06. I Can't Run Away

Finalizada em: 28/06/2023

Capítulo Único

— E por hoje é só.
— Finalmente! — me espreguicei na cadeira, sorrindo preguiçosa para Jorginho. Ele bateu a porta do cofre e se virou para mim fazendo o mesmo.
— Amanhã é nosso dia. — fez um toque de mão comigo, um high five, e eu assenti.
— Te vejo segunda-feira, não esquece de trazer o macarrão da sua mãe para a nossa marmita, hein!? — levantei, empurrando a cadeira para baixo da mesa. — Uma boa e generosa marmita. Vamos fazer minha última semana valer a pena nesse lugar.
Imediatamente ao meu comentário, Jorginho murchou na cadeira, abaixando os ombros e fazendo uma feição desanimada. Isso vinha acontecendo em todas as vezes que eu fazia menção ao meu aviso prévio que estava chegando ao fim pela troca de emprego. Estava a duas semanas de começar minha nova jornada como assistente administrativo no Incorp, a empresa que gerenciava o Barra Shopping. Ia trocar apenas o registro, mas continuaria por perto do meu atual gerente dramático, que se tornou, claro, um grande amigo.
— Qual é, Jorge… Sem caô… — empurrei o ombro dele. — Eu ainda vou estar pelo Barra, a administração que vou ficar é aqui.
— Eu não vou cruzar esse shopping inteiro só pra ir comer no refeitório com você. Esquece.
— Você fala isso agora, mas quero ver quando estiver somente na companhia da Soninha. — cruzei os braços, rindo. — Pensa, ela sempre traz algo típico lá da Bahia… Aquele cheiro forte de pimenta…
— Chega, vai! Você tem que ir embora ou vai perder a van pro terminal. — ele gesticulou, me mandando embora. — Eu ainda vou demorar aqui, o sistema tá lento.
— Nem vou negar, hein. — me aproximei, deixando dois beijinhos, uma em cada bochecha dele, e pegando minha mochila do chão. — Se o animar, eu tento convencer ele a ir no teu churras.
— Ih, sei não, hein… Essa ideia da minha mãe não vai rolar, não. — Jorginho arregalou os olhos, reclamando.
— Não vem não, mané. Tu ta com essa história aí de ficar na fossa porque a Carla te largou, mas comigo não rola não. Nem que o tenha que operar a filha da Madre Teresa, eu vou lá botar um pagodinho na tua laje! — vesti a mochila nas costas, sendo séria enquanto ele revirava os olhos. — Ânimo, hein. Vitória da conquista! — fechei o punho, gesticulando como maneira de demandar “força” e ele repetiu em total desânimo, ignorando minha saída.
Jorginho era casado com Carla há pelo menos uns seis anos, mas as coisas ficaram complicadas e ela começou a estudar Direito na URFJ, então acabou que os dois entraram num acordo de que só o amor não seria suficiente naquele momento e que deveriam viver os caminhos distintos que a vida estava lhes forçando a seguir individualmente. Ele estava um trapo, até porque sempre foi apaixonado por ela, e ainda era, mas achava que seria melhor respeitar o momento.
Eu só sei que meu papel seria de animar ele de alguma forma, como me fosse possível.
Isso me deixava um pouco pensativa, claro.
e eu estávamos há quase um ano juntos, mas era um “juntos” entre aspas. Não havíamos oficializado com um pedido de namoro meu ou dele, nós só tínhamos essa coisa de ficar quando ele não tinha compromissos com o trabalho e no meu tempo livre, o que era ótimo. O “problema” na verdade, era que eu gostava demais dele para achar que isso estava bem. Chega um momento na relação em que o mais se faz necessário e eu me via nessa fase. Eu estava entrando no quinto semestre da faculdade (mais conhecido como metade do percurso), finalmente encontrei um emprego que condizia com o que eu estudava e que me daria o que tanto sonhei: a rotina em horário comercial administrativo e um bom salário. Era mais do que compreensível que eu estivesse tendo perspectivas diferentes, até porque ele me fazia sentir assim.
Estar com me fazia enxergar a vida de uma forma muito mais séria e colorida; claro que antes eu já era alguém e feliz, principalmente por ter e na minha rotina, mas com ele as coisas começaram a andar diferente. A única coisa que pesava era a ausência dele que, embora não fosse diretamente sua culpa, pesava muito.
Então eu ficava sim pensando se Jorge e Carla não eram um tipo de visão minha do futuro com . Se chegaria o momento em que eu, no papel dela, enxergaria o mundo diferente e sem ele. Tudo bem, podia não ser muito tempo juntos, mas era tempo suficiente para eu estar acostumada com sua presença na minha rotina; quando não estávamos juntos, infelizmente não estávamos, mas quando eu tinha sua companhia, valia a pena demais.
Para não enlouquecer pensando nisso, eu ignorava e seguia adiante. Não tinha como e eu nem queria fugir antes que tudo desse realmente certo, e estava dando da forma como deveria ser.
Tirei o celular do bolso logo que sai do aparelho de ponto, tirando também a redinha que prendia meu cabelo em um coque cheio de gel, e andei apressada, Jorginho estava certo e pela hora eu perderia a van se não fosse rápida — e caso isso acontecesse, eu teria que pagar um Uber até o terminal, nada seguro para o horário. Enquanto eu corria pela minha vida, descendo a escada rolante desligada em passos largos conforme minhas pernas curtas conseguiam espaçar, chequei o aplicativo de mensagens, carregando o que havia sido recebido no momento em que tirei do modo avião.
Não tinha nada de , isso me desanimou, mas não foi surpresa. Ele deveria estar em alguma cirurgia naquele momento, o que era comum e repetitivo. Então guardei o celular, desta vez colocando dentro do cós do jeans para não correr perigo de ser assaltada. Continuando minha caminhada, agilizei as moedas da carteira para pagar a van e também o cartão do bilhete de ônibus. Porém, assim que saí pela zona de serviços do shopping, meu coração disparou e o sorriso em meu rosto se alargou; parado do outro lado da rua estreita, estava escorado no carro dele.
Não me aguentei e corri, pulando nele, que não tardou em me segurar e apoiar em seu colo, com minhas pernas rodeando sua cintura.
— Eu não acredito, neném! — disse histérica, enchendo ele de beijos pelo rosto e sem cuidado algum com seu óculos (o qual eu sempre derrubava). — Tu não existe!
— Me desculpa, morena… — ele resmungou e eu segurei o rosto com as duas mãos, apertando suas bochechas.
— Pelo o quê? — franzi o cenho.
— Pelo horário, ué.
— Esquece! — revirei os olhos, beijando seu nariz. — Eu acabei de sair, esqueceu que só posso bater o ponto quando o cinema esvazia?
— É… — fez um bico, me roubando um selinho rápido. — Mas eu queria muito te levar pra jantar hoje. O horário não vai permitir nada além de fast food.
— E está ótimo porque vou estar com você! Mesmo que seja para comer um dogão em Honório Gurgel.
Ele gargalhou, me soltando no chão com cuidado e antes de se afastar em definitivo me beijou uma última vez, tirando a mochila das minhas costas.
— Então vamos, eu vou te levar comer um super lanche com batata frita e Coca-Cola. — beijou a minha testa, pegando em minha mão para darmos a volta no carro.
— Nada de Burguer King, hein?! — apontei o dedo e ele abriu a porta para eu entrar.
— Sim, senhorita, apenas McDonalds pra minha morena. — deixou um último beijo em minha testa e eu entrei no carro, deixando ele fechar a porta e depois colocar minha mochila no banco de trás antes de tomar seu lugar no banco do motorista.
Como de costume, ele me deixou escolher a música e eu coloquei minha playlist de pagode que me ajudava entrar no clima das folgas de domingo, e depois descansei minha mão por cima da sua posicionada na minha perna. O caminho não era tão demorado pelo trânsito, mas o McDonalds que funcionava 24h e estava mais perto levava um tempo de trinta minutos no trajeto em si. Conversamos sobre o dia, até que ele recebeu uma ligação desesperada do residente que eu já estava a ponto de adicionar na nossa relação como um a mais, igual no filme “Eu os Declaro Marido e Larry”.
Ele me olhou com o nariz franzido e aceitou a chamada pelo comando de voz do Audi de última geração. Eu me encolhi, olhando para fora, mas continuou com a mão entrelaçada na minha, levando ela para seus lábios e beijando os nós dos nossos dedos.
— Diga, Otávio. — disse.
— Doutor, é a Ana. A PIC continua desestabilizada. — a voz de Otávio trazia desespero. — Eu tentei ligar para o Doutor Santiago, mas o telefone dele está fora de área e o senhor disse que eu não deveria chamar outra pessoa caso ela apresentasse piora… Me desculpe atrapalhar, Doutor Kim.
— Avalie os riscos e a coloque em TC imediatamente. O aneurisma pode ter expandido. — suspirou. — Chego em trinta minutos, peça uma sala de cirurgia e recolha a autorização dos pais dela. Vamos entrar com o plano B.
— Sim, senhor. — Otávio pareceu mais aliviado.
A chamada foi desligada e eu virei o rosto para encará-lo, estávamos entrando no drive thru do McDonalds.
— Me desculpa, neném. — pediu.
— Tudo bem. Eu fico aqui mesmo, ir para o Bonsucesso contigo vai ser muita volta pra eu ir embora depois. — sorri amarelo.
— Não! — ele apertou minha mão. — Eu te levo para casa, essa cirurgia é do Otávio, eu só preciso ver as coisas e supervisionar. Tu não vai sozinha a essa hora não. — franziu o cenho. — Tu aceita ir comigo até o hospital? Queria tanto que tu fosse pra casa comigo.
Apenas assenti, aceitando o pedido com um sorriso de lábios fechados. O silêncio permaneceu quando ele fez nossos pedidos, já ciente do que eu comia do fast food em questão e como gostava do meu refrigerante sem as pedras de gelo. mal comeu durante o caminho e quando chegamos no hospital ele me arrastou rápido até sua sala, onde se vestiu com o jaleco branco e os apetrechos que sempre carregava consigo.
