Capítulo Único
O sono de era frágil, tão frágil que ela despertou assim que a primeira pedrinha atingiu sua janela. Mas, embora tenha acordado rapidamente, demorou mais algumas pedrinhas para processar o barulho. Um dos efeitos colaterais de não dormir frequentemente. A indisposição era outro efeito colateral das longas noites que havia passado em claro e, no momento, levantar-se parecia fora de cogitação, então, optou por acreditar que aqueles barulhos não passavam de algo imaginário. Ela se encolheu contra as cobertas, almejando o silêncio que parecia fugir dela.
Não tinha noção sobre quanto tempo tentou ignorar as malditas pedras, até que desistisse e dê-se por vencida. Jogou-se para fora da cama em um gemido doloroso, sentia cada músculo sedentário de seu corpo pedir por clemência a cada passo que dava em direção a janela. Em sua mente, já ensaiava a bronca que daria nos pestinhas que insistiam em perturbá-la, pendurava um post-it em sua mente para lembrar-se de, quando possível, falar com seus vizinhos para que controlassem melhor seus filhos.
abriu a janela, mas foi calada pela surpresa antes de ao menos poder iniciar seu sermão ensaiado. Estava escuro, apenas dois postes iluminavam a rua deserta, mas ela, imediatamente, reconheceu quem estava a jogar as pedras e essa visão a congelou. Puxou ruidosamente o ar que lhe faltava, quando recuperou o controle sobre seu corpo e forçou-se a fugir para dentro de seu quarto e para longe dos olhos profundos de . Ela sentou-se na cama, ciente de que se continuasse em pé, desmaiaria. Seus olhos correram, pela primeira vez em semanas, para o relógio que marcava 4:15 em cima do criado mudo. O que ele estava fazendo ali às quatro da manhã? Será que algo tinha acontecido? Mas por que ele a procuraria? Ela mal conseguia respirar.
Desejou poder se enfiar embaixo das cobertas e sumir para sempre, mas a única coisa que era capaz de fazer era hiperventilar e tentar imaginar os piores motivos para ele estar ali.
De qualquer forma, estava desconcentrada demais para notá-lo entrando pela sua janela e só se deu por si quando mergulhou no tapete felpudo que forrava o chão de seu quarto. Ele se sentou, atordoado pelo tombo, em outras circunstâncias, ela riria da situação. Mas, no entanto, ela estava focada na árdua tarefa que era respirar.
Enquanto ele levantava, ela o observava atentamente, tentando absorver o fato de que ele realmente estava ali. Parecia o mesmo de sempre, exceto pelas olheiras e pelo sorriso cansado. Mas ele ainda era aquele belo rapaz de olhos tímidos que sempre a encantou.
— Oi — ele murmurou em uma mistura singular de timidez e coragem.
Demorou alguns segundos para que ela achasse sua voz.
— Oi.
Ele esperou pacientemente por algum complemento por parte dela, o que não veio, pois ela não conseguia pôr em palavras nenhum de seus milhares de pensamentos, o que a deixou frustrada. maneou a cabeça para si mesmo e suspirou, olhando ao redor a procura de algum ponto seguro para olhar, até que seus olhos caíram sobre o mural de fotos que havia em cima da cama de . Ele não notou o receio da mulher sentada na cama, estava ocupado demais admirando as fotos que enfeitavam o mural. Um sorriso nostálgico emoldurou os lábios do rapaz quando seus olhos encontraram fotos de ambos abraçados enquanto gargalhavam e, de repente, ver aquele momento diante de seus olhos, fazia parecer vidas atrás. Mas só fazia meses.
estava perto de , perto o suficiente para que ela conseguisse sentir seu cheiro e, por um breve momento, ela se viu tentada a esticar seu braço e tocar a mão do rapaz, apenas para se lembrar de como seu toque era. Em sua mente, se auto puniu por ter tais pensamentos e, com um longo e ruidoso suspiro, quebrou o silêncio:
— O que... — os olhos profundos do rapaz rapidamente caíram sobre ela, fazendo-a hesitar por um longo momento. Por que era tão difícil? Ela não entendia, mas, de alguma forma, a presença de a fazia querer cair em seus braços e ao mesmo tempo fugir. limpou a garganta em uma tentativa falha de dissipar o nó em sua garganta, ciente de que precisava dizer algo. — Por que você está aqui?
pareceu subitamente aliviado por ter dito algo, ele temia que ela se calasse e o afastasse, como estava a fazer nos últimos dois anos. Ali estava uma pequena evolução que ele, rapidamente, se agarrou com esperança de que toda aquela dor acabasse.
estava muito diferente desde a última vez que a viu, uns dois meses atrás. Ela parecia ainda mais magra, mais pálida e com os olhos fundos. Não era uma imagem agradável e não era por causa da beleza. Longe disso, sempre foi uma mulher bela, até em seus piores dias e era testemunha disto, pois ele sempre esteve lá para ela. Mas ele não podia negar que era uma imagem dolorosa. Ele sabia que se comparasse aquela mulher sentada à sua frente com a mulher divertida nas fotos do mural, não encontraria muita semelhança. Pareciam mulheres completamente diferentes. Tentava não pensar muito sobre, mas não conseguia evitar o sentimento de perda ao olhá-la.
— Precisava ver você — respondeu com facilidade. Uma facilidade invejável para .
— Você poderia ter entrado pela porta da frente — comentou, tentando ignorar a ardência em seu peito. Ela não sabia o quanto precisava vê-lo também, até olhar para ele.
— Na última vez que estive aqui você me pediu para que não passasse mais por aquela porta, então...
riu, um riso fraco e levemente melancólico. Mas foi o mais próximo de uma risada que escutou dela em muito tempo e ele sabia que, se naquele momento ela o pedisse para ir embora, já teria valido à pena. Droga, ele amava tanto aquele som.
Então, novamente se fez o silêncio e ambos estavam cientes do quanto aquilo poderia ser constrangedor. apertou os cobertores entre seus dedos, tentando aliviar a tensão que insistia em prender sua respiração, mas ela sabia que esse sentimento sufocante não sumiria enquanto estivesse ali para fazê-la lembrar do quanto um dia ela já havia sido feliz.
— O que você está fazendo aqui, ? — indagou novamente, dessa vez com um leve tom de súplica.
a fitou, observando atentamente a forma como ela parecia almejar a segurança das cobertas, o quanto queria fugir dele. E ele sempre soube que isso seria difícil, mas não imaginou o quanto.
— Eu te disse.
— Não — ela balançou levemente a cabeça em discordância, sua voz falhando miseravelmente. — O que você quer?
— Eu... — olhou ao redor, receoso pela reação da mulher. Receoso pelo o que aconteceria durante o resto do dia e no que os levaria. Mas ele não podia simplesmente desistir e voltar para casa, para a casa deles. — Eu quero um dia.
— Você entrou pela minha janela às quatro da manhã para me pedir um dia? — ergueu as sobrancelhas, desacreditando nas próprias palavras.
— Sim — ele simplesmente respondeu, demonstrando uma confiança que não estava tão acostumada.
Então ela o fitou, reconhecendo a feição de preocupação que ele costumava fazer quando ela fazia algo imprudente, o que antes era frequente. Ele temia que ela o afastasse, no momento era a primeira coisa na sua lista de maiores medos. O medo de altura e de vaias não parecia nada em comparação.
Ele trocou o peso do corpo para o outro pé e repreendeu a vontade de bagunçar o próprio cabelo, atos estes que deixariam transparecer seu nervosismo. No momento, ele devia ser forte, pelos dois. Então se manteve ali, em pé, ignorando a dor que o silêncio de o causava. Ela nunca fora de pensar muito, na verdade, ela era feita de impulsividade. sempre odiou e amou isto nela. Agora, ele amava mais do que odiava e, mentalmente, fazia uma prece para que ela retomasse o pouco dela que havia deixado para trás. Mas ela havia mudado, lembrou-se a si mesmo quando ela abaixou o olhar. Então era ali em que ambos acabavam.
— Um dia — ela murmurou, fazendo-o arfar diante da clara confirmação da mulher.
não estava disposto a deixá-la sozinha, não depois de tanto tempo longe. Mas ele estava ciente da necessidades dela, por isso, ainda hesitante, se retirou do quarto.
Os primeiros minutos de espera pareceram fáceis, mas, depois do que julgou já ser o necessário, ele não pôde conter o nervosismo com a possibilidade dela estar cogitando a proposta dele. Ele a conhecia bem o suficiente, mesmo após sua mudança, para saber que ela estava, naquele momento, encarando o espelho a procura de razões para seguir com aquilo, a procura de coragem para finalmente deixar aquele quarto para trás pela primeira vez em meses. Mas ele também sabia que a antiga nunca hesitaria, também sabia.
já estava tão conformado com a ideia de que ela não sairia, que quando a porta do quarto se abriu, ele pulou.
Supostamente, a surpresa deveria sumir, mas ela permaneceu insistentemente no rosto do rapaz que olhava para sem qualquer pudor.
Ela usava calça jeans com buracos nos joelhos, uma camiseta aleatória e uma jaqueta que ele rapidamente reconheceu. Ele nunca tinha dado falta daquela jaqueta, embora tenha estado claramente todos esses anos na casa de . Parecia provocá-lo, pois usar a jaqueta que ele tinha esquecido em sua casa após sua primeira noite juntos, não parecia justo. O fato é que nada nela era justo, nada além das calças jeans que ela usava. E, apesar de ser uma manhã fria, ele não viu necessidade em utilizar a boina que cobria seus curtos fios de cabelo. Mas ele nada disse, uma vez que já fazia dois anos desde que ela começou a cobrir o cabelo com acessórios como aquele.
Ele tentou não seguir essa linha de pensamento o caminho inteiro até o carro, mas o silêncio que insistia em manter não era de grande ajuda. Ele esperou pacientemente para que o receio da mulher sumisse para que, então, ela conseguisse entrar no carro. Durante o processo, ele manteve o olhar preso no volante, tentando arduamente conter a dor que a desconfiança de lhe causava.
Quando, por fim, ela entrou, ele ligou o carro.
— Vamos passar em algum lugar para você comer — ele explicou, sabendo que estava se roendo para saber qual era o destino deles e, embora não fosse uma informação tão útil, era o que ele poderia dar no momento.
— Não estou com fome — ela murmurou, sua garganta seca implorando por compreensão.
— Quem diria que a mulher que quase pedia o cardápio inteiro de café da manhã, falaria que está sem fome.
optou pelo silêncio, pois sabia que, de alguma forma, ele estava certo.
A curiosidade de aumentava a cada cafeteria que passavam. Com tantos lugares para tomar café da manhã, ela não entendia porque ele continuava a dirigir para tão longe. Após um longo tempo, quando os enormes prédios foram substituídos por pequenas casas e quando a estrada se tornou sinuosa, ele finalmente parou em um pequeno estacionamento de uma cafeteria qualquer.
Apesar da curiosidade, nada disse ao descer do carro, apenas o seguiu para dentro do estabelecimento. Enquanto o seguia, não conteve o olhar sem pudor sobre as costas do rapaz, a forma como os músculos se tencionavam contra sua pele. Ela podia imaginar como era sentir estes músculos, mesmo que uma camisa cobrisse sua pele. Então ela notou algo que, inicialmente, pareceu insignificante. Ela nunca havia apreciado as costas de , provavelmente por sempre estar no lugar que agora ele ocupava. era perdido e razoavelmente solitário, por isto, ela sempre o guiava. Tentava passar um pouco de confiança para ele, apenas o suficiente para fazê-lo não perder a si mesmo. Era tão irônico que agora ele fazia o mesmo por ela.
O silêncio permaneceu mesmo após ambos se sentarem em uma mesa próxima a uma longa janela, que dava uma visão perfeita do céu, agora já mais claro. E foi nos diferentes tons de roxo, rosa e preto que se ocupava, uma tentativa falha de ignorar as lembranças que a presença de lhe remetiam.
— Tudo — disse, despertando de seus devaneios propositais. Ela o olhou, confusa pelo o que ele havia dito até notar que não fora direcionado à ela, e, sim, à uma garçonete, que o fitou pasma.
não havia visto quando a garçonete se aproximou, mas, ao ver o cardápio na mão de , rapidamente compreendeu a situação e tomou a reação da garçonete como a sua. Infelizmente, não se deixou intimidar pelos olhares pasmos e repetiu, desta vez mais firme:
— Tudo.
A garçonete, que parecia estar grávida de pelo menos seis meses, olhou questionadora para , que apenas deu de ombros da maneira mais reconfortante que conseguiu. Dada por vencida, a loira acenou e se afastou. Apenas quando já estava longe o suficiente para não escutá-los, fuzilou .
— Tudo?
— Eu não sabia o que você iria querer — ele ergueu os ombros, de uma maneira inocente a qual já estava, de certa forma, habituada.
— Você poderia ter perguntado.
— Eu perguntei, você parecia estar me ignorando — sorriu fraco, tentando deixar claro que o fato dela o ter ignorado não o havia irritado.
— Então você decidiu...
se interrompeu, incerta do que estava prestes a fazer. Ao olhar para , ela não podia ver nada além de olhos profundos e um sorriso compreensível e cansado. Como ela poderia iniciar uma briga com alguém que estava tentando alcançá-la? Como poderia empurrar alguém que um dia já amou tanto e que, embora não fosse perceptível, continuava a amar?
Com um longo suspiro, ela optou por não continuar sua sentença e isto pareceu aliviar o homem à sua frente.
Mas, apesar de suas tentativas, ela não conseguia ignorar a curiosidade que aflorava dentro de si. E, mesmo que pudesse, ela não iria querer, pois foi o mais próximo que algo chegou a crescer dentro de si depois de tanto tempo. parecia ocupado ao olhar pela janela ao seu lado, gostava daquela visão. De como a luz do nascer do sol, gradualmente, cobria a pele do rapaz e deixava seus olhos mais brilhosos. Ela sentia falta dessa visão.
— Por que você me trouxe aqui?
Não foi mais do que um sussurro, mas foi o bastante para chamar a atenção dos olhos encantadores de . Então, ele sorriu torto e gesticulou para a janela. seguiu seu aceno, deparando com o mais lindo nascer do sol que já havia visto, até lembrar-se de que nunca havia visto um. Não com a atenção que este merecia. Mas aquela vista, ela era perfeita. Sem nenhuma construção ou poluição para impedi-la de ver aquele espetáculo por completo. Aquela vista dava uma sensação calorosa, parecendo queimar o gelo que formou-se nela durante os últimos dois anos. E, à medida que o sol se punha no alto do céu, tímido e brilhante como os olhos de , ela sentia seu coração amolecer. Ela sentia algo.
— Me lembro de você ter dito que sempre quis ver o nascer do sol — explicou e ela o olhou por um breve momento para poder captar o sorriso doce que havia nos lábios do rapaz. Aquele tipo de sorriso que poderia ser tão radiante quanto o sol que agora os cobria.
E, embora antes não sentisse fome alguma, quando todas aquelas panquecas, cereais e cookies foram postos sobre a mesa, ela não poderia estar mais faminta.
***
já não estava mais tão ansiosa, pelo menos não tanto ao ponto de ignorar aspectos que mais cedo foram ignorados. Como o quanto era difícil respirar dentro do carro de , uma vez que o veículo parecia se alimentar do perfume dele. Ou de como as ruas e paisagens pareciam totalmente sem graça quando se tinha um dirigindo ao seu lado. E, assim, durante todo o caminho até a volta para o centro da cidade, observou milimetricamente qualquer movimento de enquanto se intoxicava com o perfume do rapaz.
Ela observou atentamente as pequenas rugas que se formavam no rosto do rapaz e coisas mais simples como a firmeza com que ele girava o volante e mudava a marcha. A lembrança de que aquelas mesmas mãos já passaram firmemente por seu corpo a fez se engasgar com o ar. Rapidamente e brevemente, os olhos de pousaram sobre a mulher, fazendo-a se remexer no assento com uma timidez que não lhe era habitual.
— O que foi?
— Lembranças eróticas — murmurou com sinceridade, antes mesmo de poder conter as próprias palavras. E, então, só se deu por conta da gravidade delas quando escutou a gargalhada de em contraste com a vermelhidão no rosto do rapaz.
Algo dentro de si a repreendia por suas palavras, mas ela, incrivelmente, não se sentia arrependida. Não depois da reação de .
Aquela visão do rapaz era mais facilmente reconhecível, aquele era o . Risonho e frequentemente envergonhado.
— Ao menos sua franqueza voltou.
Ela o olhou por um longo instante, a procura do real significado de suas palavras que pareciam ilógicas demais para ter algum sentido.
ainda sorria para si mesmo quando parou o carro em uma rua pouco movimentada. Já fazia muito tempo desde que tinha saído de casa, mas ela podia jurar já ter passado por aquela rua. Então, confusa e curiosa, ela desceu do carro e acompanhou o rapaz pela rua. Ela não fez perguntas, sabia que ele não responderia, mas sua mente parecia se afundar apenas em questões mal respondidas.
Quando o rapaz virou a rua, ela lembrou-se e subitamente se sentiu mal por ter esquecido, mesmo que por um milésimo de segundo.
o fitou, desacreditada, e caindo em si apenas quando recebeu um sorriso encorajador.
