05. Windmills

Finalizada em: 10/01/2022

Capítulo Único

As lâmpadas esféricas emolduravam um cartaz ligeiramente desbotado pelo sol do entardecer. “Man of La Mancha”, uma produção independente. Dentre os tantos teatros na Broadway, estavam parados em frente ao menor e mais insignificante de todos, praticamente escondido em uma rua lateral, sem uma viva alma à frente, tão diferente demais ao redor que acumulavam filas de espectadores aguardando ansiosamente pela abertura das portas.
— Essa é a única opção que eu tenho? - perguntou à irmã, que o acompanhava.
— É. Entra aí e finge que está interessado ou a mamãe vai ficar sabendo o que eu vi você fazendo. - o empurrou em direção à bilheteria.
— E o que eu fiz, Sofia?
— Não se faça de sonso, irmão. Você e aquela garota perto do Central Park, trocando uns germes bucais... - fuzilou-o com o olhar. - Ele quer um ingresso, moça. Por favor. - bateu no balcão com certa pressa, dirigindo-se à jovem que, com algum esforço, seria um ou dois anos mais velha que seu irmão.
— Quinze dólares. - ela respondeu.
Rápida e precisa, Sofia alcançou a carteira no bolso da calça do irmão e entregou uma nota de cinquenta dólares à moça.
— Ei, você está me roubando!
— Melhor ficar quieto, Hansol. Quieto já está errado.- devolveu o troco ao rapaz - Muito obrigada, ele vai entrar logo.
Hansol puxou Sofia para um canto com o pesar humilhante de quem estava sendo feito de palhaço em público pela irmã mais nova. Passou a mão pelos cabelos, puxando-os para trás e respirou fundo o suficiente para esfriar o sangue que esquentava, trazendo rubor à face do rapaz.
— O que eu tenho que fazer para você parar com isso e me deixar em paz?
— Passar uma hora e meia fazendo uma das coisas que você mais odeia da vida: assistir um musical. – sorriu, vitoriosa - Seja um bom músico e fique feliz.
— Cara, não tem falas! É tudo cantando! Não é questão de ser músico, é bom senso mesmo. - protestou.
— Sinto muitíssimo por você. - carregou a voz com ironia.
— Você é insuportável, garota. - ralhou.
— Sou mesmo. Toma seu ingresso e vai lá antes que eu ligue para a mamãe e conte que você quebrou o castigo e estava arranjando namoradinhas por aí. - estendeu o bilhete impresso em papel fino, de baixa qualidade.- Volto daqui a pouco. Se divirta.
Antes que pudesse chamar pela irmã, ela já fazia a curva da esquina, afastando-se rapidamente do teatro. Sem vontade alguma de estar ali, Hansol caminhou até onde imaginava ser a entrada que o levaria às cadeiras, passando por um senhor tão velho quanto Merlin, que ficou com seu ingresso preso entre as mãos trêmulas e agradeceu-o por prestigiar a peça das “crianças”. Que crianças? Só queria encontrar um assento o mais rápido possível e esperar que os minutos passassem rapidamente. Se Sofia contasse para seus pais que tinha burlado a regra de não se envolver com nenhuma garota desde a confusão causada pelo término súbito com a última com quem namorou, a viagem para Nova York estaria totalmente arruinada. Seus avós certamente alugariam seus ouvidos com lições de moral sobre como deveria aproveitar a juventude com coisas úteis, além de acumular relacionamentos como quem coleciona figurinhas em um álbum, pois isso tiraria seu foco para as coisas realmente importantes, como ser aceito em uma boa universidade, de preferência nos Estados Unidos. O fluxo de pensamentos foi quebrado bruscamente por um palavrão. Tinha tropeçado em alguma coisa - uma cadeira, provavelmente - e derrubado a pessoa que vinha em direção oposta. Pela baixa iluminação que rodeava-os, não se atentou em prestar atenção no rosto da vítima, apenas estendeu a mão para que levantasse, pediu desculpas e rumou para um canto em que pudesse cochilar sem ser incomodado.