— Eu volto logo e nós vamos embora, okay? — disse me dando um beijo rápido e segurando firme meu rosto entre suas duas mãos, inclinando-o para cima para que eu pudesse enxergar seus olhos através das lentes. — Vamos fazer algo bem gostoso na sua folga amanhã.
— Ta bom. — franzi o nariz, sorrindo sincera com a promessa que me gerou borboletas no estômago. Nas duas chances que tivemos para isso, nós passamos um tempo em sua moto pela serra, procurando algum lugar tranquilo e acabamos bem longe da civilização, fazendo coisas incríveis e muito memoráveis. — Eu vou esperar aqui.
Com um último selinho bem demorado, ele saiu da sala.
Fui até sua mesa e ajeitei tudo para comer, demorando pela falta de apetite por conta do cansaço. Aproveitei para cochilar um pouco, como já havia feito uma vez que fiquei esperando por ele, mas no outro hospital, no São Lucas, onde sua sala era mais confortável e chique, não só porque era um centro particular, e sim pelo fato de ser da família dele.
Às vezes eu tinha um choque pesado de realidade com a nossa diferença social absurda. se formou em medicina em Nova York, nos Estados Unidos, e fez boa parte da sua residência lá antes de voltar para o Brasil e assumir o papel no São Lucas e no Bonsucesso, um hospital escola de administração pública — que ele precisava para concluir seu processo de três anos de residência. Atualmente, ele era chefe dos residentes no Bonsucesso, não só de especialidade, mas no todo, e chefe da cirurgia pediátrica no São Lucas; a experiência de estava sendo feita como neurocirurgião pediatra e isso demandava muito dele, que aos 34 anos tinha muito mais do que um simples relacionamento como o nosso para se preocupar.
Por isso eu não queria desistir dele, da gente. Não seria justo. Eu tinha que entender diariamente essa diferença.
Enquanto ele tinha todo esse currículo já feito, eu estava montando o meu, com 21 anos, na metade do curso de Administração e saindo de um emprego de quase quatro anos num shopping da zona sul. A mansão em que ele morava com o irmão, no condomínio de celebridades globais, valia o equivalente para comprar 90% das residências de Realengo. Eu era completamente miúda em questão de status perto dele; mas nunca se preocupou com isso, pelo contrário, ele não se importava de ir até Realengo me ver quando tinha tempo e tampouco de deixar sua moto BMW ou o Audi caríssimo na rua — tudo bem que às vezes Sebastian deixava ele guardar a moto dentro do mercadinho. Inclusive, nós passávamos mais tempo no sobradinho que eu dividia com minhas amigas em Realengo do que na casa dele.
Era muita coisa a se pensar, mas a maior parte delas era como eu gostava dele e como ele me fazia sentir. Não importava se ele ficava horas em cirurgia, eu sempre estava presente na sua rotina. Até teve uma vez que ele me ligou durante um procedimento para contar algo extraordinário que fez na vida de um garotinho de seis anos que estava à beira da morte. Isso foi no meio da madrugada, mas eu atendi cheia de orgulho e empolgada.
E todas as vezes em que eu desanimei, não precisei me esforçar para lembrar os meus motivos para insistir.
Todo sacrifício valeria a pena.
Algumas horas depois, que eu não contei porque dormi em boa parte, ele entrou calmo e sem muito alarde na sala, tirando a touca de cirurgia. Eu estava na maca e ele veio até mim, sentando na escadinha que tinha ali disposta para quem fosse subir.
— Oi. — sussurrou baixo, notoriamente cansado, e apoiou a cabeça no espaço da maca. — Tô cansado.
— Dá pra ver. — bocejei, fazendo carinho no rosto dele ao ficar deitada de lado. — Vamos pra casa?
fechou os olhos por um momento, respirando devagar e relaxando mais o corpo abaixo do meu toque. Ao abrir as pálpebras, ele tinha o olhar caído e as sobrancelhas quase juntas. Eu entendi, ele não precisava dizer nada.
— Ela não aguentou durante a cirurgia. — piscou pesado, suspirando igualmente. Eu sabia qual era o processo agora, ele teria muitas papeladas a preencher, passos a retroceder e passaria horas dentro da sala revivendo cada fase, para encontrar o erro que o fez perder uma paciente em mesa cirúrgica.
— Eu sinto muito, neném. — me levantei, ficando sentada na maca e o puxando para deitar a cabeça em minhas pernas, sem cessar o carinho. — Queria poder fazer alguma coisa.
— Só de estar aqui já é o suficiente. — ele apertou meu joelho, respirando fundo antes de se levantar. — Mas agora a senhorita precisa ir para casa, já está no meio da madrugada.
— Pois é. Eu posso ficar, fico aqui quietinha te vendo trabalhar. — fiz bico.
— Não, neném. Tu vai pra casa. — foi até a jaqueta dele pendurada na parede e voltou com a chave do carro dele. — Sabe ir até minha casa?
— Não! — respondi em ênfase pelas duas coisas, negando a chave também. Ele insistiu. — Eu vou pra Realengo. Pego um Uber ou 99, o que for mais barato.
— De jeito nenhum! Prefiro tu indo com meu carro do que pegando carona com estranho. — ele foi sério. — E não vou insistir, . Tu vai e ponto.
Era raro, mas haviam vezes em que falava extremamente sério comigo e eu não conseguia refutar simplesmente por sentir todos os meus músculos retraídos em acato. E esse foi um dos casos em que eu não precisava dizer sim ou não, eu ia e ponto. Não soava grosseiro, de forma alguma, e se eu fosse explicar com exatidão não conseguiria dizer nada além de “extremamente sexy” sendo mandão.
— Odeio quando você fala assim. — aumentei meu beiço, cruzando os braços e balançando as pernas suspensas.
— Neném… — ele veio até bem perto, colocando a chave do meu lado e segurando meu rosto, erguendo-o para olhar em seus olhos. — Eu me preocupo contigo e não quero que tu perca uma boa noite de descanso aqui nesse lugar.
— Eu sei. Eu sei que você gosta de se martirizar quando as coisas dão erradas e faz isso sozinho. — suspirei, sendo sincera e compreensiva, porém.
— Então. — ele franziu o nariz, beijando a ponta do meu. — Já que tu é teimosa e quer ir para Realengo, vai com meu carro.
— Tu confia muito na minha direção. — a careta foi minha. — Mas tudo bem, tu manda e eu obedeço. Só não acostuma, não é em toda ocasião, hein.
— Não sei… Tu gosta bastante quando eu chego no teu ouvido assim e… — aproximou os lábios da minha orelha, mas quando foi dizer algo ouvimos duas batidas na porta, que acabou se abrindo porque ele não tinha fechado certo.
— Ah, desculpa atrapalhar, Doutor Kim… — a voz de Otávio ecoou; eu não conseguia vê-lo, pois , entre minhas pernas, me cobria por inteira e tampava a visão. Envergonhada pelo o que Otávio poderia pensar (até porque ele me conhecia de outros carnavais — chamado , haja visto que ele pegava minha melhor amiga até um tempo atrás), inclinei o corpo para frente, apoiando a testa no peito de .
— Tudo bem. — ele respondeu e eu apostaria que estava com um sorriso muito do safado pelo tom da voz. — O que houve?
— Vim deixar meu relatório e ver se o senhor precisa de mais alguma coisa ou se posso ir para casa.
Ergui o rosto, estreitando o olhar. Antes que conseguisse me segurar, eu inclinei o corpo para o lado, encarando Otávio com meu olhar fulminante.
— Ele vai ficar aqui remoendo o que aconteceu com a tua paciente e tu tá pensando em ir embora? — tagarelei extremamente brava. — Ele precisa de um café descafeinado, um Subway de frango teriyaki com molho chipotle e uma barra de chocolate meio amargo da Lindt! Tu acha que sou eu quem vai atrás disso tudo no meio da madrugada, Otávio?
Ele apenas negou com a cabeça e segurava o riso, assim como meu cotovelo para eu não cair devido a minha posição.
— Pois bem! — afirmei ainda brava. — Se aprume que eu te deixo na conveniência mais próxima. Saímos em dez minutos. E tu vai ser o responsável por me dar notícias do estado do meu… — engasguei um pouco sem saber como falar. — Do Doutor Kim. Fui clara? Quero atualizações de dez em dez minutos.
— Sim, senhorita. — Otávio engoliu a seco.
Mantive a feição séria e empurrei pelo peito, pulando para fora da maca e pegando a chave do carro. Rapidamente ele pegou a jaqueta, trazendo até mim e vestindo meus ombros com ela.
— Me avisa quando chegar em casa.
— Não preciso avisar. Tu tem o rastreador do teu carro aí. — respondi enquanto ajeitava as mangas compridas.
— Au… Calma aí, senhorita, o residente é ele, não eu. — levou a mão ao lado esquerdo do peito, fingindo ter sido atingido. — Não precisa me morder.
— Vai testando minha paciência, vai… Não é só tu que manda, não. — me aproximei, ficando na pontinha dos pés para beijar os lábios dele, apoiando em seu ombro. — Me avisa quando terminar, eu venho te buscar.
A despedida terminou e eu sai, sendo seguida pelo Otávio para a saída. Quando entramos no carro, ele todo preocupado e com medo, me virei lhe apontando um dedo:
— Escuta aqui, se ele trancar aquela porta, não me importa o que e nem como, tu tem que abrir a fazer ele comer a porra do lanche. Tá me ouvindo? — ele assentiu robotizado. — Certo. E pegue algumas frutas quando amanhecer, sei que ele vai demorar demais pra ir embora, então dá tempo de tu ir na feira fazer uma saladinha de frutas pra ele. Pegue um caldo de cana de 500ml com limão, um pastel de carne seca com queijo e misture banana, maçã, laranja e manga pra ele comer depois. Gravou tudo?
— Sim, gravei, . — ele riu fraco, parecendo mais calmo. — Tinha me esquecido como tu é… preocupada.
— Tu nem me conhece, Otár-Otávio. — revirei os olhos, dando partida no carro.

