Finalizada em: 18/03/2018

Capítulo Único

O sol escaldante mantinha-se no centro do céu, anunciando o meio-dia. O azul era forte e belo, com algumas nuvens aqui e ali, mas era praticamente impossível olhar para cima por conta da claridade. Vez ou outra, uma leve brisa quente vinda de entre as árvores se misturava com a umidade do ar, deixando uma sensação estranha na pele.
Enquanto se matinha abaixada na parede da trincheira construída no local, a mulher passou os dedos da mão direita entre a gola do uniforme, puxando-a para longe do pescoço o máximo que pôde. Usar roupas tão densas e fechadas no meio da mata não era algo bom, especialmente pela temperatura elevada que oscilava entre os 30 e 40 graus.
Desistindo do movimento que julgou ser inútil, ela retirou o quepe que escondia os cabelos presos num coque e limpou o suor da testa, o colocando de volta em seguida. O calor era tanto que, de certa forma, todos já estavam acostumados. Mesmo que a maior vontade da garota fosse tomar um bom banho gelado e dormir num quarto arejado, ignorou seus desejos, mantendo-se firme.
- Tudo bem aí, Major? – de repente ela ouviu alguém dizer.
Virou a cabeça para o lado, encontrando um dos soldados de pé ao lado de um fuzil, mas ainda escondido pela altura da trincheira escavada no solo e que se estendia por vários metros. O homem a encarava com as sobrancelhas erguidas, mas ela percebeu que ele estava realmente preocupado. Apesar disso, apenas balançou a cabeça uma vez, voltando a fitar as escadas que os auxiliariam a sair dali.
- Mantenha o foco, tenente . – sua voz saiu baixa, mas firme.
- Estou mantendo, Major . – o outro ressaltou o sobrenome, se aproximando da garota. – Apenas quero saber se está bem.
- Estou. – ela respondeu sem olhá-lo, ajeitando seu rifle entre as mãos.
- Sempre tão teimosa. – o mais velho riu, balançando a cabeça. – Nossa mãe não ia gostar nem um pouco de saber que está sendo rude.
- Nossa mãe não está aqui. – a mulher sorriu de forma cínica. – E, enquanto estivermos onde estamos, deve me tratar por Major.
- , não precisa me lembrar disso a cada cinco segundos. – ele a ignorou, soltando um leve riso. – Só quero saber se está mesmo bem. Alguns soldados já passaram mal e foi preciso que os médicos os levassem para serem reanimados. Pelo que eu saiba, você não é de ferro para suportar um clima tão intenso.
- Estou bem, . – suspirou. – Apenas volte para a sua posição.
Abrindo mais um sorriso provocador, o tenente preparou-se para dizer mais alguma coisa. Entretanto, ouviu uma estática em seu comunicador fixado ao ouvido e voltou sua atenção para lá.
- Major , falando, câmbio. – disse ao microfone perto da boca, utilizando um tom de voz mais formal.
- Major , aqui é o cabo Silva, câmbio. – a voz do homem logo foi ouvida.
- Algum problema, cabo? – ela quis saber ao perceber a urgência de sua fala.
- Major, eles chegaram! – o cabo revelou. – E estão avançando na direção da floresta. O objetivo é alcançar as margens do rio Amazonas, pois pelo ar e por água é mais difícil.
- Quanto tempo até chegarem aqui? – tentou manter a calma.
- Entre dez e quinze minutos. – o outro responde. – Eles estão muito bem equipados. Os americanos e os franceses são os responsáveis por essa nova divisão.
- Por onde estão vindo? – ela apoiou a mão esquerda na arma pendurada.
- Pelo lado leste. – ele respondeu. – Com certeza darão de cara com a trincheira, mas eles têm capacidade para superá-la.
- Obrigada pelas informações, cabo Silva. – a disse. – Mantenha sua posição. Câmbio, desligo.