Os refletores percorreram a pequena sala de teatro de cima a baixo, avisando que o espetáculo começaria em poucos minutos, atrapalhando o rápido cochilo que Hansol se permitiu tirar enquanto ainda estava teoricamente escuro. Olhou ao redor e deparou-se com uma impressionante plateia de quatro pessoas contando consigo mesmo: o velho da entrada, uma senhora de meia idade e óculos grossos, um homem segurando uma garrafa de alguma coisa que não conseguia enxergar e um Hansol Choi muito entediado. Realmente, que merda de tarde seria aquela. Sofia iria pagar por fazê-lo de besta daquele jeito, não tinha tanto medo dos pais ao ponto de aceitar os caprichos da irmã de bico calado.
Assim que as cortinas se abriram, aplausos tímidos vieram do velho da entrada, sentado próximo ao rapaz. Os primeiros atores entraram no palco com figurinos mais caquéticos do que o esperado de uma peça em cartaz na Broadway, mas Hansol prometeu a si mesmo que não se importaria com isso, afinal, nem gostava desse tipo de peça, estava ali por pura pressão mesmo. Conhecia por alto a história de Dom Quixote de La Mancha, logo, sabia o que esperar daquela representação e nenhuma das suas expectativas incluíam um elenco tão jovem, onde praticamente todos tinham idade próxima à sua. Do protagonista a seu fiel escudeiro Sancho Pança, nenhum tinha mais de vinte e cinco anos. Apenas moleques com barbas falsas coladas à cara. Não duvidava sequer que os dois indivíduos dentro da fantasia xoxa de cavalo esquelético mal tinham saído do Ensino Médio. Se todos eram novos assim, o que esperar da jovem Dulcinea?
Que ela fosse estonteantemente linda. Que grata surpresa.
Nada seria capaz de descrever o turbilhão de pensamentos que inundou a cabeça de Hansol no momento em que a donzela em seu vestido de tecido puído com os pequenos seios marcados pelo contorno do espartilho de couro surrado entrou em cena. Pensava em tudo e, ao mesmo tempo, em nada. Tela azul. Os cabelos cacheados caíam-lhe sobre os ombros e esvoaçavam quando o vento do soprador acima do palco alcançava-a, fazendo girar os moinhos de vento que enfeitavam os contornos do palco. Se alguém perguntasse a Hansol o que se passou nos minutos seguintes, ele diria somente que a garota mais bonita que já tinha visto cantou para ele por mais de uma hora. Que se danasse Dom Quixote e os demais personagens, era a moça de bochechas rosadas e voz firme que atraía toda sua atenção. Queria carregá-la no colo como o príncipe que ela merecia, tocar seu rosto delicado como a cada nota que ela emitia acariciava seus ouvidos treinados, perguntar seu nome e prometê-la um mundo de conto de fadas. Agora entendia porquê Dom Quixote lutava contra monstros gigantes por amor àquela mulher. Que se danem se eram apenas moinhos de vento ou não, por Dulcinea ele derrubaria criatura a criatura na base da voadora. É, o velho tinha uma motivação e tanto.
Preso na utópica admiração à figura da doce e forte atriz, precisou dar razão à Sofia pelas vezes em que ela o acusou de se apaixonar perdidamente sete vezes por semana. Hansol gostava de ver a si mesmo como um romântico incorrigível, admirador das maravilhas do amor em suas fases. Nem sempre percorreria todos os campos do amor romântico com a mesma pessoa - nunca o tinha feito, até então -, porém naqueles curtos minutos de devoção a Dulcinea, cogitou a possibilidade de amar uma única mulher pelo resto dos seus dias. Convém ressaltar que apegar-se a um sentimento era difícil para o rapaz, a deusa capaz de mantê-lo constantemente apaixonado de forma ímpar tinha sido a música e ninguém a retiraria facilmente do posto. Aquela jovem atriz cujo nome faria questão de descobrir podia ser a personificação de sua inigualável deusa. Como não tinha pensado nisso? Pensar vinha sendo mais complicado que o usual desde que pusera seus olhos sobre ela…
Estava ansioso para vê-la sem a caracterização da personagem e fitar seus olhos expressivos de perto. Teria arrepios? Tomaria coragem para pedir por mais que uma silenciosa admiração? As cenas desenrolavam-se mais rapidamente do que podia acompanhar com plena atenção, em um instante voltou do mundo da Lua para ver as cortinas se fecharem e reabrirem logo em seguida, junto com o acender das luzes. O elenco reunido em frente à diminuta plateia curvava-se em agradecimento à atenção e à própria arte com sorrisos cansados e orgulhosos. Sabia como era essa sensação, um misto bastante particular de alívio e gratidão. O velho que o recebera na entrada do teatro aplaudia de pé as “crianças” a quem se referira mais cedo, vibrando com o sucesso deles como se estivessem se apresentando em frente a cem mil pessoas. Mais uma vez as pesadas cortinas de veludo bordô fecharam-se e o silêncio reinou.