🥼🩺🏥


Assim que estacionei o carro meio em cima da calçada, garanti que estava tudo certo e peguei minha mochila do banco de trás, descendo e travando o alarme, que também agilizou o “fechar” dos retrovisores. Não demorou muito e a vizinha fofoqueira que nunca, jamais, dormia chegou ao meu lado.
— O namorado é rico, hein, ! — ela riu como um Opala afogado.
— Pois é, Zélia. Ele trabalha pra cacete, assim como eu.
— Que legal! — ela continuava me acompanhando até a porta, que eu destrancava.
— Sim. Muito legal. Gente que trabalha não tem tempo de cuidar da vida dos outros. — sorri cínica para ela, recebendo um olhar desgostoso. No mesmo instante, Zezé, o dono de uma das quebradas que tinha logo para o fim da rua, passava com sua namorada e alguns “parças”. Acenei para eles.
— Fala aí, ! Que carruagem é essa, hein? — Soraya assoviou. — É daquele boy muito magia, lá?
— É do , sim. — ri fraco, ficando com vergonha.
— Vou mandar que tomem conta pra ti, hein. Mó perigo deixar essa lataria aqui fora. Sebastian não dá moral de botar lá dentro, não? — Zezé analisava cada centímetro do Audi e Zélia, vendo que sobrou na roda, sumiu. Graças ao bom Deus, ou melhor, o bom Zezé.
— Tem espaço, não, cara. — murchei os ombros, abrindo a porta. — Já é difícil botar a moto.
— Pode crer. — ele assentiu, tinha as mãos para trás do corpo e a cara enfiada no vidro escuro pela película, que refletia o rosto dele por causa da luz do poste. — Mas fica em paz, gata, ninguém aqui vai relar a mão no possante do teu cremoso. — se endireitou, dizendo enquanto balançava o indicador para mim. — E me fala se alguém te incomodar, jaé?
— Jaé, Zezé. Pode deixar. — fiz um “joia” para ele, entrando por fim.
Tranquei a porta e suspirei, subindo conforme meu corpo conseguia aguentar aquele tanto de degrau às quatro e pouco da manhã, depois de tudo o que rolou e o tempo mínimo de cochilo que tirei. Ao menos eu poderia dormir até tarde no domingo.
Coloquei a chave na segunda porta e destravei, escutando as risadas que vinham de dentro do apartamento, e acabei por assustar os quatro seres na sala que pareciam se divertir com alguma conversa aleatória.
— Ué. — foi a primeira a dizer, estranhando. — disse que ia te pegar hoje.
— E literalmente. — completou.
Senti as bochechas queimarem ao imaginar a conversa.
— Bem que eu queria. — acabei por rir, fechando a porta e deixando a mochila cair no chão, enfiando a chave do carro no bolso.
— Deixa eu adivinhar, o Doutor Otário chamou? — tinha um riso preso, que eu sabia não ser deboche de mim. Apenas assenti e ele tomou um tapa de .
— Supera essa fase, macho! — ela ralhou.
— Mas ele tá certo. Embora eu não devesse concordar e dizer isso. — revirei os olhos. — Ao menos hoje ele é um otário. Assim, só por ser mesmo. Nada específico ou pessoal.
— Tu precisa de alguma coisa, amiga? — perguntou, se levantando do chão e quase empurrando para longe; eles estavam sentados no tapete, cercados de garrafinhas de cerveja e petiscos, com um tabuleiro de Banco Imobiliário aberto. Uma cena que me deu certa inveja, devo confessar.
— Não, eu vou tomar um banho e dormir. — acabei engolindo um bolo preso na garganta, que mal notei existir.
— Certo. Não me convenceu. — se levantou em seguida também. — Bota pra fora, o que o médico míope te fez?
— Nada. Ele não fez nada. — revirei os olhos.
— Então por que tu tá com essa cara de enterro, mulher? — até se envolveu, recebendo um olhar repreensivo de .
— Eu não vou falar mal do na frente do irmão dele, me desculpem. — ri nasalado, apontando para meu quarto. — Vou indo nessa. Não se preocupem comigo. Tchau, meninos. — acenei para eles e segui meu rumo.
Pude ouvir, claro, os sussurros.
— Vai, xispa! — disse em um tom histérico.
— É melhor a gente ir, . As Super Poderosas precisam ficar sozinhas agora. — pareceu mais calmo. — A gente volta amanhã.
Logo entrei em meu quarto e fechei a porta, indo direto para minha cama e me jogando ali, de bruços e com o rosto enterrado no lençol do colchão macio, o único luxo que eu me dei em todos os anos que me matei de trabalhar naquele shopping.
Sem muito demorar, a porta abriu e eu fui acolhida pelas duas pessoas que dividiam comigo não só o teto, mas a vida também.
— Tu quer conversar sobre? — afagava meus cabelos e eu neguei.
— Já sei! — deitou do meu outro lado. — A mãe do Jorge mandou mensagem pra gente sobre o churras lá na laje. Vamos dormir e antes das onze a gente mete o pé pro Méier !
Ri fraco, apenas assentindo, e recebi um beijo na bochecha de cada uma, logo ficando sozinha e adormecendo ali mesmo, exatamente do jeito que me joguei na cama e pensando em nada, deixando apenas o cansaço mandar em mim.
E foi como um novo corte, pois não demorou muito e eu senti meu corpo ser “arrastado”, tomando um susto ao abrir os olhos e ver deitado de frente comigo, nos cobrindo.
— Bom dia, neném. — ele disse sorridente, selando meus lábios. — Posso ficar aqui?
— Que horas são? — disse baixinho, totalmente sonolenta.
— Sete e meia. Ainda dá pra dormir mais até o almoço no Jorginho. — continuou sorrindo, se achegando mais perto de mim.
— Tu vai comigo?
— Claro que vou. Por que não iria pra um pagode com a minha morena, hein? — riu fraco, me aninhando em seu peito. Encaixei o rosto na curva do pescoço dele, sentindo o cheiro de sabonete, do meu sabonete, e arregalei os olhos ao me dar conta que ele estava sem camisa e sentir seu corpo seminu colado ao meu. — Espero que as meninas não se importem de eu ter tomado banho e abrir o armário para pegar a toalha.
— Tu não ficou andando pelado pela casa, não, né?
— Eu corri rapidinho pra cá, neném.
Resmunguei, tentando me acostumar com a posição, mas não consegui. Em um pulo, passei por cima de e o agarrei por trás, sendo a conchinha de fora que eu sempre lutava para ser. Ele ficava frustrado porque dizia que queria me sentir encolhidinha cabendo em seus braços, mas eu insistia em abraçá-lo por fora, quase não fechando os braços em suas costas.
— Será que vai ter alguma vez que eu vou ganhar de você nessa briga? — segurando em meus braços e beijando o dorso da minha mão, ele riu.
— Jamais. Essa é a única briga da qual eu jamais vou abrir mão. Tu não sabe o quão gostoso é estar aqui. — fiz uma trilha de beijos em seus ombros, demorando mais na nuca, e por fim apoiei a cabeça na curva de seu trapézio. — É muito bom o cheirinho da sua pele. Mesmo que tu tenha tomado banho hoje com meu sabonete Lux, continua ótimo.