— Vamos, temos uma apresentação para assistir — ele ofereceu-lhe o braço.
piscou diante do ato, não contendo o vislumbre de emoção que atravessou seus olhos melancólicos. E, naquele momento, diante daquele olhar ferido e hesitante da moça em sua frente, tinha todos os motivos do mundo para recuar e desistir. Mas seu braço e seu sorriso fraco permaneceram a disposição da mulher. Ele não a deixaria, não de novo.
Ela pareceu compreender isto, pois suspirou, passando seu braço pelo o de e permitindo que ele a guiasse para dentro do teatro. parou de caminhar na entrada do auditório que, para a surpresa de , estava vazio. Ela o fitou, procurando entender o que ele planejava ao levá-la para lá. Mas ela não conseguiu identificar nada além do brilho nostálgico nos olhos do rapaz, que soltou seu braço suavemente, deslizando seus dedos quentes pela extensão de seu ante braço. E, mesmo com a jaqueta de cobrindo sua pele, não foi o suficiente para protegê-la do formigamento que o contato suave dele lhe proporcionava, ela tentou não transmitir o quão abalada estava com aquilo, mesmo quando ele segurou com cuidado sua mão que tremia.
abriu a boca diversas vezes, ameaçando dizer algo e, por fim, desistindo, sabendo que não retomaria o controle de sua voz tão cedo. , porém, pareceu ler sua mente.
— Está na hora — não era a resposta que ela esperava, mas pareceu ser mais do que o suficiente quando seus dedos apertaram os seus, guiando-a novamente pelo corredor levemente estreito entre os milhares de assentos distribuídos pelo auditório iluminado.
Fazia muito tempo desde a última vez que ela esteve ali, mas nada parecia ter mudado. Nem mesmo o cheiro suave de pó e madeira. Enquanto se sentavam nas cadeiras centrais, direcionadas completamente para um palco escuro e vazio, lembrou-se da primeira vez que viu ali e, quando ele sorriu abertamente para ela, soube que ele também se lembrava.
Foi ali onde tudo começou.
era um compositor e cantor, apesar disso, não era do tipo de rapaz que saía para socializar. Sua timidez era seu arqui-inimigo. Michael, seu melhor amigo do colégio, era um dos únicos que o entendia, provavelmente por serem parecidos. Baladas, festas ou qualquer outro lugar tumultuado e barulhento os incomodava, especialmente . Sua mãe infelizmente não o entendia tanto quanto Mike, sempre tão preocupada! E a preocupação apenas aumentou quando saiu de casa, mudando-se para seu próprio apartamento e passando dias inteiros ali, imerso em notas, rascunhos de letras e versos de seu violão.
não ficou surpreso quando Michael apareceu em sua porta uma noite, chamando-lhe para ir com ele até a apresentação teatral de uma amiga que ele conheceu algumas semanas antes. Ele não questionou a insistência não habitual do amigo, abruptamente soube que sua mãe tinha um dedo no convite. Mais tarde, Mike iria confessar isto e, novamente, não ficaria surpreso.
Pouquíssimas pessoas eram capazes de o surpreender.
gostava de teatros, mas, para ser honesto, fazia muito tempo desde a última vez que ele havia pisado em um. Ele tentou animar-se ao sentar em uma das diversas cadeiras que, aos poucos, eram preenchidas por outras pessoas. Mike não lhe apresentou sua amiga, de tal forma que estava completamente perdido antes mesmo da peça iniciar-se. Quando as cortinas foram abertas e as luzes centradas no palco, acesas, ele prometeu a si mesmo que tentaria prestar atenção. Ele era tão facilmente dissuadido em seus pensamentos e ele sabia que isso chatearia Mike e, eventualmente, sua mãe. Então ele pensou em fazer um esforço.
O que ele não esperava era que ele não precisaria se esforçar.
Todo decorrer da peça foi extremamente divertido, era um musical criativo sobre Peter Pan, bom o suficiente para fazê-lo se arrepender de não frequentar teatros mais vezes. Então, quando ele achou que não poderia ficar melhor, ela surgiu.
Quer dizer, ele.
No momento em que o próprio Peter Pan pousou os pés sobre o chão do quarto de Wendy, com ajuda de cordas imperceptíveis, se surpreendeu. Era uma garota. Isso era tão claro pela fisionomia feminina e as curvas, mesmo suavizadas pela maquiagem e a roupa. Quando ela começou a falar, forçando suas cordas vocais para tornar sua voz mais grossa, ele não poderia estar mais vidrado.
A reação de Mike ao aparecimento do Peter Pan era o suficiente para deduzir que aquela era sua amiga.
Ao final da peça, já estava encantado pela garota e isso o deixou terrivelmente tímido quando Mike insistiu em apresentá-los. já estava em suas próprias roupas, calças rasgadas, camiseta cavada e botas de salto alto. Os cabelos caíam suavemente sobre seus ombros nus e ela era incrivelmente mais bonita de perto. Havia ainda alguns vestígios de maquiagem em seu adorável rosto, ela provavelmente sabia disso, pois vez ou outra passava os dedos sobre o rosto em uma tentativa falha de se livrar do pó que cobria sua pele. Diferente dele, ela parecia tão tranquila. Até mesmo animada em conhecê-lo.
Ela sorriu largamente ao avistar Mike, dando-lhe um rápido abraço.
— Você deve ser o — ela apontou para o rapaz, fazendo-o hesitar por um momento. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela o surpreendeu com um abraço caloroso.
, inconscientemente, segurou a respiração. Seus músculos estavam tão tensos quanto um fio esticado, prestes a estourar. Quando ela se afastou, pôde contemplar a vermelhidão no rosto do rapaz e isso foi o suficiente para fazê-la rir. Uma risada deliciosamente contagiosa que habitou os pensamentos de durante dias após aquela peça.
A risada dela não era a única coisa que habitava seus pensamentos, embora.
despertou de seus pensamentos quando a luz no palco acendeu e as cortinas se abriram, exatamente como três anos atrás. Ele a observou atentamente, disposto a piscar o mínimo possível para captar todas suas reações. Ele não se importava com a peça que agora era iniciada com alguns atores subindo no palco, ele já havia visto essa peça inúmeras vezes incansavelmente. Apenas para vê-la. Mas agora ela estava ao seu lado ao invés de em cima do palco e observar seu rosto ser preenchido por surpresa era a melhor apresentação que ele poderia assistir.
Ela piscou, os olhos de repente cheios de lágrimas ao reconhecer os colegas de trabalho fizeram o coração de se contorcer, incerto se de tristeza ou felicidade. Ele a conhecia, sabia que havia nascido para os palcos e estava ciente da saudade que sentia de tudo aquilo. Mas também sabia que ela precisava salvar a si mesma antes de jogar-se novamente nas artes cênicas.
Assim como sabia que o mesmo se aplicava ao relacionamento de ambos.
Mas já fazia um tempo e sabia que se ele não a ajudasse a se salvar agora, talvez ela nunca voltasse. E ele sentiu que tinha feito a coisa certa quando viu que um sorriso surgiu nos lábios trêmulos de . O rapaz suspirou, sentindo-se subitamente quente por dentro com a súbita felicidade da moça.
Quando as cortinas se fecharam, as lágrimas, que pendiam dolorosamente nos olhos atentos de , se libertaram, deslizando suavemente pelas suas bochechas coradas. O sorriso largo que, até então, enfeitava seu belo rosto, desapareceu, deixando apenas um rastro quase imperceptível de sua existência. a fitava, de repente ansioso por suas palavras, temendo que de alguma forma ele apenas tivesse piorado tudo.
E se ela não tivesse gostado? Ou pior, tivesse se ofendido e, consequentemente, se magoado?
Ele prendeu a respiração, mas nada disse; não apenas por medo de piorar tudo, mas para dar um tempo para ela organizar seus pensamentos e decidir o que exatamente sentia sobre aquilo. O rapaz tentou se manter em silêncio pelo o que pareceu horas e, quando os olhos grandes e brilhosos de encontraram os e seus, ele soltou a respiração inconscientemente.
Então ela sorriu novamente e todo o peso de preocupação se esvaiu dos ombros cansados de . Passar semanas tentando convencer Mike de interpretar a Wendy rapidamente se fez valer a pena apenas por aquele sorriso.
— Você fez isso? — ela indagou baixo, a voz trêmula em contraste com a alegria que ainda brilhava em seus olhos marejados. se viu incapaz de responder aquela pergunta tão simples, então apenas maneou a cabeça suavemente em uma resposta positiva silenciosa.
O sorriso de se alargou ainda mais, se possível. Um sorriso tão caloroso que seria capa de queimá-lo até as cinzas e ele morreria feliz.
Mas nada se comparou ao sentimento de plenitude quando o surpreendeu com um abraço. Fazia tanto tempo desde a última vez que ele a tocou e mais tempo ainda desde a última vez que ela o tocou. Quer dizer, há alguns meses eles ainda trocavam leves contatos, nada além do necessário, mas pela primeira vez em meses, eles realmente se tocaram. Não era apenas o contato, mas o sentimento que ele passava. Ela queria o abraçar e todas as células do corpo frágil de pareciam confessar isso quando ela o apertou, reduzindo-o a apenas um homem esperançoso.
— Obrigada — ela disse em um suspiro quente contra sua pele. Ele tremeu e deslizou as mãos carinhosamente sobre sua espinha, em um agradecimento mútuo e silencioso.
se afastou contra sua própria vontade quando viu os atores já descendo pela escada do palco, todos amigos de durante sua jornada teatral, tendo apenas como intruso um Mike ainda vestido de Wendy.
seguiu o olhar do rapaz, encontrando os olhos nostálgicos e ansiosos de seus parceiros. Por um breve momento, sentiu-se mal por ter se afastado deles e de tudo o que o teatro lhe representava. Ela foi embora e nem ao menos disse adeus. Apesar de envergonhada diante de seu ato egoísta, ela sabia que eles não guardavam qualquer sentimento negativo sobre ela. Eles a fizeram sentir isso quando se reuniram em volta dela em um abraço grupal que emanava toda a saudade que eles sentiram.
observou aquele abraço, de fora, era o momento deles e apesar de conhecer e até ter amizade com muitos dos atores, graças a que sempre pedia para que ele a acompanhasse nos ensaios, ele não se arriscou em intrometer-se naquele momento.
Na verdade, a imagem de fora era extremamente tocante para ser ignorada. Os sorrisos e lágrimas compartilhadas naquele momento o deixava incrivelmente aliviado. Ela parecia feliz, ele analisou. E então sorriu.
Passou-se um tempo desde que eles começaram a conversar e se manteve a distância, ainda contemplando a felicidade e empolgação de . E ele estava tão submerso no sorriso dela que mal notou quando Mike se aproximou.
Michael percebeu a indiferença de quanto a sua presença e cutucou suas costelas com o cotovelo, apenas para chamar sua atenção. Uma tentativa bem sucedida, pois rapidamente piscou, voltando-se para o amigo ao seu lado, ele sorria.
— Você está me devendo uma.
fez uma careta, embora seus olhos ainda brilhassem com divertimento ao analisar a camisola feminina que Mike vestia.
— Não precisa fingir e nem agradecer, amigo — ele bateu saudosamente no ombro de Mike, que bufou em uma interpretação de raiva mal feita. — Eu sei que você adorou a liberdade de finalmente usar vestidos.
Michael socou o ombro de em resposta, então ambos riram suavemente, sincronizados pelo alívio de ver que o plano de estava dando, de algum modo, certo.
Mike então esfregou as mãos, piscando para , que o olhava com descrença, enquanto ele voltava rapidamente para o elenco, erguendo os braços dramaticamente.
— Tá tudo muito bom, mas já que amenizamos a saudade, acho que é hora de deixar ela ir. — houve resmungos de alguns e a risada de ecoou, fazendo sorrir inconscientemente. — Sem drama, ainda vai voltar muitas vezes, não é?
piscou, a hesitação passando rapidamente pela sua feição e, como se procurasse algum tipo de apoio emocional, ela procurou com os olhos. O peito do rapaz se apertou diante da imagem novamente frágil da moça, ele rapidamente maquiou sua aflição com um sorriso reconfortante que, felizmente, pareceu surtir algum efeito sobre os nervos de , que retribuiu o sorriso.
Infelizmente, ela ainda parecia contida, mesmo após voltar os olhos para os antigos amigos que ela havia se afastado. Apesar disso, ela ainda respondeu:
— Com certeza.
Isso pareceu ser o suficiente para acalmar as dúvidas de todos que, calmamente, se despediram dela e a devolveram para , que parecia igualmente aliviado.
O caminho até o carro se manteve em silêncio; não um irritante, mas não menos tenso. a observou durante o curto caminho, tentando decifrar sua feição para entendê-la, para talvez saber no que ela estava pensando. Era ridiculamente cômico que agora ele se esforçava tanto para saber seus pensamentos quando antes eles lhe deram dados de bandeja. Era uma característica de que normalmente o colocava em maus lençóis, a forma como ela falava abertamente o que pensava, sem analisar. Como quando Mike e seus amigos zombaram da timidez de e ela os calou contando-lhes o quão selvagem eram suas transas. Seu rosto esquentava apenas com a lembrança de suas insinuações que deixaram não apenas seus amigos de bocas abertas, como ele próprio.
Agora, isso era apenas uma lembrança melancólica e hilária.
parou abruptamente, já próxima da porta do carro, e virou-se para enfrentar , que ainda parecia divagar.
— — a moça o chamou suavemente, fazendo-o despertar não apenas com sua voz, mas com sua proximidade. Ele parou, dois passos de distância de se chocar contra o corpo de , a dois passos do que mudou sua vida de cabeça para baixo. E, apesar do tempo, ela ainda confundia completamente sua mente apenas com um olhar, o olhar que havia em seus olhos nesse instante enquanto ela lhe encarava com olhos indescritíveis. — Isso deve ter dado um trabalhão, obrigada.
engoliu em seco ao notar o tom de despedida na voz dela. Então era isso? Ela iria embora? Ele apertou os dedos, estalando-os e mudando o peso do corpo para a outra perna, sinais claros de nervosismo, observou. E, apesar da ansiedade estampada em seus olhos atentos, seu rosto demonstrava apenas divertimento, assim como sua voz ao contestar:
— O dia ainda não acabou.
franziu brevemente os olhos, tentando entender as palavras do rapaz para então lembrar-se. Ela havia lhe prometido um dia. Ela sorriu para si mesma, surpresa positivamente sobre a perseverança incomum de .
— Pensei que você me levaria para casa — a mulher inclinou a cabeça, parecendo adoravelmente confusa. Todavia, ela sentia-se estranhamente satisfeita com a situação, com o fato de estar tão disposto a passar um tempo com ela, a tentar recuperar o que haviam perdido ao longo dos últimos meses. Porque, no fundo, era algo que ela também queria. Ela sentia tanto a falta dele e isso apenas a corroía mais a cada dia que passava. A verdade era que ela sentia saudades da sua antiga vida, antes do diagnóstico e de toda aquela loucura. Antes de perder a si mesma durante o processo para sobreviver. E tê-lo tão perto, após tê-lo afastado, parecia injustamente bom.
— Eu ainda tenho planos pra você — ele piscou divertido para ela, antes de passar suavemente ao seu lado para abrir a porta do carro. Ele respirou profundamente, o perfume próprio corporal de atingindo seus sentidos. Ele abriu a porta, respirando pela boca enquanto organizava seus pensamentos antes de se virar para pegar o olhar de sobre ele, ela parecia ansiosa e levemente perdida parada ali, próxima ao seu carro.
Ele podia facilmente imaginar o quão difícil estava sendo para ela ficar tanto tempo longe de casa depois de meses entre quatro paredes. O pavor era algo visível nos olhos expressivos da moça e isso o fazia querer desesperadamente abraçá-la, beijá-la e fazê-la entender que o seu lugar era em qualquer lugar, que ela é livre e espontânea, que não sente medo. Ele só queria poder mostrar quem ela realmente é.
Mas ele temia que ela ainda não estivesse preparada para entender.
— A não ser que... — ele pareceu subitamente hesitante. — Você quer ir para casa? — perguntou, o coração batendo rapidamente com a hipótese dela dizer sim. Com a hipótese de não conseguir ser o suficiente.
piscou diante da pergunta, surpresa. Se ela estava com medo? Claro. Ela queria mais do que tudo voltar para sua cama e enfiar-se embaixo das cobertas. Mas ela não faria isso. Não enquanto soubesse que poderia ser diferente, que poderia ter dado aquela oportunidade para , sem se dar essa oportunidade. E vendo-o diante de si, as sobrancelhas franzidas e os olhos em uma súplica silenciosa, ela não seria capaz. Porque, depois de tanto tempo sem sentir nada, havia algum sentimento novo dentro de si. Algo que a esquentava de dentro para fora, reconfortando-a e palpitando e ela sabia que isso era por ele. sabia disso, pois já havia sentido isso antes, quando descobriu que amava .
— Não, eu estou curiosa com o que você tem para me mostrar.
Um sorriso aliviado e com promessas silenciosas surgiu no rosto suavizado do rapaz.
***
— Você está brincando! — puxou o ar em pura descrença quando caminhou calmamente até as portas frontais do restaurante japonês a alguns quarteirões do teatro.
sorriu divertido, dando de ombros como se não fosse um grande negócio.
— São duas horas da tarde, você precisa almoçar.
suspirou, esquecendo o quão encantador podia ser com pequenos detalhes que faria qualquer mulher derreter. Até mesmo ela. Na verdade, principalmente ela.