Estava terminado.
Noventa minutos correram velozes como água de nascente e Hansol jamais veria novamente sua doce Dulcinea. Não, não podia deixá-la partir desta maneira. Apressou-se em direção ao que supôs ser o acesso ao backstage convicto que bateria na porta do camarim e seria recebido pelo belo rosto de sua amada deusa encarnada. Localizou a porta com os dizeres “staff only” gravados em uma placa desbotada e rumou até ela como uma bala.
— Meu jovem, para onde vai? A saída é pelo outro lado. - o velho Merlin o chamou.
— É… Eu queria… - tentou formar uma frase conexa apesar do desconforto de ter sido pego no pulo.
Aí é o camarim. - disse o senhor com um tom de ligeira malícia insinuativa quanto às intenções do rapaz. - Não pode entrar, rapazinho.
— Desculpe, acho que me perdi procurando o banheiro. - desconversou afastando-se. - Obrigado, senhor. - fez uma mesura desajeitada, ignorando o fato de não estar em solo coreano.
Do lado de fora, apoiada no cartaz desbotado da peça, Sofia o esperava com uma irritante expressão vitoriosa.
— E aí, morreu?
Hansol pôs as mãos nos bolsos do jeans, vestiu a máscara da indiferença e esforçou-se para devolver os batimentos cardíacos ao ritmo normal.
— Não foi tão ruim. O pessoal é bonzinho. - deu de ombros.
— O elenco?
— É. Bem afinados, sabe?
— Sei… - mordiscou despreocupadamente uma das unhas. - Vamos embora, seu castigo foi concluído com sucesso.
— Amém. - ergueu as mãos aos céus.
— Podemos assistir Mamma Mia na TV depois do jantar, o que acha? - apoiou-se no braço do irmão, guiando-o pelo caminho de volta à estação de metrô. - Ou High School Musical? Glee! - exclamou.
— Nem vem, Sofia. - protestou.
— Ah, agora você tolera musicais. Faz esse favor para sua irmãzinha, vai? - piscou repetidamente como um cachorrinho pidão.
— Não abusa. Já chega. Vamos para casa.
— Vai te ajudar a esquecer a garota do parque, confia em mim.
Mal sabia a mais nova dos Choi que uma certa Dulcinea havia invadido os pensamentos de seu irmão com tanta violência que a menina do parque parecia um borrão disforme de uma lembrança antiga.

▽ ▽ ▽


No dia seguinte, Hansol estava novamente no teatro; dessa vez, duas fileiras mais próximo do palco. Merlin - como passou a chamar o senhor que tomava conta do teatro - o reconheceu e cumprimentou-o com um aceno de cabeça quando encontrou-o na bilheteria comprando o ingresso com a discrição de quem está a ponto de cometer um crime.
O mesmo se repetiu por mais um dia, uma tarde chuvosa na qual Hansol se esgueirou pelo beco do teatro fugindo de uma Sofia curiosa que insistia em ligar a cada meia hora para saber que tênis tão difícil de encontrar era aquele que o irmão queria comprar a ponto de fazê-lo gastar duas tardes procurando. Analisando mais friamente, Hansol estava ciente que podia ter arranjado uma desculpa melhor para justificar as ausências repentinas sem gerar maiores suspeitas na irmã bisbilhoteira. Era tarde demais, teria de sustentar a história até onde pudesse.