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Terminei de picar a banana e misturei ela no potinho com as outras frutas no exato instante que entrou na cozinha cheia de sacolas e acompanhada de .
— Caiu da cama? — ela me cumprimentou. Eu nunca acordava cedo nas minhas folgas e havia ido dormir quase pela manhã, então entendo que seja estranho para ela me ver acordada às nove no domingo que eu não precisaria cruzar a cidade para ir trabalhar.
— Quase isso. — dei de ombros. — Bom dia, . — o cumprimentei, colocando o potinho de salada de frutas em cima da bandeja, enquanto eles colocavam as sacolas no chão. — Vocês vão com a gente almoçar na mãe do Jorginho?
— A gente? — estranhou.
— Sim. também vai.
— Então essa bandeja é para ele. Tá explicado o porquê das frutas. — ela riu.
— Se eu fosse você colocava mais banana, ele gosta. — interveio, chegando perto da minha bandeja. Levantei apenas o olhar para ele, que era mil vezes o meu tamanho. — Tá, tá bom. Não está mais aqui quem falou.
— Obrigada. — peguei a bandeja, sorrindo não muito simpática. — A ainda está dormindo, ela precisa acordar para fazer a farofa que prometemos levar. — avisei, saindo da cozinha.
Escutei um murmúrio dos dois, provavelmente entrando em discussão sobre ligar para e deixar que ele fizesse o trabalho mais difícil que era tirar de seu sono confortável em pleno domingo. Sendo um dos dois ou não, eu ignorei e continuei até o meu quarto, abrindo a porta com cuidado e a empurrando com o pé para fechar quando passei. estava tão cansado que nem mesmo o barulho que ecoou pelo quarto foi capaz de acordá-lo — até mesmo o som das motos e conversas na rua, que vinham pela janela do meu quarto, conseguiu isso.
Coloquei a bandeja em cima da minha cômoda e caminhei até a cama, parando ao lado em que ele estava deitado de bruços e todo largado. Rapidamente abri a janela, deixando apenas a cortina bloquear a luz forte, o que fez ele se mexer um pouco, e quando voltei para o lado da cama, me ajoelhei, esticando o braço para tocar seu rosto sereno e de pele macia. Senti o áspero da barba por fazer e acariciei mais um pouco, me perdendo no silêncio enquanto o admirava dormir tão calmo, parecendo estar muito distante.
De repente os olhos dele se abriram, demorando um segundo antes de se fechar outra vez e ele sorrir com os lábios fechados enquanto sentia meu toque. resmungou manhoso e sonolento, trazendo sua mão direita para pegar na minha e levá-la até seus lábios para beijar a palma.
— Hum… Que cheiro de morango. — disse baixinho e rouco, ainda com os olhos fechados.
— Bom dia, neném. — sorri de volta, mesmo que ele não estivesse olhando por ser um ato em reflexo. — Trouxe café da manhã pra você.
— Que horas são?
— Quase dez horas. Mas você pode ficar mais na cama, até o horário de sair. Só precisa comer, tenho certeza que recusou o lanche do Otávio. — acariciei seu rosto.
Em silêncio, abriu novamente os olhos, mantendo-os abertos e ficou me olhando fixamente. Fiquei envergonhada, sentindo minhas bochechas esquentarem, assim como em todas as outras vezes que ele fez o mesmo, ficou me olhando sem dizer nada.
— Eu juro que só peguei coisa pronta, não cozinhei nada. — ri nervosa, cortando o clima. Cozinhar não era meu forte e nem fraco, era simplesmente uma coisa nula na minha vida.
Ele riu, beijando minha mão outra vez, em seguida me puxando pelo antebraço, ao passo que ficou com a barriga para cima e eu acabei indo parar em cima dele, sentada em seu quadril. Pelo movimento, ficou descoberto pelo lençol e eu espalmei as mãos em seu peito nu, sentindo sua pele quente contra as minhas mãos geladas. Isso fez ele soltar um gemidinho pelo choque.
— Desculpa. — fiz menção de tirar, mas ele colocou as próprias mãos em cima das minhas.
— Eu tenho uma coisa pra você. — disse risonho, acariciando um dos meus braços. Arqueei a sobrancelha, mordendo o lábio inferior em ansiedade. — O que você acha de aproveitarmos a semana que você não vai trabalhar para uma viagem?
— Uma viagem? Tipo, Angra? — chutei, já com comichão pela ideia, embora no fundo eu estivesse cética dado ao histórico da disponibilidade dele. Até usei uma cidade mais próxima.
— Não, neném. — o sorriso dele se ergueu de um lado só. — Um pouco mais longe.
— Quão pouco? A gente não pode ficar mais do que duas horas longe do Rio. — fiz um bico, duvidando. — Para de graça, .
— Tô falando sério, neném! — ele riu, erguendo o tronco e me mantendo em seu colo, uma mão foi para a minha coluna e a outra tirou o cabelo do meu ombro para que ele pudesse beijar o espaço que a alça fina da regata deixava exposta. — Você tem passaporte, não tem? — assenti lentamente, ainda desacreditada. — Podemos ir para Bali.
Fiquei petrificada, com as mãos ainda espalmadas em seu peito e o olhar travado em algum ponto de seu rosto. Bali sempre foi o meu sonho de consumo, eu tinha um cofrinho justamente para isso, e uma poupança da qual eu não podia de jeito nenhum tirar os fundos, somente para usar quando me formasse na faculdade e, ao invés de gastar com festa, pudesse viajar para o meu destino dos sonhos.
— Tu não tá falando sério, está? Bali é longe pra caralho, ! — franzi o cenho.
— Eu sei. E sim, estou falando muito sério. — ele manteve a pose, beijando meu queixo dessa vez. — Podemos chegar em Jakarta, solicitar o visto de permanência na imigração e pronto, vamos para Bali. E se tu quiser, nós podemos fazer uma escala em Dubai.
— Neném… — raspei a garganta. — Eu ainda não completei o meu cofrinho pra isso. — olhei para a direção da minha cômoda, acima dela estava o quadro cheio de dinheiro e escrito “Bali” no vidro. — Já te falei que Indonésia vai esperar mais um pouco…
— Não estou te perguntando se teu cofrinho está cheio, . Eu tô te convidando e quero que tu vá comigo. Quero fazer alguma coisa só nós dois e me esforcei para mover céus e terras pra podermos viajar por pelo menos dez dias.
— Dez dias? — minha voz saiu esganiçada. — ! Eu ainda trabalho pelos próximos seis dias, com folga na terça-feira, tu sabe disso! A semana sem fazer nada antes do Incorp é a outra ainda! E são só sete dias!
— Esquece o Barra Shopping. Tu não precisa cumprir esse aviso todo, o Jorginho pode te botar para terminar em casa… E mesmo que ele não faça isso, tu não precisa! Vem comigo pra Bali, amor.
Gargalhei desacreditada por toda a informação.
Quando, em um milhão de anos, eu sonharia com essa cena única?
— Tu tem certeza que consegue largar teus dois hospitais por todo esse tempo, ? — quis assegurar, movendo as mãos para os ombros dele e apertando com força. — Porque não vamos estar em Búzios ou em alguma montanhazinha pertinho de Copacabana! É outro país, outro continente! E, meu Deus, homem! Eu não tenho dinheiro pra isso, não.
— Dá pra tu parar de falar sobre dinheiro? — ele foi sério e eu fechei a boca. — Eu tenho uma equipe boa e que vai dar conta do recado enquanto estiver fora. Podemos ir nesta quarta-feira e voltamos no outro sábado… Eu só tenho duas eletivas para amanhã e aí na terça-feira nós fazemos malas e vemos tudo o que vamos precisar, para ir na quarta de madrugada.
— Pelo jeito que tu tá falando, até parece que já comprou as passagens. — brinquei, revirando os olhos com um riso. Mas ele continuou sério e isso me assustou. — Não…
— Boeing 777 da Emirates, saindo 2:55 am do Galeão e pousando às 23:55 pm, considerando a diferença de fuso, em Dubai para uma escala de duas horas. — o sorrisinho dele se abriu em duas pontas, mas logo se desfez em preocupação. — Amor? Tá tudo bem? — levou a mão ao meu pescoço e testa. — ?
— Tu não pode ser real, isso não é real. Nada disso aqui tá acontecendo. Tu ta falando de me levar pra Bali, na Indonésia, do outro lado do cacete do mundo, ! Tu acha mesmo que tem alguma coisa bem?
— E por que não teria?
— E por que não teria? — ri nasalado ao repetir, saindo de cima dele. — Meu amor, tu tá em Realengo! Tá olhando para uma atendente de cinema num shopping da zona sul que não gasta o vale alimentação pra ajudar na compra do mês de casa, a fim de fazer marmitas! — me descontrolei, assustada. — Tu não tá falando de me levar pra um rolê de boas no Méier ou em Bangú, macho! Você tá me falando que comprou passagens pra gente viajar de avião pra outro país! Outro continente! Eu não tenho nem roupa pra receber essa mensagem, tá vendo? Eu to de regata e jeans de camelô.
— Adoro esse short, inclusive. — ele apontou, olhando para minhas pernas e passando a língua pelos lábios.
! — berrei, histérica.
E ele gargalhou, levantando-se e vindo até mim. me puxou pelas mãos e se sentou na ponta da cama, me colocando entre suas pernas mal cobertas por usar apenas a cueca boxer preta. O cabelo bagunçado dele estava me confundindo, como sempre, em conjunto com o rosto amassado de quem tinha acabado de acordar, mas eu me mantive histérica pela conversa.
— Amor, escuta. — ele disse baixo, sereno. — Eu tô em falta contigo, sei disso. A nossa relação está entrando numa rotina que não deve existir. Tu merece muita coisa e eu quero te dar todas elas, quero criar as melhores memórias com você. Ontem eu fiquei pensando quando tu foi embora e ao invés de remoer meu erro ou o que quer que seja que levou Ana na cirurgia, eu remoí a sua partida.
— Neném… Eu entendo sua rotina, sua vida. — levei a mão ao rosto dele. — E está realmente tudo bem, eu compreendo e respeito.
— Obrigado por isso. Mas não vai anular o meu desejo de ficar com você pelos próximos dias bem longe daqui. Só eu e tu. Tu e eu, morena.
— Tu tá mesmo empenhado nisso, né? — ri fraco, começando a me sentir mais convencida e ele assentiu, passando a língua nos lábios outra vez. — Eu vou falar com o Jorginho que meu médico irá me afastar dos últimos dias de trabalho a partir de quarta-
— Terça. Terça-feira tu já nem vai. Nós vamos arrumar nossas coisas para viajar. E se bobear, te tranco aqui hoje e tu já nem vai amanhã.
— E levar abandono de emprego para minha carteira profissional? Aí tu ta sendo muito levado, seu mané. — dei um leve tapinha em seu ombro, suspirando.
— Então tenho sua confirmação? — ele me puxou mais para frente e eu mal tive tempo de raciocinar, sendo colocada em seu colo. subiu a mão em minha nuca, entrelaçando os dedos no meu cabelo solto. — Vou te ter só pra mim por todos esses dias?
— Tu já me tem aqui em Realengo, na Barra… No Brasil todo, neném. Eu é quem vou ter o privilégio de não disputar com o Otávio. — ele riu e eu o acompanhei, beijando a ponta de seu nariz. — Mas sim, eu aceito. Tu que vai pagar mesmo. — dei de ombros.
— Eu sabia. É isso, não é?
— Isso o que? — fiquei confusa.
— Você, e só querem nos dar o golpe.
— E tu só percebeu agora? — ri fraco, entrando na brincadeira dele. — Tarde demais, neném, agora já está sob meu domínio.
— E eu não gostaria de estar sob nenhum outro, morena. — sendo sério e falando baixinho, aproximou o rosto do meu, me beijando inicialmente lento, até tudo tomar uma proporção maior e nós acabamos caindo na cama novamente (em silêncio para não ser constrangedor aos que estavam lá fora e tampouco acordar ).

