Finalizada em: 20/12/2021

Capítulo Único

— Vamos ouvir mais uma vez os aplausos para a Sunset Curve - solicitou o apresentador.
O público respondeu ao estímulo com fervor enquanto , e deixavam o palco da ‘Batalha de Bandas’.
— Muito bom, muito bom. Agora, vamos receber com a mesma alegria o Gemini.
Os cabelos volumosos da vocalista do grupo feminino estavam presos no topo da cabeça. Seu sorriso era plástico em sua face, em um deboche competitivo - não muito - contido.
— Quebra a perna, - desejou, com o mesmo sarcasmo estampado no rosto.
— Só depois de te ver quebrando a cara, .
Enquanto as outras garotas se aprontavam atrás da bateria, da guitarra, do baixo e do teclado, caminhou até o pedestal, puxando o microfone para si: — Vamos colocar fogo nesse lugar.
A batida alta começou imediatamente, fazendo com que vários membros da plateia começassem a se mover animadamente, já sentindo o ritmo pulsante cuja principal intenção era mesmo proibi-los terminantemente de se manterem parados.
Com o microfone agilmente tomado em mãos, deu início a uma apresentação bastante performática que, com certeza, deveria ter contado com algum coreógrafo famoso particular contratado por seu pai. O que provavelmente significava algo muito próximo daquilo que costumavam chamar de ‘o melhor que o dinheiro pode comprar’.
— See 'em look
Hear 'em, "ooh-ah"
Hands up, throwback, boo-yah
We're the best, no doubt
Check it out, yeah, we make 'em say, "wow"
olhou em volta, rindo levemente de repente:
— Essas luzes estavam aí quando a gente estava tocando? Elas pensam em tudo.
Era um show completo. Simplesmente não havia outra forma de definir aquilo. Era impossível desgrudar os olhos por um segundo sequer.
revirou os olhos, bufando frustrado.
— Grande composição - comentou ironicamente. — Deve ter sido um trabalho muito difícil.
— Quem se importa? - perguntou. — As pessoas estão dançando, é divertido. Elas são ridiculamente boas e você não pode negar isso. Nem que seja só para continuar com essa birra bizarra entre vocês dois.
— Não existe nenhuma birra bizarra entre nós dois.
— Ah, não? Você tem certeza disso?
fez uma careta. era simplesmente inacreditável. De onde ele tirava aquelas ideias absurdas? Não era birra se a pessoa decidia simplesmente ser a coisa mais insuportável de todo o universo. Nem uma dor de dente era tão incômoda quanto a presença de Wiley em um raio de cinco quilômetros.
, será que você pode dizer para o seu amigo que eu não tenho birra nenhuma com essa garota? - pediu. Ao perceber a ausência de resposta, ele se virou bruscamente, encontrando o amigo balançando os braços e os quadris ao som da música que explodia pelos alto falantes. — Puta merda, eu odeio muito vocês dois.
— Bom, você sabe o que eles dizem: “o ódio não pode expulsar o ódio, só o amor pode fazer isso - rebateu.
— Quem diz isso?
— Ahn, Martin Luther King? Em que mundo você vive?
não teve tempo de retrucar o porquê de não reconhecer o dono de uma citação aleatoriamente jogada numa conversa. A plateia explodiu em aplausos e gritos, efervescente em meio à finalização da apresentação, enquanto respirava fundo, tentando recuperar o próprio fôlego enquanto ria tentando assimilar o sucesso da noite.
Ele não precisava ser a pessoa mais inteligente e astuta do mundo para saber exatamente como aquela noite terminaria. A história se repetia em pelo menos noventa e cinco por cento das vezes (de verdade, ele tinha realmente se dado ao trabalho de fazer esse cálculo). Gemini eram ovacionadas e se tornavam as campeãs da noite. Sunset Curve ficava em segundo lugar, com elogios que sempre reforçavam o quanto eles eram bons - apesar de, aparentemente, não bons o suficiente para vencê-las. Os outros grupos? Bom, não importava muito quem vinha depois.
— E às vencedoras da noite - o apresentador falou ao microfone, estendendo o troféu dourado que estava longe demais de ser feito com qualquer porcentagem de ouro verdadeiro - Gemini!
e aplaudiram e colocaram os dedos mínimos na boca, tentando puxar um assobio ligeiramente desafinado. precisou se lembrar da boa educação que os pais haviam se esforçado para oferecê-lo e bateu palmas contra a própria vontade.
Os olhos de encontraram os seus e lhe ofereceram um sorriso que, pela primeira vez, não parecia exatamente se configurar nos padrões de deboche que ele já havia decorado ao longo dos últimos anos.
Mas ele estava cansado. E deveria ser apenas uma leitura errada da situação.
Ele realmente precisava dormir.


🎤👻🎹



não tinha certeza se havia feito uma boa escolha.
Se as pessoas na casa de repouso se parecessem minimamente com a sua avó, com certeza olhariam torto para a sua saia um palmo acima acima do joelho - e não um palmo abaixo, como ela insistia ser o mais adequado para uma mulher de respeito. Talvez ela devesse simplesmente ter colocado uma calça. De preferência uma larga o suficiente para não marcar suas curvas, mas não o bastante para que fosse confundida com uma peça da seção masculina por aqueles que estavam um pouco - ou muito - por fora da moda mais recente.
Forçou-se a respirar profundamente algumas vezes, lembrando-se de repetir a si mesma quantas vezes fossem necessárias para que finalmente entendesse que jamais agradaria a todos, então era melhor que começasse se preocupando em agradar a si mesma.
Sentiu o telefone vibrar no bolso e desbloqueou a tela pelo reconhecimento facial, lendo a notificação da mensagem recebida:

“Eu vou precisar te buscar pela mão? Entra logo!”