O restaurante continuava o mesmo desde a última vez que esteve lá, as mesmas decorações, funcionários e o clima suave. Por um breve instante, ela pôde até imaginar que era a primeira vez que pisava ali, no seu primeiro encontro extremamente desastroso, mas simpático, com .
Já fazia semanas que ele a acompanhava em todas suas peças, pelo menos em todas que ele podia comparecer e o fato do garoto tímido trocar apenas pequenas palavras com ela — como "olá" e "a peça foi incrível" mesmo que ele já tenha visto a mesma apresentação mais vezes do que ela podia se lembrar — estava a tirando do sério. Ela já tinha até mesmo tentado arrancar algo de Mike como o motivo pelo qual ele aparecia sempre ou o porquê dele ainda não ter dado em cima dela ou a chamado para sair. Quer dizer, ele se deu o trabalho de ganhar mais território que todos seus namorados juntos jamais conseguiram e nem havia trocado mais de três frases com ela.
Por um breve momento, ela achou que ele estava ali por outra garota, ou outro motivo. Mas então por que ele a olharia com tanto cuidado e apreço? Eles certamente não assistiria a uma mesma peça três vezes por semana apenas pelo amor a história, nem mesmo se fosse a sua preferida.
Então, após flagrar seu olhar penetrante sobre si, ela se cansou. Depois da apresentação foi decididamente até ele e, antes de qualquer cumprimento tímido e desastroso vindo dele, ela enfiou cuidadosamente um pequeno papel dentro do bolso de sua camisa xadrez e disse:
— Meu telefone. Hoje à noite. Eu estarei pronta às 20h — ela anunciou pausadamente para que um pasmo entendesse. Ela bateu suavemente no ombro do rapaz quando ele acenou, ainda em choque. riu, então piscou divertidamente para ele antes de lhe dar as costas. —, me surpreenda. Ele soltou o fôlego que não sabia estar prendendo e desabotoou os dois primeiros botões de sua camisa, sentindo subitamente o calor com um suspiro doloroso.
A ideia de levá-la a um restaurante japonês veio de Mike que o assegurou que ela amava comida japonesa tanto quanto , o que era uma alívio para o rapaz que pensava que ambos não tinham nada em comum.
devia saber que Mike estava jogando verde, mas ele estava nervoso demais para notar o olhar de divertimento do amigo que ria discretamente enquanto colocava rapidamente sua jaqueta preferida.
— Cara, pare com essa paranoia — Mike interviu ao ver o olhar perdido de pelo quarto, a procura de provavelmente alguma desculpa para enrolar mais ainda. — Seja qual for o problema, esqueça. Ela não se importa.
Bem, o problema era ele e o pensamento de que ele não importava para ela não era de grande ajuda. Todavia, forçou um sorriso agradecido para o amigo, compreendendo que ele apenas queria relaxá-lo e, embora tenha sido uma tentativa falha, ele apreciava a tentativa.
— Você pegou camisinha? — Mike perguntou calmamente, o tom que apesar de suave não diminuiu o desconforto de , que revirou os olhos para a pergunta e suspirou aliviado ao finalmente achar as chaves de seu carro. — O quê? Eu estou falando sério.
— É só um jantar, Mike.
— Pode ser só um jantar, mas pode haver ainda uma sobremesa...
exasperou, caminhando em direção à porta para fugir das palavras descaradas de Mike, que ria.
— Cale a boca. — Ei, não vire as costas para mim, precisamos ter essa conversa — ele fingiu estar bravo, todavia o traço de divertimento ainda perambulava pelo seu rosto cínico.
— Michael, já passei por essa fase e meu pai já me explicou, não preciso disso. Agora posso ir?
estava com raiva, Mike sabia disso, mas incrivelmente não ficou chateado com o amigo. Na verdade, ele achava particularmente hilária a sua reação.
A verdade é que se fosse ele no lugar de , ele também estaria assim. era uma pessoa maravilhosa, mas conseguia ser intimidante com sua espontaneidade até para pessoas extrovertidas como Michael. Ele não queria pensar nem no que ela faria com a cabeça de . Pobre rapaz.
Mike gesticulou uma reverência exagerada e aquilo foi a deixa para sair.
Enquanto e se sentavam, exatamente na mesma mesa reservada que eles haviam ocupado alguns anos atrás, eles não puderam evitar uma troca de olhar significativa.
Ambos se lembravam claramente daquela noite que passaram ali.
Não demorou muito para que o garçom se aproximasse com um enorme barco cheio de petiscos e chás gelados. Exatamente o mesmo prato da primeira vez que eles estiveram ali.
abaixou o olhar, tentando fugir dos olhos observadores de , que tentava captar qualquer reação da garota que pareceu subitamente pasma ao ver que, ao lado dos habituais hashis, haviam talheres. Então, mesmo não querendo correr o risco de sofrer qualquer dano ao olhar para o rapaz a sua frente, ela não conseguiu evitar. sorriu aliviado ao vê-la rir abertamente para ele.
— Vou confessar, todas as vezes que pedi comida japonesa para entrega eu sempre usei talheres.
não pareceu surpreso, o que a deixou surpresa.
— Eu sei — ele admitiu risonho diante do olhar exasperado da moça. — Por isso sempre tinha talheres na mesa em todas as vezes que íamos a um restaurante japonês.
Ela abriu a boca, chocada, e isso apenas intensificou a risada do rapaz.
— Eu pensei que era praxe de todos os restaurantes — ela parecia decepcionada por não ter notado, o que era absurdamente adorável. — Eu não acredito que você me enganou durante todo esse tempo.
— Desculpa, amor, mas eu não iria correr o risco de ter outro sushi no meu saquê.
ria distraído com a lembrança.
estava vergonhosamente tentando pegar um sushi com os hashis trêmulos entre seus longos dedos. a observava, de repente entretido demais para sentir timidez, tentando não rir da careta de esforço adorável no rosto da moça enquanto ela tentava incessantemente, até finalmente conseguir. estava prestes a bater palmas para a proeza merecida de quando os hashis se bateram e o sushi voou diretamente para um final trágico de afogamento no copo de saquê de .
Ambos seguiram o trajeto e permaneceram com os olhos presos no sushi que flutuava no copo, esperando por algum sinal de vida que obviamente não veio.
Eles trocaram longos olhares, então gargalharam.
— Tudo bem, confesso que nunca usei hashis — ela exasperou, risonha, e admirou o quão confiante ela parecia mesmo ao passar por uma situação que o faria querer enfiar a cara na terra, mesmo ao admitir uma falha. — E, pela sua cara, Mike deve ter dito o contrário.
queria tanto respondê-la mas ele sabia que se o fizesse cairia na risada novamente e ele temia envergonhá-la.
— Desculpe — ele murmurou com esforço, sua voz tremulando pela repreensão da risada.
— Bem, eu que joguei um pedaço de peixe cru no seu chá, acho que eu quem deveria pedir desculpas — ela riu e isso foi o suficiente para fazê-lo gargalhar novamente.
Quando se recuperou o suficiente para falar, chamou o garçom e pediu outro chá e talheres para , com a condição de que ela aprenderia a usar hashis.
Ela nunca realmente tentou e sabia disto. Desde então, passou a pedir talheres todas as vezes que saía com ela para restaurantes japoneses.
estava distraído demais com a lembrança para notar o choque no rosto de diante de suas palavras. Especialmente aquela tão usada antigamente, mas que até então só passava de mais uma lembrança.
Amor.
não era tão melosa, mas havia algo sobre aquela palavra, algo que afetava seu corpo apenas em escutá-la com a voz profunda de e saber que é ela quem ele está chamando. Apenas ela.
— Por que você assistiu a peça tantas vezes? — finalmente perguntou, após eles já atingirem metade do barco e já parecer confortável o suficiente para conversar fluidamente com ela, sem desviar o olhar ou corar diante de seu olhar.
piscou, surpreso com a súbita pergunta e sentindo-se gelar aos poucos com o receio em respondê-la. Mas ela já havia ganhado sua confiança de uma forma incrivelmente rápida e se antes ele já a achava encantadora, agora ela já havia ultrapassado suas expectativas.
— Por que a cada apresentação você me encanta ainda mais — ele respondeu com uma sinceridade simples, a vermelhidão em seu rosto contradizendo a calma em sua voz. — Eu achei que valia a pena te conhecer.
sorriu largamente para o rapaz, sentindo-se uma tola por soltar um leve suspiro de espasmo em surpresa pelas suas palavras.
— Ainda acha que vale a pena? — ela indagou, fazendo-o se sentir idiota por não ter conseguido deixar clara a resposta para aquela pergunta.
— Agora eu tenho certeza que vale.
O sorriso em seu rosto se alargou, atingindo seus olhos que agora brilhavam com afeto. então contou sobre sua vida até o fim do barco sobre a mesa. Sobre ter três irmãos — dois mais velhos e um caçula — até qual é o seu sorvete favorito. Conversas detalhadas e sem um fundo de utilidade normalmente fazia querer acabar os encontros o mais rápido possível para voltar para casa, mas, nesse caso, ele queria justamente o contrário. Ele almejou que a noite durasse a eternidade e mais. era tão aberta e espontânea que chegava a ser uma ofensa a timidez de , mas um surpreendente agrado ao seu ego. Sentia-se bem com o fato dela confiar e gostar dele o suficiente para passar tanto tempo contando sobre sua vida.
— Agora que você já sabe o suficiente sobre minha vida para me clonar, me fale sobre você.
riu nervosamente.
— Acho que preciso de mais informações para fazer um clone — ele brincou, tentando desviar o foco para longe de si. O que não deu certo, pois ela ergueu as sobrancelhas em uma clara evidência de desconfiança.
— Sem mais informações pra você, Cowboy. — ela apoiou o cotovelo sobre a mesa e o queixo sobre sua mão, olhando-o atentamente e impedindo-o de fugir. — Sua vez.
— Não há nada de especial sobre mim — ele disse suavemente, tentando fazê-la entender que ele falar sobre sua vida só a traria tédio.
— Oh, — ela sorriu largamente. — eu acho você muito especial.
— Diga de novo — ela suplicou em um murmúrio que rapidamente tirou de seus devaneios. Ele a fitou, preocupado com o sua entonação e confuso com seu pedido.
— O quê?
— A última coisa que você disse, repete.
Ele repensou na sua última frase e minuciosamente a analisou para entender exatamente o que ela precisava tanto que fosse repetido. Quando ele compreendeu, um sorriso gentil surgiu em seu rosto. O pensamento de que ela sentia saudade de suas intimidades assim como ele sentia, o fazia menos angustiado. E saber que ela pensava que ainda precisava pedir por uma palavra de afeto, o fazia querer rir com o quão absurdo aquilo era.
Ele repetiria isso quantas vezes ela quisesse e nunca reclamaria.
— Qual parte, amor?
Ela fechou os olhos diante de sua voz profunda, sentindo o prazer da felicidade circulando em suas veias e acelerando seu coração, que há tanto tempo pareceu estar inativo.
Quando ela abriu os olhos novamente, ele tinha a mesma feição de deleite.
***
O silêncio que se estabeleceu no carro até o próximo destino era agradável. Estranhamente agradável. Ambos apenas desfrutavam silenciosamente da presença um do outro, recuperando o tempo perdido e restabelecendo a força que até então parecia ter sido dizimada.
E, naqueles poucos minutos de silêncio, eles foram capazes de esquecer os últimos meses que eram marcados por medo e dor e lembrar-se apenas dos bons. E, novamente, parecia como um dia qualquer em que a levava para casa, onde eles provavelmente passariam seu tempo livre escutando músicas antigas e conversando sobre como foi seu dia. Algo corriqueiro, mas era o melhor momento do dia de ambos, exceto quando estavam tendo relações sexuais, é claro.
riu para si mesma.
Quando parou o carro diante do antigo apartamento de , ela tomou uma lufada de ar profunda diante do déjà-vu de já ter passado por essa exata situação. A única diferença era que antes e ainda namoravam.
— Você sabe, eu já não moro mais aqui.
sabia, obviamente. Lembra-se perfeitamente do dia que finalmente tomou coragem e, trêmulo, pediu para ir morar com ele. Parecia um longo passo para ambos, mas ele reconhecia que era maior ainda para alguém tão independente emocionalmente como . Mas já estavam juntos há três anos e parecia tão certo ao considerar que já passava mais tempo em sua casa do que na própria.
aceitou com tanto entusiasmo que se sentiu um tolo pelo tamanho de seu alívio. Eles empacotaram as coisas juntos e a moça seguiu para sua casa como se estivesse prestes a enfrentar uma grande e inesquecível aventura. Era uma empolgação contagiante até mesmo para , que se sentia nervoso.
O rapaz se lembrava de como todos seus amigos costumavam dizer que morar junto sempre arruinava relacionamentos, não queria pensar nisso, mas seria mentira dizer que não sentia medo. Ao contrário de , que obviamente fez disto uma festa e rapidamente transformou sua casa num espaço dela também, deixando em cada canto um pedacinho de seu ser. Seja a sua fascinação por livros e pisca-pisca que ela insistia em pendurar nas janelas e estantes, até nos roteiros que frequentemente achava pela casa, sempre junto de um copo vazio de café.
Foram os melhores meses da vida de .
E, ainda hoje, ele mantinha os pedaços da antiga em seu apartamento. Talvez para poder reviver e lembrar o passado que agora parecia tão distante, ele só esperava tanto que um dia ela voltasse.
Mas ela nunca voltou e, cansado de esperar, aqui estava ele tentando recuperá-la. Tentando fazê-la lembrar daquilo que ele nunca esqueceu.
— Eu te trouxe até sua casa naquela noite.
o fitou, sorrindo enquanto acenava em reconhecimento. Ela não tentou disfarçar o olhar surpreso quando o rapaz saiu do carro sem aviso prévio, mas relaxou quando ele o circulou e abriu a porta do lado do passageiro, convidando-a acompanhá-lo, para onde, exatamente, ela não sabia. E não importava, ela o seguiria a qualquer lugar.
— E você não ficou apenas do lado de fora — ela disse suavemente em uma clara tentativa de provocá-lo. Uma entonação que rapidamente tirou a respiração do rapaz, que a olhou esperançoso.
— Não, não fiquei.
Sua voz profunda novamente a atingiu sem aviso prévio, de uma forma boa, mas diferente da primeira. Ela apertou os lábios e manteve os olhos distantes do rosto do rapaz, temendo o que encontraria lá.
— Vem — a chamou suavemente enquanto se encaminhava até a porta que dava acesso ao prédio.
— Não podemos entrar — ela murmurou em repreensão e isso subitamente chamou a atenção do rapaz, que parou a alguns passos da porta.
Ele parecia decepcionado.
— A que eu conhecia não se importava.
Era verdade. Alguns anos atrás, ela quem o estaria arrastando para lugares de acesso proibido e rindo da cara de pânico do namorado extremamente temeroso.
deu-se por vencida e o seguiu, vendo-o acenar para o porteiro que sorriu largamente para ela, reconhecendo-a.
Quando eles entraram no elevador e clicou no botão que os levava para o terraço, ela suspirou. De repente, ansiosa para que chegassem até lá. Não apenas para fugir do perfume já extremamente entorpecedor dele, mas ansiosa pelo o que ele diria e faria ali.
Quando as portas se abriram e eles atravessaram o corredor vazio, tomou dianteira e abriu a porta que levava propriamente ao terraço. Quando a porta foi aberta, o ar chocou-se dolorosamente contra seu rosto, embora fosse um alívio diante do calor que já a fazia se arrepender de ter colocado calças jeans.
Ela fechou os olhos, absorvendo o ar que naquela altura sempre foi estranhamente diferente, mas mais fácil de respirar, parecia. sabia que provavelmente era algo de sua mente. Ela apenas gostava muito daquele local.
Quando abriu novamente os olhos, encontrou os de a observando minuciosamente. Em silêncio, ambos andaram sincronizados até o parapeito do terraço e, em meio de todas aquelas buzinas e murmúrios abaixo deles naquela tarde, a voz de cortou o silêncio entre eles:
— Aquela foi a primeira de uma sucessão de melhores noites da minha vida — ele confidenciou, fazendo-a sorrir com a memória ainda quente, tão quente que parecia ter sido na noite passada, chegava a ser palpável.
Idem.
Ela pensou, embora não achasse necessário dizer em voz alta, uma vez que parecia estar ciente do significado que aquela noite teve para ela.
Novamente de olhos fechados, ela podia até mesmo sentir o toque cuidadoso, mas constante do rapaz pelo seu corpo, sua pele quente contra a sua, lábios insistentes e movimentos constantes. tinha mente aberta, mas transar no primeiro encontro não fazia seu estilo, de forma que foi uma surpresa para ela quando acordou no meio da noite com o corpo entrelaçado ao daquele belo e tímido rapaz.
Ela não se arrependeu, todavia.
— Quando acordei e a vi sair do quarto, pensei que tivesse se arrependido e eu estava prestes a me vestir e ir embora — ele murmurou, sua voz baixa apenas agravando sua necessidade de algum contato.
— Mas você não foi — completou, sua voz falhando, para seu desgosto.
— Eu não conseguiria ir e fingir que nada aconteceu — explicou. — Então te segui até aqui, apenas me perguntando o que uma louca faria num terraço às duas da manhã.
riu suavemente, sendo seguida por , que balançou a cabeça, tentando afastar aquela lembrança.
A lembrança da visão atraente e surreal da silhueta daquela mulher em pé no contraste entre a escuridão da cidade e a luz do céu, o vento forte fazendo os longos cabelos bater contra a pele nua de seus ombros.