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Assim que parei o carro em frente a casa da mãe do Jorginho, toquei na perna de , acariciando próximo ao seu joelho para lhe acordar. O trajeto tinha levado cerca de cinquenta minutos, um pouco a mais do que o comum, por causa do trânsito e ele ainda estava bem cansado, e mesmo com e reclamando no banco de trás o fato de ele, que não deixava ninguém tocar no Audi novinho, ter me deixado levar o carro, dormiu profundamente.
Com meu toque, ele despertou, ainda que lentamente, enquanto os outros dois já se adiantavam em sair. À frente de onde parei, estacionou o celta dela, logo descendo com e jogando para os outros dois brutamontes as tigelas com salada, farofa e carne temperada para o churrasco.
— Amor… — chamei baixinho, fazendo um carinho na orelha dele. apenas resmungou, se encolhendo mais. — Neném, acorda. Nós chegamos. — tirei o cinto, me aproximando com os lábios em sua mandíbula, perto do queixo, deixando beijinhos. — Senhor Kim, é o Doutor Otário ligando… — murmurei, continuando a beijar por todo seu rosto enquanto ele resmungava. — Você vai deixar a ligação cair na caixa postal?
— Deixa. — ele respondeu baixinho.
Parei de beijá-lo e me afastei, deixando o braço esticado para fazer carinho em sua nuca.
— Amor, vamos voltar pra Realengo. Assim tu descansa. — suspirei, decidindo.
— Não! — segurou em meu braço no instante que eu ia recolher ele para dirigir o caminho de volta. Me virei para a sua direção e ele me encarava com os olhos bem abertos e totalmente vermelhos. — Nós vamos almoçar com seus amigos hoje. Foi o que combinamos.
— Mas tu tá cansado, neném… — pelo ângulo em que ele segurava meu braço, eu ainda conseguia acariciar sua bochecha com o polegar. — Olha só, seu rosto tá todo inchadinho de sono. Eu não ligo de voltar pra casa… Na verdade, se quiser eu posso te levar pro Leblon. Assim tu descansa na tua caminha confortável.
— Não precisa. — puxando a minha mão para beijar a palma, se endireitou no banco e soltou o próprio cinto. — Já acordei. — sorriu forçado, me soltando para se espreguiçar.


Eu iria refutar e obrigá-lo a travar o cinto novamente porque o levaria para sua casa no Leblon, mas a figura curiosa e parecida com um Golden Retriever humano que era o irmão caçula dele, o , surgiu na janela do carro, com o rosto colado no vidro para tentar enxergar dentro — o que seria impossível, pois a película era muito escura.
Não disse nada, apenas desci do carro, dando a volta e encontrando para pegar em sua mão e entrarmos juntos. logo saiu à frente, repito, parecendo o filhotinho de Golden, todo empolgado, como se a vida fosse realmente fácil e tudo não tivesse obstáculos. Assim como a minha casa, a da mãe de Jorginho era em um sobrado, mas em cima de outra casa térrea. Como a escada acabava ficando estreita demais, me deixou ir na frente, guiando ele, que manteve as mãos em meu quadril.
Logo que chegamos na sala, o primeiro cômodo de Arlete, fui surpreendida pela empolgação de Rafinha, o vira-lata caramelo da mãe do meu amigo. Pouco tempo depois de eu começar a trabalhar no cinema, estava indo embora debaixo de uma chuva muito forte, quando perdi o ônibus e a van (para ser bem completo), e acabei encontrando Rafinha, ainda filhote, todo encolhido numa caixa de papelão ensopa. Nesse dia, paguei o triplo em um Uber e sacrifiquei meu orçamento de quinze dias, mas levei ele para casa comigo, porém, pela falta de tempo, não tinha como ele morar comigo e com as meninas, então Arlete se ofereceu. Os dois, aliás, formaram uma dupla e tanto. Ela recém viúva com um filho de quatro patas em casa, já que Jorginho morava com Carla e era seu único herdeiro.
— Oi, bebê! — automaticamente me esqueci de e abaixei para receber Rafinha. Ele pulava em mim, me dava “cheiros”, porque sabia que eu não gosto muito dessa coisa de lambida de cachorro, e abanava o rabo comprido, chorando baixinho. — Tava com saudade, meu amor? Que gatão que você está com essa roupinha de marinheiro. Foi tomar banho, é?
Certamente, as respostas de Rafinha vinham em latido. Até que ele reparou em atrás de mim e rosnou antes de ir cheirar ele.
O que foi extremamente engraçado, porque o homem enorme que estava comigo se encolheu.
— O que é isso? — ri, puxando Rafinha, que se assustou. — Tem medo de cachorro é?
— Digamos que eu seja mais adepto aos felinos. — ele fez uma careta, ajeitando o óculos.
— Ele não morde, neném. — me levantei, pegando Rafinha no colo. — Olha só. — e me aproximei de , que se encolheu de novo. — Macho! — ri mais alto. — Tu é irmão de um Golden Retriever em formato de gente e tem medo de um doguinho caramelo vestido de marinheiro?
— Quem tem medo do Rafinha? — escutei a voz de Jorginho e me virei pra ele, parado na passagem que dava para a cozinha, segurando duas latinhas de cerveja.
— Uau, olha só quem está bonitão hoje! Não é só o Rafinha que foi tomar banho! — brinquei, colocando o cachorro de volta no chão; o vira-lata ainda tentou se enturmar com uma última vez, mas sem sucesso. — Deixa, Rafinha, uma hora tu amolece o coração do Doutor Kim. — voltei para Jorginho, sorrindo contente em vê-lo aparentemente bem. — E aí, mané? Amor, esse é o famoso Jorge. — apresentei os dois.
Na verdade, eles já se conheciam, mas apenas como o gerente e o cliente assíduo das pré estreias do Barra Shopping. Jorginho veio mais perto de nós, sendo simpático:
— E você é o famoso médico.
— Famoso? Quão famoso? — riu fraco, coçando a nuca, ele era muito tímido.
— A ponto de me pedirem para uma certa atendente lá do cinema arrumar outro assunto. — os dois riram fraco e eu revirei os olhos. — Te cumprimentaria com as mãos, mas… — Jorge ergueu a latinha. — Aliás, quer? Você bebe?
— Não. Se ligarem do hospital ele precisa estar sóbrio. Mas eu bebo. Dá a-
— Eu bebo sim.
Jorginho ia me dar a lata, mas foi mais rápido e tomou ela, abrindo logo em seguida e virando um gole. A careta dele foi impagável, pois além de muito gelada, a cerveja tem um gosto amargo natural que eu sabia muito bem que ele não era nem um pouco acostumado. Em uma das nossas conversas, descobri que bebia no máximo uma vez no ano, pelo motivo nem tão necessário assim de ser sempre relembrado.
Peguei a latinha da mão dele, rindo fraco e deixando um beijinho em sua boca.
— Deixa com a gente, amor. Trouxemos refrigerante e suco para quem não bebe. — acariciei o rosto dele com o polegar, me virando para Jorge. — E cadê tua mãe?
— Lá fora, tentando fazer a caixa de som funcionar. Mais uma JBL da Shopee que deixou na mão. — ele deu de ombros.
— Crie vergonha nessa cara e compre uma que preste, então. — dei um peteleco nele, virando mais um longo gole da cerveja. — Vem, neném, vamos lá para a parte interessante. — e puxei pela mão.
Rafinha ainda estava tentando se enturmar com ele, o que era uma imagem extremamente adorável. Durante o curto caminho até a área externa, ele passou e voltou pelo meio das pernas de , querendo brincar e abanando o rabinho. Jorge nos acompanhou e logo que Arlete me viu, ela veio até mim com os braços abertos — de fundo, e resolviam as coisas da churrasqueira, acertava a caixinha de som e ajeitava as coisas na mesa.
— Olha só quem resolveu encontrar o caminho de casa! — Arlete berrou ao me ver, me puxando para me abraçar (ou melhor, me amassar) e eu não consegui soltar a mão de , então ele ficou meio que amassado por tabela.
— Reclame com o gerente do cinema, é culpa dele eu não ter tempo de vir aqui! Ele não contrata funcionários bons e sobra tudo pra mim. — me defendi, a cumprimentando de volta como foi possível. Ao nos afastarmos, puxei para mais perto. — Arlete, esse é o . , essa é a Arlete, minha segunda mãe.
Ele soltou da minha mão, se prontificando em cumprimentá-la formalmente, mas Arlete nunca teve jeito em ser “formal” demais, ela gostava de contato, então o abraçou.
— Olá, meu querido. Minha casa é humilde, mas prometo que será bem aconchegante! — o afastou, segurando em seu rosto com as duas mãos. — Qualquer um que faça a minha menina feliz é bem-vindo aqui.
— Obrigado. — ele sorriu um pouco envergonhado, ajeitando o óculos no rosto, enquanto ela o mediu por inteiro, segurando em seus ombros agora.
— Olha só para você… — Arlete me encarou com um sorriso. — Seu namorado é uma graça, ! — soltou dele, dirigindo-se totalmente para ele outra vez. — Uma pisada na bola, eu boto o Méier todinho pra te caçar, Doutor, tá me ouvindo?
— Ja é…. — ergueu o polegar, assentindo, e eu passei as mãos no rosto em negação.
Nós não havíamos definido nossa relação ainda e ver Arlete falar como se fôssemos um casal assumido me deixou receosa em como ele iria se sentir.
— Muito bem. Agora tu mete tuas pernocas pra andar e ajuda o Jorginho trazer a tela pra fora que daqui a pouco já tem a seleção em campo!
— A seleção? Vai ter algum amistoso? — ele realmente respondeu totalmente perdido eu ri. Arlete, inclusive, se sentiu ofendida e eu notei só pelo olhar dela.
— Ele é tricolor… — esclareci sem esquecer da careta de desgosto.
— Mas é claro que é. Tinha que ter defeito, não é, ? — ela levou a mão à testa, respirando fundo. — Que fique claro, só entra não flamenguista nessa casa se lavar a louça. E se quebrar copo não volta nunca mais.
La de longe, , de boca cheia, um pano de cozinha num ombro, enquanto a camiseta que ele arrancou ocupava o outro, e o pegador na mão, disse:
— Esquenta não, Lele! Meu irmão tem ótima precisão nos dedos. Fala aí, !
A primeira reação foi a de Jorginho, ali entre nós e a mãe dele, que engasgou com a cerveja, somente então eu entendi o duplo sentido no meio dos adultos e olhei para , ele estava com o rosto muito vermelho e abaixou ao ponto de enfiar-se na curva do meu pescoço. Eu não aguentei e ri junto com Arlete.
— Fica com vergonha não, bonitão. Tu tá em família. — ela deu tapas no ombro dele, não medindo a força, sem parar de rir. — Vai, vai lá pegar a tela com o Jorge Junior antes que tudo dê errado e eu perca meu Mengão.
— Vira essa boca pra lá, Arlete. Valha! — berrou lá de onde estava.
Me virei, segurando o rosto de e beijando o queixo dele antes de sorrir.
— Vai lá, neném. Eu vou ajudar as meninas a preparar o almoço.
— Preparar o que se já tá tudo pronto? — foi quem berrou desta vez.
— Preparar a louça? — olhei para ela fazendo um coração e recebi o dedo médio dela em forma de carinho.

