peito.
A expressão de orgulho que tomou conta do seu rosto era óbvia. Sim, eu continuava a pensar em você o tempo inteiro.
— Belo nome.
— Por que você sumiu? - questionei antes que a coragem me faltasse.
— Precisava de tempo para mim e não queria atrapalhar sua rehab misturando-a com a minha. Sei quando sou indesejado, Julia.
— Nunca foi. Não de minha parte. - te encarar era complicado e doloroso. Todos os músculos do meu corpo estavam tensionados.
— Não era o que parecia.
— Meu problema nunca foi diretamente você.
— Então por que terminamos?
A pergunta de um milhão de dólares. Uma hora ela seria feita, por mais que tentasse evitá-la.
— Porque eu estava perdendo o controle. Desde o primeiro beijo naquele jantar de fim de ano tudo saiu de controle. Rápido demais. - passei as mãos pelo pescoço, tentando trazer alguma calma à confusão que me cercava.
— Pensei que estava feliz enquanto estávamos juntos. Pelo menos era o que aparentava. - deu de ombros, perdendo o olhar por milésimos no fluxo de pedestres na calçada do outro lado da vitrine da cafeteria.
— Estava! - disse com convicção pela primeira vez desde o início daquela conversa. - O problema é exatamente este. Você começou a mexer com o meu coração e algumas feridas antigas foram reabrindo, entende?
— Não, não entendo. - cruzou as mãos à frente do corpo, como um psicanalista que ouve atentamente as confissões do paciente no divã.
— É o seguinte. - tomei fôlego, me preparando para mergulhar nas profundezas de mim mesma - Você trouxe luz para os meus dias, fez meu coração bater rápido como há muito tempo ninguém fazia. Me fez acreditar que eu merecia ser amada.
— E o que há de errado nisso?
— Eu não mereço, .
— Bobagem. - carregou a voz de tédio e revirou os olhos.
— Você não avisou que iria me virar de cabeça para baixo em menos de um mês. Não era o momento certo.
— E quando seria? Quando estivéssemos longe um do outro, nos tratando como estranhos que se limitam a trocar mensagens de feliz aniversário e boas festas? Isso é o que somos atualmente.
— Não sei lidar com coisas boas, . Que merda, não é culpa sua. Eu sou assim porque sou quebrada, ferrada, fodida. - bati na mesa - Só presto para trabalhar. Se alguém me trata com um pouquinho de carinho, começo a criar caraminholas na minha cabeça e achar que é sacanagem.
— Nunca foi sacanagem, Julia. - “Iulia”. Finalmente você pronunciou corretamente. - Eu te amei, e te amo, porque você é encantadora, inteligente, maneira para cacete. Até descabelada e de pijama. Me afastar de você foi uma merda! Ou cortava pela raiz ou nunca conseguiria.
O espaço do café se resumiu àquela mesa e às nossas cadeiras. Todos os outros clientes desapareceram num piscar de olhos para que houvesse única e exclusivamente nós dois e todos os sentimentos que pusemos na mesa juntamente com as xícaras de café, agora frio.
— Você se tornou um vício. Não só pelas sensações, pelo beijo, pelo sexo ou o que mais fosse. Sem você por perto, o dia era chato e tudo parecia errado. Esse foi o sinal que precisava terminar ou me tornaria cada vez mais dependente.
— Então é isso? Você se recusa a ser feliz? - perguntou sério.
Silêncio. Não havia o que ser dito.
Você ergueu a mão acenando para o garçom que poderia levar sua xícara, tinha chegado ao fim.
— Vou embora. Acho que ouvi tudo que precisava.
— Desculpa, . - busquei seu olhar pela última vez enquanto você se levantava. - Agora é para valer, terminamos. E para fazer isso funcionar preciso aprender novamente a te odiar.
— É necessário?
— Infelizmente sim. Não quero saber como você está ou em que projeto está trabalhando, vou evitar esbarrar contigo e espero que faça o mesmo. - Me ajeitei na cadeira tentando impor alguma convicção. Me sentia pequena estando sentada e você em pé ao meu lado, me encarando de cima. - Obrigada por tudo, mas somos meros conhecidos agora, certo?
Então você se abaixou ficando na altura dos meus olhos e me roubou um beijo. Um selinho rápido, mas firme. E, meu Pai do Céu, tudo girou novamente. Meus pulmões esqueceram-se que respirar era uma ação independente da minha vontade; sufoquei.
— Você ouviu alguma coisa do que eu disse? - balbuciei.
Com o característico caminhar relaxado, você me deu as costas e deixou a cafeteria sem meias palavras, deixando-me para trás confusa, balançada e ligeiramente atônita. Acompanhei seus passos à distância, vendo-o sair pela porta. O “eu te amo” seguia preso na minha garganta, impedindo a passagem do ar. Já na calçada, você tocou a vitrine com o carinho que tocava minha pele, piscou o olho, sorriu fracamente e me deixou.
Fim
Nota da autora: Oi, que bom que você chegou até aqui! Julia é uma mulher muito forte, mas com muitas marcas. A vida sentimental dela é uma bagunça por puro medo e, por vezes, me identifiquei em alguns dos comportamentos dela. Espero que ter colocado para fora tenha ajudado-a a seguir em frente. E você, leitora, tem algo a contar para o diário (eu)? Deixa nos comentários!
Essa história foi originalmente escrita com Park Yuri, ex-Produce 101, cantor, modelo, ator e tudo mais que ele quiser ser porque, olha, que cara bonito. Se você não o conhece, fica o meu convite para dar um Google nessa belezura. Beijos!
Sempre sua,
Nimuë.
Nota da scripter: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
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Essa história foi originalmente escrita com Park Yuri, ex-Produce 101, cantor, modelo, ator e tudo mais que ele quiser ser porque, olha, que cara bonito. Se você não o conhece, fica o meu convite para dar um Google nessa belezura. Beijos!
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