Ele suspirou e isso foi o suficiente para chamar a atenção da mulher, que o olhou por cima do ombro e abriu um sorriso. O rapaz prendeu a respiração em um efeito pasmo. Ela não podia ser real.
— Está frio aqui fora, você devia voltar para dentro.
Seu sorriso se alargou e uma risada escapou dos lábios levemente inchados da moça.
— Eu amo esse lugar, é o meu segundo lugar favorito em todo mundo — ela confessou, chamando-o discretamente para que ele se aproximasse, apenas para ver o movimento que havia na rua. Haviam alguns carros e pessoas, não uma multidão, mas muito para duas da manhã. — Às vezes quando preciso pensar venho até aqui e passo horas em silêncio, apenas escutando todo o caos da cidade lá embaixo, isso me conforta.
— O barulho do caos te conforta? — o rapaz ergueu as sobrancelhas, não contendo a incredulidade inocente em sua voz.
riu para ele.
— Isso aí. Ele olhou para baixo e focou-se nos sons, obviamente não eram os mesmo aos quais ela se referiu, pois não era horário de pico e sons como esse não são padronizados, mas mesmo assim ele permaneceu ali. Tentando ver o que ela via, o que não era claro para ele.
— Qual é o primeiro? — ele indagou, de repente. Sob o olhar inquiridor da moça, ele explicou: — Você disse que este é seu segundo lugar favorito. Qual é o primeiro? — A praia — ela pareceu feliz por ele se importar em perguntar. — A areia entre meus dedos, a maresia, o vento, o clima e o silêncio. É tudo tão diferente.
Ele a fitou, incrédulo e encantado ao mesmo tempo. Vê-la relaxar apenas ao descrever o que mais gostava sobre praias era mágico, um tipo de magia que ele estava disposto a tentar.
— Vamos — ela estalou suavemente, tomando-lhe a mão e o puxando para dentro do prédio. — Round 2?
Ela sorria descaradamente e, apesar da vermelhidão em seu rosto, ele sorriu de volta.
Agora, todavia, ele entendia melhor o porquê de gostar tanto do caos. Olhando agora para baixo, ele podia sentir o reconforto de estar apenas a observar. Não havia nada que ele poderia fazer e nem nada que ele precisasse fazer. O controle estava na mão de segundos e, nesse momento, ele era apenas o expectador de algo maior. Ou mais banal.
— Eu sinto sua falta — disse, alto o suficiente para não haver dúvidas e para deixar claro o quanto ele sentiu.
— Eu também sinto a sua — ela murmurou em reposta, parecendo estar sufocando. Os olhos abriram subitamente e encontraram os de , apenas para se certificar de que ambos estavam realmente ali.
O rapaz virou-se para ela, ficando próximo demais para a sanidade de , mas ainda longe demais para seu corpo que clamava por mais. E, como se ouvisse sua prece silenciosa, ele alcançou seu rosto, acariciando-o e fazendo-a arfar sobre o sentimento que aquele contato quase esquecido a fazia sentir.
Ele uniu seus corpos e, com um longo suspiro, seus lábios.
Fazia meses desde a última vez que eles se beijaram, ela lembrou-se com tristeza de quando ela o pediu tempo e espaço e de como ele a beijou antes de bater a porta, um beijo de despedida.
E a última vez que eles realmente se beijaram, quando as coisas eram mais fáceis e não havia medo. De como ele a segurava firmemente enquanto a provava e a adorava com seus lábios.
Exatamente da mesma forma que ele a beijava agora.
Como se palavras nunca fossem expressar o que seu contato lhe confessava silenciosamente. O quanto ele dizia a amar apenas em suspirar contra seus lábios ao se separar para só então beijá-la novamente, suavemente.
A mão de , que ainda estava em seu rosto, seguiu uma trilha de carinhos até sua nuca, para finalmente ele lembrar-se que ela usava uma boina que cobria seus fios. Ele alcançou a lã, cuidadosamente, tentando não assustá-la e nem machucá-la.
Pareceu não dar certo, de qualquer forma, pois tão logo quanto tocou a boina, se afastou abruptamente. Os lábios vermelhos e entreabertos enquanto tentava arduamente respirar, o rosto contorcido em uma expressão de tormento. E, sem palavras, isso foi o suficiente para se arrepender de tal ato.
— Desculpe, eu não...
— O que você quer? — ela o interrompeu, inquirindo em uma voz trêmula, se pelo beijo ou por raiva, ele não sabia.
Ele ergueu as mãos, incerto se deveria se aproximar e tocá-la ou apenas anunciar bandeira branca à distância e respondê-la, embora ele não fizesse ideia do que ela queria dizer.
— Por que você está fazendo isso? Por que você está aqui?
não respondeu e isso apenas deixou mais alterada, os olhos brilhosos pelas lagrimas contidas refletiam a imagem pálida de de uma forma atormentadora.
— O que você quer de mim?! — ela gritou, exasperada. Sua voz finalmente quebrando, assim como suas lágrimas que agora rastejavam dolorosamente pelo seu rosto corado.
Isso foi o suficiente para .
— Você! — respondeu, por fim, com fervor. Algo tão profundo que rapidamente calou qualquer reivindicação de , que abriu a boca, pasma. — Eu quero você. Quero que a que eu conheço volte.
piscou, perplexa com suas palavras.
— Quando você correu de mim, até a praia, e começou a chorar, eu sabia que havia algo de errado. Mas quando você contou entre soluços que você tinha um diagnóstico para suas dores frequentes, quando você disse que tinha câncer, meu mundo desabou.
Ela arfou, abaixando o olhar para evitar que a dor em seu peito piorasse com a visão de um destruído por sua culpa. Era tão injusto que ele tivesse que sofrer tudo isso por algo que apenas ela devia ser afetada. Mas ela tentou evitar a dor do rapaz, lembrou. Mesmo após descobrir o resultado ela se manteve em silêncio, não lhe contou, não chorou, não esperneou, não se tratou. Apenas ignorou o fato de que havia um tumor em seu cérebro.
Mas era óbvio que uma hora notaria e isso não demorou. Ela estava estranha e a cada dia que passava os vômitos, sangramentos nasais, tonturas e enxaquecas apenas pioravam e progrediam para outros sintomas. Ele queria levá-la a um médico, o que os levou a uma briga que a levou a se desesperar e fugir. Ele estava tão furioso que ela não pensou que ele iria atrás dela até a praia e, com uma voz calma, perguntaria o que estava acontecendo.
Contar a ele que ela estava morrendo foi pior que receber a notícia. Ele tentava tão arduamente não chorar quando era evidente que ele estava quebrado.
Todo esforço para parecer confiante e otimista por ela.
Vê-lo admitir seus sentimentos sobre aquele dia era uma perspectiva diferente, mas ainda dolorosa. E sobre esse terraço, ele parecia tão perdido quando estava naquele dia, na praia.
— Eu tentei ser forte para você, mas desde aquele dia algo mudou em você. E isso apenas se fazia mais evidente a cada dia que passava, enquanto o tratamento transcorria, eu me vi perdendo você aos poucos. Tentei me convencer de que era algo temporário devido a pressão e ao tratamento. Eu fiquei ao seu lado até o fim — ele prendeu a respiração.
— Mas então você estava curada e eu pensei que você se recuperaria — ele suspirou. — Mas eu estava errado. Você estava viva, mas algo dentro de você tinha morrido. E eu continuei mentindo para mim mesmo e para todos, dizendo que você só precisava de um tempo, mas esse tempo nunca teve fim. Você se isolava e afastava todos que se aproximavam, ficava dias sem se alimentar e sem dizer uma palavra. Eu nunca pensei que te perderia para o tumor depois que ele já tivesse sumido.
chorou silenciosamente, por tudo o que ela havia perdido e por tudo o que ela havia feito todos que a amavam passar. Por toda a dor que ela fez passar ao tentar alcançá-la quando ela já estava inalcançável.
— Por muito tempo me culpei, pensando no que poderia ter feito por você. E eu cansei de remoer. É por isso que estou aqui. Estou fazendo isso por você porque não quero que chegue a um ponto irreversível. Porque eu quero aquela mulher confiante, extrovertida e tagarela que conheci naquela peça. A mulher que aceitou morar comigo sem pensar duas vezes apenas por amar se jogar de cabeça em novas aventuras. Quero aquela que iluminava o caminho por onde andava e chamava a atenção de todos, não pela roupa que estava usando ou pelo corpo, mas pela sua espontaneidade. Quero a moça que não se exige aprender coisas novas para agradar outras pessoas, a não ser que seja a si mesma. Aquela que, depois do casamento da minha irmã, me fez tirar meu terno e sapatos sociais apenas para entrar no mar às três da manhã, a que me fez cantar em um bar country para completos desconhecidos apenas para perder meu medo do público. Que nunca desistiria de algo. Muito menos de si mesma. Aquela mulher que faria os cabelos da minha mãe se eriçarem e ela querer me deserdar por pensar que namoro com uma selvagem e, que apesar disto, riria. Porque a verdade é que sinto falta daquela mulher de coração selvagem que virou toda a minha vida de cabeça para baixo e pelo qual eu me apaixonei. E eu daria tudo para tê-la de volta.
Nada foi dito, nada além de seus corpos clamando por paz. Os soluços de eram tão audíveis quanto os batimentos cardíacos e a respiração ofegante de .
Demorou longos minutos para dizer algo, de forma que já estava com a respiração sob controle, embora, infelizmente, ele não pudesse falar o mesmo de seus batimentos cardíacos.
— Preciso ir para casa — ela disse, por fim, o mais firme que conseguiu com sua voz ainda trêmula.
Ela não ousou olhar para , sabia que a dor em seu peito apenas se intensificaria com a feição de provável dor no rosto do rapaz. Todavia, ela não podia fugir de ouvi-lo respirar ruidosamente, como se ela o tivesse socado.
— ...
apertou os lábios e tentou conter as lágrimas que novamente embaçavam sua vista. Ele suplicava pelo seu nome e tudo que ela mais queria fazer era abraçá-lo e permitir que ambos pudessem seguir em frente. Mas ela estava com tanto medo e ela precisava urgentemente de uma área segura, como suas cobertas.
— Por favor — ela sussurrou quase sem fôlego e foi uma surpresa ter escutado sua voz tão minúscula.
acenou com um semblante de aflição. Ele nunca diria não à ela, mesmo que ela o pedisse para deixá-la ir. Mesmo que isso o machucasse.
Ele caminhou silenciosamente para dentro do prédio e esperou pacientemente por , quando ela hesitou por um instante. Durante todo o trajeto até o carro e até a casa de , eles não trocaram olhares, muito menos palavras. Ambos ocupados demais tentando manter o controle físico e emocional.
A viagem foi longa e torturante, mas só parecia disposto a prolongar aquilo quando seguiu até sua porta, mesmo com o suspiro de controvérsia da moça, que não se atreveu a dizer nada.
Ao chegar em sua porta, respirou fundo e finamente virou-se para , olhando-o com receio.
Ele parecia sentir dor, mas sabia que ele não estava ferido, não fisicamente, e isso apenas tornou tudo pior, pois ela não podia ajudá-lo. Não, não era tão simples.
Para sua surpresa, ele se aproximou e segurou seu rosto. Ela suspirou com o contato e fechou os olhos apenas para aproveitar o calor que suas mãos emanavam. Então ele se aproximou, fazendo-a prender a respiração. Ele beijou, carinhosamente e cuidadosamente, sua testa. O contato caloroso pareceu durar longos minutos e isso foi tão bom que quando se afastou, lamentou inconscientemente.
— Se ainda tem um coração selvagem aí dentro — ele murmurou, tão próximo que sua respiração chicoteou nos lábios formigantes de . —, não o deixe morrer.
Era uma súplica clara, embora o pedido em si não fosse tão claro assim.
sorriu tristemente e beijou suavemente seus lábios antes de se afastar e ir embora.
Ela não conseguiria dormir naquela noite.
***
não sabia durante quanto tempo ficou sentado na areia de uma praia vazia com seus sapatos ao lado, mas sabia que provavelmente foram horas, uma vez que o sol estava longe de estar à vista e agora as águas que ele encarou tão incessantemente tornaram-se escuras pela falta de luz. Ele quase riu da ironia e semelhança entre a água e sua vida agora.
Ele sabia que não devia pensar sobre o passado, mas ele não conseguia evitar.
Não enquanto ele enxergasse uma feliz e descalça saltitando pela areia, rodopiando e gargalhando como uma criança. Se ele fechasse os olhos, ele podia até mesmo escutar sua voz persuasiva, chamando-o para acompanhá-la em seu mergulho, fazendo-o tirar os tênis. Apenas ela seria capaz de fazê-lo ficar descalço em uma praia deserta numa noite de verão.
Ele riu para si mesmo.
A verdade é que ela seria capaz de persuadi-lo a fazer qualquer coisa.
Talvez por isso seus pais odiassem a ideia de ele estar apaixonado por uma garota como . Ele lembrava-se, com remorso, de como seus pais e os próprios pais a tratavam. Como se ela fosse um erro que precisava ser corrigido, como uma chama que deveria ser apagada. Isso sempre chateou , mas não parecia afetar . Com o tempo, ele aprendeu a não se importar também, pois sabia que nada seria capaz de apagar o fogo que havia nos olhos daquela mulher.
era como um pássaro, ele notou um dia. Ela nasceu para ser livre, não se prendia a conceitos que a sociedade impunham.
Ele amava isso nela.
Houve um tempo que seus amigos começaram a chamá-la de filha do mal. Ele nunca entendeu o porquê disso e, inicialmente, odiou o fato dos amigos estarem ofendendo sua namorada. Mas, novamente, isso não a afetou. Então ele notou que não era propriamente uma ofensa, não para , que sempre ria ao escutar o apelido e às vezes até mesmo provocava com isso.
Ele apenas entendeu o apelido quando sua mãe resolveu tentar conviver com e os chamou para um jantar. sabia que não se importava com o que pensavam sobre ela, mas apreciou o esforço que a mulher fez ao manter seus pensamentos para si mesma durante todo o jantar.
Mas ela era inquieta e, felizmente, ainda tinha vontades próprias. Era tão óbvio que ela faria algo que se sentiu tolo ao ficar surpreso quando a mão de serpenteou até suas calças, por baixo da mesa. Ele engasgou, o rosto tão vermelho que fez sua mãe quase ligar para a ambulância. , por outro lado, apenas sorria inocentemente, enquanto sua mão massageava secretamente o rapaz e isso apenas tornava tudo pior.
Naquela noite ele notou, ela não era apenas a filha do mal, ela era a própria maldade.
Mas ela também era a única pessoa que o deixava louco e, mesmo sabendo dos riscos, ele não se importava. Enlouquecer não deviria ser tão bom.
Alguém sentou-se ao lado de , despertando-o de seus pensamentos e fazendo-o abrir os olhos abruptamente. Seus olhos caíram sobre a pessoa ao seu lado, .
Ele arfou, surpreso. Não por apenas ela estar ali, ou pela proximidade minuciosamente intencional do seu corpo, mas principalmente por ela estar sem sua habitual boina que a acompanhou durante todos esses meses, mesmo após a cura. Seus fios escuros já estavam razoavelmente grandes se comparado ao tempo que ela mantinha a cabeça raspada, os fios eram curtos, embora, mas já escondiam a cicatriz cirúrgica que retirou o tumor.
Ela já não vestia sua jaqueta, nem calças jeans. Ao invés disso, ela vestia um vestido floral que batia levemente acima de seus joelhos, que agora se esticavam pela areia. Ela estava descalça, o coturno que ela usou para chegar até ali jazia largado ao outro lado dela.
Ela parecia tão serena ao sorrir para ele, acalmando as batidas dolorosas de seu coração.
Ela suspirou em deleite ao fechar os olhos e enterrar seus dedos na areia, aproveitando o cheiro de maresia misturado ao cheiro típico de , que a observava silenciosamente em contemplação.
Aquela era a que ele conhecia, tão calma e forte ao mesmo tempo, aproveitando o momento como se fosse algo único, sem boina, sem medo, sem receios.
Apenas vivendo.
Ela abriu os olhos novamente e havia um fogo familiar crepitando ali. A chama que pensou que nunca mais veria. E, naquele momento, toda a dor pela qual passaram nos últimos dois anos desde a descoberta da doença, não importava mais.
Nada disso importava.
Eles haviam enfrentado aquilo juntos, haviam vencido a doença e agora mereciam seu final feliz.
apoiou uma de suas mãos sobre o ombro de , apenas um impulso para que ela se curvasse até seus lábios, plantando um beijo rápido, mas caloroso no local antes de enterrar o rosto em seu pescoço. O rapaz prontamente a abraçou, sentindo-se vitalizado pela ideia de que era ela ali. Não apenas seu corpo, mas ela por inteiro, corpo e alma entregando-se ao rapaz de uma forma que apenas ela conseguia.
— É bom te ter de volta — ele brincou, beijando seus cabelos em uma declaração silenciosa.
Ela afastou-se, um sorriso selvagem surgindo em seus lábios e fazendo-o tremer. Então, levantou-se abruptamente e tirou o vestido, revelando suas peças íntimas com um sorriso desafiador.
— Vamos ver se você ainda tá com tudo em cima — debochou, gargalhando da cara de choque de antes de correr até o mar.
balançou a cabeça, voltando a si com uma risada de descrença. Ela ainda conseguia surpreendê-lo.