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Coloquei o arroz em cima da mesa e levei as mãos à cintura, observando meu trabalho feito na arrumação da mesa com tanto orgulho. Eu podia não ser boa em cozinhar, mas em organização com certeza garantiria meu espaço.
Estávamos com todo o almoço pronto, até as carnes estavam na caixa de isopor toda encapada com o papel alumínio que o Jorginho sempre deixava pronto para colocar ali o que já estivesse assado, a fim de não esfriar e perder o sabor. e terminaram de lavar as louças que ficaram ali na pia do lado externo, das coisas que foram usadas para cozinhar, e se aproximaram de mim, enquanto Arlete servia a ração de Rafinha e os outros quatro homens discutiam sobre algum assunto muito interessante do qual não tinha como entender.
Muita testosterona junta, era confuso.
— Pra quem só vive em um hospital, até que o seu querido sabe se enturmar. — se sentou na cadeira ao meu lado, apontando para . Ele, inclusive, tinha uma latinha na mão que foi aberta há muito tempo e bem provavelmente estava com a cerveja quente e criando dengue.
— Deve estar no sangue “Kim”. Mas o não perde muito não, hein! — surgiu, sentando-se do outro lado da mesa, mas à nossa frente.
— Desde quando é Lele? — arqueei as sobrancelhas, sentando também. abriu as palmas das mãos, fazendo uma careta confusa e nós caímos na risada.
— Tenho pra mim que o queria ser pobre. — ela se virou, ficando de lado e com um braço apoiado na mesa, enquanto o outro tinha o cotovelo no encosto da cadeira e a mão apontava para o namorado. — Olha só para ele. Comendo colchão mole e achando que é picanha. Tomando Crystal e se imaginando com uma Eisenbahn na mão.
Nós três ficamos olhando para a direção deles, que prestavam total atenção no que Jorginho dizia com gestos frenéticos e um pouco mais alterado por já ter consumido quase um fardo sozinho.
— Valha-me! — imitei a fala tão comum dela e outra vez caímos em risada. — Ele tá assim, todo solto… Na verdade, eles. Eles estão todos soltinhos assim, mas eu vi na caixa térmica do umas três garrafas de Voss.
— Não tem jeito, arrumamos um trio de mauricinhos. Um médico, um piloto e um dono de centro de marombas, que é o que mais tem na zona sul carioca.
— E estão reclamando do que? — Arlete surgiu, sentando-se do meu outro lado. — Vocês estão ótimas! O de bundex só falta trocar de lugar com o Rafinha e vir aqui, dar a pata. — se direcionou para . — Aí o senhor melanina carioca eu nem preciso falar… É carninha na boca a cada segundo. — apontou para , que sorriu bocó de ponta a ponta. Quando ela se virou para mim, não conseguiu completar, Jorginho e os meninos se aproximaram.
— E ninguém chamou a gente? — ele perguntou, logo se arrumando ao lado da mãe.
Troquei um olhar com , ele estava em pé, tentando encontrar um lugar para sentar, o que tinha aos montes, mas não do meu lado, e o empurrou para a cadeira na ponta, que ficaria entre ele e Jorginho. Não desprendi meus olhos dele, vendo-o tão inserindo no meio da falação, a qual se tornou confusa porque eu não estava mais prestando atenção e todos falavam ao mesmo tempo; ainda ficou em pé segurando seu prato, super empolgado pelo tempero da carne que “Lele” — como ele havia batizado — fez, e que estava uma delícia. olhava para ele com muita admiração, com o “Q” de irmão mais velho vendo o caçula,
Em um dado momento, não tinha mais nem o som misturado das falas e risadas, existia somente a imagem dele rindo e falando o que eu não conseguia ouvir. Era como se estivéssemos num mundo só nós dois e eu queria manter assim, protegendo o que estávamos vivendo naquele instante, que por mais que não fosse uma conversa na qual eu estivesse inserida, eu me sentia completa e totalmente dentro do mundo dele.
Foi como se, depois de todos os meses passados, eu finalmente conseguisse visualizar memórias sendo feitas em nosso caminho juntos. E isso me preencheu de uma certeza absoluta: eu estava aprendendo a amar pela primeira vez na minha vida.
Seguimos o almoço no mesmo falatório, se tornando um provável filho adotado de Arlete por sua simpatia, comendo o suficiente para suprir sua energia dos treinos (e ouvindo de Arlete que ele podia ir na casa dela para comer, porque do jeito que ele comeu, ela achou que ele passava fome), e sem pegar no celular ou ser chamado.
Depois de comer, foi a hora da louça. Ele lavou e eu sequei e guardei em meio à brincadeiras que acabaram me deixando totalmente ensopada.
— Muito bom, Doutor. Agora vou precisar ir pegar uma camiseta da Lele — ri com o apelido novo para todos. — porque você me deixou toda transparente. — deixei o pano de cozinha pendurado ao lado da geladeira e me olhei.
— Eu não sabia, morena. — ele riu, ainda limpando a pia. — Não sabia que até o teu sutiã era branco. — moveu as sobrancelhas em ritmo, olhando para os meus seios.
— Não seja sonso! — puxei o pano de prato de volta, jogando nele, que pegou no meio do caminho. — Tu me viu trocar a roupa lá em casa, macho! — revirei os olhos.
secou as mãos e veio até mim, me puxando pela cintura para colar nossos corpos e me beijar, com a outra mão em minha nuca livre pelo cabelo preso.
— Acho que eu fiquei perdido demais com a vista e acabei nem reparando, sabia? — disse baixinho, beijando meu pescoço.
— Mas que demonstração é essa na cozinha da Arlete? Isso é o que duas latinhas de Crystal faz contigo, neném? — gargalhei nervosa. Para me acender não era preciso de muito da parte dele e não tinha a menor chance de fugirmos naquele instante, o jogo tava pra começar.
— Não. Isso é o que uma faz comigo.
Ao passo que ele foi me beijar, fui salva por Rafinha e seu latido ao entrar na cozinha e pular em nós dois. Rindo do susto que tomamos, me afastei amassando o pano de cozinha no peito dele e me recuperando com a distância que fomos tomando um do outro.
— Vou deixar vocês dois a sós para se entenderem. — lancei um beijo no ar e saí.
Ignorei quando e me chamaram, correndo para o quarto de Arlete. A minha camiseta branca tinha o brasão do Flamengo e era um modelo justo que eu tinha comprado na praia de Botafogo numa das vezes que decidi enfrentar meu medo de mar (sem muito sucesso, era só ver aquela imensidão que eu me tremia as pernas), e por baixo dela eu usava um top branco com bojo fino, então pela diversão com água na cozinha, fiquei ensopada e mostrando mais do que deveria. Pela intimidade que já tinha com Arlete, resolvi meu problema pegando uma de suas inúmeras réplicas de camelô de camisas na tradicional cor vermelha do manto e vesti.
Pela minha demora, o jogo começou. Voltei correndo para me juntar aos outros do lado de fora, já ouvindo as piadas de Jorginho por , e não serem flamenguistas, mas parei no meio do caminho quando vi na sala, perto da porta de entrada, falando no telefone. Ele estava muito sério e eu consegui ouvir pouca coisa do viva-voz (e eu sabia que ele só atendida assim as ligações que lhe causavam nervosismo, como, por exemplo, a diretora do São Lucas, mais conhecida como sua mãe).
— Você não vai acreditar, ! — a voz disse e eu me encolhi porque fiquei curiosa.
— Se tu não falar, não tem nem como eu tentar, Salete. — ele levou a mão para a testa.
— Eu juro que vim aqui só para buscar uma coisa que esqueci na minha sala, Doutor, mas não pude ignorar o que estava em cima da minha mesa. — notei que era uma chamada de vídeo. — Está vendo? É uma caixa… É o convite da convenção de quinze dias em Nova York dos estudos neurológicos que o senhor tanto queria que sua… Que a diretora aplicasse o São Lucas! Fomos selecionados!
— Caraca! — soou muito empolgado. — Isso é ótimo!
— Sim! O senhor queria muito! E agora vai poder ver e… Diz aqui no convite que terão vários workshops de tecnologia e inovação na medicina. Aquela neuropsicóloga que o senhor disse que estudou na mesma universidade… A-
— Marie. Doutora Marie Bee.
— Isso. A Doutora Bee vai ministrar palestras no dia do seu check in na convenção!
— Meu check in? — os ombros dele murcharam.
— Sim. O convite está aos meus cuidados, mas com o nome do senhor, Doutor Kim. — Salete estranhou.
— E quando é esse check in?
— Eu acredito que tenha tido algum problema durante o envio de lá para cá, mas o check in do senhor está marcado aqui para a próxima quinta-feira às oito da manhã do horário local. O senhor teria que sair do Brasil na terça-feira no primeiro voo. Posso organizar isso ainda hoje!
Houve um silêncio e não foi apenas vindo dele, mas de mim também, da minha respiração, do meu corpo, do meu coração.
Não havia como eu entrar nessa, era uma competição silenciosa, da qual eu jamais sairia vitoriosa.