Parecia que todos sabiam o real motivo dele estar ali e julgavam-o por isso. Era claro como água nos olhos da garota da bilheteria, do velho Merlin, de Sofia, até mesmo seus pais pareciam saber que ele estava perdida e ridiculamente encantado por uma atriz que nem sabia que ele existia. Após assistir à peça pela terceira vez, sentando-se cada vez mais perto do palco, Hansol sabia todas as canções e poderia tirá-las de ouvido no violão com o pé nas costas. Na realidade, não tinha outra coisa para fazer na casa dos avós a não ser se jogar na cama e fantasiar com a moça de cabelos fartos cantando para si e consigo enquanto dedilhava notas que traziam forma ao corpo esguio e repleto de um calor único que exalava dos poros da Dulcinea de seus sonhos. Estava louco, perdido em um sentimento que existia apenas para si, apesar de intenso e sufocante o suficiente para tirar-lhe o sossego enquanto não pudesse tê-la.
A tentativa posterior de acesso ao camarim tinha falhado tão miseravelmente quanto a primeira, mas não desistiria. Permaneceria em Nova York por mais dez dias, em algum momento teria de ter sucesso nessa empreitada descabida. Tinha prometido a si mesmo que se forçaria a manter o foco no espetáculo, sem dar margem aos devaneios que, no fim das contas, estavam atrapalhando que absorvesse cada gota do talento daquela mulher.

▽ ▽ ▽


Ao fim do espetáculo, Hansol cogitou seriamente levar seu relógio para o conserto. Nunca tinha visto noventa minutos passarem tão depressa. Para sua felicidade, no dia seguinte poderia inventar outra desculpa para a família e voltar à sala de poltronas vermelhas desbotadas para sorver de mais uma dose do novo vício. Quando as cortinas se abriram para que o elenco agradecesse à plateia - desta vez composta pelo rapaz, Merlin e uma menininha com a babá - a reverência foi mais longa do que as vistas até então. O ator que representava o protagonista ajustou o microfone e após leve tossida, disse:
— Bem, essa é a última apresentação de “Man of La Mancha”.
Como assim “última apresentação”? Não haveria um dia seguinte em que pudesse admirar mais uma vez a personificação da deusa à qual jurou devoção?
— Em nome do elenco, gostaria de agradecer à equipe de produção, em grande parte composta por nós mesmos - acrescentou -, à direção do teatro e a todos que vieram nos assistir ao longo desses três meses, em duas apresentações diárias. Sabemos ser um público pífio, praticamente simbólico, mas, mesmo assim, agradecemos.
Os olhares dos demais atores voltaram-se para ele com expressões de surpresa. Um deles acenava para que encerrasse o discurso logo, antes que algo indelicado fosse dito. O desconforto era claro, não sendo o suficiente para impedir o prosseguimento da fala:
— Somos atores quase amadores, nos perdemos volta e meia, nos atrasamos para os ensaios, não é, Joe? - direcionou-se ao rapaz que dava vida ao fiel escudeiro de Dom Quixote - E é isso aí, vamos seguindo. Tomara que na próxima peça seja melhor ou vamos…
Hansol dividia-se entre a catatonia do choque e a veemente negação, entretanto era plenamente capaz de apontar o desrespeito com o compromisso firmado com a arte por parte daquele cara.
“Que escroto”, pensou o jovem músico.
O discurso foi interrompido por Dulcinea ao colocar-se em frente ao colega, murmurando algo que o fez se calar.
— Boa tarde a todos. Acho que nosso querido Paul não escolheu as melhores palavras, faz parte do nervosismo, né? - forçou a risada - Nós agradecemos de todo coração ao senhor Cliff por cuidar tão bem do teatro e de nós - indicou o velho Merlin -, a todos os colegas de profissão que nos deram dicas…
— E nos chamaram de fracassados. - interrompeu Paul.