— Vamos, !
O rapaz prontamente se levantou e a seguiu. Ele sempre a seguiria, a qualquer lugar.
Não tinha noção sobre quanto tempo tentou ignorar as malditas pedras, até que desistisse e dê-se por vencida. Jogou-se para fora da cama em um gemido doloroso, sentia cada músculo sedentário de seu corpo pedir por clemência a cada passo que dava em direção a janela. Em sua mente, já ensaiava a bronca que daria nos pestinhas que insistiam em perturbá-la, pendurava um post-it em sua mente para lembrar-se de, quando possível, falar com seus vizinhos para que controlassem melhor seus filhos.
abriu a janela, mas foi calada pela surpresa antes de ao menos poder iniciar seu sermão ensaiado. Estava escuro, apenas dois postes iluminavam a rua deserta, mas ela, imediatamente, reconheceu quem estava a jogar as pedras e essa visão a congelou. Puxou ruidosamente o ar que lhe faltava, quando recuperou o controle sobre seu corpo e forçou-se a fugir para dentro de seu quarto e para longe dos olhos profundos de . Ela sentou-se na cama, ciente de que se continuasse em pé, desmaiaria. Seus olhos correram, pela primeira vez em semanas, para o relógio que marcava 4:15 em cima do criado mudo. O que ele estava fazendo ali às quatro da manhã? Será que algo tinha acontecido? Mas por que ele a procuraria? Ela mal conseguia respirar.
Desejou poder se enfiar embaixo das cobertas e sumir para sempre, mas a única coisa que era capaz de fazer era hiperventilar e tentar imaginar os piores motivos para ele estar ali.
De qualquer forma, estava desconcentrada demais para notá-lo entrando pela sua janela e só se deu por si quando mergulhou no tapete felpudo que forrava o chão de seu quarto. Ele se sentou, atordoado pelo tombo, em outras circunstâncias, ela riria da situação. Mas, no entanto, ela estava focada na árdua tarefa que era respirar.
Enquanto ele levantava, ela o observava atentamente, tentando absorver o fato de que ele realmente estava ali. Parecia o mesmo de sempre, exceto pelas olheiras e pelo sorriso cansado. Mas ele ainda era aquele belo rapaz de olhos tímidos que sempre a encantou.
— Oi — ele murmurou em uma mistura singular de timidez e coragem.
Demorou alguns segundos para que ela achasse sua voz.
— Oi.
Ele esperou pacientemente por algum complemento por parte dela, o que não veio, pois ela não conseguia pôr em palavras nenhum de seus milhares de pensamentos, o que a deixou frustrada. maneou a cabeça para si mesmo e suspirou, olhando ao redor a procura de algum ponto seguro para olhar, até que seus olhos caíram sobre o mural de fotos que havia em cima da cama de . Ele não notou o receio da mulher sentada na cama, estava ocupado demais admirando as fotos que enfeitavam o mural. Um sorriso nostálgico emoldurou os lábios do rapaz quando seus olhos encontraram fotos de ambos abraçados enquanto gargalhavam e, de repente, ver aquele momento diante de seus olhos, fazia parecer vidas atrás. Mas só fazia meses.
estava perto de , perto o suficiente para que ela conseguisse sentir seu cheiro e, por um breve momento, ela se viu tentada a esticar seu braço e tocar a mão do rapaz, apenas para se lembrar de como seu toque era. Em sua mente, se auto puniu por ter tais pensamentos e, com um longo e ruidoso suspiro, quebrou o silêncio:
— O que... — os olhos profundos do rapaz rapidamente caíram sobre ela, fazendo-a hesitar por um longo momento. Por que era tão difícil? Ela não entendia, mas, de alguma forma, a presença de a fazia querer cair em seus braços e ao mesmo tempo fugir. limpou a garganta em uma tentativa falha de dissipar o nó em sua garganta, ciente de que precisava dizer algo. — Por que você está aqui?
pareceu subitamente aliviado por ter dito algo, ele temia que ela se calasse e o afastasse, como estava a fazer nos últimos dois anos. Ali estava uma pequena evolução que ele, rapidamente, se agarrou com esperança de que toda aquela dor acabasse.
estava muito diferente desde a última vez que a viu, uns dois meses atrás. Ela parecia ainda mais magra, mais pálida e com os olhos fundos. Não era uma imagem agradável e não era por causa da beleza. Longe disso, sempre foi uma mulher bela, até em seus piores dias e era testemunha disto, pois ele sempre esteve lá para ela. Mas ele não podia negar que era uma imagem dolorosa. Ele sabia que se comparasse aquela mulher sentada à sua frente com a mulher divertida nas fotos do mural, não encontraria muita semelhança. Pareciam mulheres completamente diferentes. Tentava não pensar muito sobre, mas não conseguia evitar o sentimento de perda ao olhá-la.
— Precisava ver você — respondeu com facilidade. Uma facilidade invejável para .
— Você poderia ter entrado pela porta da frente — comentou, tentando ignorar a ardência em seu peito. Ela não sabia o quanto precisava vê-lo também, até olhar para ele.
— Na última vez que estive aqui você me pediu para que não passasse mais por aquela porta, então...
riu, um riso fraco e levemente melancólico. Mas foi o mais próximo de uma risada que escutou dela em muito tempo e ele sabia que, se naquele momento ela o pedisse para ir embora, já teria valido à pena. Droga, ele amava tanto aquele som.
Então, novamente se fez o silêncio e ambos estavam cientes do quanto aquilo poderia ser constrangedor. apertou os cobertores entre seus dedos, tentando aliviar a tensão que insistia em prender sua respiração, mas ela sabia que esse sentimento sufocante não sumiria enquanto estivesse ali para fazê-la lembrar do quanto um dia ela já havia sido feliz.
— O que você está fazendo aqui, ? — indagou novamente, dessa vez com um leve tom de súplica.
a fitou, observando atentamente a forma como ela parecia almejar a segurança das cobertas, o quanto queria fugir dele. E ele sempre soube que isso seria difícil, mas não imaginou o quanto.
— Eu te disse.
— Não — ela balançou levemente a cabeça em discordância, sua voz falhando miseravelmente. — O que você quer?
— Eu... — olhou ao redor, receoso pela reação da mulher. Receoso pelo o que aconteceria durante o resto do dia e no que os levaria. Mas ele não podia simplesmente desistir e voltar para casa, para a casa deles. — Eu quero um dia.
— Você entrou pela minha janela às quatro da manhã para me pedir um dia? — ergueu as sobrancelhas, desacreditando nas próprias palavras.
— Sim — ele simplesmente respondeu, demonstrando uma confiança que não estava tão acostumada.
Então ela o fitou, reconhecendo a feição de preocupação que ele costumava fazer quando ela fazia algo imprudente, o que antes era frequente. Ele temia que ela o afastasse, no momento era a primeira coisa na sua lista de maiores medos. O medo de altura e de vaias não parecia nada em comparação.
Ele trocou o peso do corpo para o outro pé e repreendeu a vontade de bagunçar o próprio cabelo, atos estes que deixariam transparecer seu nervosismo. No momento, ele devia ser forte, pelos dois. Então se manteve ali, em pé, ignorando a dor que o silêncio de o causava. Ela nunca fora de pensar muito, na verdade, ela era feita de impulsividade. sempre odiou e amou isto nela. Agora, ele amava mais do que odiava e, mentalmente, fazia uma prece para que ela retomasse o pouco dela que havia deixado para trás. Mas ela havia mudado, lembrou-se a si mesmo quando ela abaixou o olhar. Então era ali em que ambos acabavam.
— Um dia — ela murmurou, fazendo-o arfar diante da clara confirmação da mulher.
não estava disposto a deixá-la sozinha, não depois de tanto tempo longe. Mas ele estava ciente da necessidades dela, por isso, ainda hesitante, se retirou do quarto.
Os primeiros minutos de espera pareceram fáceis, mas, depois do que julgou já ser o necessário, ele não pôde conter o nervosismo com a possibilidade dela estar cogitando a proposta dele. Ele a conhecia bem o suficiente, mesmo após sua mudança, para saber que ela estava, naquele momento, encarando o espelho a procura de razões para seguir com aquilo, a procura de coragem para finalmente deixar aquele quarto para trás pela primeira vez em meses. Mas ele também sabia que a antiga nunca hesitaria, também sabia.
já estava tão conformado com a ideia de que ela não sairia, que quando a porta do quarto se abriu, ele pulou.
Supostamente, a surpresa deveria sumir, mas ela permaneceu insistentemente no rosto do rapaz que olhava para sem qualquer pudor.
Ela usava calça jeans com buracos nos joelhos, uma camiseta aleatória e uma jaqueta que ele rapidamente reconheceu. Ele nunca tinha dado falta daquela jaqueta, embora tenha estado claramente todos esses anos na casa de . Parecia provocá-lo, pois usar a jaqueta que ele tinha esquecido em sua casa após sua primeira noite juntos, não parecia justo. O fato é que nada nela era justo, nada além das calças jeans que ela usava. E, apesar de ser uma manhã fria, ele não viu necessidade em utilizar a boina que cobria seus curtos fios de cabelo. Mas ele nada disse, uma vez que já fazia dois anos desde que ela começou a cobrir o cabelo com acessórios como aquele.
Ele tentou não seguir essa linha de pensamento o caminho inteiro até o carro, mas o silêncio que insistia em manter não era de grande ajuda. Ele esperou pacientemente para que o receio da mulher sumisse para que, então, ela conseguisse entrar no carro. Durante o processo, ele manteve o olhar preso no volante, tentando arduamente conter a dor que a desconfiança de lhe causava.
Quando, por fim, ela entrou, ele ligou o carro.
— Vamos passar em algum lugar para você comer — ele explicou, sabendo que estava se roendo para saber qual era o destino deles e, embora não fosse uma informação tão útil, era o que ele poderia dar no momento.
— Não estou com fome — ela murmurou, sua garganta seca implorando por compreensão.
— Quem diria que a mulher que quase pedia o cardápio inteiro de café da manhã, falaria que está sem fome.
optou pelo silêncio, pois sabia que, de alguma forma, ele estava certo.
A curiosidade de aumentava a cada cafeteria que passavam. Com tantos lugares para tomar café da manhã, ela não entendia porque ele continuava a dirigir para tão longe. Após um longo tempo, quando os enormes prédios foram substituídos por pequenas casas e quando a estrada se tornou sinuosa, ele finalmente parou em um pequeno estacionamento de uma cafeteria qualquer.
Apesar da curiosidade, nada disse ao descer do carro, apenas o seguiu para dentro do estabelecimento. Enquanto o seguia, não conteve o olhar sem pudor sobre as costas do rapaz, a forma como os músculos se tencionavam contra sua pele. Ela podia imaginar como era sentir estes músculos, mesmo que uma camisa cobrisse sua pele. Então ela notou algo que, inicialmente, pareceu insignificante. Ela nunca havia apreciado as costas de , provavelmente por sempre estar no lugar que agora ele ocupava. era perdido e razoavelmente solitário, por isto, ela sempre o guiava. Tentava passar um pouco de confiança para ele, apenas o suficiente para fazê-lo não perder a si mesmo. Era tão irônico que agora ele fazia o mesmo por ela.
O silêncio permaneceu mesmo após ambos se sentarem em uma mesa próxima a uma longa janela, que dava uma visão perfeita do céu, agora já mais claro. E foi nos diferentes tons de roxo, rosa e preto que se ocupava, uma tentativa falha de ignorar as lembranças que a presença de lhe remetiam.
— Tudo — disse, despertando de seus devaneios propositais. Ela o olhou, confusa pelo o que ele havia dito até notar que não fora direcionado à ela, e, sim, à uma garçonete, que o fitou pasma.
não havia visto quando a garçonete se aproximou, mas, ao ver o cardápio na mão de , rapidamente compreendeu a situação e tomou a reação da garçonete como a sua. Infelizmente, não se deixou intimidar pelos olhares pasmos e repetiu, desta vez mais firme:
— Tudo.
A garçonete, que parecia estar grávida de pelo menos seis meses, olhou questionadora para , que apenas deu de ombros da maneira mais reconfortante que conseguiu. Dada por vencida, a loira acenou e se afastou. Apenas quando já estava longe o suficiente para não escutá-los, fuzilou .
— Tudo?
— Eu não sabia o que você iria querer — ele ergueu os ombros, de uma maneira inocente a qual já estava, de certa forma, habituada.
— Você poderia ter perguntado.
— Eu perguntei, você parecia estar me ignorando — sorriu fraco, tentando deixar claro que o fato dela o ter ignorado não o havia irritado.
— Então você decidiu...
se interrompeu, incerta do que estava prestes a fazer. Ao olhar para , ela não podia ver nada além de olhos profundos e um sorriso compreensível e cansado. Como ela poderia iniciar uma briga com alguém que estava tentando alcançá-la? Como poderia empurrar alguém que um dia já amou tanto e que, embora não fosse perceptível, continuava a amar?
Com um longo suspiro, ela optou por não continuar sua sentença e isto pareceu aliviar o homem à sua frente.
Mas, apesar de suas tentativas, ela não conseguia ignorar a curiosidade que aflorava dentro de si. E, mesmo que pudesse, ela não iria querer, pois foi o mais próximo que algo chegou a crescer dentro de si depois de tanto tempo. parecia ocupado ao olhar pela janela ao seu lado, gostava daquela visão. De como a luz do nascer do sol, gradualmente, cobria a pele do rapaz e deixava seus olhos mais brilhosos. Ela sentia falta dessa visão.
— Por que você me trouxe aqui?
Não foi mais do que um sussurro, mas foi o bastante para chamar a atenção dos olhos encantadores de . Então, ele sorriu torto e gesticulou para a janela. seguiu seu aceno, deparando com o mais lindo nascer do sol que já havia visto, até lembrar-se de que nunca havia visto um. Não com a atenção que este merecia. Mas aquela vista, ela era perfeita. Sem nenhuma construção ou poluição para impedi-la de ver aquele espetáculo por completo. Aquela vista dava uma sensação calorosa, parecendo queimar o gelo que formou-se nela durante os últimos dois anos. E, à medida que o sol se punha no alto do céu, tímido e brilhante como os olhos de , ela sentia seu coração amolecer. Ela sentia algo.
— Me lembro de você ter dito que sempre quis ver o nascer do sol — explicou e ela o olhou por um breve momento para poder captar o sorriso doce que havia nos lábios do rapaz. Aquele tipo de sorriso que poderia ser tão radiante quanto o sol que agora os cobria.
E, embora antes não sentisse fome alguma, quando todas aquelas panquecas, cereais e cookies foram postos sobre a mesa, ela não poderia estar mais faminta.
já não estava mais tão ansiosa, pelo menos não tanto ao ponto de ignorar aspectos que mais cedo foram ignorados. Como o quanto era difícil respirar dentro do carro de , uma vez que o veículo parecia se alimentar do perfume dele. Ou de como as ruas e paisagens pareciam totalmente sem graça quando se tinha um dirigindo ao seu lado. E, assim, durante todo o caminho até a volta para o centro da cidade, observou milimetricamente qualquer movimento de enquanto se intoxicava com o perfume do rapaz.
Ela observou atentamente as pequenas rugas que se formavam no rosto do rapaz e coisas mais simples como a firmeza com que ele girava o volante e mudava a marcha. A lembrança de que aquelas mesmas mãos já passaram firmemente por seu corpo a fez se engasgar com o ar. Rapidamente e brevemente, os olhos de pousaram sobre a mulher, fazendo-a se remexer no assento com uma timidez que não lhe era habitual.
— O que foi?
— Lembranças eróticas — murmurou com sinceridade, antes mesmo de poder conter as próprias palavras. E, então, só se deu por conta da gravidade delas quando escutou a gargalhada de em contraste com a vermelhidão no rosto do rapaz.
Algo dentro de si a repreendia por suas palavras, mas ela, incrivelmente, não se sentia arrependida. Não depois da reação de .
Aquela visão do rapaz era mais facilmente reconhecível, aquele era o . Risonho e frequentemente envergonhado.
— Ao menos sua franqueza voltou.
Ela o olhou por um longo instante, a procura do real significado de suas palavras que pareciam ilógicas demais para ter algum sentido.
ainda sorria para si mesmo quando parou o carro em uma rua pouco movimentada. Já fazia muito tempo desde que tinha saído de casa, mas ela podia jurar já ter passado por aquela rua. Então, confusa e curiosa, ela desceu do carro e acompanhou o rapaz pela rua. Ela não fez perguntas, sabia que ele não responderia, mas sua mente parecia se afundar apenas em questões mal respondidas.
Quando o rapaz virou a rua, ela lembrou-se e subitamente se sentiu mal por ter esquecido, mesmo que por um milésimo de segundo.
o fitou, desacreditada, e caindo em si apenas quando recebeu um sorriso encorajador.
— Vamos, temos uma apresentação para assistir — ele ofereceu-lhe o braço.
piscou diante do ato, não contendo o vislumbre de emoção que atravessou seus olhos melancólicos. E, naquele momento, diante daquele olhar ferido e hesitante da moça em sua frente, tinha todos os motivos do mundo para recuar e desistir. Mas seu braço e seu sorriso fraco permaneceram a disposição da mulher. Ele não a deixaria, não de novo.