Erguendo o olhar, encontrou Callie na janela, acenando avidamente para que ela entrasse. sorriu, afastando o pensamento de que agora estava encurralada e seu tempo de arranjar qualquer desculpa para evitar o cumprimento do convite tinha se esgotado por completo.
Quando finalmente encontrou a entrada, foi interrompida por uma voz que ela reconheceria, com certa irritação, em qualquer canto:
— Você só pode estar me zoando. Não é possível que eu não tenha um minuto de paz.
franziu o cenho instantaneamente.
— O que você está fazendo aqui?
— Eu é que te pergunto - revidou de pronto.
— O que você acha que eu vim fazer? Vim ajudar, é óbvio.
— Perdão se eu não consigo visualizar você fazendo qualquer coisa que não seja em benefício próprio.
A garota soltou uma risada que mais soava como um suspiro de incredulidade.
— É sério isso? Você realmente acha que eu sou esse tipo de pessoa, ?
O rapaz engoliu em seco, percebendo que talvez - só talvez - tivesse passado um pouco do ponto. Duvidar do caráter de outra pessoa a esse ponto parecia ser mais cruel da parte dele do que poderia ser da dela.
— Ahn, bom, um pouco; quer dizer, não. Não, não, não. Eu só não sabia que você ajudava com as coisas por aqui.
Os ombros de relaxaram um pouco e ela teve que reajustar a fivela da bolsa ali pendurada por isso.
— É a minha primeira vez, na verdade. A Callie me convidou - explicou. — Disse que seria bom para eu me distrair um pouco. E você?
— Minha família sempre trabalhou com essa fundação. Eu costumo vir bastante aqui.
— Então não vai ser muito difícil me mostrar o lugar, certo?
— Pensei que você fosse ficar com a sua amiga.
— Bom, ela estava ali naquela janela e sumiu, o que me deixa automaticamente perdida. Eu preciso de ajuda.
Ele riu levemente e estendeu a mão, sinalizando o caminho e andando ao seu lado enquanto seguiam para dentro da casa de repouso.
— Certo, então esse é o salão de jogos, onde eles geralmente estão apostando dinheiro, biscoitos ou qualquer outra coisa que eles não poderiam estar apostando. Ali ficam os banheiros de uso comum e a lavanderia, onde algumas pessoas vêm durante a semana ajudar com algumas tarefas ou doar roupas novas. Bem lá no fundo fica o salão para jantar e a cozinha industrial. Os quartos deles e a enfermaria estão no andar de cima. Geralmente, só vamos lá se um deles explicitamente chamar ou pedir que busquemos algo que eles deixaram por lá.
aquiesceu, tentando absorver todas as informações novas. Percebeu que uma porta de um tom acinzentado havia passado pela apresentação e apontou para ela:
— E ali?
— Ah, aquela é a sala de descanso. Eles costumam usar quando estão de saco cheio uns dos outros ou da gente.
Ela foi obrigada a rir, achando justíssimo que eles pudessem ter literalmente como forçar os outros a lhe darem tempo e espaço.
— Certo. Jamais me aproximarei.
— Você aprende rápido.
— É, acho que é um dom.
engoliu o ímpeto de soltar alguma alfinetada leve, como “Essa é a que eu conheço” ou “É bom ver que sua arrogância continua aí. Fiquei com medo de que estivesse doente”. Ele não precisava daquilo. Eles não precisavam daquilo. Estavam ali por um propósito comum e o trabalho era mais importante do que qualquer necessidade de regar as sementes de mal estar que pareciam sempre serem jogadas ao seu redor no solo em que pisavam.
— Ah, aí está você - Callie disse, enquanto se aproximava da dupla. — Pensei que tivesse saído correndo.
— Foi você quem sumiu de repente - reclamou.
— Pelo menos você encontrou o pelo caminho. Ele conhece esse lugar como ninguém e, se vocês não se mataram ainda, acho que está tudo bem.
— Você é engraçada. Talvez eu devesse te chutar da banda para que você possa seguir sua carreira dos sonhos na comédia.
Callie riu, abraçando a amiga lateralmente.
— Não precisa ficar emburrada. Eu sei que você morreu de saudades, mas eu só fui dar um pulo na cozinha para retirar a massa do forno. Estou fazendo bolo de chocolate. Quer me ajudar?
A careta meio que já poderia ter respondido por si só.
— Você quer mesmo matar idosos com uma possível intoxicação alimentar? Eu sou uma ameaça à vida humana assim que eu coloco os pés em uma cozinha.
— Bom, eu realmente preciso voltar e terminar a cobertura. Tem certeza de que não quer ajudar? Nem com, sei lá, apoio moral?
Aquela já era a segunda careta seguida. A ideia não tinha se tornado nem um pouco melhor ou mais palatável com o passar dos últimos minutos.
— O que você vai fazer?
arqueou as sobrancelhas, surpreso por ter a palavra dirigida a ele de repente.
— Ahn, eu geralmente fico no salão de jogos.
— Ótimo - respondeu, com um sorriso largo. — Eu vou com você.
— Certeza? - e Callie perguntaram ao mesmo tempo.
deu de ombros, sem entender qual era o grande problema que, aparentemente, só ela não estava vendo.
— Sim - confirmou. — Eu posso esconder os meus truques para roubar nos jogos. Ninguém precisa ficar sabendo. Eu consigo fazer esse esforço.
— Você tem certeza?
— Por que é que ninguém acredita em mim?
— Eu acredito - respondeu. — E eu sei que você prometeu não roubar, mas esteja ciente de que eles vão. E muito.
respirou fundo, escondendo a risada.
— Certo. Eu vou tentar não surtar muito.
a acompanhou até o salão de jogos, indicando uma mesa de carteado com duas cadeiras vazias.
— Aqueles são o Otto e a Nancy - explicou. — Eles geralmente estão aqui jogando pôquer e apostando qualquer porcaria que tenham conseguido na cozinha. Você joga?
— Você está olhando para a verdadeira dama do jogo.
— Certo - riu. — Se vamos mesmo fazer isso, você precisa saber que o Otto vai dizer que precisa ir ao banheiro e tentar olhar as suas cartas quando perceber que vai perder. E que a Nancy rouba na distribuição das cartas, então evite apostar nas rodadas dela.
— Eu não acredito que ele roubou a minha estratégia!
— Considerando que ele deve ter pelo menos sessenta anos a mais, acho que a ladra é você.
— Isso é o que nós vamos ver - ela anunciou, fazendo menção de se aproximar da dupla da jogatina.
adiantou os passos, colocando-se ligeiramente à frente para assumir a incumbência das apresentações.
— Otto, Nancy, essa é a . Ela veio passar a tarde por aqui e eu queria saber se vocês aceitam mais dois jogadores.
— Quanto mais melhor - respondeu o senhor, puxando a cadeira de uma forma galante para que a mais nova se sentasse. agradeceu com um gracejo e uma pequena reverência.
? - Nancy perguntou. — A cantora?
Ao ouvir seu sobrenome e seu atual trabalho, a garota retorceu as sobrancelhas.
— É, isso mesmo. Como a senhora sabe?
Nancy puxou o baralho para si, embaralhando as cartas da forma mais falsamente distraída possível. Com um sorriso que parecia querer esfregar em sua cara quantos segredos cada uma daquelas marcas de expressão guardava, ela respondeu:
— Já ouvimos muito falar de você por aqui.
Ela não precisou de muito esforço para ligar os pontos e encontrar as bochechas vermelhas à sua frente, como se tivesse algum protótipo de combustão ou reação alérgica acontecendo diante de seus olhos.
— Ah, é? E o que foi que vocês ouviram sobre mim?
— Vamos jogar? - interveio, prestes a tomar as cartas da mão de Nancy.
— Por que a pressa? - perguntou, tentando forçar o contato visual do qual ele fugia como se fosse uma armadilha mortal. E talvez fosse mesmo. — Os adultos estão conversando.
— É, , qual é o problema? - Nancy se aproveitou da situação.
— Não é como se eu tivesse falado tanto assim de você.
— Muito ou pouco, agora eu quero saber tudo.
— Ele contou dos shows - foi Otto quem começou.
— E de como ele se borra de medo sempre que vai ter que enfrentar a sua banda - Nancy completou. — Aparentemente, você é a pessoa mais talentosa que ele já viu.
— Eu nunca disse isso - reclamou.
— Acho que ficou meio implícito - a mais velha rebateu.
estava prestes a morder as próprias bochechas se isso significasse a única forma de não abrir o mais largo sorriso vitorioso que o universo já tinha visto. Não queria demonstrar o quanto aquela simples colocação havia significado para ela. Jamais admitiria, sequer para si mesma, que a opinião dele era importante.
— Façam suas apostas - Otto anunciou, como um verdadeiro amante de cassinos.
A garota precisou pensar por alguns instantes antes de abrir a pequena bolsa carregada a tiracolo.
— Eu tenho essas balas de gelatina.
— Válido - Nancy concordou. — E você, ?
O rapaz puxou a carteira, encontrando o cartão carimbado.
— Com mais um selo, você tem direito a uma refeição grátis. Bebida e sobremesa inclusas.
— Agora ficou sério - disse, rindo.
Nancy distribuiu as cartas aos jogadores e as apostas começaram a ser feitas. Mesmo se não soubesse que provavelmente a mais velha tinha no mínimo um Full House, a garota seria incapaz de encarar qualquer tipo de aposta com aquela mão horrenda. Sequer valia o blefe.
Otto, por sua vez, empurrou suas balas de canela ao centro da mesa, arrumando sua postura em uma linguagem corporal que estava prestes a esfregar confiança em qualquer um que se colocasse em seu caminho.
A sua companheira ergueu uma sobrancelha, em desafio:
— Tem certeza disso, querido?
— Tudo ou nada.
trocou um olhar rápido com e não precisava que ele dissesse uma palavra para saber o que ele estava lhe comunicando: Nancy sairia dali com suprimento de balas de canela para um mês inteiro. E tiraria até suas roupas de baixo se lhe dessem a oportunidade.
— Pode passar para cá - ela falou, mostrando seu Royal Flush impecável de copas.
— Ladra.
— Ora, Otto! Não é esse o linguajar que usamos perto das crianças. Tenha modos, pelo amor de Deus!
Ele apenas soltou um resmungão rabugento, dando-se por vencido. Antes que Nancy se oferecesse para embaralhar - ou trapacear - mais uma vez, tomou as cartas para si, assumindo a função de distribuí-las com um pouco mais de imparcialidade.
— Preciso ir ao banheiro - o mais velho anunciou de repente, fazendo com que os jovens segurassem o riso e repousassem suas cartas contra o tampo de madeira da mesa.
Restando à mesa apenas os outros três, a mais velha tamborilou as unhas compridas contra a superfície, criando um som temporizado e quase ameaçador.
— Então, o que ele fez para que você o odiasse?
— Nancy! - praticamente berrou.
— Eu não o odeio - respondeu. — É ele quem me odeia, na verdade.
A mulher cruzou as mãos, apoiando o queixo sobre o encontro múltiplo dos nós de seus dedos.
— Acho que você tem de se explicar, então, mocinho.
— Eu nunca disse nada sobre ódio. Acho que a sua memória não está muito boa mais. Tudo bem, sabe? É normal para a idade.
— Se me chamar de velha mais uma vez, aí sim estaremos falando sobre ódio - ela o alertou. — Mas você disse que vocês dois se desentendiam com frequência.
— Bom, eu sempre tive a certeza de que ele não gostava de mim - ela explicou. — E acho que a gente sempre viveu em competição no fim das contas.
— Nem sempre - ele murmurou.
— Como é?
— Nem sempre competimos um contra o outro. Foi você quem decidiu começar, na verdade.
Sua expressão confusa era completamente genuína. Ela não fazia ideia do que ele estava falando. Nancy, por sua vez, parecia extremamente interessada no entretenimento fácil e gratuito colocado em sua frente.
— Eu? - Ele assentiu em resposta. — Quando isso?
— No nono ano. Quando nós íamos representar a Colômbia no Modelo das Nações Unidas e você decidiu me largar e assumir os Estados Unidos só porque eram um país mais importante para a discussão.
— Calma, você realmente acha que eu te larguei para tentar algo melhor?
— É a justificativa óbvia, não?
riu, cruzando os braços.
— É óbvio que os Estados Unidos tinham mais impacto na discussão; isso chama imperialismo. Era muito mais interessante e desafiador assumir o papel de um país considerado menor e provar que ele tinha, sim, muito a dizer.
— Então por que foi que você me largou?
— Eu não te larguei, tonto. A professora me trocou de representação porque disse que era melhor colocar o novato com alguém que já tivesse experiência em simulações e, aparentemente, a única pessoa com quem ele suava menos era você. Parece que ela tinha medo de ele derreter os documentos e anotações com a umidade das próprias mãos.
— O Robyn?
— Sim. Eu achei que ela tivesse te explicado o porquê da mudança, por isso nunca tentei me justificar. E, agora que você falou, realmente foi a partir dessa época que você começou a me fuzilar pelos corredores como se eu tivesse virado um quilo de sal no seu almoço. Eu não conseguiria te avisar nem que quisesse.
Se não estivesse muito bem sentado, teria caído de uma só vez quando o tapete e o chão de tudo o que ele acreditava tinha sido puxado sob seus pés. A história de origem da relação de plena animosidade entre eles não havia sido nada além de uma grande farsa. E ela, a quem ele havia atribuído o papel de vilã em sua vida, era a maior vítima, vivendo um embate cuja motivação nunca havia compreendido.
— Eu, sinceramente, nem sei o que te dizer - admitiu.
— Bom, isso é novidade - ela brincou. — Não estou esperando um pedido de desculpas, por mais que eu deva confessar que seria bastante divertido te ver implorando de joelhos por perdão. Foi um mal entendido. Fico feliz que tenhamos podido esclarecer a situação. Mesmo que com alguns anos de atraso.
Nancy desviava seu olhar de um para o outro, como um pêndulo fofoqueiro apenas aguardando as cenas dos próximos capítulos de sua novela mexicana favorita - que geralmente envolvia a janela aberta dos vizinhos.
— Graças a Deus vocês se entenderam. Nossos ouvidos vão poder descansar finalmente de todo aquele papo repetitivo sobre as disputas de vocês.
— Eu nunca disputei nada - rebateu. — Até porque sempre foi muito fácil ganhar. Não era uma competição justa.
— E é por isso que eu te odeio - respondeu, rindo logo em seguida.
— O que houve? O que eu perdi? - Otto perguntou, voltando a se sentar.
— Ah, querido! - Nancy esticou a mão para tocar a dele do outro lado da mesa. — Absolutamente tudo.
Ele bufou, olhando mais uma vez para as cartas que tinha em mãos para a rodada.
— Como se já não bastasse perder o jogo - resmungou.
— E joga logo ou vai realmente ficar sem nenhuma bala de canela.
Em meio a risadas e olhares furtivos roubados no limbo tênue entre a inocência e a curiosidade propositada, o jogo prosseguiu com as trapaças descaradas e fofocas sobre a vida alheia.
— Sabe de uma coisa? - Nancy disse, olhando com atenção para a jovem ao seu lado. — Você se parece muito com a minha neta.
— Sério? - perguntou. — Você não se parece em nada com a minha avó.
— Não sei se isso é bom, querida.
— Ah, é ótimo! A minha avó é bem rabugenta e conservadora. Ela acha que a minha geração está perdida e que eu deveria estar estudando para fazer medicina em vez de achar que a arte dá futuro.
— Ela é dessas, então. Que pena, de verdade. Sua felicidade deveria vir antes de qualquer coisa e isso deveria ser o suficiente para aqueles que te amam.
deu um sorriso discreto, engolindo a pontadinha no peito que dizia que talvez fosse exatamente o problema; talvez fosse o amor o ponto que faltava para que aquela máxima familiar fizesse sentido em sua realidade. Não queria se aprofundar no pensamento e terminar se envergonhando do fato de que ficaria parecendo um guaxinim se começasse a chorar. Se não pudesse ser forte, ao menos conseguiria fingir bem. Afinal, tinha anos de prática na bagagem para isso.
— Quer saber? Eu posso ser a sua avó emprestada - Nancy continuou. — E, se serve de alguma coisa a opinião dessa velha meio intrometida, fico orgulhosa de saber que você está se tornando, cada dia mais, uma mulher forte e determinada, que não desiste de seus sonhos.
Em um movimento ágil que poderia ter passado despercebido se ela não fosse o centro das atenções, levou o indicador ao canto do olho, roubando uma lágrima grossa de sua trajetória em queda livre.
— Eu adoraria - respondeu com um sorriso tão largo que apertava os olhos ao tentar encontrar espaço em sua face. — De verdade. Obrigada.
A mulher passou um braço pelos ombros da mais nova, deixando um beijo carinhoso em sua bochecha. se perguntou como era possível se afeiçoar por alguém tão rápido e receber dessa pessoa mais carinho e reconhecimento em segundos do que alguém havia sido capaz de lhe proporcionar após quase duas dezenas de anos.
Após um lanche da tarde aconchegante preparado por Callie, o fim da tarde se aproximou sem pedir licença, deixando pairar no ar o aviso silencioso de que se aproximava o momento da despedida. foi educada e afetuosa com todos, mas guardou o seu abraço mais forte para Nancy.
— Obrigada, vó.
— Que nada, meu amor. Da próxima vez, quero te ouvir cantando.
Do lado de fora, ela finalmente permitiu que os olhos se enchessem visivelmente da emoção que sentia. Aproximou a gola do próprio agasalho do nariz e sentiu o reconfortante aroma do perfume que a senhora usava. Por algum motivo, era como se o seu abraço ainda estivesse ali.
— Eles gostaram muito de você - interrompeu os seus pensamentos. — Você deveria vir mais vezes.
sorriu, assentindo.
— Acho que eles me fizeram muito mais do que jamais poderei fazer a eles.
— Essa é a graça do trabalho voluntário - ele explicou. — No fim do dia, você percebe que foi você quem realmente saiu ganhando.
Ela concordou, balançando a cabeça vagarosamente, como se precisasse desacelerar os seus próprios movimentos para evitar que caísse em um redemoinho sombrio formado pelo momento em que o silêncio parecia suplicar por uma interação antes de se tornar irreversivelmente desconfortável, pesando sobre os ombros até que o primeiro ser cedesse.
— Eu sinto muito - soprou, como se tivesse eliminando o ar pesado do peito em cada uma de suas palavras. — Sinto muito se estraguei nossa amizade por anos por assumir o pior de você.
Ela deu de ombros, o lábio repuxado no canto em um sorriso.
— Eu entendo a sua posição. No seu lugar, eu talvez tivesse pensado o pior também. Eu realmente achei que tivessem te explicado o porquê da mudança.
— Mas eu deveria ter falado com você em vez de só me fechar para sempre.
soltou uma risada leve.
— É, talvez - concordou. — Mas esclarecemos a situação agora e é isso que importa. Talvez agora possamos ser amigos de novo.
— Eu gostaria disso.
O sorriso que ela lhe ofereceu fez alguma coisa dentro dele chacoalhar. Talvez fosse nostalgia; talvez uma sensação estranha de déjà vu. Talvez ele só tivesse abaixado a guarda por um instante e permitido que algo, há muito adormecido, acordasse.
— Te vejo no show de sábado?
aquiesceu.
— Talvez a gente possa, sei lá - ela comentou, tentando parecer o mais despojada possível —, comer algo antes.
Ele precisou apertar as unhas contra a palma da própria mão para ter certeza de que aquilo estava realmente acontecendo.
— Claro - concordou. — Burritos?
sorriu imediatamente ao ouvi-lo sugerir sua comida favorita pré-show.
— Você ainda lembra - constatou.
— É claro que lembro.
E ele lembrava de muitas outras coisas. Mas estas ele guardaria para si.