Com um toque leve no aparelho, a estática sumiu e apenas o som da floresta podia ser ouvido. Ainda digerindo as palavras que acabara de ouvir, virou-se para o irmão, que a encarava com uma expressão de alerta. Quando ela acenou sua cabeça apenas uma vez, sustentado seu olhar e voltando a ativar o comunicador, entendeu imediatamente o que estava acontecendo.
- SOLDADOS, PREPAREM-SE! – gritou para todos os homens e mulheres dentro e fora da trincheira por meio do aparelho sonoro. – Uma nova divisão está chegando e precisaremos enfrentá-la, pois o caminho que escolheram passará por nós. Dessa vez, os americanos e os franceses são os responsáveis pelo ataque, então caso vejam qualquer homem ou mulher com a bandeira desses exércitos, têm a ordem de pará-los!
Enquanto ainda falava, a Major via todos se mobilizarem. Levantando-se do chão, colocando os óculos de proteção, carregando suas armas com munição, subindo para tomar posição ao lado dos fuzis ou se posicionando ao lado das escadas improvisadas. Ela fez o mesmo, checando seu armamento antes de se colocar ao lado do irmão, na borda da trincheira. Estavam sobre caixotes de madeira para ficarem mais altos e conseguirem atirar.
Com o coração levemente descompassado, a garota olhou para trás e, ainda que não pudesse enxergá-lo, sabia que aquela era a direção que deveria seguir para conseguir chegar ao motivo de todo aquele conflito. O rio Amazonas, com sua imensa reserva de água doce, talvez não tão esplendoroso como antes, porém, um dos últimos recursos hídricos do mundo.
Aquela era a guerra pela água. Uma guerra predita há várias décadas. Mas ninguém deu ouvidos ao que os especialistas do assunto disseram. Os humanos pensaram que era impossível a água acabar, que havia muitos meios de superar a suposta crise iminente.
Então a crise chegou. E não haviam formas de abastecer os que precisavam. Na verdade, eles sequer tentaram e, como em todos os momentos da história, recorreram ao método mais rápido. Agora, estavam todos ali, lutando por um bem que deveria pertencer a todos.
Batalhavam por água.
Mas esse não era o único problema. Guerras geravam violência e violência gerava morte. Em meio a todos os conflitos, pessoas inocentes sofriam. Para , as casas das famílias que moravam à beira do rio, eram prioridade. Até mais do que proteger a própria água. Afinal, as consequências dos conflitos entre as nações, não poderia recair sobre elas. As casas logo atrás deles não poderiam ser ignoradas.
- Eles vão ficar bem. – falou ao perceber para onde a irmã olhava. – Estão longe da linha de fogo.
- Mas a batalha pode avançar para as margens do rio. – ela observou.
- Não vai. – ele piscou em sua direção. – É para isso que estamos aqui.
Balançando a cabeça uma vez, não respondeu. Apenas permitiu que as palavras dele chegassem à sua mente e as analisou. Era para isso que estavam ali. Para salvar os brasileiros e seus aliados.
- ESTÃO CHEGANDO! – de repente, um grito vindo de alguém que ela não reconheceu, a fez acordar.
- EM SUAS POSIÇÕES, SOLDADOS! – ela disse em resposta. – ESSE É O SEU TESOURO, ENTÃO O PROTEJAM COM SUA VIDA!
Gritos de aprovação foram ouvidos por toda a extensão, vindos de dentro da trincheira e de cima das árvores. A mulher respirou fundo após aquela demonstração da confiança de seus homens. Alguns dos quais ela sequer sabia o nome e que, provavelmente, morreriam. Suspirou fundo, voltando seu rosto para o perímetro à cima, esperando os inimigos surgirem.
Um minuto, dois minutos, três, quatro, cinco...
Então eles começaram a ouvir. O som semelhante ao de muitas águas despencando de uma cachoeira, tão ruidoso quanto uma manada correndo por um pasto aberto. E os gritos. Eram gritos de guerra. Os homens e mulheres que vinham, seguravam entre as mãos armas de todos os tipos. Sua roupa preta contrastou contra a vegetação verde e as bandeiras afixadas no peito de cada um deles fez com que os que aguardavam soubessem que era a hora de atacar.