Ela pareceu compreender isto, pois suspirou, passando seu braço pelo o de e permitindo que ele a guiasse para dentro do teatro. parou de caminhar na entrada do auditório que, para a surpresa de , estava vazio. Ela o fitou, procurando entender o que ele planejava ao levá-la para lá. Mas ela não conseguiu identificar nada além do brilho nostálgico nos olhos do rapaz, que soltou seu braço suavemente, deslizando seus dedos quentes pela extensão de seu ante braço. E, mesmo com a jaqueta de cobrindo sua pele, não foi o suficiente para protegê-la do formigamento que o contato suave dele lhe proporcionava, ela tentou não transmitir o quão abalada estava com aquilo, mesmo quando ele segurou com cuidado sua mão que tremia.
abriu a boca diversas vezes, ameaçando dizer algo e, por fim, desistindo, sabendo que não retomaria o controle de sua voz tão cedo. , porém, pareceu ler sua mente.
— Está na hora — não era a resposta que ela esperava, mas pareceu ser mais do que o suficiente quando seus dedos apertaram os seus, guiando-a novamente pelo corredor levemente estreito entre os milhares de assentos distribuídos pelo auditório iluminado.
Fazia muito tempo desde a última vez que ela esteve ali, mas nada parecia ter mudado. Nem mesmo o cheiro suave de pó e madeira. Enquanto se sentavam nas cadeiras centrais, direcionadas completamente para um palco escuro e vazio, lembrou-se da primeira vez que viu ali e, quando ele sorriu abertamente para ela, soube que ele também se lembrava.
Foi ali onde tudo começou.
era um compositor e cantor, apesar disso, não era do tipo de rapaz que saía para socializar. Sua timidez era seu arqui-inimigo. Michael, seu melhor amigo do colégio, era um dos únicos que o entendia, provavelmente por serem parecidos. Baladas, festas ou qualquer outro lugar tumultuado e barulhento os incomodava, especialmente . Sua mãe infelizmente não o entendia tanto quanto Mike, sempre tão preocupada! E a preocupação apenas aumentou quando saiu de casa, mudando-se para seu próprio apartamento e passando dias inteiros ali, imerso em notas, rascunhos de letras e versos de seu violão.
não ficou surpreso quando Michael apareceu em sua porta uma noite, chamando-lhe para ir com ele até a apresentação teatral de uma amiga que ele conheceu algumas semanas antes. Ele não questionou a insistência não habitual do amigo, abruptamente soube que sua mãe tinha um dedo no convite. Mais tarde, Mike iria confessar isto e, novamente, não ficaria surpreso.
Pouquíssimas pessoas eram capazes de o surpreender.
gostava de teatros, mas, para ser honesto, fazia muito tempo desde a última vez que ele havia pisado em um. Ele tentou animar-se ao sentar em uma das diversas cadeiras que, aos poucos, eram preenchidas por outras pessoas. Mike não lhe apresentou sua amiga, de tal forma que estava completamente perdido antes mesmo da peça iniciar-se. Quando as cortinas foram abertas e as luzes centradas no palco, acesas, ele prometeu a si mesmo que tentaria prestar atenção. Ele era tão facilmente dissuadido em seus pensamentos e ele sabia que isso chatearia Mike e, eventualmente, sua mãe. Então ele pensou em fazer um esforço.
O que ele não esperava era que ele não precisaria se esforçar.
Todo decorrer da peça foi extremamente divertido, era um musical criativo sobre Peter Pan, bom o suficiente para fazê-lo se arrepender de não frequentar teatros mais vezes. Então, quando ele achou que não poderia ficar melhor, ela surgiu.
Quer dizer, ele.
No momento em que o próprio Peter Pan pousou os pés sobre o chão do quarto de Wendy, com ajuda de cordas imperceptíveis, se surpreendeu. Era uma garota. Isso era tão claro pela fisionomia feminina e as curvas, mesmo suavizadas pela maquiagem e a roupa. Quando ela começou a falar, forçando suas cordas vocais para tornar sua voz mais grossa, ele não poderia estar mais vidrado.
A reação de Mike ao aparecimento do Peter Pan era o suficiente para deduzir que aquela era sua amiga.
Ao final da peça, já estava encantado pela garota e isso o deixou terrivelmente tímido quando Mike insistiu em apresentá-los. já estava em suas próprias roupas, calças rasgadas, camiseta cavada e botas de salto alto. Os cabelos caíam suavemente sobre seus ombros nus e ela era incrivelmente mais bonita de perto. Havia ainda alguns vestígios de maquiagem em seu adorável rosto, ela provavelmente sabia disso, pois vez ou outra passava os dedos sobre o rosto em uma tentativa falha de se livrar do pó que cobria sua pele. Diferente dele, ela parecia tão tranquila. Até mesmo animada em conhecê-lo.
Ela sorriu largamente ao avistar Mike, dando-lhe um rápido abraço.
— Você deve ser o — ela apontou para o rapaz, fazendo-o hesitar por um momento. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela o surpreendeu com um abraço caloroso.
, inconscientemente, segurou a respiração. Seus músculos estavam tão tensos quanto um fio esticado, prestes a estourar. Quando ela se afastou, pôde contemplar a vermelhidão no rosto do rapaz e isso foi o suficiente para fazê-la rir. Uma risada deliciosamente contagiosa que habitou os pensamentos de durante dias após aquela peça.
A risada dela não era a única coisa que habitava seus pensamentos, embora.
despertou de seus pensamentos quando a luz no palco acendeu e as cortinas se abriram, exatamente como três anos atrás. Ele a observou atentamente, disposto a piscar o mínimo possível para captar todas suas reações. Ele não se importava com a peça que agora era iniciada com alguns atores subindo no palco, ele já havia visto essa peça inúmeras vezes incansavelmente. Apenas para vê-la. Mas agora ela estava ao seu lado ao invés de em cima do palco e observar seu rosto ser preenchido por surpresa era a melhor apresentação que ele poderia assistir.
Ela piscou, os olhos de repente cheios de lágrimas ao reconhecer os colegas de trabalho fizeram o coração de se contorcer, incerto se de tristeza ou felicidade. Ele a conhecia, sabia que havia nascido para os palcos e estava ciente da saudade que sentia de tudo aquilo. Mas também sabia que ela precisava salvar a si mesma antes de jogar-se novamente nas artes cênicas.
Assim como sabia que o mesmo se aplicava ao relacionamento de ambos.
Mas já fazia um tempo e sabia que se ele não a ajudasse a se salvar agora, talvez ela nunca voltasse. E ele sentiu que tinha feito a coisa certa quando viu que um sorriso surgiu nos lábios trêmulos de . O rapaz suspirou, sentindo-se subitamente quente por dentro com a súbita felicidade da moça.
Quando as cortinas se fecharam, as lágrimas, que pendiam dolorosamente nos olhos atentos de , se libertaram, deslizando suavemente pelas suas bochechas coradas. O sorriso largo que, até então, enfeitava seu belo rosto, desapareceu, deixando apenas um rastro quase imperceptível de sua existência. a fitava, de repente ansioso por suas palavras, temendo que de alguma forma ele apenas tivesse piorado tudo.
E se ela não tivesse gostado? Ou pior, tivesse se ofendido e, consequentemente, se magoado?
Ele prendeu a respiração, mas nada disse; não apenas por medo de piorar tudo, mas para dar um tempo para ela organizar seus pensamentos e decidir o que exatamente sentia sobre aquilo. O rapaz tentou se manter em silêncio pelo o que pareceu horas e, quando os olhos grandes e brilhosos de encontraram os e seus, ele soltou a respiração inconscientemente.
Então ela sorriu novamente e todo o peso de preocupação se esvaiu dos ombros cansados de . Passar semanas tentando convencer Mike de interpretar a Wendy rapidamente se fez valer a pena apenas por aquele sorriso.
— Você fez isso? — ela indagou baixo, a voz trêmula em contraste com a alegria que ainda brilhava em seus olhos marejados. se viu incapaz de responder aquela pergunta tão simples, então apenas maneou a cabeça suavemente em uma resposta positiva silenciosa.
O sorriso de se alargou ainda mais, se possível. Um sorriso tão caloroso que seria capa de queimá-lo até as cinzas e ele morreria feliz.
Mas nada se comparou ao sentimento de plenitude quando o surpreendeu com um abraço. Fazia tanto tempo desde a última vez que ele a tocou e mais tempo ainda desde a última vez que ela o tocou. Quer dizer, há alguns meses eles ainda trocavam leves contatos, nada além do necessário, mas pela primeira vez em meses, eles realmente se tocaram. Não era apenas o contato, mas o sentimento que ele passava. Ela queria o abraçar e todas as células do corpo frágil de pareciam confessar isso quando ela o apertou, reduzindo-o a apenas um homem esperançoso.
— Obrigada — ela disse em um suspiro quente contra sua pele. Ele tremeu e deslizou as mãos carinhosamente sobre sua espinha, em um agradecimento mútuo e silencioso.
se afastou contra sua própria vontade quando viu os atores já descendo pela escada do palco, todos amigos de durante sua jornada teatral, tendo apenas como intruso um Mike ainda vestido de Wendy.
seguiu o olhar do rapaz, encontrando os olhos nostálgicos e ansiosos de seus parceiros. Por um breve momento, sentiu-se mal por ter se afastado deles e de tudo o que o teatro lhe representava. Ela foi embora e nem ao menos disse adeus. Apesar de envergonhada diante de seu ato egoísta, ela sabia que eles não guardavam qualquer sentimento negativo sobre ela. Eles a fizeram sentir isso quando se reuniram em volta dela em um abraço grupal que emanava toda a saudade que eles sentiram.
observou aquele abraço, de fora, era o momento deles e apesar de conhecer e até ter amizade com muitos dos atores, graças a que sempre pedia para que ele a acompanhasse nos ensaios, ele não se arriscou em intrometer-se naquele momento.
Na verdade, a imagem de fora era extremamente tocante para ser ignorada. Os sorrisos e lágrimas compartilhadas naquele momento o deixava incrivelmente aliviado. Ela parecia feliz, ele analisou. E então sorriu.
Passou-se um tempo desde que eles começaram a conversar e se manteve a distância, ainda contemplando a felicidade e empolgação de . E ele estava tão submerso no sorriso dela que mal notou quando Mike se aproximou.
Michael percebeu a indiferença de quanto a sua presença e cutucou suas costelas com o cotovelo, apenas para chamar sua atenção. Uma tentativa bem sucedida, pois rapidamente piscou, voltando-se para o amigo ao seu lado, ele sorria.
— Você está me devendo uma.
fez uma careta, embora seus olhos ainda brilhassem com divertimento ao analisar a camisola feminina que Mike vestia.
— Não precisa fingir e nem agradecer, amigo — ele bateu saudosamente no ombro de Mike, que bufou em uma interpretação de raiva mal feita. — Eu sei que você adorou a liberdade de finalmente usar vestidos.
Michael socou o ombro de em resposta, então ambos riram suavemente, sincronizados pelo alívio de ver que o plano de estava dando, de algum modo, certo.
Mike então esfregou as mãos, piscando para , que o olhava com descrença, enquanto ele voltava rapidamente para o elenco, erguendo os braços dramaticamente.
— Tá tudo muito bom, mas já que amenizamos a saudade, acho que é hora de deixar ela ir. — houve resmungos de alguns e a risada de ecoou, fazendo sorrir inconscientemente. — Sem drama, ainda vai voltar muitas vezes, não é?
piscou, a hesitação passando rapidamente pela sua feição e, como se procurasse algum tipo de apoio emocional, ela procurou com os olhos. O peito do rapaz se apertou diante da imagem novamente frágil da moça, ele rapidamente maquiou sua aflição com um sorriso reconfortante que, felizmente, pareceu surtir algum efeito sobre os nervos de , que retribuiu o sorriso.
Infelizmente, ela ainda parecia contida, mesmo após voltar os olhos para os antigos amigos que ela havia se afastado. Apesar disso, ela ainda respondeu:
— Com certeza.
Isso pareceu ser o suficiente para acalmar as dúvidas de todos que, calmamente, se despediram dela e a devolveram para , que parecia igualmente aliviado.
O caminho até o carro se manteve em silêncio; não um irritante, mas não menos tenso. a observou durante o curto caminho, tentando decifrar sua feição para entendê-la, para talvez saber no que ela estava pensando. Era ridiculamente cômico que agora ele se esforçava tanto para saber seus pensamentos quando antes eles lhe deram dados de bandeja. Era uma característica de que normalmente o colocava em maus lençóis, a forma como ela falava abertamente o que pensava, sem analisar. Como quando Mike e seus amigos zombaram da timidez de e ela os calou contando-lhes o quão selvagem eram suas transas. Seu rosto esquentava apenas com a lembrança de suas insinuações que deixaram não apenas seus amigos de bocas abertas, como ele próprio.
Agora, isso era apenas uma lembrança melancólica e hilária.
parou abruptamente, já próxima da porta do carro, e virou-se para enfrentar , que ainda parecia divagar.
— — a moça o chamou suavemente, fazendo-o despertar não apenas com sua voz, mas com sua proximidade. Ele parou, dois passos de distância de se chocar contra o corpo de , a dois passos do que mudou sua vida de cabeça para baixo. E, apesar do tempo, ela ainda confundia completamente sua mente apenas com um olhar, o olhar que havia em seus olhos nesse instante enquanto ela lhe encarava com olhos indescritíveis. — Isso deve ter dado um trabalhão, obrigada.
engoliu em seco ao notar o tom de despedida na voz dela. Então era isso? Ela iria embora? Ele apertou os dedos, estalando-os e mudando o peso do corpo para a outra perna, sinais claros de nervosismo, observou. E, apesar da ansiedade estampada em seus olhos atentos, seu rosto demonstrava apenas divertimento, assim como sua voz ao contestar:
— O dia ainda não acabou.
franziu brevemente os olhos, tentando entender as palavras do rapaz para então lembrar-se. Ela havia lhe prometido um dia. Ela sorriu para si mesma, surpresa positivamente sobre a perseverança incomum de .
— Pensei que você me levaria para casa — a mulher inclinou a cabeça, parecendo adoravelmente confusa. Todavia, ela sentia-se estranhamente satisfeita com a situação, com o fato de estar tão disposto a passar um tempo com ela, a tentar recuperar o que haviam perdido ao longo dos últimos meses. Porque, no fundo, era algo que ela também queria. Ela sentia tanto a falta dele e isso apenas a corroía mais a cada dia que passava. A verdade era que ela sentia saudades da sua antiga vida, antes do diagnóstico e de toda aquela loucura. Antes de perder a si mesma durante o processo para sobreviver. E tê-lo tão perto, após tê-lo afastado, parecia injustamente bom.
— Eu ainda tenho planos pra você — ele piscou divertido para ela, antes de passar suavemente ao seu lado para abrir a porta do carro. Ele respirou profundamente, o perfume próprio corporal de atingindo seus sentidos. Ele abriu a porta, respirando pela boca enquanto organizava seus pensamentos antes de se virar para pegar o olhar de sobre ele, ela parecia ansiosa e levemente perdida parada ali, próxima ao seu carro.
Ele podia facilmente imaginar o quão difícil estava sendo para ela ficar tanto tempo longe de casa depois de meses entre quatro paredes. O pavor era algo visível nos olhos expressivos da moça e isso o fazia querer desesperadamente abraçá-la, beijá-la e fazê-la entender que o seu lugar era em qualquer lugar, que ela é livre e espontânea, que não sente medo. Ele só queria poder mostrar quem ela realmente é.
Mas ele temia que ela ainda não estivesse preparada para entender.
— A não ser que... — ele pareceu subitamente hesitante. — Você quer ir para casa? — perguntou, o coração batendo rapidamente com a hipótese dela dizer sim. Com a hipótese de não conseguir ser o suficiente.
piscou diante da pergunta, surpresa. Se ela estava com medo? Claro. Ela queria mais do que tudo voltar para sua cama e enfiar-se embaixo das cobertas. Mas ela não faria isso. Não enquanto soubesse que poderia ser diferente, que poderia ter dado aquela oportunidade para , sem se dar essa oportunidade. E vendo-o diante de si, as sobrancelhas franzidas e os olhos em uma súplica silenciosa, ela não seria capaz. Porque, depois de tanto tempo sem sentir nada, havia algum sentimento novo dentro de si. Algo que a esquentava de dentro para fora, reconfortando-a e palpitando e ela sabia que isso era por ele. sabia disso, pois já havia sentido isso antes, quando descobriu que amava .
— Não, eu estou curiosa com o que você tem para me mostrar.
Um sorriso aliviado e com promessas silenciosas surgiu no rosto suavizado do rapaz.
— Você está brincando! — puxou o ar em pura descrença quando caminhou calmamente até as portas frontais do restaurante japonês a alguns quarteirões do teatro.
sorriu divertido, dando de ombros como se não fosse um grande negócio.
— São duas horas da tarde, você precisa almoçar.
suspirou, esquecendo o quão encantador podia ser com pequenos detalhes que faria qualquer mulher derreter. Até mesmo ela. Na verdade, principalmente ela.
O restaurante continuava o mesmo desde a última vez que esteve lá, as mesmas decorações, funcionários e o clima suave. Por um breve instante, ela pôde até imaginar que era a primeira vez que pisava ali, no seu primeiro encontro extremamente desastroso, mas simpático, com .