🎤👻🎹



— Você está…
— Com olheiras horrendas, eu sei - bufou, sentando-se na cadeira livre.
com toda a certeza do mundo não tinha reparado em olheira alguma. E, mesmo tentando agora, ele não via nem sinais acusatórios que justificassem aquela reclamação.
— Eu ia dizer que você está muito bonita.
Os olhos dela desviaram o foco para baixo por um segundo antes de encontrar os dele. O sorriso quase tímido brilhava no rosto.
— Talvez muito bonita e com olheiras - ela brincou.
Eles pediram os burritos que tinham se tornado a expectativa de dias e o ponto alto do fim de semana. O cheiro dos recheios intensos em temperos eram reconfortantes como um cobertor pesado nos dias mais frios de inverno.
— Algum motivo especial para as olheiras que absolutamente ninguém está vendo?
— Como assim? Eu seria presa na ala dos pandas do zoológico se me vissem assim na rua. - Ela esfregou os olhos com pouco cuidado enquanto ria através do cansaço das horas totalmente mal dormidas.
— Se você não quiser falar, tudo bem. Mas, se quiser, eu estou aqui para ouvir. Bom, nesse momento, literalmente.
Ela respirou fundo, movendo o canudo biodegradável de um lado para o outro no copo, sem muito propósito.
— Meus pais querem me mandar para Nova York - contou.
— Que legal! - exclamou, percebendo instantaneamente a fisionomia de quem não poderia discordar mais. — Quer dizer, não. Nem um pouco legal. Isso é horrível.
— Aparentemente, é algum tipo de retiro científico. Eles devem achar que a imersão vai me inspirar de alguma forma e me fazer mudar de ideia sobre basicamente toda a minha vida.
“E tudo bem, sabe? Sinceramente, eu iria sem reclamar, sabendo que isso os deixaria felizes e se fosse deixá-los mais perto de entender que esse não é o caminho para mim, não importa o quanto eu tente.”
— Então tem outro problema - ele concluiu.
permitiu que os ombros cedessem à aceleração da gravidade e ao próprio cansaço.
— O retiro começa no dia trinta de novembro.
não precisava pensar muito para compreender o que cada palavra significava. Aquele havia sido o único assunto possível nos bastidores, aquecimentos e passagens de som por boas semanas. Todo mundo sabia; principalmente porque todos queriam estar em seu lugar.
— É o dia do show do Leon.
Ela moveu a cabeça, concordando:
— Nossa primeira chance de abrir um show de uma turnê de porte mundial, sabe? Uma oportunidade dessas não despenca do céu do dia para a noite e não volta a aparecer tão cedo. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.
— Na verdade…
— Nada de física, - ela reclamou. — Você sabe do que eu estou falando. Perder esse convite é basicamente assinar o atestado de óbito do meu grupo antes mesmo de ele poder ter alguma chance de existir de verdade.
— Eu entendo - ele respondeu. — E tenho certeza de que eles também vão entender.
soltou o ar com força pelas narinas.
— Você não conhece os meus pais. Eles nunca vão entender.
— Você tentou falar com eles sobre isso? Porque eu sei que não tenho o direito de falar sobre o que eu não sei, mas eles são seus pais e querem o melhor para você. Deve ter um jeito de falar com eles sobre isso.
— Eles nunca nem assistiram a um show meu, - ela contou, com um quê de decepção e dor pingando pelas bordas da voz. — Eu queria poder ter esse seu otimismo, mas a realidade não me dá muita esperança.
— Certo. Isso é ruim. Doloroso, na verdade.
— É - ela concordou. — Bastante. Esse tipo de coisa faz falta.
O rapaz aquiesceu vagarosamente.
— Eu imagino. Sinto muito. Mesmo.
deu de ombros.
— Não tem problema. Fazer o quê, não é mesmo? Eles que estão perdendo.
— Jogando fora a incrível chance de presenciar o show completo que é uma performance do Gemini.
— Eu sabia que você era muito meu fã.
— Eu reconheço a qualidade do conjunto da obra: luzes, coreografia, presença de palco… Você em si, sei lá. Acho que não. Mas você quebra bem o galho.
Ela encontrou um grão de arroz que havia caído ao lado do prato e arremessou-o no nariz dele, arrancando uma risada genuína do rapaz.
— Eu senti falta disso - ela admitiu.
— Do quê exatamente?
— De você não sendo um puta pé no saco.
— Posso dizer exatamente o mesmo de você.
Ela sorriu, limpando a boca uma última vez com o guardanapo disponível sobre a mesa.
— Mas, sério. Eu senti sua falta. Falta da gente.
— Eu também - ele concordou. — Era incrivelmente cansativo te detestar.
— Imagino a dificuldade de arranjar motivos para me criticar quando eu sou claramente um ser iluminado e repleto de bondade e beleza.
— E totalmente esvaziado de modéstia - ele completou. — Mas, falando em bondade e beleza, eu tenho um convite a te fazer.
— Agradeço, , mas eu não tenho interesse em concorrer como Miss Simpatia. Já superei essa fase. Acho desleal com as outras competidoras que não teriam chance alguma.
— Você não presta - ele brincou. — Nancy decidiu organizar um baile para animar as coisas por lá. Ela disse que faz questão da sua presença e de que não vai aceitar um não sob nenhuma circunstância.
sentiu o coração aquecendo levemente, enchendo-se com a sensação acolhedora de ter alguém que se importava sem pedir nada em troca. Sem nenhuma falsa obrigação sanguínea. Algumas pessoas pareciam entrar em nossas vidas e simplesmente apertar algum interruptorzinho que ilumina o caminho e cria conexões inegáveis e inexplicáveis, mas incrivelmente belas. Ela sentia o abraço ao seu redor só de imaginar as palavras da mulher ao amigo, fazendo tanta questão de sua presença. Se fosse dolorosamente sincera, não fazia ideia de qual havia sido a última vez em que alguém o havia feito.
— É claro que eu vou - garantiu. — Só me manda as informações certinhas por mensagem depois para eu poder colocar na agenda e me organizar.
Dividiram a conta, ainda comentando sobre toda a movimentação na casa de repouso e como a perspectiva de um baile tinha animado até os moradores mais reclusos. tinha se agitado com a ideia imediatamente ao perceber o furor entre todos e como uma mudança na rotina - e no contexto de vaidade do dia a dia - lhes faria bem. Aquela era a melhor ideia que ele ouvirá em muito tempo e não lhe chocava nem um pouco que tivesse partido de Nancy.
Caminharam, ainda conversando, até a casa de shows ligeiramente improvisada. e estavam andando de um lado para o outro do lado de fora, parando apenas para soltar um suspiro entre o alívio e a irritação ao ver o colega de banda.
— Por que você tem um celular se não vai atender? - reclamou.
— Eu nem estou atrasado - retrucou, confirmando no relógio sua justificativa.
— Mas não nos deu notícias! - continuou, interrompendo seu surto ao encontrar alguns passos atrás do amigo, apenas observando a situação. — Quando você chegou aí?
— Na mesma hora que o - ela respondeu. — A gente saiu para comer. Sinto muito por ter roubado o seu amigo. Esqueci que a saturação de oxigênio de vocês cai sem ele por perto.
— Foi assim que o desenvolveu asma - disse, recebendo um peteleco ardido na orelha. — E eu devo ter ficado psicótico porque com certeza é uma alucinação ver vocês dois juntos assim.
— Não sei o porquê da surpresa. Eu fui amiga dele antes de vocês - justificou. — Deveriam tomar cuidado para eu não roubá-lo de volta. Ele seria um ótimo membro para o Gemini.
riu.
— Eu ficaria muito bem naquelas meias arrastão - ele concordou.
— E, falando nisso, eu preciso entrar nelas nesse momento ou vão me matar - a garota disse. — Nos vemos depois, ok?
E, quando ela se aproximou com a boa vontade de se agarrar a algo que não suportaria perder novamente e a tentativa de ser um pouco mais simpática e afetuosa do que de costume, perdeu a própria noção de profundidade por uma milimétrica margem de erro que poderia muito bem ser culpa dele e daquela virada de rosto no último segundo.
— Ahn, foi sem querer - se apressou em explicar. — E eu tenho que ir.
Enquanto as botas dela batiam contra o piso para longe, ficou travado exatamente onde estava, sentindo uma formigação no canto da boca e uma aceleração de ritmo cardíaco que era basicamente qualquer coisa menos normal.
e passaram de um estado completamente boquiaberto a risadas estridentes e nem um pouco discretas.
— Isso foi…
— Totalmente sem querer - repetiu. — É isso. Não significa absolutamente nada.
— Aham - riu, arremessando o braço sobre os ombros do amigo. — Vai nessa.