Mais correria, mais gritos, mais passadas contra o solo avermelhado escondido pelo mato. Os soldados foram aparecendo e então haviam tomado todo o outro lado do campo de batalha. Ferozes e dispostos a conseguir o seu objetivo. Eles queriam a água que o Brasil se recusava a compartilhar e conseguiriam. Custasse o que custar.
Saindo de seu momento de temor, logo retomou sua posição como comandante de sua tropa.
- SOLDADOS, AVANÇAR! – ela deu a ordem pelo comunicador.
Enquanto atirava contra os inimigos junto com os outros posicionados à beirada da trincheira, derrubando um a um, ela viu os outros seguirem sua ordem. Subindo as escadas, vários deles avançaram pelo campo aberto na direção dos rivais. Como o esperado, eles eram poderosos e fortes e estavam em número maior.
- Major, eles estão avançando! – uma mulher se aproximou da . – Derrubaram vários dos nossos.
encarou a moça à sua frente. Lembrava-se dela dos dias de treinamento. Era uma soldada, tão jovem quanto ela. Duas mulheres que lutavam a favor de seu país. Apesar disso, não recordou seu nome e apenas a seguiu para onde ela a guiou.
- O lado leste da trincheira está menos protegido do que o nosso. – a moça dizia enquanto elas caminhavam apressadas. – Precisam de reforços.
- Certo. – ela respondeu, olhando para os lados, avistando alguns soldados. – Você, você e você, venham comigo. Tenente , quero você também.
Juntos, eles correram por onde a Major os levava. Em meio a tiros e explosões de granadas, conseguiram chegar ao seu destino e logo estavam posicionados para continuar combatendo.
- Tenente. – se virou para o irmão.
- Major. – ele respondeu ao mesmo tempo em que recarregava o fuzil.
- Fique aqui com esse grupo. – ela disse. – Vou seguir com a cabo...
- , senhora. – a outra respondeu.
- Com a cabo . – repetiu. – Usem tudo o que estiver à disposição.
- Entendido. – o mais velho respondeu e antes que ela lhe desse as costas, ele a chamou mais uma vez. – E .
- O quê? – ela o encarou novamente.
- Acabe com esses miseráveis! – ele sorriu cúmplice, erguendo o punho fechado em sua direção.
Sem conseguir disfarçar o sorriso que surgiu em seu rosto, a garota também ergueu seu punho para tocar o dele. Era o que sempre faziam para se despedir, desde pequenos, e levaram aquele gesto simples, mas tão significativo, para a vida. Quando as mãos se tocaram, os irmãos trocaram acenos de cabeça e logo desfez o sorriso, pronta para acompanhar a garota ao seu lado.
No instante que abaixou o braço, porém, ouviu alguém gritar de cima de uma das árvores. Mas ela só entendeu tarde demais. Apenas quando arregalou os olhos, a agarrando pela jaqueta verde camuflada do uniforme e girou seu corpo na direção contrária, é que ela finalmente compreendeu.
“GRANADA!”
Enquanto eram lançados para longe, chocando-se contra tudo o que havia pelo caminho, finalmente entendeu o motivo de seu irmão ter tomado a sua frente. Era uma granada de estilhaços. Ele a estava protegendo e o fez por vários instantes, mas o impacto foi muito grande, o obrigando a largá-la. Sozinha, a atingiu o chão com força, sentindo todo o corpo latejar, especialmente seu braço direito.
Urrando de dor, a mulher agarrou o lugar atingido. Ao mesmo tempo tentava focalizar sua visão que encontrava-se nublada graças ao impacto e a poeira que ainda não havia abaixado. Ignorando o sangue que sujava sua roupa e seus dedos, além do zumbido em seus ouvidos, se arrastou pelo solo na direção dos outros soldados, procurando o irmão. Ao alcançá-lo, o puxou pelo colete à prova de balas e se debruçou sobre ele.