— Não vem ao caso. Continuando, deixo o meu agradecimento e do pessoal à Gabriela da bilheteria, ao Jeff da limpeza, às costureiras, à plateia que veio nos prestigiar todos esses dias e contribuir com o nosso sonho. Com certeza saímos dessa temporada de “Man of La Mancha” com a certeza de que o palco é o nosso lugar. Muito obrigada!
Hansol levantou-se e aplaudiu com furor as palavras da sua estrela. Como se não bastasse ser talentosa e linda, aquela mulher era extremamente sensata. Como poderia fugir dos encantos dela desse jeito?
— E obrigada ao rapaz que veio anteontem, ontem e hoje novamente. - esboçou um sorriso doce para Hansol. - Espero que tenha gostado. Vamos lá, pessoal? - segurou as mãos dos colegas de elenco em ambos os lados e completou a reverência final.
O fechar das cortinas foi acompanhado pela disparada de Hansol até a porta do camarim antes que Merlin tentasse pará-lo. Era sua última tentativa, falhar não era uma opção. Não pensara em um plano além de correr desesperadamente e entrar pela porta juntamente com os atores, que estariam se encaminhando para lá naquele mesmo instante.
— Ei, rapaz! Já disse que não pode entrar aí! - ouviu o velho vociferar ao que parecia muito longe.
O jovem agarrou a maçaneta com força e girou-a. Quase caiu do outro lado quando conseguiu abri-la, conforme supusera, tamanho impulso que jogou contra a madeira. Correu os olhos pela sala a despeito de todas as caras de surpresa e susto que o acompanhavam; precisava encontrá-la a qualquer custo.
— Que merda é essa?
Paul, o Dom Quixote cuja barba já descolava do rosto, apontou para o eufórico Hansol, indicando que os demais homens do elenco que o cercassem e o retirassem dali.
Os corações apaixonados são muito perigosos, mesmo quando o sentimento está consideravelmente mais próximo de uma descabida atração do que do puro amor romântico, porque estes não medem as consequências de seus atos. Tão logo reconheceu os cachos volumosos de costas para si, bem ao fundo do camarim, desviou de qualquer ser vivo que tentou se colocar no caminho até ela. Como pensara, era capaz de lutar com quantos monstros ou moinhos de vento aparecessem na sua frente, nada iria detê-lo. Era ela e provavelmente não existiria outra oportunidade de vê-la antes de voltar para a Coreia.
— Dulcinea!
Era meio vergonhoso referir-se a ela pelo nome da personagem em frente a tantas outras pessoas. Em sua mente ela não tinha outro nome, era sempre dita “deusa”, “estrela” ou Dulcinea, a mulher forte e decidida por quem Dom Quixote de La Mancha e Hansol Choi eram terrivelmente apaixonados.
Quis agarrá-la pela manga do vestido, contudo o bom senso ainda existente o fez voltar atrás e, apesar da urgência, parar em frente à moça e reverenciá-la como ela merecia. Posicionou as mãos em frente ao corpo e inclinou-se em noventa graus diante da imagem viva da deusa música. Euterpe ou Dulcineia ou seja qual fosse o nome dela, podia facilmente chamá-la de amor da sua vida.
— Oi, cara estranho que vem nos ver todo dia. - cumprimentou-o.
— Desculpa, eu não sei seu nome. - Hansol começou, apressado - Olha, preciso falar com você. Sério, preciso muito. Me ouve só um instante.
— Meninos, não tem necessidade de ficar em cima dele. - falou com os colegas de elenco cujas mãos preparavam-se para agarrar o visitante pelo casaco e jogá-lo na rua. Na porta, o senhor Cliff, o Merlin, assistia em silêncio o resultado do rompante de coragem de Hansol. - É um assunto muito importante? Porque se você for um maníaco fique logo avisado que eu fiz três meses de kung-fu e sei bater o suficiente para quebrar seu nariz.
— É muito, muito importante. - reiterou.