🎤👻🎹



— Mas que droga - bufou antes de se jogar na cama.
— Falando sozinha?
Ela não precisou se mover para reconhecer a voz e os passos da mãe no corredor, aproximando-se da porta de seu quarto.
— Você está linda. Onde vai arrumada assim?
A garota passou a mão pela saia plissada e cheia de glitter, tirando o pó imaginário da peça.
— Baile na casa de repouso. Eu fiz amizade com um pessoal de lá e eles me convidaram por meio do .
— Eu estou tão feliz que vocês tenham finalmente se acertado. Lembro como você ficou devastada quando ele parou de falar com você.
— Não fiquei, não. Ele que perdeu.
— É, mas você só falava isso da boca para fora. Era eu quem te ouvia chorando baixinho ou colocando músicas de superação no volume máximo.
revirou os olhos, rindo do próprio drama adolescente.
— Se você contar isso para qualquer pessoa, eu vou jurar de pés juntos que você está mentindo. E depois comprar uma passagem para o Arkansas e sumir da sua vida.
A mais velha riu, enquanto colocava um cacho solto atrás da orelha da filha. Olhá-la naquela posição era quase como uma passagem expressa em uma máquina do tempo caseira diretamente para o seu tempo - quando era ela nervosa com um baile e achando que o vestido e a maquiagem não eram suficientes para causar a impressão necessária. Os sempre se sentiram encarregados de ser o centro das atenções. Devia ser alguma hereditariedade correndo em seus genes, como os cabelos volumosos cacheados e as covinhas estranhamente adoráveis quando sorriam.
— Ele ainda gosta de você?
— Mãe! - Sua voz atingiu um nível mais agudo do que a maior parte das notas cantadas na noite anterior. — Para de falar besteira.
— Vou aceitar isso como um sim.
revirou os olhos amplamente, sentindo uma coceira súbita na parte interna do pulso e um caloroso rubor em suas bochechas.
— Eu gosto muito dele - sua mãe falou. — Então vou deixar você terminar de se arrumar, ok? Divirtam-se! Mas não muito.
— Acho que eu estou pronta. Quanto mais eu ficar aqui, mais vou arranjar problemas inexistentes. Melhor ir de uma vez.
— Certo, então vamos. Eu te dou uma carona até lá.
A conversa não se prolongou durante o percurso. As duas aproveitaram em silêncio a companhia uma da outra, embaladas por um CD da Adele - o favorito de sua mãe, que não aceitava nenhuma ressalva ou contestação de que aquele era o maior álbum de todos os tempos.
Apesar de simples, momentos como aquele eram mais raros do que gostaria de admitir. Ela amava a mãe com todas as forças e jamais poderia ameaçar dizer o contrário sem saber da gigantesca mentira, mas era difícil tê-la para si por algumas dezenas de minutos sem que ela falasse sobre o seu trabalho ou o que imaginava para a filha. Isso quando ela não parava de ouvir qualquer coisa que acontecesse à sua volta enquanto roía as unhas da mão esquerda e mantinha o polegar direito correndo pelos e-mails exageradamente longos que os assessores e alguns clientes insistiam em mandar.
Às vezes era bom tê-la assim, sendo só a sua mãe para variar.
— Me liga quando for para vir te buscar - a mãe disse, estacionando em frente à casa de repouso incrivelmente decorada e iluminada com focos de LED.
— Não se preocupa. Eu vou dormir na casa da Callie depois. Ela mora aqui perto.
A mais velha moveu a cabeça em concordância.
— Certo. Mas se acontecer alguma coisa ou mudar de ideia, eu estarei acordada maratonando algum reality qualquer de confeitaria.
soltou uma risada leve, sabendo que era exatamente isso o que ela faria, apesar de ter omitido o detalhe da garrafa de vinho que abriria sozinha, aproveitando-se do fato de o marido estar em uma viagem de negócios - mais um motivo pelo qual ela se recusava a fazer com que a mãe dirigisse naquela noite.
— Tudo bem, mãe. Obrigada pela carona! Até amanhã!
— Tchau, florzinha. Divirta-se. Amo você!
E apesar das palavras terem saído de forma tão simples e natural, ela precisou respirar um pouco mais fundo a fim de saborear cada uma daquelas sílabas.
— Também te amo.
Sentindo a brisa leve da noite, se perguntou se deveria entrar logo e fugir da possibilidade de terminar a semana resfriada ou esperar algum sinal do universo de que ela deveria fazê-lo.
— Pretende passar a noite inteira aqui?
deu um pulo com o susto. estava rindo, poucos passos atrás dela.
— Você não está meio atrasado para quem é praticamente um associado?
— Bom, não é exatamente um clube. Mas eu cheguei há um tempinho. Só fui buscar uma gravata no carro. Me pediram para trazer algumas extras para o pessoal.
— Nunca pensei que você fizesse o tipo colecionador de gravatas.
— São do meu pai - ele se explicou, puxando um pouco o nó ao redor do próprio pescoço. — Eu odeio isso.
— Se serve de consolo, você fica bem com ela. Combina com… - Ela moveu as mãos, de forma desajeitada e distante sobre sua silhueta. — Tudo.
— Esse é o seu jeito de me fazer um elogio?
— Esse é o seu jeito de estragar o meu elogio?
gargalhou, colocando as mãos nos bolsos da calça que ainda tinha as marcas precisas dos pontos em que havia sido passada mais cedo.
— Você está linda. Nancy vai fazer questão de reforçar isso pelo menos umas vinte vezes.
— Meu ego agradece.
Eles não precisaram dar muitos passos adentro para que a organizadora e principal anfitriã aparecesse de braços abertos, equilibrando uma taça de martini com uma azeitona flutuante.
— Meu amor! Que bom que você veio! E preparada para destruir corações, pelo visto - Nancy brincou, puxando-a para um abraço apertado. — Vocês ficam muito bonitos juntos.
sentiu as bochechas queimando enquanto ria. Ao menos um deles conseguia ter a compostura necessária para continuar respirando normalmente ao levar aquilo como uma simples brincadeira. Bem que ele queria que esse alguém fosse ele.
— E você foi muito gentil de buscá-la em casa.
— Ah não, eu não fui - admitiu. — Nós nos esbarramos lá fora. Mas eu ofereci, eu juro.
— Eu me recuso a dar o meu endereço a ele - explicou. — Não quero ter que explicar para a minha mãe por que tem um peixe podre na nossa caixa de correio.
— Ele não faria uma coisa dessas - Nancy apontou, com um sorriso de divertimento brincando nos lábios. Existia algo de revigorante e, de certa forma, engraçado naquela rivalidade por hábito que nenhum dos dois sabia muito bem como deixar totalmente de lado sem criar um gigantesco estranhamento no modus operandi de suas vidas. A juventude era mesmo um período agradavelmente conflituoso para quem a assistia de camarote.
— Se fosse no mês passado, acho que eu faria, sim.
— Não duvido, porque eu faria o mesmo.
A mais velha riu, abraçando ambos de uma forma um pouco desconexa.
— Vocês são uma graça. Eu poderia passar a noite toda ouvindo vocês fingindo que não se adoram loucamente, mas preciso impedir certas pessoas de atingirem um nível de glicemia dez vezes maior do que o normal. Vou ficar igual um espantalho na mesa de doces um pouquinho. Vejo vocês mais tarde.
Os dois jovens ficaram sozinhos para trás, envoltos em uma timidez latente que parecia ter se esquecido de que se conheciam há tanto tempo. decidiu se livrar do abraço incômodo do silêncio e se prontificou a dar um passo para longe daquela névoa:
— Vou entregar a gravata. Eu já volto.
meneou a cabeça, sorrindo educadamente. Escondeu as mãos ao cruzar os braços, evitando perceber que elas provavelmente logo estariam começando a tremer levemente. Para alguém que era tão desinibida e cheia de atitude em cima de um palco, era de fazê-la se sentir um tanto idiota ainda se encontrar trilhando os ladrinhos da ansiedade em eventos sociais. Especialmente quando uma lembrança da solidão dos primeiros anos escolares saía dos confins de seu cérebro só para mostrar que ainda parecia familiar demais. Às vezes, ela pensava em todas as dezenas de coisas que trocaria apenas por uma dica de onde se encontrava o botão de ‘mudo’ de sua mente.
Encontrou um sofá em uma posição estratégica - longe o suficiente para não ser sufocada pelo movimento enquanto ainda tentava respirar, mas perto o suficiente para que não parecesse mal educada aos olhos dos mais velhos, como se estivesse se isolando - e se sentou, tirando o celular da bolsa apenas para se ocupar. Quase esqueceu que não era nenhuma religiosa fervorosa e deu graças aos deuses por ouvir a voz conhecida se aproximando em pouco tempo.
— Adivinha o que eu trouxe?
— Se não for comida, eu vou ficar muito decepcionada - respondeu.
abriu um sorriso.
— Que bom, porque é comida.
Ele se sentou ao seu lado, colocando entre eles um prato cheio de pãezinhos, croissants e pequenos canapés recheados.
— Você sabe exatamente como conquistar uma garota.
— Eu tento.
Ela continuou mastigando, evitando o olhar dele e qualquer possibilidade de se desesperar ao perceber que não era só uma brincadeira - ou se decepcionar ao notar que era tão somente isso.
quase se engasgou violentamente com o fragmento de massa folhada amanteigada que desceu pelo lado errado ao rir da música que começava a tocar. “Hey Ya” estourava os alto-falantes e seus tímpanos.
— Meu Deus, é a nossa música - disse, rindo também.
— A música vencedora do Show de Talentos da quinta série - ele concordou. — Quem diria que a gente conseguiria ter tanto estilo?
— Quem diria que você conseguiria. Todos já sabíamos que eu era um pequeno ícone.
— Bom, não posso falar por todos. Mas eu definitivamente sabia.
— Você está me mimando demais hoje. Suspeito.
— Só estou feliz de sermos amigos de novo.
Ela aquiesceu, sendo obrigada a concordar. Na verdade, estava sendo relativamente fácil resistir aos impulsos de discordar dele mesmo quando ele dissesse que o céu era azul ou que a água era molhada.
— Eu também sempre soube como você era talentoso.
— Não vale falar isso agora. Fica parecendo que é só educação para ser recíproco ao que eu disse antes.
— Mas não é - ela retrucou. — Estou sendo sincera.
— Não sei se posso confiar em você, . Não me parece uma atitude muito inteligente.
— E desde quando você é inteligente?
— Puta merda, você conseguiu piorar.
Os dois se encararam, desmanchando o jogo do olhar sério após segundos, gargalhando alto e chamando a atenção de alguns velhinhos, que passavam por eles com os sorrisos nostálgicos de quem via a si mesmo em um antigo álbum de fotografias.
— Mas é sério - ela retomou sua argumentação. — Eu estou falando a verdade. Para de ser chato e aceita logo a minha sinceridade.
— Bom, acho que eu sei como você pode provar que está sendo honesta.
— Pensa bem no que você vai falar. Não acho que vá pegar bem se eu precisar te matar no meio de todo mundo. Sem contar que tem testemunhas demais.
— A gente vai se apresentar amanhã - ele disse, ignorando a ameaça de morte. — Não é nada tão grande quanto uma turnê do Leon, mas é o nosso primeiro show só nosso para mais de cem pessoas. Seria bem legal se você fosse.
— Não sei. Vou ter que pensar. E checar a minha agenda. Infelizmente, eu sou uma pessoa muito requisitada, sabe? Vários compromissos.
revirou os olhos, puxando o prato com os últimos salgados para si.
— Acho que você está muito ocupada para comer também.
, devolve a minha comida!
— Não sei, não. Eu não tenho muito a ganhar com isso. A não ser que você diga aquelas palavrinhas mágicas.
— Por favor? Obrigada? Com licença? Abracadabra?
— Sabe, você é sempre um saco, mas está especialmente engraçadinha hoje.
riu, recebendo um olhar franzino de forçado desgosto.
— Tudo bem, tudo bem. Eu vou - ela se deu por vencida. — Mas é bom você fazer o melhor show da sua vida ou eu vou te processar e pedir ressarcimento do meu ingresso.
— É entrada franca.
— Então eu cobro por danos morais. Ou auditivos.
— Não sei se isso existe.
— Que bom que eu tenho anos de experiência em simulações de modelo das Nações Unidas para argumentar a meu favor.
— Você nem era tão boa assim.
— Eu era incrível - ela retrucou. — Por isso você virou um bebê chorão por me perder na sua equipe. Sabia que não podia me vencer.
— Engraçadinha e arrogante. Não sei como você não implode no seu próprio ego.
— Também não sei. Mas sei que você me ama mesmo assim.
— Fazer o quê? Eu tenho um péssimo gosto mesmo.
— Ah, aí estão vocês - Nancy apareceu, impedindo que a resposta um tanto mal criada de fosse verbalizada. — Venham dançar conosco. Aproveitem que seus joelhos não vão doer como o inferno amanhã cedo.
aceitou uma das mãos estendidas pela senhora, vendo replicando seu movimento na sequência.
— Minha mãe sempre me diz a mesma coisa - ele comentou.
— Uma mulher muito sábia, obviamente - Nancy respondeu, com um sorriso de canto. — Agora, vamos. Já peço desculpas pelas músicas que vocês talvez sejam novos demais para conhecer.
— Não se preocupa - a garota interveio. — A gente conhece a maioria. E sabe se divertir com qualquer coisa.
— As vantagens de ser musicista - soprou as palavras, sendo puxado para o meio da pista improvisada de dança.
As cadeiras tinham sido afastadas e não havia tapete ou qualquer superfície minimamente irregular que pudesse levar a lesões e acidentes - uma ideia que, honestamente, deveria ser universalizada a qualquer custo. Alguns andadores e bengalas iluminavam a pista de dança quando as luzes estroboscópicas giravam e miravam em sua direção. Os maiores hits de rock antigo e da era áurea da discoteca tocavam enquanto cada um ali tentava se divertir ao máximo.
e giravam, dando as mãos entre si e entre os moradores do local. Aprenderam com eles alguns passinhos - que aparentemente eram clássicos para além de sua época - e tentaram seguir as coreografias, imitando os seus movimentos. No fim das contas, eram suas bochechas os músculos que mais doíam de tanto rir do fiasco que era a coordenação motora de seus pés. Se ao menos fosse tão fácil guiá-los como era correr os dedos pelas cordas de uma guitarra ou baixo… Ao menos para eles. Provavelmente a maioria da população normal discordaria com veemência.
Mas era esse o ponto: eles tinham o seu próprio mundo. Compartilhavam talentos, gostos, passado e um sentimento crescente de silencioso conforto de estar com alguém que fazia as coisas parecerem simples em meio a um mundo já tão conturbado e complicado. E eles precisavam admitir: mesmo quando costumavam adorar se odiar, a adoração seria sempre a palavra-chave daquela oração.
— Eu preciso de um ar - ela avisou, abanando-se de forma praticamente inútil apenas com o movimento da articulação das mãos.
— Tem uns banquinhos lá fora - ele contou, colocando a mão na sua lombar. — Vem, eu te mostro.