Já fazia semanas que ele a acompanhava em todas suas peças, pelo menos em todas que ele podia comparecer e o fato do garoto tímido trocar apenas pequenas palavras com ela — como "olá" e "a peça foi incrível" mesmo que ele já tenha visto a mesma apresentação mais vezes do que ela podia se lembrar — estava a tirando do sério. Ela já tinha até mesmo tentado arrancar algo de Mike como o motivo pelo qual ele aparecia sempre ou o porquê dele ainda não ter dado em cima dela ou a chamado para sair. Quer dizer, ele se deu o trabalho de ganhar mais território que todos seus namorados juntos jamais conseguiram e nem havia trocado mais de três frases com ela.
Por um breve momento, ela achou que ele estava ali por outra garota, ou outro motivo. Mas então por que ele a olharia com tanto cuidado e apreço? Eles certamente não assistiria a uma mesma peça três vezes por semana apenas pelo amor a história, nem mesmo se fosse a sua preferida.
Então, após flagrar seu olhar penetrante sobre si, ela se cansou. Depois da apresentação foi decididamente até ele e, antes de qualquer cumprimento tímido e desastroso vindo dele, ela enfiou cuidadosamente um pequeno papel dentro do bolso de sua camisa xadrez e disse:
— Meu telefone. Hoje à noite. Eu estarei pronta às 20h — ela anunciou pausadamente para que um pasmo entendesse. Ela bateu suavemente no ombro do rapaz quando ele acenou, ainda em choque. riu, então piscou divertidamente para ele antes de lhe dar as costas. —, me surpreenda. Ele soltou o fôlego que não sabia estar prendendo e desabotoou os dois primeiros botões de sua camisa, sentindo subitamente o calor com um suspiro doloroso.
A ideia de levá-la a um restaurante japonês veio de Mike que o assegurou que ela amava comida japonesa tanto quanto , o que era uma alívio para o rapaz que pensava que ambos não tinham nada em comum.
devia saber que Mike estava jogando verde, mas ele estava nervoso demais para notar o olhar de divertimento do amigo que ria discretamente enquanto colocava rapidamente sua jaqueta preferida.
— Cara, pare com essa paranoia — Mike interviu ao ver o olhar perdido de pelo quarto, a procura de provavelmente alguma desculpa para enrolar mais ainda. — Seja qual for o problema, esqueça. Ela não se importa.
Bem, o problema era ele e o pensamento de que ele não importava para ela não era de grande ajuda. Todavia, forçou um sorriso agradecido para o amigo, compreendendo que ele apenas queria relaxá-lo e, embora tenha sido uma tentativa falha, ele apreciava a tentativa.
— Você pegou camisinha? — Mike perguntou calmamente, o tom que apesar de suave não diminuiu o desconforto de , que revirou os olhos para a pergunta e suspirou aliviado ao finalmente achar as chaves de seu carro. — O quê? Eu estou falando sério.
— É só um jantar, Mike.
— Pode ser só um jantar, mas pode haver ainda uma sobremesa...
exasperou, caminhando em direção à porta para fugir das palavras descaradas de Mike, que ria.
— Cale a boca. — Ei, não vire as costas para mim, precisamos ter essa conversa — ele fingiu estar bravo, todavia o traço de divertimento ainda perambulava pelo seu rosto cínico.
— Michael, já passei por essa fase e meu pai já me explicou, não preciso disso. Agora posso ir?
estava com raiva, Mike sabia disso, mas incrivelmente não ficou chateado com o amigo. Na verdade, ele achava particularmente hilária a sua reação.
A verdade é que se fosse ele no lugar de , ele também estaria assim. era uma pessoa maravilhosa, mas conseguia ser intimidante com sua espontaneidade até para pessoas extrovertidas como Michael. Ele não queria pensar nem no que ela faria com a cabeça de . Pobre rapaz.
Mike gesticulou uma reverência exagerada e aquilo foi a deixa para sair.
Enquanto e se sentavam, exatamente na mesma mesa reservada que eles haviam ocupado alguns anos atrás, eles não puderam evitar uma troca de olhar significativa.
Ambos se lembravam claramente daquela noite que passaram ali.
Não demorou muito para que o garçom se aproximasse com um enorme barco cheio de petiscos e chás gelados. Exatamente o mesmo prato da primeira vez que eles estiveram ali.
abaixou o olhar, tentando fugir dos olhos observadores de , que tentava captar qualquer reação da garota que pareceu subitamente pasma ao ver que, ao lado dos habituais hashis, haviam talheres. Então, mesmo não querendo correr o risco de sofrer qualquer dano ao olhar para o rapaz a sua frente, ela não conseguiu evitar. sorriu aliviado ao vê-la rir abertamente para ele.
— Vou confessar, todas as vezes que pedi comida japonesa para entrega eu sempre usei talheres.
não pareceu surpreso, o que a deixou surpresa.
— Eu sei — ele admitiu risonho diante do olhar exasperado da moça. — Por isso sempre tinha talheres na mesa em todas as vezes que íamos a um restaurante japonês.
Ela abriu a boca, chocada, e isso apenas intensificou a risada do rapaz.
— Eu pensei que era praxe de todos os restaurantes — ela parecia decepcionada por não ter notado, o que era absurdamente adorável. — Eu não acredito que você me enganou durante todo esse tempo.
— Desculpa, amor, mas eu não iria correr o risco de ter outro sushi no meu saquê.
ria distraído com a lembrança.
estava vergonhosamente tentando pegar um sushi com os hashis trêmulos entre seus longos dedos. a observava, de repente entretido demais para sentir timidez, tentando não rir da careta de esforço adorável no rosto da moça enquanto ela tentava incessantemente, até finalmente conseguir. estava prestes a bater palmas para a proeza merecida de quando os hashis se bateram e o sushi voou diretamente para um final trágico de afogamento no copo de saquê de .
Ambos seguiram o trajeto e permaneceram com os olhos presos no sushi que flutuava no copo, esperando por algum sinal de vida que obviamente não veio.
Eles trocaram longos olhares, então gargalharam.
— Tudo bem, confesso que nunca usei hashis — ela exasperou, risonha, e admirou o quão confiante ela parecia mesmo ao passar por uma situação que o faria querer enfiar a cara na terra, mesmo ao admitir uma falha. — E, pela sua cara, Mike deve ter dito o contrário.
queria tanto respondê-la mas ele sabia que se o fizesse cairia na risada novamente e ele temia envergonhá-la.
— Desculpe — ele murmurou com esforço, sua voz tremulando pela repreensão da risada.
— Bem, eu que joguei um pedaço de peixe cru no seu chá, acho que eu quem deveria pedir desculpas — ela riu e isso foi o suficiente para fazê-lo gargalhar novamente.
Quando se recuperou o suficiente para falar, chamou o garçom e pediu outro chá e talheres para , com a condição de que ela aprenderia a usar hashis.
Ela nunca realmente tentou e sabia disto. Desde então, passou a pedir talheres todas as vezes que saía com ela para restaurantes japoneses.
estava distraído demais com a lembrança para notar o choque no rosto de diante de suas palavras. Especialmente aquela tão usada antigamente, mas que até então só passava de mais uma lembrança.
Amor.
não era tão melosa, mas havia algo sobre aquela palavra, algo que afetava seu corpo apenas em escutá-la com a voz profunda de e saber que é ela quem ele está chamando. Apenas ela.
— Por que você assistiu a peça tantas vezes? — finalmente perguntou, após eles já atingirem metade do barco e já parecer confortável o suficiente para conversar fluidamente com ela, sem desviar o olhar ou corar diante de seu olhar.
piscou, surpreso com a súbita pergunta e sentindo-se gelar aos poucos com o receio em respondê-la. Mas ela já havia ganhado sua confiança de uma forma incrivelmente rápida e se antes ele já a achava encantadora, agora ela já havia ultrapassado suas expectativas.
— Por que a cada apresentação você me encanta ainda mais — ele respondeu com uma sinceridade simples, a vermelhidão em seu rosto contradizendo a calma em sua voz. — Eu achei que valia a pena te conhecer.
sorriu largamente para o rapaz, sentindo-se uma tola por soltar um leve suspiro de espasmo em surpresa pelas suas palavras.
— Ainda acha que vale a pena? — ela indagou, fazendo-o se sentir idiota por não ter conseguido deixar clara a resposta para aquela pergunta.
— Agora eu tenho certeza que vale.
O sorriso em seu rosto se alargou, atingindo seus olhos que agora brilhavam com afeto. então contou sobre sua vida até o fim do barco sobre a mesa. Sobre ter três irmãos — dois mais velhos e um caçula — até qual é o seu sorvete favorito. Conversas detalhadas e sem um fundo de utilidade normalmente fazia querer acabar os encontros o mais rápido possível para voltar para casa, mas, nesse caso, ele queria justamente o contrário. Ele almejou que a noite durasse a eternidade e mais. era tão aberta e espontânea que chegava a ser uma ofensa a timidez de , mas um surpreendente agrado ao seu ego. Sentia-se bem com o fato dela confiar e gostar dele o suficiente para passar tanto tempo contando sobre sua vida.
— Agora que você já sabe o suficiente sobre minha vida para me clonar, me fale sobre você.
riu nervosamente.
— Acho que preciso de mais informações para fazer um clone — ele brincou, tentando desviar o foco para longe de si. O que não deu certo, pois ela ergueu as sobrancelhas em uma clara evidência de desconfiança.
— Sem mais informações pra você, Cowboy. — ela apoiou o cotovelo sobre a mesa e o queixo sobre sua mão, olhando-o atentamente e impedindo-o de fugir. — Sua vez.
— Não há nada de especial sobre mim — ele disse suavemente, tentando fazê-la entender que ele falar sobre sua vida só a traria tédio.
— Oh, — ela sorriu largamente. — eu acho você muito especial.
— Diga de novo — ela suplicou em um murmúrio que rapidamente tirou de seus devaneios. Ele a fitou, preocupado com o sua entonação e confuso com seu pedido.
— O quê?
— A última coisa que você disse, repete.
Ele repensou na sua última frase e minuciosamente a analisou para entender exatamente o que ela precisava tanto que fosse repetido. Quando ele compreendeu, um sorriso gentil surgiu em seu rosto. O pensamento de que ela sentia saudade de suas intimidades assim como ele sentia, o fazia menos angustiado. E saber que ela pensava que ainda precisava pedir por uma palavra de afeto, o fazia querer rir com o quão absurdo aquilo era.
Ele repetiria isso quantas vezes ela quisesse e nunca reclamaria.
— Qual parte, amor?
Ela fechou os olhos diante de sua voz profunda, sentindo o prazer da felicidade circulando em suas veias e acelerando seu coração, que há tanto tempo pareceu estar inativo.
Quando ela abriu os olhos novamente, ele tinha a mesma feição de deleite.
O silêncio que se estabeleceu no carro até o próximo destino era agradável. Estranhamente agradável. Ambos apenas desfrutavam silenciosamente da presença um do outro, recuperando o tempo perdido e restabelecendo a força que até então parecia ter sido dizimada.
E, naqueles poucos minutos de silêncio, eles foram capazes de esquecer os últimos meses que eram marcados por medo e dor e lembrar-se apenas dos bons. E, novamente, parecia como um dia qualquer em que a levava para casa, onde eles provavelmente passariam seu tempo livre escutando músicas antigas e conversando sobre como foi seu dia. Algo corriqueiro, mas era o melhor momento do dia de ambos, exceto quando estavam tendo relações sexuais, é claro.
riu para si mesma.
Quando parou o carro diante do antigo apartamento de , ela tomou uma lufada de ar profunda diante do déjà-vu de já ter passado por essa exata situação. A única diferença era que antes e ainda namoravam.
— Você sabe, eu já não moro mais aqui.
sabia, obviamente. Lembra-se perfeitamente do dia que finalmente tomou coragem e, trêmulo, pediu para ir morar com ele. Parecia um longo passo para ambos, mas ele reconhecia que era maior ainda para alguém tão independente emocionalmente como . Mas já estavam juntos há três anos e parecia tão certo ao considerar que já passava mais tempo em sua casa do que na própria.
aceitou com tanto entusiasmo que se sentiu um tolo pelo tamanho de seu alívio. Eles empacotaram as coisas juntos e a moça seguiu para sua casa como se estivesse prestes a enfrentar uma grande e inesquecível aventura. Era uma empolgação contagiante até mesmo para , que se sentia nervoso.
O rapaz se lembrava de como todos seus amigos costumavam dizer que morar junto sempre arruinava relacionamentos, não queria pensar nisso, mas seria mentira dizer que não sentia medo. Ao contrário de , que obviamente fez disto uma festa e rapidamente transformou sua casa num espaço dela também, deixando em cada canto um pedacinho de seu ser. Seja a sua fascinação por livros e pisca-pisca que ela insistia em pendurar nas janelas e estantes, até nos roteiros que frequentemente achava pela casa, sempre junto de um copo vazio de café.
Foram os melhores meses da vida de .
E, ainda hoje, ele mantinha os pedaços da antiga em seu apartamento. Talvez para poder reviver e lembrar o passado que agora parecia tão distante, ele só esperava tanto que um dia ela voltasse.
Mas ela nunca voltou e, cansado de esperar, aqui estava ele tentando recuperá-la. Tentando fazê-la lembrar daquilo que ele nunca esqueceu.
— Eu te trouxe até sua casa naquela noite.
o fitou, sorrindo enquanto acenava em reconhecimento. Ela não tentou disfarçar o olhar surpreso quando o rapaz saiu do carro sem aviso prévio, mas relaxou quando ele o circulou e abriu a porta do lado do passageiro, convidando-a acompanhá-lo, para onde, exatamente, ela não sabia. E não importava, ela o seguiria a qualquer lugar.
— E você não ficou apenas do lado de fora — ela disse suavemente em uma clara tentativa de provocá-lo. Uma entonação que rapidamente tirou a respiração do rapaz, que a olhou esperançoso.
— Não, não fiquei.
Sua voz profunda novamente a atingiu sem aviso prévio, de uma forma boa, mas diferente da primeira. Ela apertou os lábios e manteve os olhos distantes do rosto do rapaz, temendo o que encontraria lá.
— Vem — a chamou suavemente enquanto se encaminhava até a porta que dava acesso ao prédio.
— Não podemos entrar — ela murmurou em repreensão e isso subitamente chamou a atenção do rapaz, que parou a alguns passos da porta.
Ele parecia decepcionado.
— A que eu conhecia não se importava.
Era verdade. Alguns anos atrás, ela quem o estaria arrastando para lugares de acesso proibido e rindo da cara de pânico do namorado extremamente temeroso.
deu-se por vencida e o seguiu, vendo-o acenar para o porteiro que sorriu largamente para ela, reconhecendo-a.
Quando eles entraram no elevador e clicou no botão que os levava para o terraço, ela suspirou. De repente, ansiosa para que chegassem até lá. Não apenas para fugir do perfume já extremamente entorpecedor dele, mas ansiosa pelo o que ele diria e faria ali.
Quando as portas se abriram e eles atravessaram o corredor vazio, tomou dianteira e abriu a porta que levava propriamente ao terraço. Quando a porta foi aberta, o ar chocou-se dolorosamente contra seu rosto, embora fosse um alívio diante do calor que já a fazia se arrepender de ter colocado calças jeans.
Ela fechou os olhos, absorvendo o ar que naquela altura sempre foi estranhamente diferente, mas mais fácil de respirar, parecia. sabia que provavelmente era algo de sua mente. Ela apenas gostava muito daquele local.
Quando abriu novamente os olhos, encontrou os de a observando minuciosamente. Em silêncio, ambos andaram sincronizados até o parapeito do terraço e, em meio de todas aquelas buzinas e murmúrios abaixo deles naquela tarde, a voz de cortou o silêncio entre eles:
— Aquela foi a primeira de uma sucessão de melhores noites da minha vida — ele confidenciou, fazendo-a sorrir com a memória ainda quente, tão quente que parecia ter sido na noite passada, chegava a ser palpável.
Idem.
Ela pensou, embora não achasse necessário dizer em voz alta, uma vez que parecia estar ciente do significado que aquela noite teve para ela.
Novamente de olhos fechados, ela podia até mesmo sentir o toque cuidadoso, mas constante do rapaz pelo seu corpo, sua pele quente contra a sua, lábios insistentes e movimentos constantes. tinha mente aberta, mas transar no primeiro encontro não fazia seu estilo, de forma que foi uma surpresa para ela quando acordou no meio da noite com o corpo entrelaçado ao daquele belo e tímido rapaz.
Ela não se arrependeu, todavia.
— Quando acordei e a vi sair do quarto, pensei que tivesse se arrependido e eu estava prestes a me vestir e ir embora — ele murmurou, sua voz baixa apenas agravando sua necessidade de algum contato.
— Mas você não foi — completou, sua voz falhando, para seu desgosto.
— Eu não conseguiria ir e fingir que nada aconteceu — explicou. — Então te segui até aqui, apenas me perguntando o que uma louca faria num terraço às duas da manhã.
riu suavemente, sendo seguida por , que balançou a cabeça, tentando afastar aquela lembrança.
A lembrança da visão atraente e surreal da silhueta daquela mulher em pé no contraste entre a escuridão da cidade e a luz do céu, o vento forte fazendo os longos cabelos bater contra a pele nua de seus ombros.
Ele suspirou e isso foi o suficiente para chamar a atenção da mulher, que o olhou por cima do ombro e abriu um sorriso. O rapaz prendeu a respiração em um efeito pasmo. Ela não podia ser real.
— Está frio aqui fora, você devia voltar para dentro.
Seu sorriso se alargou e uma risada escapou dos lábios levemente inchados da moça.