— Vamos lá para fora, se for melhor para você. Tem muita gente aqui e alguns deles querem te chutar para fora em dois tempos. Não se preocupe, Paul. Sei me cuidar. - bateu no ombro do protagonista que vinha tentar dissuadi-la da sua decisão sem sentido de dar ouvidos a um fã aleatório. Não que tivessem algum fã, aliás.
Nos fundos da sala bagunçada que servia de camarim, backstage, produção e o que mais fosse necessário, uma porta de metal dava acesso à ruela ao lado do teatro, onde Hansol e a garota poderiam conversar em paz. Ao atravessar a porta, o rapaz virou-se rapidamente para mirar o espaço que deixava para trás. Ao deparar-se com olhares julgadores para si, desejou ter seguido em frente sem pestanejar.
— Estamos sozinhos, fique à vontade para falar quando achar melhor. Você é algum tipo de olheiro? - perguntou como quem confidencia um segredo - Não vou contar para ninguém, prometo.
O brilho esperançoso na expressão dela a tornava tão afável quanto uma menininha vislumbrar na vitrine de uma loja de doces. Hansol quis dizer que sim só para vê-la feliz daquela maneira por mais tempo, ela tinha talento de sobra; tudo que precisava era de uma oportunidade para crescer. Contudo, não seria justo fazer juras vazias para alcançar o que desejava: mantê-la ao seu lado para sempre, girá-la em seus braços e roubar um beijo dos lábios carnudos que finalmente podia ver de perto.
— Não, não sou olheiro. Sinto muito.
— Ah… - murchou como uma flor delicada exposta ao sol escaldante - Achei que fosse.
— Não vá embora, por favor. - pediu - Eu sou músico.
— Sério? Legal. Trabalha com teatro?
— Na verdade, não. Nunca tinha assistido a um musical. - confessou, arrumando os fios rebeldes da franja.
— Nossa! Então o que você quer comigo? Não consigo entender.
Hansol pôs as mãos nos bolsos de trás do jeans, ergueu a cabeça em direção ao céu cinzento e respirou fundo em busca de clareza para ser direto em sua fala apesar da anormal bagunça que acometia seus pensamentos.
— A primeira vez que coloquei meus olhos em você, o que era para ser uma tortura se transformou em uma bênção dos deuses. - começou - Espera, não era para ser assim. Calma. Respira, cara. - disse a si mesmo.
— Tudo bem?
— Por enquanto sim. É uma história meio doida.
— Por que não tenta começar do início?
— Boa ideia. Vou tentar.
— Qual o seu nome? - perguntou Dulcinea.
Hansol pensou por frações de segundo antes de responder:
— Vernon.
— Muito prazer, Vernon. - frisou o nome dito pelo rapaz - O pessoal aqui me chama de . É, tipo DiCaprio. - completou ao ver o semblante vago que ele dirigia a si.
. - repetiu. - Lindo nome.
Não era confusão que percorria a mente de Hansol, conforme ela pensava ser, era admiração de tal intensidade que o deixava estupefato.
.
— Isso, . Fácil, né? Agora se puder continuar sua história… - deu a deixa - Daqui a pouco vão vir ver por que estamos demorando.
— Ah, certo. Então, eu sou músico profissional, mas nunca tinha assistido a um musical. Achava chato, não tem falas, tudo é cantado… Enfim, estranho. Um dia desses, anteontem, minha irmã caçula me viu fazendo uma coisa que meus pais tinham proibido e ameaçou contar para eles. Estamos de férias na casa dos nossos avós, eles iam encher meu saco até eu pedir misericórdia com o mesmo discurso de sempre, sem condições de suportar isso outra vez. Então a Sofia, minha irmã, me obrigou a assistir o musical de vocês para me fazer sofrer e, assim, ela ficaria feliz com minha desgraça sem efetivamente causar uma confusão na família por contar o que eu fiz. Ela é uma pessoa meio sádica às vezes. - respirou pesado.
— Okay, e como eu posso te ajudar? Você é adulto e seus pais ainda te colocam de castigo, é isso?