sempre fora a representação básica da inteligência musical. Na escola, contudo, seu ponto forte era, indiscutivelmente, a área de humanas. Do resto ela preferia não se lembrar.
Por isso, quando sentiu um estranho arrepio correndo pelas costas, como se ele tivesse acabado de encontrar um interruptor em alguma de suas vértebras lombares, ela soube que havia algo químico, algo físico, algo biológico e, definitivamente, algo que ela não entendia. E nem precisava. Algumas coisas tinham sido feitas para serem experienciadas. Obrigada, John Locke, pelo empirismo.
A brisa noturna era agradável e refrescante, sem ser o suficiente para fazê-la abraçar a si mesma em um ato quase involuntário de auto preservação. se sentou primeiro e ela não pestanejou em segui-lo, disposta a tirar aqueles sapatos e deixar seus pés terem alguns instantes de paz.
— Cuidado para não esquecer os sapatos para trás depois, Cinderela - ele brincou.
— Essa Cinderela está cheia de calos e bolhas e arremessaria os sapatos do outro lado da rua agora mesmo se eles não tivessem saído do seu dinheiro suado. Sem contar que eu prefiro a Tiana.
— Desde que isso não faça de mim um sapo, por mim tudo bem.
ergueu as sobrancelhas, expressando seu choque frente à audácia daquela declaração: — E o que te faz acreditar que você realmente seria o príncipe do meu conto de fadas deturpado e prestes a ser processado pela Disney?
simplesmente deu de ombros.
— Qualquer ser humano teria sorte de me ter como príncipe. Eu só não me tornei um desses galãs hollywoodianos ainda porque quero trabalhar bem na minha música antes de ser conhecido por aí como só mais um rostinho bonito.
— Eu saio para tomar um ar e termino sem nem conseguir respirar. Seu ego está me asfixiando aos poucos.
— Só estou tentando me nivelar ao seu. Sabe como eu odeio perder para você.
— Deve ser difícil odiar tanto algo que você faz tanto e tão bem.
O rapaz gargalhou, incapaz de se sentir ofendido em meio àquelas tiradas que estavam arremessando no colo um do outro como se tivessem quatro anos e brincassem de batata quente pelo prazer insinuantemente sádico de ver o outro se queimando.
— Você tem uma risada gostosa - ela deixou escapar. — Devia se permitir rir mais, sem ser só com os seus amigos. É contagiante e as outras pessoas precisam de um pouco disso.
— Como vou dar um pouco de mim para os outros quando você me quer inteiro para você?
bufou teatralmente.
— Você não sabe mesmo receber um elogio, não é?
Ele balançou a cabeça.
— Acho que faltei à essa aula na escola.
— Que pena.
Depois de tanto tempo naquele baile de formatura com as músicas “só das antigas”, era quase um atentado histórico que aquele momento tivesse custado tanto a chegar. Contudo, quando a primeira música verdadeiramente lenta tocou - com uma voz que chegava distante à área externa, mas parecia ser de Elvis Presley -, se colocou instantaneamente de pé, fazendo uma reverência exagerada para soltar a pergunta mais clichê de todos os clichês:
— Me concede essa dança?
— Eu não vou colocar meus sapatos de volta.
— Melhor. Assim eu sofro menos quando você pisar no meu pé.
— Pois se prepare - ela respondeu, colocando-se em pé e tomando a mão dele na sua, guiando a outra o pescoço dele. — Que agora eu faço questão de pisar de propósito.
E, sinceramente, essa realmente era a sua intenção. Sustentar aquela provocação e provar que poderia estar certa era a maior gratificação que ela conhecia na vida. Até aquele momento.
Quando as mãos dele se abraçaram ao redor de sua cintura e seus corpos exploraram o território de uma proximidade até então desconhecida, ela não foi capaz de elaborar pensamentos coerentes o suficiente para planejar os passos errados que daria de propósito. Honestamente, sequer sabia se ainda sentia os seus pés. Talvez fossem as mãos dele as únicas verdadeiras responsáveis por seu corpo não ter simplesmente cedido e desabado.
Os olhos dele haviam grudado aos seus e ela tinha certeza de que poderia contar os riscos mais escuros de sua íris se conseguisse ter foco e atenção suficiente para a matemática enquanto tentava se lembrar de respirar feito uma pessoa normal e tentar fazer seu coração retornar ao ritmo certo.
não parecia lá muito diferente. Seu nervosismo ressonava por cada um dos poros de seu corpo, sendo impossível deixar mais claro o quanto aquela situação se aproximava do desconfortável, simplesmente pelo ímpeto preso na mente e na garganta e a ideia fixa que não se concretizava pela coragem que ainda faltava.
Mesmo perdida no momento, percebeu imediatamente quando ele engoliu em seco, como se empurrasse um pedaço de papelão goela abaixo:
— No que você está pensando?
— Que você está linda - ele disse, sentindo a voz oscilando com a vibração do próprio músculo cardíaco desesperado contra as costelas.
A garota sorriu de canto, abaixando o olhar apenas por uma fração mínima de segundos.
— Você já disse isso.
— E continua sendo verdade. - Respirou fundo, repetindo para si mesmo que aquele era o momento. Se ele tinha a intenção de dar qualquer passo a mais em seja lá o que estivesse acontecendo entre eles, esse era o momento. — E tem mais uma coisa.
Ela podia quase prever o que viria a seguir. Se estivessem em tanta sintonia quanto ela esperava, o desfecho da história seria aquilo pelo qual ela também vinha desenhando anseio.
— O quê?
— Estava me perguntando se seria muito estranho se eu te beijasse agora.
Se estivesse no hospital, conectada a aparelhos, talvez tivessem acionado o código azul e solicitado reanimação. Ela tinha certeza de que havia parado de respirar.
Foi um esforço encontrar o fôlego para soprar as únicas palavras que perpassavam sua mente: — Acho que só vamos saber se tentarmos.
Mesmo que provavelmente só o fizessem sob ação de um potente detector de mentiras, ambos teriam de admitir que estavam pensando há algum tempo sobre como seria aquele momento. E ele foi muito mais do que pudessem esperar, mesmo nas melhores de suas expectativas.
não sabia se acreditava em qualquer possível explicação criacionista para a existência humana e de todas as outras coisas. Mas, fosse Deus, genética, ciência ou qualquer outra coisa, a deles parecia ter sido criada propositalmente para se encaixar à do outro, como a peça do quebra-cabeça que havia caído e sido chutada sem querer para baixo do tapete e ficou lá tanto tempo até ser encontrada para completar um espaço que era só seu. E sempre fora.
— E então? - perguntou, recuperando o próprio fôlego enquanto colocava alguns fios do cabelo atrás da orelha, como se fosse nada. — Respondeu a sua pergunta?
sorriu, erguendo a mão apenas para deslizar o polegar carinhosamente sobre a bochecha dela, querendo se agarrar a qualquer confirmação de que ela era real e aquilo tudo não era apenas um sonho.
— Nem foi tão esquisito assim.
— Ah, bom saber - ela retrucou, caindo na risada em seguida. — Mas você tem que admitir que é meio estranho estarmos aqui hoje depois dos últimos anos.
moveu a cabeça para os lados com leveza, como se estivesse ponderando a situação da mesma forma que faz um cão de pequeno porte.
— Eu prefiro a gente desse jeito.
— Eu também.
— Ah, aí estão vocês - Nancy disse, colocando apenas a cabeça para fora da porta. — Venham, vamos cortar o bolo!
Os dois se entreolharam com estranhamente, antes de se sentar para bater os pequenos flocos de sujeira dos pés e calçar os sapatos novamente.
— É aniversário de alguém? - Ela perguntou, enquanto apertava as tiras ao redor dos tornozelos.
— Não que eu saiba. Mas com certeza é um dia para se comemorar.
Eles já chegaram no segundo verso da famigerada canção de ‘Parabéns’ e simplesmente se misturaram às demais vozes, mesmo sem saber ao certo o motivo da cantoria.
— De quem é o aniversário? - Otto perguntou, recebendo um tapa na mão por tentar puxar uma lasca de chocolate do bolo.
— Com certeza de várias pessoas no mundo - Nancy respondeu. — Mas é também o dia em que a documentação daqui foi regularizada, vários anos atrás. Então, acho que podemos considerar que é o aniversário do nosso lar também. E, no fim das contas, ninguém precisa de motivos para comer bolo.
Nem uma alma viva sequer ousaria contestá-la - ainda mais quando ela tinha toda a razão do mundo. Enquanto a senhora cortava o bolo, e se adiantaram, oferecendo-se para distribuir as fatias para todos os presentes.
Parecia um jogo de troca: um pedaço de bolo por um sorriso. Talvez quem mais estivesse ganhando eram eles, podendo compartilhar de tantos pequenos instantes de felicidade que significavam tanto, especialmente para aqueles que eram mais sozinhos, sem visitas da família, e acabavam restritos do contato com qualquer outro ser humano que não estivesse roncando alto ao seu lado no quarto ou nos sofás das salas de convivência.
— Muito obrigada pela ajuda - Nancy agradeceu. — Vocês são uns fofos.
— O bolo está incrível - disse, colocando a mão em frente à boca para evitar de parecer mal educado se pequenos flocos de massa ainda estivessem ali presentes.
— Está mesmo - confirmou. — Vocês compraram?
— Nada disso, querida. Temos uma ex-confeiteira de mão cheia entre nós. - Ela apontou para uma mulher que deveria ter uns 80 anos. — Nós ajudamos como pudemos, mas o talento é todo mérito dela.
— Será que ela vai achar ruim se eu pedir a receita?
— Não era você que explodiria uma cozinha antes de conseguir sequer fritar um ovo? - perguntou, arqueando a sobrancelha.
— Eu nunca disse que ia cozinhar. Eu posso só entregar a receita para alguém que não esteja predisposto a iniciar um acidente doméstico.
Nancy riu alto, balançando a cabeça.
— Duvido que ela vá se chatear. Pelo contrário, provavelmente vai ficar encantada com o interesse. E te dar mais umas dez outras receitas porque ela ama falar sobre bolos e tortas.
— Nesse caso, eu vou deixar a dieta para o ano que vem.
— E desde quando você precisa fazer dieta? - Nancy arqueou uma das sobrancelhas. — Vocês, jovens, às vezes encrencam com umas coisas tão absurdas em relação aos próprios corpos. Você é maravilhosa.
riu.
— Eu tento repetir isso a mim mesma todos os dias - admitiu. — Mas é mais um leve controle por questão de saúde mesmo. Meu histórico familiar de colesterol não é dos melhores.
— Certo. Se for por saúde, eu não faço uma intervenção enorme e nem invado sua casa para te obrigar a comer. Mas não exagere nas restrições. Você é jovem e linda. Saúde nunca foi sobre ter ossos aparentes.
— Prometo - a garota disse, com a mão direita sobre o peito.
— Vou levar os elogios a ela. Vamos torcer para que o coração esteja forte o suficiente para saber lidar com o carinho - Nancy brincou e acenou antes de se afastar.
se virou para , encontrando-o com um sorriso nem um pouco discreto.
— O que foi? Tem bolo na minha cara?
Ele riu, meneando a cabeça de leve.
— Eu amo esse lugar, sabe? Essas pessoas já fazem parte da minha vida há tanto tempo que são basicamente parte da família mesmo. E é muito legal ver você tão confortável e próxima deles.
Ela sorriu também, sabendo que era impossível não entender exatamente o que ele queria dizer quando falava do apego que tinha por todos ali. Era impossível não sentir o afeto crescente dentro do próprio peito ao ver cada um deles.
— Bom, não é com a melhor das intenções - admitiu. — Eu quero mesmo roubar a sua família para mim.
— Não acho que funcione assim.
— Bom, nós também não funcionávamos e olhe só para a gente agora.
O rapaz puxou a mão dela, entrelaçando os seus dedos em um contato acolhedor. sentiu um pingo de raiva do universo por ter feito com que tudo entre eles simplesmente se encaixasse tão bem. Era um golpe baixo e injusto demais.
— Acho que isso significa que você é obrigada a ir ver o nosso show.
A garota revirou os olhos teatralmente, ainda indisposta a tornar as coisas entre eles totalmente fáceis. Não estava a fim de deixar que aquelas pequenas faíscas se apagassem e minassem o que era basicamente a marca registrada do relacionamento - será que agora ela realmente poderia usar aquela palavra sem atrelar o que tinham a algum clichê de amor e ódio na nota de rodapé? - deles.
— Que bom que você sabe que é uma obrigação. Não existe boa vontade alguma envolvida.
— Duvido. Você definitivamente quer me ver de jaqueta de couro tocando. Eu fico sexy. Posso até arremessar minha palheta para você.
— Meu Deus, eu não sei se serei capaz de sobreviver a esse momento. A groupie em mim nunca vai conseguir superar.
— É engraçado te imaginar como groupie.
— É que eu não sou groupie; eu tenho groupies. Várias delas. Eu sou irresistível.
— Não posso discordar.
— Acho bom mesmo.
E eles dançaram mais, conversaram mais, riram muito mais e ainda encontraram, em meio a tudo isso, tempo para confirmar se era real aquela sensação de queda livre no estômago toda vez em que os seus lábios decidiam se tocar mais uma vez.
— Eu poderia fazer isso a noite toda - comentou, risonho, milésimos de segundos antes de lhe roubar outro selinho.
mordeu uma pelinha dos lábios, estreitando os olhos para ele.
— Acho que nós meio que já estamos fazendo isso.
— Você precisa mesmo discordar de mim sempre, não é?
Ela deu de ombros.
— A necessidade de sempre ter a última palavra meio que corre na genética da minha família.
Como se tivesse acertado algum gatilho imaginário flutuando sobre a conturbada maré do universo, seu celular vibrou com uma mensagem.
— E falando nisso… - ela brincou, vendo o nome da mãe brilhando na tela. — Deixa eu ver o que ela quer.
Acabaram se sentando nas primeiras cadeiras livres que encontraram pelo caminho, torcendo para que os donos da mesa tivessem decidido ir dançar um pouquinho para que pudessem descansar os próprios pés.
leu a mensagem, sendo logo invadida por um certo estranhamento. Com as sobrancelhas franzidas ao apertar os olhos e uma pequena bufada de ar pelas narinas, a garota precisou reler o curto conteúdo mais duas vezes antes de se ver obrigada a simplesmente se conformar.
— Que esquisito - murmurou. — Ela está perguntando se eu encomendei alguma coisa. Parece que chegou um envelope lá com meu nome.
— E encomendou?
— Não. Muito menos algo que caiba em um envelope.
— Vai ver é uma multa por direção agressiva.
— Eu sou um exemplo no trânsito - ela rebateu, com um sorrisinho. — Principalmente quando estou a pé.
— Bom, sempre tem uma primeira vez.
— Ou terceira - acrescentou entre os dentes. — Bom, que seja. Vou falar para ela abrir. Melhor do que me deixar ansiosa pelo resto da noite.
— E eu vou pegar uma água para mim. Quer também?
A garota assentiu, agradecendo, e começou a digitar a mensagem para a mãe. A resposta veio rapidamente:

“Já abri.”

Os poucos segundos necessários até que a resposta por imagem chegasse foram repletos da estranha angústia da espera. odiava senti-la mesmo em momentos e situações que envolviam coisas tão pequenas como esta, mas simplesmente não conseguia evitar. Talvez fosse hora de voltar a falar sobre o assunto na terapia.
Ao usar o indicador e o polegar para ampliar a imagem, ela quase derrubou a cadeira e levou consigo toda a porcelana que repousava sobre a toalha de mesa.

“Pelo menos agora faz sentido que seja um envelope.”

A resposta da mãe mal teve tempo de ser absorvida por seu cérebro, ainda concentrado demais em reunir o máximo das escassas peças do quebra-cabeça à sua frente, buscando alguma resposta que fizesse o mínimo sentido.
Por que raios dois ingressos para o show do Leon - com abertura especial de Gemini, como eles deixavam tão claro - tinham sido entregues à sua porta?
— Que cara é essa? - A voz de finalmente a distraiu, enquanto ele colocava os dois copos de água sobre a mesa. — Parece até que você viu um fantasma.
virou a tela do celular para ele, mostrando a mesma fotografia ligeiramente trêmula que acabara de ver.
— Ah, era isso! Que bom que eles chegaram - o rapaz comentou, claramente aliviado. — Fiquei morrendo de medo do vendedor ter me enrolado. Ele não soou exatamente muito confiável ao telefone.
— Que história é essa, ? Foi você quem comprou isso?
Ele balançou a cabeça em confirmação.
— Sei como te faz falta a presença deles nesse tipo de coisa. Pensei em dar uma forcinha, sabe? Com os ingressos já comprados eles não vão poder recusar e nem ficar inventando desculpas.
Ela precisou inspirar com toda a sua força e dar o melhor de seu trabalho muscular para esvaziar os pulmões algumas vezes antes de conseguir responder de uma forma que não saísse de sua boca como um berro.
— Mas que merda você tem na sua cabeça?
fez uma careta.
— Como assim? Eu só queria fazer uma coisa legal.
— Legal, ? Legal? - Sua voz se tornou mais aguda do que o normal. — Meus pais ainda não desistiram de me mandar para o retiro, acampamento ou seja lá qual o nome daquela bosta. Isso aqui - ela enfatizou, mostrando o celular — só vai servir para eles assumirem que é algum tipo de provocação e fazerem o possível para estragar tudo. Como sempre.
, pelo amor de Deus, eles são seus pais. Eles te amam e querem te ver feliz. Eles vão entender.
— Você precisa parar de achar que sabe tudo sobre mim ou sobre nós. Eu sinto muito se a minha família não se encaixa nesse estereótipo feliz e funcional de comercial de margarina que você tanto ama perpetuar como verdade.
— Eu só estou dizendo que eles vão te apoiar.
— E eu estou dizendo que já é hora de você cuidar da sua própria vida. - Ela esfregou os olhos com força, ignorando o incômodo e a possibilidade de ter empurrado o rímel para dentro e conquistado o que, em alguns instantes, viraria uma linda irritação ocular. Estava de pé e andando em direção à porta antes de descobrir. — Eu não acredito que você fez isso.
se levantou rapidamente, seguindo-a.
, para com isso. Espera. Eu só queria ajudar. Não é possível que seja algo tão ruim assim.
Na calçada, ela deu meia volta, olhando para ele com os olhos marejados e aflitos, obnubilados com todas as ideias maquiavélicas de coisas que ela esperava que não lhe acertassem nos próximos dias, mas também não poria as mãos no fogo para delas duvidar.
— Volta para a sua festa. Você já fez demais por hoje.
, não - ele tentou impedi-la. — Volta aqui, por favor. Vamos conversar.
— Eu não tenho mais palavras para te dizer - ela respondeu, fungando. — E, por favor, não me segue. Não piora mais as coisas.
Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, ela se afastou a passos rápidos, levando consigo tudo o que pareciam ter começado a construir e que agora se esfarelava, virando parte do orvalho da noite que, pela manhã, abraça seu fim.


🎤👻🎹



— Cara, senta um pouco. Por favor - pediu.
parou subitamente com sua sequência de voltas em pequenos círculos pelo backstage. A alça de apoio do baixo balançava sobre o chão, rabiscando rastros invisíveis.
— Vai dar tudo certo - disse.
O amigo soltou uma risada irônica anasalada.
— É, eu também achava isso. Daí me mandaram cuidar da minha vida.
— Eu sei e sei que tudo isso é uma grande merda - respondeu. — Mas também sei que logo vocês dois vão acabar se acertando. Ela só estava com raiva e tudo ainda está muito recente. Logo ela vai perceber que você fez tudo pensando no bem dela.
— Ou vai levar um ressentimento horrível de mim para o resto da vida, como se eu tivesse sabotado a grande oportunidade da vida dela. Parece a opção mais provável.
, tem vinte e quatro horas que tudo isso aconteceu. Vocês vão ter tempo de sobra para se acertarem. Agora, vê se tira essa cara de bunda e não estraga a sua grande oportunidade, ok?
— A nossa - corrigiu , recebendo um olhar afiado de . — Que foi? É verdade.
desbloqueou a tela do próprio celular, encontrando todas as mensagens que sequer tinham sido entregues.
— Bom, ela não vem mesmo - verbalizou na tentativa de se convencer e aceitar. — Problema dela. Vai perder o melhor show que a Sunset Curve já fez.
e vibraram, levantando para abraçar o amigo.
— É esse o espírito! Agora, vamos detonar.
Nenhum deles havia mentido ou sequer exagerado em suas melhores expectativas. Aquele tinha sido, sem um resquício sequer de dúvidas, o melhor show que a Sunset Curve já havia feito e absolutamente todos ali presentes concordariam com o estabelecimento dessa afirmação. O sucesso daquela noite era quase tão irrefutável quanto uma descoberta científica ou um axioma e o som de cada acorde estaria amarrado aos giros e sulcos do cérebro de todos que haviam se deixado levar pela música.
E - o mais importante de tudo - eles haviam se divertido como nunca. Estavam suados ao ponto de estarem nojentos e ainda rindo para o nada, distribuindo a graça de quem sabe que acabou de viver um daqueles grandes momentos únicos da vida.
— Sabe o que essa coisa toda me fez perceber? - perguntou.
— Que nós somos o maior grupo a pisar na Terra? - sugeriu.
— Isso também - o vocalista principal concordou. — E que eu estou com uma fome absurda.
concordou. logo percebeu o estalo de uma lembrança:
— Tem aquele carrinho de cachorro-quente logo aqui na frente. É basicamente obrigação comer um depois do show.
— Ou uns - cantarolou.
— Vou comprar - anunciou. — Três do maior que eles tiverem.
O trabalho de ‘fast-food’ fazia jus ao seu nome, de forma que demorou muito pouco para que estivessem os três sentados, lado a lado, abocanhando os pães.
torceu o nariz de leve.
— Tem alguma coisa com um gosto meio estranho ou é impressão minha?
— É impressão sua - rebateu. — Deve ser seu paladar infantil falando de novo.
— Isso é cachorro-quente, - interveio. — Isso já é paladar infantil.
Rindo dos comentários, eles continuaram a comer, finalizando a melhor e última noite de suas vidas.