— Eu amo esse lugar, é o meu segundo lugar favorito em todo mundo — ela confessou, chamando-o discretamente para que ele se aproximasse, apenas para ver o movimento que havia na rua. Haviam alguns carros e pessoas, não uma multidão, mas muito para duas da manhã. — Às vezes quando preciso pensar venho até aqui e passo horas em silêncio, apenas escutando todo o caos da cidade lá embaixo, isso me conforta.
— O barulho do caos te conforta? — o rapaz ergueu as sobrancelhas, não contendo a incredulidade inocente em sua voz.
riu para ele.
— Isso aí. Ele olhou para baixo e focou-se nos sons, obviamente não eram os mesmo aos quais ela se referiu, pois não era horário de pico e sons como esse não são padronizados, mas mesmo assim ele permaneceu ali. Tentando ver o que ela via, o que não era claro para ele.
— Qual é o primeiro? — ele indagou, de repente. Sob o olhar inquiridor da moça, ele explicou: — Você disse que este é seu segundo lugar favorito. Qual é o primeiro? — A praia — ela pareceu feliz por ele se importar em perguntar. — A areia entre meus dedos, a maresia, o vento, o clima e o silêncio. É tudo tão diferente.
Ele a fitou, incrédulo e encantado ao mesmo tempo. Vê-la relaxar apenas ao descrever o que mais gostava sobre praias era mágico, um tipo de magia que ele estava disposto a tentar.
— Vamos — ela estalou suavemente, tomando-lhe a mão e o puxando para dentro do prédio. — Round 2?
Ela sorria descaradamente e, apesar da vermelhidão em seu rosto, ele sorriu de volta.
Agora, todavia, ele entendia melhor o porquê de gostar tanto do caos. Olhando agora para baixo, ele podia sentir o reconforto de estar apenas a observar. Não havia nada que ele poderia fazer e nem nada que ele precisasse fazer. O controle estava na mão de segundos e, nesse momento, ele era apenas o expectador de algo maior. Ou mais banal.
— Eu sinto sua falta — disse, alto o suficiente para não haver dúvidas e para deixar claro o quanto ele sentiu.
— Eu também sinto a sua — ela murmurou em reposta, parecendo estar sufocando. Os olhos abriram subitamente e encontraram os de , apenas para se certificar de que ambos estavam realmente ali.
O rapaz virou-se para ela, ficando próximo demais para a sanidade de , mas ainda longe demais para seu corpo que clamava por mais. E, como se ouvisse sua prece silenciosa, ele alcançou seu rosto, acariciando-o e fazendo-a arfar sobre o sentimento que aquele contato quase esquecido a fazia sentir.
Ele uniu seus corpos e, com um longo suspiro, seus lábios.
Fazia meses desde a última vez que eles se beijaram, ela lembrou-se com tristeza de quando ela o pediu tempo e espaço e de como ele a beijou antes de bater a porta, um beijo de despedida.
E a última vez que eles realmente se beijaram, quando as coisas eram mais fáceis e não havia medo. De como ele a segurava firmemente enquanto a provava e a adorava com seus lábios.
Exatamente da mesma forma que ele a beijava agora.
Como se palavras nunca fossem expressar o que seu contato lhe confessava silenciosamente. O quanto ele dizia a amar apenas em suspirar contra seus lábios ao se separar para só então beijá-la novamente, suavemente.
A mão de , que ainda estava em seu rosto, seguiu uma trilha de carinhos até sua nuca, para finalmente ele lembrar-se que ela usava uma boina que cobria seus fios. Ele alcançou a lã, cuidadosamente, tentando não assustá-la e nem machucá-la.
Pareceu não dar certo, de qualquer forma, pois tão logo quanto tocou a boina, se afastou abruptamente. Os lábios vermelhos e entreabertos enquanto tentava arduamente respirar, o rosto contorcido em uma expressão de tormento. E, sem palavras, isso foi o suficiente para se arrepender de tal ato.
— Desculpe, eu não...
— O que você quer? — ela o interrompeu, inquirindo em uma voz trêmula, se pelo beijo ou por raiva, ele não sabia.
Ele ergueu as mãos, incerto se deveria se aproximar e tocá-la ou apenas anunciar bandeira branca à distância e respondê-la, embora ele não fizesse ideia do que ela queria dizer.
— Por que você está fazendo isso? Por que você está aqui?
não respondeu e isso apenas deixou mais alterada, os olhos brilhosos pelas lagrimas contidas refletiam a imagem pálida de de uma forma atormentadora.
— O que você quer de mim?! — ela gritou, exasperada. Sua voz finalmente quebrando, assim como suas lágrimas que agora rastejavam dolorosamente pelo seu rosto corado.
Isso foi o suficiente para .
— Você! — respondeu, por fim, com fervor. Algo tão profundo que rapidamente calou qualquer reivindicação de , que abriu a boca, pasma. — Eu quero você. Quero que a que eu conheço volte.
piscou, perplexa com suas palavras.
— Quando você correu de mim, até a praia, e começou a chorar, eu sabia que havia algo de errado. Mas quando você contou entre soluços que você tinha um diagnóstico para suas dores frequentes, quando você disse que tinha câncer, meu mundo desabou.
Ela arfou, abaixando o olhar para evitar que a dor em seu peito piorasse com a visão de um destruído por sua culpa. Era tão injusto que ele tivesse que sofrer tudo isso por algo que apenas ela devia ser afetada. Mas ela tentou evitar a dor do rapaz, lembrou. Mesmo após descobrir o resultado ela se manteve em silêncio, não lhe contou, não chorou, não esperneou, não se tratou. Apenas ignorou o fato de que havia um tumor em seu cérebro.
Mas era óbvio que uma hora notaria e isso não demorou. Ela estava estranha e a cada dia que passava os vômitos, sangramentos nasais, tonturas e enxaquecas apenas pioravam e progrediam para outros sintomas. Ele queria levá-la a um médico, o que os levou a uma briga que a levou a se desesperar e fugir. Ele estava tão furioso que ela não pensou que ele iria atrás dela até a praia e, com uma voz calma, perguntaria o que estava acontecendo.
Contar a ele que ela estava morrendo foi pior que receber a notícia. Ele tentava tão arduamente não chorar quando era evidente que ele estava quebrado.
Todo esforço para parecer confiante e otimista por ela.
Vê-lo admitir seus sentimentos sobre aquele dia era uma perspectiva diferente, mas ainda dolorosa. E sobre esse terraço, ele parecia tão perdido quando estava naquele dia, na praia.
— Eu tentei ser forte para você, mas desde aquele dia algo mudou em você. E isso apenas se fazia mais evidente a cada dia que passava, enquanto o tratamento transcorria, eu me vi perdendo você aos poucos. Tentei me convencer de que era algo temporário devido a pressão e ao tratamento. Eu fiquei ao seu lado até o fim — ele prendeu a respiração.
— Mas então você estava curada e eu pensei que você se recuperaria — ele suspirou. — Mas eu estava errado. Você estava viva, mas algo dentro de você tinha morrido. E eu continuei mentindo para mim mesmo e para todos, dizendo que você só precisava de um tempo, mas esse tempo nunca teve fim. Você se isolava e afastava todos que se aproximavam, ficava dias sem se alimentar e sem dizer uma palavra. Eu nunca pensei que te perderia para o tumor depois que ele já tivesse sumido.
chorou silenciosamente, por tudo o que ela havia perdido e por tudo o que ela havia feito todos que a amavam passar. Por toda a dor que ela fez passar ao tentar alcançá-la quando ela já estava inalcançável.
— Por muito tempo me culpei, pensando no que poderia ter feito por você. E eu cansei de remoer. É por isso que estou aqui. Estou fazendo isso por você porque não quero que chegue a um ponto irreversível. Porque eu quero aquela mulher confiante, extrovertida e tagarela que conheci naquela peça. A mulher que aceitou morar comigo sem pensar duas vezes apenas por amar se jogar de cabeça em novas aventuras. Quero aquela que iluminava o caminho por onde andava e chamava a atenção de todos, não pela roupa que estava usando ou pelo corpo, mas pela sua espontaneidade. Quero a moça que não se exige aprender coisas novas para agradar outras pessoas, a não ser que seja a si mesma. Aquela que, depois do casamento da minha irmã, me fez tirar meu terno e sapatos sociais apenas para entrar no mar às três da manhã, a que me fez cantar em um bar country para completos desconhecidos apenas para perder meu medo do público. Que nunca desistiria de algo. Muito menos de si mesma. Aquela mulher que faria os cabelos da minha mãe se eriçarem e ela querer me deserdar por pensar que namoro com uma selvagem e, que apesar disto, riria. Porque a verdade é que sinto falta daquela mulher de coração selvagem que virou toda a minha vida de cabeça para baixo e pelo qual eu me apaixonei. E eu daria tudo para tê-la de volta.
Nada foi dito, nada além de seus corpos clamando por paz. Os soluços de eram tão audíveis quanto os batimentos cardíacos e a respiração ofegante de .
Demorou longos minutos para dizer algo, de forma que já estava com a respiração sob controle, embora, infelizmente, ele não pudesse falar o mesmo de seus batimentos cardíacos.
— Preciso ir para casa — ela disse, por fim, o mais firme que conseguiu com sua voz ainda trêmula.
Ela não ousou olhar para , sabia que a dor em seu peito apenas se intensificaria com a feição de provável dor no rosto do rapaz. Todavia, ela não podia fugir de ouvi-lo respirar ruidosamente, como se ela o tivesse socado.
— ...
apertou os lábios e tentou conter as lágrimas que novamente embaçavam sua vista. Ele suplicava pelo seu nome e tudo que ela mais queria fazer era abraçá-lo e permitir que ambos pudessem seguir em frente. Mas ela estava com tanto medo e ela precisava urgentemente de uma área segura, como suas cobertas.
— Por favor — ela sussurrou quase sem fôlego e foi uma surpresa ter escutado sua voz tão minúscula.
acenou com um semblante de aflição. Ele nunca diria não à ela, mesmo que ela o pedisse para deixá-la ir. Mesmo que isso o machucasse.
Ele caminhou silenciosamente para dentro do prédio e esperou pacientemente por , quando ela hesitou por um instante. Durante todo o trajeto até o carro e até a casa de , eles não trocaram olhares, muito menos palavras. Ambos ocupados demais tentando manter o controle físico e emocional.
A viagem foi longa e torturante, mas só parecia disposto a prolongar aquilo quando seguiu até sua porta, mesmo com o suspiro de controvérsia da moça, que não se atreveu a dizer nada.
Ao chegar em sua porta, respirou fundo e finamente virou-se para , olhando-o com receio.
Ele parecia sentir dor, mas sabia que ele não estava ferido, não fisicamente, e isso apenas tornou tudo pior, pois ela não podia ajudá-lo. Não, não era tão simples.
Para sua surpresa, ele se aproximou e segurou seu rosto. Ela suspirou com o contato e fechou os olhos apenas para aproveitar o calor que suas mãos emanavam. Então ele se aproximou, fazendo-a prender a respiração. Ele beijou, carinhosamente e cuidadosamente, sua testa. O contato caloroso pareceu durar longos minutos e isso foi tão bom que quando se afastou, lamentou inconscientemente.
— Se ainda tem um coração selvagem aí dentro — ele murmurou, tão próximo que sua respiração chicoteou nos lábios formigantes de . —, não o deixe morrer.
Era uma súplica clara, embora o pedido em si não fosse tão claro assim.
sorriu tristemente e beijou suavemente seus lábios antes de se afastar e ir embora.
Ela não conseguiria dormir naquela noite.
não sabia durante quanto tempo ficou sentado na areia de uma praia vazia com seus sapatos ao lado, mas sabia que provavelmente foram horas, uma vez que o sol estava longe de estar à vista e agora as águas que ele encarou tão incessantemente tornaram-se escuras pela falta de luz. Ele quase riu da ironia e semelhança entre a água e sua vida agora.
Ele sabia que não devia pensar sobre o passado, mas ele não conseguia evitar.
Não enquanto ele enxergasse uma feliz e descalça saltitando pela areia, rodopiando e gargalhando como uma criança. Se ele fechasse os olhos, ele podia até mesmo escutar sua voz persuasiva, chamando-o para acompanhá-la em seu mergulho, fazendo-o tirar os tênis. Apenas ela seria capaz de fazê-lo ficar descalço em uma praia deserta numa noite de verão.
Ele riu para si mesmo.
A verdade é que ela seria capaz de persuadi-lo a fazer qualquer coisa.
Talvez por isso seus pais odiassem a ideia de ele estar apaixonado por uma garota como . Ele lembrava-se, com remorso, de como seus pais e os próprios pais a tratavam. Como se ela fosse um erro que precisava ser corrigido, como uma chama que deveria ser apagada. Isso sempre chateou , mas não parecia afetar . Com o tempo, ele aprendeu a não se importar também, pois sabia que nada seria capaz de apagar o fogo que havia nos olhos daquela mulher.
era como um pássaro, ele notou um dia. Ela nasceu para ser livre, não se prendia a conceitos que a sociedade impunham.
Ele amava isso nela.
Houve um tempo que seus amigos começaram a chamá-la de filha do mal. Ele nunca entendeu o porquê disso e, inicialmente, odiou o fato dos amigos estarem ofendendo sua namorada. Mas, novamente, isso não a afetou. Então ele notou que não era propriamente uma ofensa, não para , que sempre ria ao escutar o apelido e às vezes até mesmo provocava com isso.
Ele apenas entendeu o apelido quando sua mãe resolveu tentar conviver com e os chamou para um jantar. sabia que não se importava com o que pensavam sobre ela, mas apreciou o esforço que a mulher fez ao manter seus pensamentos para si mesma durante todo o jantar.
Mas ela era inquieta e, felizmente, ainda tinha vontades próprias. Era tão óbvio que ela faria algo que se sentiu tolo ao ficar surpreso quando a mão de serpenteou até suas calças, por baixo da mesa. Ele engasgou, o rosto tão vermelho que fez sua mãe quase ligar para a ambulância. , por outro lado, apenas sorria inocentemente, enquanto sua mão massageava secretamente o rapaz e isso apenas tornava tudo pior.
Naquela noite ele notou, ela não era apenas a filha do mal, ela era a própria maldade.
Mas ela também era a única pessoa que o deixava louco e, mesmo sabendo dos riscos, ele não se importava. Enlouquecer não deviria ser tão bom.
Alguém sentou-se ao lado de , despertando-o de seus pensamentos e fazendo-o abrir os olhos abruptamente. Seus olhos caíram sobre a pessoa ao seu lado, .
Ele arfou, surpreso. Não por apenas ela estar ali, ou pela proximidade minuciosamente intencional do seu corpo, mas principalmente por ela estar sem sua habitual boina que a acompanhou durante todos esses meses, mesmo após a cura. Seus fios escuros já estavam razoavelmente grandes se comparado ao tempo que ela mantinha a cabeça raspada, os fios eram curtos, embora, mas já escondiam a cicatriz cirúrgica que retirou o tumor.
Ela já não vestia sua jaqueta, nem calças jeans. Ao invés disso, ela vestia um vestido floral que batia levemente acima de seus joelhos, que agora se esticavam pela areia. Ela estava descalça, o coturno que ela usou para chegar até ali jazia largado ao outro lado dela.
Ela parecia tão serena ao sorrir para ele, acalmando as batidas dolorosas de seu coração.
Ela suspirou em deleite ao fechar os olhos e enterrar seus dedos na areia, aproveitando o cheiro de maresia misturado ao cheiro típico de , que a observava silenciosamente em contemplação.
Aquela era a que ele conhecia, tão calma e forte ao mesmo tempo, aproveitando o momento como se fosse algo único, sem boina, sem medo, sem receios.
Apenas vivendo.
Ela abriu os olhos novamente e havia um fogo familiar crepitando ali. A chama que pensou que nunca mais veria. E, naquele momento, toda a dor pela qual passaram nos últimos dois anos desde a descoberta da doença, não importava mais.
Nada disso importava.
Eles haviam enfrentado aquilo juntos, haviam vencido a doença e agora mereciam seu final feliz.
apoiou uma de suas mãos sobre o ombro de , apenas um impulso para que ela se curvasse até seus lábios, plantando um beijo rápido, mas caloroso no local antes de enterrar o rosto em seu pescoço. O rapaz prontamente a abraçou, sentindo-se vitalizado pela ideia de que era ela ali. Não apenas seu corpo, mas ela por inteiro, corpo e alma entregando-se ao rapaz de uma forma que apenas ela conseguia.
— É bom te ter de volta — ele brincou, beijando seus cabelos em uma declaração silenciosa.
Ela afastou-se, um sorriso selvagem surgindo em seus lábios e fazendo-o tremer. Então, levantou-se abruptamente e tirou o vestido, revelando suas peças íntimas com um sorriso desafiador.
— Vamos ver se você ainda tá com tudo em cima — debochou, gargalhando da cara de choque de antes de correr até o mar.
balançou a cabeça, voltando a si com uma risada de descrença. Ela ainda conseguia surpreendê-lo.
— Vamos, !
O rapaz prontamente se levantou e a seguiu. Ele sempre a seguiria, a qualquer lugar.
Fim
Nota da autora: Eu nunca tinha ouvido falar sobre Daughtry até ver esse ficstape e eu tenho que dizer: foi amor à primeira vista, especialmente com essa música <3
Se leram até aqui, eu agradeço!
Um beijo e um queijo :3
Nota da Beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI
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Um beijo e um queijo :3