— Não! - acenou com as mãos, dando ênfase à negação - Talvez sim, um pouco. Pais coreanos, sabe como é.
— Vou fingir que sei. - riu.
— O que eu precisava te falar é que desde o primeiro momento que botei os olhos em você, fiquei encantado. Era para ser um castigo, mas graças a você e ao seu talento absurdo, foi mágico. , você é uma deusa. - frisou. - E desde então eu não consigo parar de pensar em você. O tempo todo, 24/7, só vejo você. Voltei todos os dias para poder te ver por mais uma hora e meia porque sua imagem está fixada no meu cérebro.
— Nossa… Obrigada. – respondeu, um bocado desconcertada pelos elogios inesperados.
— Estou te assustando? – perguntou, receoso ao notar que ela olhava ao redor com frequência. - Desculpa, isso é muito novo para mim, nunca tinha passado por algo assim. E posso dizer que já tive um bom número de garotas na minha lista. Não estou me gabando, é meio escroto falar dessas coisas, eu sei. Só queria que entendesse o que você está fazendo comigo. Você é tão forte, decidida, bonita, corajosa!
Hansol desejava desesperadamente tocar o rosto arredondado de , acariciar as bochechas rosadas e distribuir beijos por cada centímetro daquela feição graciosa.
— Quando ouvi aquele cara dizendo que era a última apresentação, entrei em parafuso. Não estava pronto para nunca mais te ver sem ao menos saber seu nome ou, quem sabe, te conhecer mais. Então se você puder, quiser, estiver disposta, eu adoraria te pagar um café. Seria uma enorme honra.
— Vernon, obrigada, mas não posso aceitar. É a primeira vez que alguém fala essas coisas para mim, sou uma atriz novata e não sei como lidar propriamente com fãs. Acho que talvez você esteja projetando na Dulcinea as ânsias do seu coração, não na . Sou uma mera representante de uma mulher muito maior que eu, que atravessou séculos eternizada como o fruto da imaginação de um homem solitário.
— Por isso quero te conhecer, para saber quem é a por trás da personagem. - justificou-se.
— Não posso. Isso iria apenas te deixar ainda mais confuso. E outra, eu tenho namorado. Não pegaria bem. - ergueu os ombros e apertou os lábios num pedido de desculpas não-verbal.
O céu pareceu ainda mais cinza, as primeiras gotas de chuva começaram a cair e a frustração surgiu em meio aos pensamentos de Hansol como um pop-up de vírus detectado no computador, pegando-o em cheio. Cavalo de Troia.
— Achei! - uma voz aguda gritou do início da rua. Não tinha como fingir que não a conhecia.
— Sofia?
— Mãe, pai, ele está aqui!
— Essa é a sua irmã? - perguntou ao rapaz, atônito.
— Hansol, onde você esteve? - os cabelos sempre bem arrumados de sua mãe estavam cheios de frizz pela proximidade da chuva. O bater apressado dos saltos contra o asfalto davam o tom de urgência da situação e pelo que conhecia da mãe, estava totalmente ferrado.
— Seu nome não era Vernon? - a atriz sussurrou.
— Hansol Vernon. - o rapaz respondeu no mesmo tom de voz.
— Choi Hansol, é bom que você tenha um motivo plausível para ter desaparecido desta maneira. - a fúria nos olhos do patriarca dos Choi fez com que calafrios percorressem o corpo do músico. - De novo metido com mulher, garoto?
— Pai, eu estava procurando o tênis do Jordan que te falei, lembra? - apressou-se para se justificar.
— Essa história de tênis não cola, irmão. - Sofia alcançou-o, apoiando-se nos ombros do mais velho. - Estava muito estranho desde o começo. Você sempre compra as coisas pela internet.
— Não basta a última confusão em que se meteu? Você não aprende mesmo.
— Mas, pai…
— Não me venha com essas desculpas esfarrapadas, tenha vergonha. Assuma as suas merdas.
— Vamos embora. - sua mãe segurou-o firmemente pelo braço, puxando para longe de .
— Estávamos apenas conversando! - protestou.