🎤👻🎹



— Mas que merda foi essa?
esfregou os olhos, tentando se situar e entender porque tinha aquela sensação estranha de ter despencado se tinha praticamente certeza de que não tinham caído um centímetro sequer.
— E que lugar é esse? - perguntou, obrigando os amigos a encararem as paredes em tom de gelo e a mobília clara demais para a saúde dos próprios olhos.
— Ah, finalmente! - Um homem alto de cabelos grisalhos disse, surgindo de repente. — Vocês demoraram à beça.
— E quem é você? - questionou, estreitando os olhos.
— Ah, eu sou o recepcionista do Outro Lado, tipo um porteiro ou acolhedor, seja lá como vocês preferirem. Mas pode me chamar de Mitch.
— Ahn… Ok. E onde exatamente nós estamos, Mitch? Isso é algum tipo de sequestro? - desatou a falar. — Porque eu já vou avisando que a minha família não tem dinheiro algum para o resgate.
— Vocês não entenderam ainda o que aconteceu - o homem disse, como se tivesse acabado de se dar conta disso. — Certo, nós precisamos conversar.
— Sobre o quê exatamente?
— Sobre a morte de vocês.
começou a rir; gargalhar. Estava se divertindo com o som da própria risada até perceber que era o único da sala a fazê-lo.
— Que foi? Eu achei uma piada engraçada.
— Não é uma piada - Mitch respondeu. — Infelizmente, é só a verdade. Vocês faleceram e agora estão aqui, no Outro Lado.
— Isso não faz nenhum sentido. Nós sempre fomos saudáveis e estávamos só tocando, nada aconteceu…
— A não ser por aquele cachorro-quente que, claramente, estava estragado - o porteiro apontou. — Boa percepção, . Pena que não impediu nenhum de vocês de continuar. Nem de comprar mais um depois.
— Isso só pode ser algum tipo de pegadinha - cuspiu as palavras. — Ninguém morre assim. É absolutamente o jeito mais patético possível de morrer.
— É raro mesmo - Mitch concordou. — Fazia muito tempo que não acontecia algo do tipo. Até vocês três.
— E o que a gente faz agora? - questionou, sendo o único adepto ao início do processo de conformismo e aceitação.
— Como eu disse, esse é o Outro Lado. Bom, na verdade, é a entrada do Outro Lado. Vocês vão acessá-lo de fato quando cruzarem as suas portas.
O homem, então, apontou para a parede às costas dele, de onde imensas portas brancas se erguiam de forma imponente e um tanto ameaçadora.
— Por que duas portas? - perguntou. — Uma é lá para cima e a outra lá para baixo? Essa parada existe mesmo?
Mitch riu, acostumado de tanto ter ouvido aquele tipo de questionamento durante os extensos milênios que ali passara.
— Cada um tem seu destino traçado a partir do que fez na Terra. Não é uma porta para cada lugar, é uma porta para cada pessoa.
— Mas só tem duas - repetiu. — E eu posso até ser ruim de matemática, mas tenho certeza de que nós somos três.
— Bom, essa é a parte complicada. Para avançar ao Outro Lado, você tem que ter finalizado todas as suas pendências em vida. Um de vocês não fez isso.
Os três se entreolharam, invadidos pelo receio de se descobrirem o motivo daquilo e, talvez, ainda mais preocupados se isso significasse que um de seus melhores amigos fosse ficar preso em algum tipo de limbo bizarro pós-vida. Nenhum deles descansaria em paz, como diziam por aí, se não soubessem que estavam todos bem.
- Mitch o chamou, fazendo seu coração quase parar. De novo. — Você precisa completar sua última missão antes de ir.
— Que missão?
O homem o olhou no fundo dos olhos, como se pudesse acessar sua alma - talvez agora ele fosse só alma, afinal. Ele não precisou de palavras novas para entender a já dita: completar. Algo iniciado e não finalizado:
- ele sussurrou.
O acolhedor aquiesceu.
— Ela ficou completamente devastada quando recebeu a notícia da sua morte. Ela te amava, sabe? E não consegue se perdoar pela forma como tudo acabou entre vocês. Na verdade, ela está se culpando pelo fim.
— Não é culpa dela. Isso não tem nada a ver com ela.
— Eu sei disso. Você também sabe. Mas não é assim que o luto é elaborado. Todo mundo passa pela fase da culpa. É normal. O problema é que a dela já está passando dos limites do que ainda pode ser considerado saudável. E ela precisa de você para poder seguir com a própria vida.
— E o que eu faço?
Com um gesto digno das maiores tecnologias de CGI e efeitos especiais cinematográficos, Mitch abriu uma tela no meio da sala, indicando algo que mais parecia uma lousa de investigação criminal, abarrotada de pequenas fotos, informações e muitas linhas e setas ligando todos ao estranho emaranhado que era a vida.
— Vocês não são mais seres corpóreos - começou a explicar. — Não podem tocar nada e nem ninguém e nem falar com as pessoas.
— E como eu vou fazer qualquer coisa então? É impossível.
— Não se você tiver uma ajudinha.
Com palmas teatrais, a imagem de uma garota de cabelos cacheados, sentada de pernas cruzadas, foi projetada em sua frente. Em alguns segundos, ela abriu os olhos, encarando-os.
— Essa é a Julie - Mitch prosseguiu. — Ela pode te ajudar.
— Ela morreu também?
A garota riu, colocando-se de pé sobre os all-stars surrados de cano médio.
— Não, bobo. Eu estou bem viva.
— Então como é que ela vê a gente? - perguntou, totalmente confuso.
— Algumas pessoas têm esse tipo de “dom”. Julie tem uma conexão muito forte com o Outro Lado e virou nossa ajudante em missões inacabadas pela área de vocês.
— Vocês eram da Sunset Curve, não eram? Eu gostava da música de vocês. Vocês eram muito bons.
— É, eu gostei dela - comentou, oferecendo uma piscadinha charmosa à garota que apenas revirou os olhos.
— Será que a gente pode parar com esse flerte do além e voltar a falar de mim? - pediu. — Antes que eu fique preso aqui.
— Você vai ser enviado para a casa dos Molina, onde vai poder planejar os próximos passos com a Julie - Mitch disse. — Ela só vai fazer a comunicação humana que você não pode mais. Tudo ainda tem que partir de você para isso dar certo.
— Certo, certo. Sem pressão.
— Você vai se sair bem - o porteiro garantiu. não sabia se confiava muito no seu otimismo.
— A gente pode ir junto? - pediu.
— Infelizmente, não. Vocês precisam se preparar para fazer a passagem. E a missão dele é individual.
— Acho que isso é um adeus então - comentou, sorrindo para tentar conter as lágrimas que já pipocavam nos olhos.
— É só um até logo - disse, segurando as próprias lágrimas. — A gente se vê do lado de lá.
Os três se abraçaram com força, em uma longa despedida.
— Eu amo muito vocês - falou e se virou para . — Volta logo.
— Pode deixar. Só tentem não destruir tudo antes de eu chegar.
— Não prometo nada.
E em um clarão, tudo sumiu.


🎤👻🎹



— Isso é absolutamente bizarro.
— Você pretende continuar por muito tempo ainda?
Julie estava sentada entre as coloridas almofadas da própria cama enquanto insistia em atravessar os objetos e as paredes.
— Desculpa. — Ele parou finalmente. — Ainda estou tentando me acostumar com esse lance de ser um… Ahn…
— Fantasma?
— É. Isso.
— Relaxa. Você vai ter tempo para se situar.
— É? Você sabe como funciona lá do Outro Lado? Como são as coisas?
— Não posso falar. Assinei um contrato que me proíbe de dar spoilers.
— Sério?
— Não. - Julie deu de ombros. — Mas são coisas que você precisa fazer sozinho.
— Você fala como se tivesse umas sete vezes a idade que realmente tem.
Ela riu.
— São coisas que a minha mãe falava. Ela era uma mulher bem sábia.
— Sinto muito por ela.
— Tudo bem. Esse tipo de coisa acontece, como você percebeu.
— E você consegue se comunicar com ela também?
— Não como estou fazendo com você agora - ela explicou. — Mas existem alguns sinais. Eu consigo sentir que ela está aqui. Sempre está comigo de alguma forma.
assentiu, interrompendo o próprio impulso de querer abraçá-la ao se lembrar de que provavelmente terminaria a atravessando e isso parecia algo bem pouco educado de se fazer.
— Quer começar me contando sobre a sua garota?
Ele respirou fundo, ainda incerto sobre a necessidade para além da expressividade que isso tinha depois da vida.
— Ela é incrível. Se você ouviu nossas músicas, provavelmente ouviu as dela também. Ela é vocalista da banda Gemini. E, por mais que eu tenha me negado a admitir por muito tempo, elas são muito boas mesmo.
— Eu devo ter ouvido uma coisa ou outra.
— E ela é… Como eu posso dizer isso?
— Tudo bem, eu já tenho idade para ouvir sacanagem.
Julie riu ao vê-lo arregalando os olhos em choque.
— Não tem nada de sacanagem, garota. É que eu acho que não consigo encontrar palavras suficientes para te fazer entender como ela é. Ela é linda, talentosa, tem um coração enorme, é irritante para caramba e estranhamente engraçada enquanto está te dando várias mini patadas.
— Vocês estavam juntos?
Ele balançou a cabeça.
— Acabou antes mesmo que pudesse começar.
— Eu sinto muito que vocês não tenham tido uma chance de verdade.
— É, eu também. Mas é essa a realidade e agora tudo o que eu quero é que ela seja feliz. Ela não merece perder um segundo sequer do caminho brilhante que tem pela frente por minha causa.
— Me conta o que aconteceu - ela pediu.
começou a falar sobre tudo: os desentendimentos de anos de mal entendido, o primeiro dia com os idosos e como tudo tinha mudado ali, o pequeno quase-encontro e a noite do baile - como tudo tinha sido mágico e incrível até não ser mais nada além do retorno à estaca zero.
— Você só queria ajudar.
— Eu sei - ele disse, pesaroso. — Ela tem uma história muito complicada com a família. Eu me precipitei. Mas foi com a melhor das intenções, sem dúvida. Sequer passou pela minha cabeça que eu poderia estar estragando tudo.
— Tenho certeza de que vocês acabariam se acertando se tivessem tempo.
— Mas infelizmente não tivemos. E agora eu preciso que ela saiba disso e de que eu fui embora com nada além de gratidão por cada segundo que ainda consegui passar ao seu lado.
Julie lhe ofereceu um sorriso terno e acolhedor.
— E como vamos fazer isso?
— Bom, o Mitch disse que eu tinha uma missão inacabada. Então acho que isso envolve mais gente do que só a .