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— Como eu sinto falta do meu Vini Júnior. — virou o resto da cerveja que estava no copo, soltando um muxoxo.
— É culpa da visita. Os três são “pé frio”. — Jorginho acusou, deitando-se na rede estendida.
Continuei minha ida até a JBL, dando play na seleção aleatória da playlist que tinha as minhas favoritas de pagode dos anos 2000 a 2010 e as músicas das meninas, como Falamansa da . Arlete me acompanhou quando a primeira tocou. Eu adorava dançar com ela e naquele momento, além de ver meu time perder feio uma partida muito importante para o campeonato brasileiro, estava com a sensação fúnebre depois de ver a conversa de com Salete.
Não ouvi o resto da conversa, corri para o lado de fora e me joguei entre Arlete e , me encolhendo no meio delas como se quisesse fugir e, mesmo se entenderem nada (mas entendendo algo do jeito delas), elas me mantiveram ali durante toda a partida. Nem mesmo se o Flamengo estivesse jogando bem teria sido diferente, eu não acho que alguma coisa fosse capaz de me devolver o brilho. E um dos maiores defeitos sempre foi não conseguir transparecer quando algo me atinge, mesmo que eu não fale.
Minha boca pode se fechar, mas as minhas expressões sempre falarão.
Senti duas mãos segurando em minha cintura e me virei assustada, vendo tão perto. Ele tinha notado a minha mudança drástica de “animação” desde o momento em que Gabigol marcou o dele, mas eu continuei sentada, comemorando sozinha enquanto os outros pulavam e ele tentava me alcançar. Passei a evitá-lo, aliás.
Não tinha como postergar mais, sabia disso e acho que ele também.
— Posso? — ele pediu, sorrindo simples.
— E desde quando tu dança pagode, rapaz? — brinquei, mas sem muita vontade.
— Desde que te vi, morena. — piscou galanteador.
Ao som de Caça E Caçador do Fábio Júnior que tocava na voz dos Inimigos da HP em uma versão de pagode, eu dancei com , colada nele, sentindo o cheiro dele tão perto, notando como eu já era tão familiarizada com a distância.
Soava muito maluco para eu entender essa dinâmica de estarmos tão perto, mas tão distantes um do outro ao mesmo tempo. Mas como dizia na música que estávamos dançando: o amor não tem que ser uma história com princípio, meio e fim.
Além de tudo, serviria como um alívio cômico eu assumir para mim mesma que estava amando-o no mesmo dia que tudo parecia escorregar mais ainda por entre meus dedos.
Foi quando começou a tocar “Eu Nunca Amei Assim” do Jeito Moleque que eu me rendi e me agarrei mais nele, apoiando a cabeça em seu peito.
— Você vai ficar sempre assim quando o Flamengo perder? — me perguntou com um riso fraco, afagando minha nuca. — Não fica assim, não, morena. Eu sou tricolor por mera formalidade, quem gosta mais disso é o e meu pai.
Acabei fungando o nariz para não deixar o bolo da garganta me fazer chorar, mas ele ouviu.
? — chamou e eu não respondi. — Neném… Você está chorando? — nos afastou com cuidado, bem no instante que eu ouvi a voz do ex-vocalista do grupo cantar “Por que você não fica comigo?”, me fazendo ser vencida pelo choro. — Ei, o que tá rolando? — ele segurou em meu rosto, passando os dois polegares nas minhas lágrimas.
olhou ao redor, um pouco perdido e eu só ouvi Arlete pedir que todos entrassem.
— O que houve? Isso não tem nada a ver com o São Paulo ganhando hoje, não né?
Neguei, me afastando mais um pouco e respirando fundo.
— Me desculpa. — pedi baixinho, recuperando a fala. — Eu queria chegar em casa primeiro e conversar depois, mas é que… — solucei com o choro ainda gatilhado.
— Conversar? Sobre o que? — ele deu um passo à frente, eu dei outro para trás.
Tomei um fôlego antes de falar.
— Eu ouvi a sua conversa com a Salete. — suspirei, levando as mãos à cintura.
… — respirou fundo, passando as mãos no rosto. — Eu não falei nada porque ainda não-
— Esquece, . — cortei ele, conseguindo falar sem falhar. — É seu trabalho, é a sua rotina, o seu mundo. E você queria muito isso.
— Mas eu também quero muito cumprir meus planos com você. — rebateu, franzindo a testa. — Tu deveria esperar a gente conversar antes de assumir qualquer coisa.
— Então quer dizer que você vai trocar a convenção super importante em Nova York para levar a pobretona com quem tu tá se relacionando quando pode para Bali?
— Para de se depreciar desse jeito! — pela primeira vez em quase um ano eu o ouvi falar mais alto do que o normal. — E sim, eu pretendo dar um jeito de lidar com os dois. Levar a mulher com quem tenho me relacionado para Bali e também ver ao menos uma palestra em Nova York, tentar marcar uma presença.
— Você já vem dando um jeito de lidar com os dois há meses, . — tentei ser a pessoa calma. — E olha só… Hoje foi o único dia que conseguimos ficar juntos por mais de 12 horas. Mas ainda assim o teu telefone tocou.
— Sim e eu ainda estou aqui, não estou?
— Por quanto tempo? — ri nasalado. — Você não vê? Nós somos de mundos completamente distintos e eu ainda estou iniciando a minha jornada, eu também não posso abrir mão das minhas coisas igual a você.
— Não tem o menor sentido. Eu não decidi nada de Nova York, .
— Isso não é só sobre Nova York! — abri as mãos no ar. — O que eu sou sua? O que somos um para o outro? Estamos há quase um ano nessa, . Quando você pode, é quando eu posso. Só que quando é que você pode ficar comigo? E eu não estou te cobrando, eu não fiz isso nos últimos meses e não vou fazer em nenhum momento. Só que não dá para nós dois empurrarmos tudo para frente como se estivesse bem e saudável. Porque pra mim não está tudo bem.
Nós dois ficamos em silêncio, olhando um para o outro completamente petrificados. Muito provavelmente já sabia que não havia o que ele pudesse dizer e estava tudo bem.
Infelizmente não tinha o que eu pudesse fazer, as nossas vidas trilhavam caminhos distantes. Podia ser o contrário, poderia ser um no lugar dele. Existiam muitas possibilidades, mas no momento, era essa a nossa realidade.
— Eu não sei o que fazer. — demorou, mas ele disse, chegando mais perto e um tanto hesitante, mas eu me mantive no lugar. — Porque eu não consigo me ver numa rotina sem você, .
— A gente não pode continuar se maltratando assim. É bom quando estamos juntos, é ótimo, é perfeito-
— Mas eu não posso te fazer ficar esperando, não é? — era uma retórica. Eu não respondi e ele suspirou. — Me desculpa por não poder fazer diferente.
— Às vezes nem tudo o que a gente quer pode realmente ser como queremos. E eu tô acostumada. — sorri para tentar tirar o clima pesado, movendo os ombros. — Da onde eu venho, neném, as coisas boas sempre terão data de validade. — toquei o peito dele, fechando os olhos por um tempo para evitar mais choro, até sentir as mãos dele me puxarem para ficarmos colados um no outro novamente. Agora, ao som de “O Amor Que Tudo Pode” do Falamansa, foi quem nos guiou devagarinho. — Eu espero que algum dia você possa ver uma sessão inteira. — sorri sincera, me aconchegando nos braços dele, com a cabeça apoiada em seu peito, ouvindo seu coração bater acelerado.
O pior de tudo era poder afirmar, sem narcisismo, que devia se sentir como eu.