— Duvido que suas intenções com essa moça envolvam apenas conversas. - seu pai rebateu.
— Ela é atriz, pai. - Sofia acrescentou.
— Tinha que ser. - olhou de cima a baixo - Para estar vestida desta maneira e de papo com seu irmão metido a artista, só gente da mesma laia.
— Peço desculpas por qualquer confusão que Hansol possa ter causado, senhorita. - a matriarca dirigiu-se a na tentativa de amenizar as rispidez das palavras direcionadas à garota. - Meu marido está um pouco exaltado, apenas.
Vendo o desalento envolver Vernon, pegou sua mão e apertou contra as suas. Fixou seus olhos aos dele, desejando que cada besteira dita pelos indivíduos que deveriam protegê-lo entrassem em um ouvido e saíssem em outro, mantendo-o firme dentro do possível.
— Estamos de saída. Despeça-se, Hansol. - disse a senhora. - Como se chama, mocinha?
, senhora. - respondeu firme, olhando no fundo dos olhos claros da mulher com a mesma valentia com qual Dulcinea, nascida em berço de ouro, aparecia para seu amado Dom Quixote.
— Sucesso na sua carreira, querida.
Nos instantes entre a mulher de meia idade se virar e puxar o filho consigo, as orbes teimosamente marejadas de Hansol encontraram as de . Não havia pena nem remorso nelas, apenas uma força tremenda. Aquela era sua Dulcinea.
— Vernon, né? Vou te encontrar por aí qualquer dia. Seja forte. - cochichou, soltando a mão dele gentilmente.

▽ ▽ ▽


A Dulcinea de Dom Quixote era o produto irreal de uma mente cansada de ser alimentada por tristezas, era o motor para que o velho homem se levantasse de sua cadeira e desbravasse o mundo lutando contra os monstros e demônios que encontrava pelo caminho. Por mais inofensivos que parecessem, os moinhos de vento, os mercadores e até mesmo padres podiam guardar em seus âmagos as mais assustadoras bestas. A jornada pela liberdade era longa e dolorosa e, por vezes, o fez sangrar. Ainda que fosse taxado de louco por percorrer estradas vazias em um corcel esquelético, Dom Quixote não permitiu que a opinião dos outros o impedisse de lutar contra a maldade que somente seus olhos sonhadores podiam ver.
Quando vestiu a armadura enferrujada e se pôs de pé atrás da cortina de veludo vermelho, Choi Hansol, a.k.a. Vernon, percebeu que havia vencido a primeira das batalhas contra o feiticeiro Frestão e a coragem para fazê-lo viera única e exclusivamente de seu amor por Dulcinea, a quem jurara retornar. Ali era Hansol à espera de que dava vida a Quixote à espera de Dulcinea. Conforme ela dissera, se encontrariam novamente, mesmo que não fisicamente. O chão duro sob seus pés era o de Mancha, o vento que tocava sua pele era a brisa que vinha do oceano e a mulher por quem deveria buscar e provar seu amor era a moça de cabelos cacheados e lábios carnudos que encontrara em Nova York. Estavam percorrendo os mesmos caminhos. O público de Seoul que veria sua estreia como ator não era capaz de enxergar, mas suas mãos ainda estavam presas entre as palmas mornas de naquele beco atrás do teatro onde tudo começou e terminou.



Fim!



Nota da autora: Oi, que bom que você chegou até aqui!
Windmills é uma história que foi planejada como algo romântico bem água com açúcar, mas acho que Hansol e sua PP não concordaram muito com as ideias da autora e transformaram a narrativa em uma representação do amor em um sentido mais amplo e único, cheio de entrelinhas. Espero que tenha gostado, é um prazer compartilhar duas grandes paixões (a leitura e os musicais) com vocês.
Beijos!
Sempre sua,
Nimuë.

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Nota da beta: Meu Deus, que história maravilhosa! Eu fiquei tão envolvida que não senti que estava acabando, agora tô tristeeeee! Incrível demais, amo sua escrita! 💙

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