🎤👻🎹



— Qual é o seu nome mesmo?
Julie respirou fundo, tentando ignorar o fantasma andando de um lado para o outro atrás de suas costas, parecendo prestes a explodir de nervosismo.
— Julie Molina, senhora .
— Ah, sim. Entre, entre. Vou chamar a .
correu para seguir a garota, ignorando o fato de que poderia ter atravessado a porta caso se atrasasse por uma fração de segundos. Ainda se sentia invasivo demais quando entrava nos lugares assim.
A mãe da garota subiu as escadas rapidamente, encaminhando-se até o quarto que passara a maior parte dos últimos dias completamente ocupado e bagunçado, raramente vendo uma janela aberta por mais de dez minutos.
, querida! Você tem visita.
Ela se apertou mais sob os cobertores, encaixando-se melhor no travesseiro.
— Pede para vir outra hora. Não estou me sentindo bem.
— É só isso que você diz há dias.
— Porque é essa a verdade.
A mais velha respirou fundo, erguendo a mão até a testa da filha, em um carinho simultaneamente desconexo e preocupado, de quem sabia que deveria ter feito isso mais vezes durante os anos que se passaram.
— Você não pode ficar presa nessa cama para sempre. Precisa voltar a viver.
— Eu estou vivendo. Só não estou exatamente no clima de receber visitas, caso você não tenha percebido.
— Você nem sabe quem é.
— Não faz diferença.
— É uma amiga do - a mãe contou mesmo assim. — Ela disse que ele deixou algo para você.
se sentou tão depressa que sentiu na própria hipotensão o arrependimento de, mais uma vez, ter decidido pular o café da manhã. Precisou piscar algumas vezes para afastar a tontura e se lembrar de que estava viva, independentemente do custo disso.
— Que amiga?
— O nome dela é Julie. Ela está esperando lá embaixo. Talvez seja bom para você falar com ela.
Ela não sabia se concordava. Também não sabia quem venceria aquele duelo: a curiosidade de saber o que lhe havia deixado ou o receio de descobrir ser algo prestes a riscar o último fósforo e atear a derradeira faísca de culpa e dor que assolavam o seu peito sem pudor.
— Não sei se é a melhor ideia. Eu estou bem e…
— Bem? Você chama isso de bem, ? Você não sai dessa cama para praticamente nada. Suas amigas já vieram aqui várias vezes e você simplesmente as deixa esperando até que elas desistam e vão embora. Você não comeu nem o seu almoço favorito. Eu não sei qual é a ideia que você tem de bem estar, mas posso te garantir que isso não está certo.
— Eu não quero piorar as coisas - ela sussurrou, como uma confissão a si própria.
A mais velha tomou as mãos da filha, repousando-as sobre seu colo. Queria poder tomar um pouco da dor dela para si. Queria poder compartilhar um pedacinho que fosse de seu sofrimento para que o fardo fosse menos pesado de ser carregado.
— Acho que vale a pena arriscar. Por ele, sim; mas principalmente por você.
levou alguns segundos para assentir e tomar as forças necessárias para se arrastar até o banheiro, lavar o rosto, escovar os dentes, prender os cabelos em um coque e trocar a roupa.
Desceu as escadas com cuidado, sem energia suficiente para se apressar ou atenção suficiente que lhe garantisse que não despencaria no próximo degrau. Ao ver a garota sentada em seu sofá, estreitou os olhos, tentando se lembrar se a conhecia.
— Julie?
— Ah, oi! Você deve ser a . Muito prazer em conhecê-la.
— Igualmente. Minha mãe disse que você é - “era”, corrigiu-se mentalmente — amiga do , mas acho que não nos conhecemos.
— Ah, não. Não mesmo. - A garota deu uma risadinha contida. — Mas ele falava muito sobre você, então eu quase considero que te conheço um pouquinho.
— Aquele fofoqueiro - brincou, fazendo com que fungasse as próprias lágrimas e sorrisse para ela, mesmo que ela não pudesse vê-lo. — Ele te contou sobre como eu destruí a vida dele?
Julie balançou a cabeça.
— Não. Ele só falou de como você era a mulher mais incrível e talentosa de todas.
pigarreou às suas costas, lembrando-a de que havia mais uma parte:
— Ah, e a pior dançarina. Palavras dele.
não conseguiu conter a risada, percebendo que movimentar as bochechas tinha feito com que algumas lágrimas rolassem por seu rosto.
— Eu sinto tanto a falta dele - admitiu, soluçando. — Eu estraguei tudo.
— Duvido - Julie respondeu. — Ele te adorava. Você e a música eram fortes combatentes na disputa de quem mais o fazia feliz.
— Obrigada pelas palavras de conforto. Eu só queria que fosse verdade.
fechou os olhos, enquanto as lágrimas despencavam por sua face. Esperava que lágrimas de fantasma também não fossem corpóreas, ou seria muito difícil explicar os pingos sobre o carpete.
Ele só queria poder ter um segundo; uma chance para abraçá-la e dizer que tudo estava bem. Que ele estava bem. E só queria que ela também pudesse ficar. Deus, por que aquilo tudo era tão difícil?
— Você sabia que o tinha um diário? - Julie perguntou, recebendo uma careta em resposta.
— Não fazia ideia.
— Porque é mentira - o rapaz disse, sabendo que ela não o ouviria. — Mas eu teria um por você.
— Ele escreveu um pouco sobre você nos últimos dias dele - a garota continuou, tirando da bolsa uma folha dobrada há pouco retirada da impressora.
— Um diário digitado? Meu Deus, ele era mais preguiçoso do que eu esperava.
— Bom, você sabe como ele era - Julie respondeu. — Você quer ler?
sentiu o coração ser espetado como se alguém estivesse tentando atravessá-lo com uma coleção de agulhas de acupuntura. Não sabia se conseguiria ler uma palavra sequer sem desmanchar o frágil papel em suas próprias lágrimas.
— Eu não sei se… - Soluçou. — Não sei se eu consigo.
— Posso ler para você, se preferir - Julie sugeriu.
— Eu vou deixar vocês a sós - a senhora disse, pronta para se afastar.
— Acho que a senhora também vai querer ouvir.
As duas se entreolharam, sentando-se. Mãe e filha entrelaçaram as mãos, buscando conforto uma na outra.
respirou profundamente, engolindo o choro, e deixou que Julie prosseguisse:
é o ser mais irritantemente talentoso de todo o universo. É sério. É irritante mesmo.
A garota riu, já se debulhando em meio ao pranto.
— Ela compõe, canta, produz, dança e ainda encontra tempo para ser uma pessoa incrível e não só uma artista maravilhosa.
“Ela é muito melhor do que eu jamais poderei ser. E, do jeitinho meio rude e ácido dela, ela me deu todo o amor e a alegria que eu poderia ter pedido na vida. Ela me fez a pessoa mais feliz do mundo em pouco tempo e talvez nunca saiba o quanto eu sou grato pela oportunidade de fazer parte do seu mundo. Eu nunca poderia compensá-la por ser a minha pessoa favorita do mundo.
Mas eu tentei ser pelo menos um por cento de tudo o que ela era para mim. Tentei mesmo.
Eu comprei dois ingressos para o show do Leon. Na verdade, são três se eu contar com o meu. Mas foram dois para cada um dos pais dela. Eu sei que eles a amam incondicionalmente. Sei disso porque eles são seus pais e porque, mesmo que não fossem, seria impossível não amá-la. Só que, mesmo com tanto amor, também sei que eles precisam que alguém os dê um empurrãozinho para entenderem a artista incrível e o futuro brilhante que a filha deles tem.
E ela poderia, sim, ser uma cientista, médica, engenheira ou qualquer outra coisa. Ela é tão incrivelmente competente e dedicada que cumpriria qualquer um desses papéis com maestria. Mas eu sei que nenhum deles jamais lhe daria a adrenalina de subir em um palco ou a satisfação de fazer o que ama e ver como seu amor consegue atingir várias pessoas por meio de algo tão lindo e único quanto a arte.
Comprei esses ingressos pensando que talvez isso os fizesse dar o braço a torcer e a assistir. Duvido que eles seriam capazes de colocar qualquer outra pedra em seu caminho se apenas dessem uma chance de se permitirem descobrir o talento incrível e inexplicável que têm sob o seu teto. Ela é muito mais do que eles são capazes de perceber. Espero que um dia eles percebam isso. De preferência nesse show, que significa tanto para ela.”
À essa altura, a senhora já estava quase chorando tanto quanto a filha.
— Mas eu abri essa página para falar sobre ela - Julie prosseguiu. — E sobre como cada dia ao seu lado consegue valer a pena. Sim, mesmo aqueles em que a gente se odiava e estava prestes a tacar ovos na janela da casa do outro. Mas principalmente aqueles em que podíamos apenas ser e e sermos felizes por isso. Felizes juntos. Felizes com a nossa música que está entre as melhores coisas que somos capazes de fazer e espero que nunca paremos.
“Eu não posso prever o futuro e não faço ideia do que ele vai nos trazer. Mas sei que, independentemente do que aconteça, tudo o que levarei no meu coração por ela, para além dessa vida, será amor.
Não importa o quanto ela vai achar isso tosco e clichê. É a verdade. E ela sabe que sim, porque eu sempre fui um péssimo mentiroso.
Então, se um dia ela invadir meu computador e tiver acesso a isso aqui, espero que ela saiba que cada uma dessas palavras foi escrita com toda a sinceridade do mundo. E gratidão.
Obrigado por ter sido a minha melhor amiga e melhor inimiga também. E por ter me ensinado várias das coisas mais bonitas da vida. Ela vale a pena por você.”
sorriu para Julie em agradecimento, que moveu a cabeça em singela concordância. se levantou do sofá rapidamente e a apertou nos braços.
— Você não tem ideia de como eu precisava ouvir isso. - Sua voz era embargada. — Obrigada. Do fundo do coração.
— Imagina - Julie respondeu. — Achei que era importante que você soubesse. Ele tinha muito orgulho de você e, onde quer que esteja, sei que sempre terá. O que você pode fazer agora, por ele e por si mesma, é seguir em frente e ser a melhor pessoa que pode ser.
Ela concordou, tentando secar as lágrimas que não paravam de rolar pela face.
— Quando é mesmo esse show?
A pergunta da sua mãe a pegou de surpresa. havia passado tanto tempo trancada no próprio quarto ignorando o mundo do lado de fora que precisou olhar a data no celular.
— É amanhã - respondeu.
— Vou lembrar o seu pai de sair mais cedo do trabalho.
— Como assim, mãe?
— Nós vamos. Claro que vamos. É meio vergonhoso ter uma filha super estrela e não comparecer aos shows dela. Que tipo de mãe eu seria se não fosse?
não seria capaz de descrever o alívio que sentiu naquele momento. Ver as duas abraçadas era o melhor presente que ele poderia ter recebido. Tudo o que ele sempre quisera era vê-la feliz desse jeito. Mesmo por um caminho tortuoso, ele estava feliz de ter alcançado o seu destino final.


🎤👻🎹



— Boa noite, Los Angeles!
A multidão berrou em resposta. Tinha tanta gente ali que ela perdia de vista vários daqueles que ainda não tinham aderido ao momento coletivo de acender as lanternas dos celulares.
— Nós somos o Gemini e é um prazer poder estar aqui com vocês para abrir essa noite.
sorriu amplamente, sentindo-se mais completa do que nunca, mesmo com o pequeno vazio no peito. Um lugar que estaria para sempre reservado.
— Recentemente, eu perdi uma pessoa muito importante para mim. E, de várias formas, ela é a razão para eu estar aqui hoje. Então, , onde quer que você esteja, esse show é para você. Obrigada por tudo.
E com os primeiros acordes fazendo todo o público dançar e pular, ele sentiu o próprio peito se enchendo do mais caloroso sentimento.
Em meio ao show noturno, uma porta luminosa surgiu só para ele. Com um aceno final e um sorriso, ele rodou a maçaneta e deu seu primeiro passo adiante.



FIM



Nota da autora: NETFLIX, EU TE ODEIO POR CANCELAR A MINHA SÉRIE
Mas ainda amo esses personagens e eles mereciam um pedacinho de mim por aí. Espero que tenham gostado <3


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