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Abri a porta de casa e me assustei com o tanto de papel picado que voou em minha direção, além do barulho misturado de pessoas falando e a música de fundo. Em nossa sala havia mais do que as minhas duas amigas de teto, e meus olhos rapidamente contaram a presença de , , Arlete e Sebastian, que estava parado na saída da cozinha, à direita da porta de entrada, com uma forma enorme em mãos. O cheiro estava ótimo.
Olhei para trás, logo que compreendi, e encontrei o olhar culpado de Jorginho.
— Então é por isso que você me obrigou a aceitar sua carona… — estreitei o olhar e ele moveu os ombros.
— Sim, ele foi nosso cúmplice. — Arlete tomou a frente, vindo até mim. — Vamos comemorar sua ascensão ao Incorp. E com estilo! — olhou para Sebastian.
— Eu fiz una carne de ancho. — ele sorriu, erguendo a forma.
Infelizmente, eu não estava no humor para isso. Na verdade, não só para o ancho, que realmente cheirava bem, mas o todo.
Jorge havia conseguido que o RH me liberasse para finalizar os últimos dias de aviso prévio em casa, e como isso era possível eu não sabia, apenas aceitei. Seria a primeira vez que eu queria passar horas deitada, encolhida, ouvindo alguma coisa da Taylor Swift que me ajudasse a chorar mais do que as músicas do Sorriso Maroto e Marília Mendonça, enquanto abraço o 2Yang e reflito em como o universo não consegue se concentrar em me dar várias felicidades ao mesmo tempo.
Talvez o universo tivesse um gênero e fosse homem.
As últimas 24 horas vinham sendo difíceis demais e, para minha felicidade, o dia seguinte era minha folga (e já a partir dele eu não teria mais que me preocupar de ir para a Barra).
— Não olha com essa cara para o ancho do Sebastian! — ralhou comigo, tomando o lugar de Arlete. — Você vai se sentar com a gente para jantar.
… — , abraçada a , tentou, mas recebeu um olhar direto por cima das lentes no rosto dela, então se encolheu mais contra o namorado. Olhar para ele, inclusive, ali, grudado na minha melhor amiga, me fez sentir o estômago voltar a embrulhar. era o cunhado que eu quase cheguei a ter.
— Tá, tudo bem. — relaxei o corpo, tirando a mochila dos ombros. Jorge se colocou ao meu lado, pegando ela.
— Eu vou levar no seu quarto para garantir que você não entre lá e se tranque. — disse com um sorriso cínico.
— Vamos terminar de arrumar a mesa, você espera. — puxou , seguindo com e para ajudar Sebastian, e eu fiquei com Arlete.
— Como foi o dia, meu bem? — ela me perguntou, fechando a porta atrás de mim.
Suspirei, talvez, pela milésima vez no dia.
— Foi um dia. — cruzei os braços, rindo fraco. — Como todos os outros.
— Isso passa, viu? — suas mãos apertaram meus ombros, me fazendo tomar a direção da mesa. — Lembro a primeira vez que eu e o pai do Jorge brigamos feio a ponto de terminar. Eu fiz uma mala e sumi. Dois dias depois voltei pra casa, eu e três testes positivos de gravidez. O motivo de eu ter me estressado com ele foram os hormônios da gravidez.
Conforme ela ia dizendo, me guiava, e eu me sentei à mesa.
— Depois de uma boa conversa, nós nunca mais nos separamos, até o dia que eu levei ele para uma cirurgia e não pude mais recebê-lo de volta… — Arlete se sentou do outro lado, de frente comigo, e eu fiquei quieta, apenas ouvindo. — Essas coisas passam, querida. Talvez seja apenas o seu hormônio desregulado pelo conteúdo aí no forninho.
— Vira essa boca pra lá, Arlete! — me defendi fazendo o sinal da cruz. — Deus é mais, viu!? Não tem nada aqui não.
O pensamento era absurdo por si só. Eu ainda tinha apenas 21 anos, em fase final de faculdade e trocando de trabalho, não havia o mínimo espaço possível para uma criança — já tinha sido dificultoso encontrar um jeito de fazer caber e, infelizmente, não foi o suficiente —, e talvez nunca fosse ter.
As horas não demoraram muito a passar e eu só fiquei por muito tempo à mesa porque me fez engolir a comida sob sua vigia e eu não tinha a menor intenção de ficar de castigo por ela. Ajudei Sebastian a guardar as coisas quando os dois casais engataram uma conversa empolgada com Arlete e Jorginho, e quando me dei conta, meu corpo estava clamando pela minha cama em um estado diferente. Tentei me despedir deles, mas foi o primeiro a iniciar um assunto empolgado sobre ir ao cinema com eles no dia seguinte.
— É que eu comprei ingressos a mais… Vai ser bom para você… — ele piscou ritmadamente, exibindo o sorriso pontudo e esperançoso.
— Agradeço mesmo, . Mas eu tô precisando ficar sozinha e estudar um pouco… — tentei o meu melhor tom educado, tentando fazer ele entender as entrelinhas que eram bem taxativas com “eu não quero ir a um lugar que claramente irá me lembrar o teu irmão e me fazer chorar em público”.
— Mas você tem que ir! — soou histérico e, recebendo o olhar de todo mundo, murchou o corpo, quase se encolhendo em . — Digo… Você precisa ir…
— Não, eu não preciso. — ri fraco. — E realmente agradeço o esforço de vocês para fazer eu me sentir, mas agora o que eu tenho que fazer é ficar um pouco sozinha. E eu vou comer, fique tranquila. — logo me adiantei com .
— Tem certeza, amiga? O Gael comprou ingressos para a sessão daquele filme que você queria ver… — insistiu docemente.
— Eu realmente quero ficar sozinha e… — suspirei, encolhendo os ombros. — Se eu vou conviver com o irmão do meu ex, preciso primeiro superar o ex.
— Desculpa… — fez uma careta, se encolhendo contra (o impossível).
— Tá tranquilo. Eu só preciso de um tempinho sozinha, só isso. Vai passar. — fiz uma pausa para segurar o choro. — Não é a primeira vez que algo bom surge com prazo de validade na minha vida… — mas falhei miseravelmente, porque olhar para só me fazia lembrar do míope do irmão dele, e o choro saiu com um soluço feio e alto.
e se levantaram juntas e rapidamente para me amparar, logo veio um copo com água e açúcar, porque meu choro ficou feio, muito feio, e eu tremia. Fui levada para o meu quarto e colocada na cama, sem parar de chorar. Sem parar de pensar nele.

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Eu não consegui ficar sozinha.
O cinema estava tão cheio, que acabou sendo uma boa opção não ficar em casa e acompanhar as meninas para a reprise de Titanic que estava tendo, pois agora meu pensamento estava mais focado em me estressar com a fila e o tanto de gente que surgia no Barra nas terças-feiras por causa da promoção do dia, sendo sempre a reprise de um filme antigo. Desta vez era um dos meus favoritos e, no fim, seria uma boa ideia para o meu momento pós término (se é que eu podia chamar de término de relacionamento, haja visto que eu e não éramos namorados, ao menos não oficialmente).
e haviam cancelado porque, nas palavras de , “era um programa para ela e fazerem somente comigo para me dar colo”, e mesmo que eu tenha negado até o último segundo antes de sair de casa, cá estava, saindo da fila da pipoca e indo encontrar com elas na frente da nossa sala.
— Estranho eles terem separado o iMax para essa sessão. — analisei, parando entre as duas. — Tem certeza de que uma pipoca é suficiente? — estranhei, geralmente nós comíamos mais do que isso, mas as duas haviam sido enfáticas me obrigando a pegar uma só.
— Sim. Eu não tô tão afim de pipoca hoje… — sorriu.
Tinha algo no sorriso dela que não me passava normalidade especialmente naquela noite desde que tínhamos saído de casa. E mal parecia concentrada em algo além de seu celular. Se elas tinham a intenção de me fazerem sentir algum bem, alguma companhia, e coisa e tal, estavam falhando. Mas eu não iria reclamar, afinal estavam dando o melhor que podiam e quem aceitou sair foi eu.
Logo a porta da sala foi aberta e eu tentei localizar uma fila, sem sucesso.
! — Kayane, ao sair abrindo a porta, me viu e sorriu feliz. Ela sempre fazia algum trabalho ou outro no cinema quando Jorginho telefonava. — Entra, morena. É só tu e tuas amigas… Por ora.
Franzi o cenho, estranhando a feição forçada dela, e fui sendo empurrada pelos ombros, antes que pudesse responder. e me guiaram sala adentro e eu continuei estranhando o fato de o tanto de gente que estava do lado de fora não formar nem mesmo uma curta fila para entrar ali. Era um clássico do cinema, um clássico da história, quem ignoraria Titanic?
Logo nos sentamos e eu permaneci em silêncio, sentada ao lado de . Estávamos numa fileira bem no meio da sala e em poltronas também no centro, longe do corredor, e parecia que ela queria muito que evitasse qualquer contato comigo. Até que a inquietação das duas foi longe demais e, no momento em que eu me virei para saber o que estava acontecendo, disse primeiro:
, vai vendo aí e a gente já volta!
— O que houve? — estranhei (de novo).
e estão brigando. — puxou pela mão.
— Estão? — ela perguntou, ajustando a pipoca no colo. — Ah, estão… — mudou o tom ao trocar o olhar com .
— Fica aqui, a gente já volta!
Mal tive tempo de reclamar, saiu arrastando pelo braço, derrubando pipoca e tudo. Respirei fundo e me concentrei a olhar para a tela que, logo em seguida, se acendeu com os trailers, antes de sair da sala eu ajudaria a limpar a sujeira.
Ninguém mais entrou e o filme realmente começou. Eu estava sozinha vendo Jack sair correndo até o navio enquanto uma multidão ovacionava o gigantesco casco que iria sofrer uma grande tragédia. Sequer tinha visto qualquer cena mais melancólica e meu rosto já estava molhado pelo choro quietinho. O choro de saudade de , dos momentos que nós dois tivemos juntos e que eu aproveitei como se fossem únicos, como se a qualquer momento pudessem ser tomados de mim — assim como de fato aconteceu.
Assim como em todas as vezes que assisti o mesmo filme, me senti como se já fosse parte da história de Jack e Rose, acompanhando cada cena sem piscar, e me assustei ao ouvir uma voz bem familiar soar do meu lado:
— Eu acreditei por muito tempo que eles eram parte da história real do Titanic.
Meu corpo vibrou e eu fechei meus olhos por alguns instantes antes de virar e me deparar com o sorriso enorme de e as lentes grossas dele refletindo as cenas passadas na telona.
— O que você está fazendo aqui? — foi a primeira coisa que consegui pensar em dizer, embora meu desejo maior fosse pular contra ele e o apertar em meus braços.
— Eu não tinha nenhum outro lugar para ir. — ele respondeu calmo.
— Como não, ? E o negócio super importante lá em Nova Iorque!? — minha voz saiu quase esganiçada.
… — se ajeitou na própria poltrona, ajeitando o óculos na ponte do nariz. — Eu não vou a lugar nenhum que me leve a ficar sem você. Seja viagens por trabalho ou qualquer outro plano que não te envolva, eu não quero. Não na medida certa.
— Mas você já tinha essa vida antes de mim… — suspirei, me encolhendo em meu lugar. — Não quero ser a pessoa que vai te impedir de viver tudo o que sempre desejou só porque quer atenção.
… — respirou fundo, puxando o apoio de braço para tirar qualquer divisória que houvesse entre nós. — Tu chegou na minha vida para me mostrar que eu não preciso ter tudo isso para ser quem eu sempre quis.
— É o seu sonho, neném… — insisti.
— O meu sonho só vai ser completo se eu tiver você comigo.
Foi como se eu estivesse revestida em uma massa de margarina e fosse o calor dentro da sala, e a sala o microondas, me derretendo por inteira. Agora eu chorava mais consciente, porque pela primeira vez na vida havia sido escolhida e não seria apenas uma memória, embora fôssemos ter mesmo uma conversa bem séria sobre o que ele estaria abdicando para estarmos juntos — longe de mim isso, a gente podia fazer dar certo sim.
Me joguei contra ele, como queria fazer desde que ouvi sua voz, me sentindo amparada e confortável em seus braços.
— A partir de hoje eu vou assistir todas as sessões até o fim. — ele segurou meu rosto a poucos centímetros perto do dele. — E com você do meu lado. — por fim, me beijou.




Fim...



Nota da autora: Olá!! Muito obrigada por ter lido. Você pode me encontrar no IG





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