- Tenente... – sua voz saiu rouca, mas ela insistiu, o sacudindo com força. – , vamos lá!
Insistente, a garota removeu seus óculos de proteção e o comunicador, deixando-os em qualquer lugar, voltando mais uma vez a atenção para o garoto que tinha um grande ferimento na testa. Desesperada, segurou o rosto de entre as mãos e o chamou mais e mais vezes.
Todavia, não houve resposta.
Analisando o rapaz, só então ela percebeu o sangue manchando o chão ao seu redor. Os estilhaços o haviam atingido em cheio onde o colete não protegia. Com as mãos trêmulas, removeu os óculos de proteção do rosto do mais velho, confirmando o que mais temia. estava morto. Erguendo os olhos, fitou ao redor, encontrando mais corpos. Os soldados que tinham a acompanhando, os que já estavam lá e a garota. Todos mortos.
- Não... – murmurou, mas sequer ouviu o que disse.
Voltando-se para o irmão, apoiou sua testa em seu ombro, prendendo as lágrimas que ameaçavam escorrer. Sua respiração havia se desregulado e as batidas do seu coração contra suas costelas a deixavam à beira de um colapso emocional. Mas ela precisava ser forte, precisava cumprir a sua missão. Não poderia deixar que aquelas mortes fossem em vão.
Após vários instantes criando coragem, finalmente estendeu a mão para o rifle caído a pouca distância. Seus dedos tocaram o armamento frio e, juntando a força que lhe restava, ela o puxou para si.
- Me desculpe... – sussurrou para , mesmo que ele não a pudesse ouvir. – Sabe que preciso ir.
Ajoelhou-se com dificuldade, usando a arma para se apoiar e limpou o sangue que escorria do próprio nariz. Mas antes que se levanta-se, ouviu passos logo acima. Estava tão desnorteada que ao menos teve tempo para reagir quando alguém pulou para dentro da trincheira.
Ofegante e com dores por todo o corpo, a mulher apertou o cabo do rifle. Sem se intimidar, olhou para lá e o viu. Parado de pé, em meio aos corpos, segurando entre as mãos enluvadas uma arma semelhante a sua, estava um soldado inimigo. As roupas pretas o identificaram, assim como a bandeira americana fixada em seu peito, sobre o colete. Os olhos escondidos pelos óculos protetores vasculharam todo o perímetro, até que caíram sobre ela.
Naquele momento, soube que estava morta e ao vê-lo erguer a arma em sua direção, fechou os olhos esperando o seu fim. Então o disparo pôde ser ouvido. Todavia, nada em si mudou. Nenhum dor, a não ser as que já sentia, e isso a deixou confusa. Abrindo as pálpebras, olhou em volta. O homem ainda estava lá, a encarando.
- Clean!(Limpo!) – de repente, ele respondeu em seu próprio idioma pelo comunicador, sem deixar de encarar a soldada um segundo sequer. – But... wait just a minute.(Mas... esperem apenas um minuto.)
Em seguida, abaixou a mão de perto do ouvido, iniciando uma caminhada cautelosa em sua direção. Alarmada, apertou ainda mais o rifle entre as mãos e o apontou para o homem, que parou no mesmo segundo.
- Stop!(Pare!) – ela usou o que havia aprendido daquele idioma em suas muitas aulas teóricas enquanto treinava para o embate que agora se seguia. – Stop or i’ll shoot!(Pare ou eu vou atirar!)
- Go ahead.(Vá em frente.) – largando a arma, que pendeu ao lado do seu corpo sendo segurada apenas pela fivela, o rapaz ergueu as mãos num sinal de rendição.
Sem entender sua atitude, a Major franziu o cenho, mas sem baixar a guarda um segundo sequer. O analisou minuciosamente, tentando entender o que se passava na cabeça daquele homem para se colocar à frente de uma arma inimiga como agora. Por acaso aquele americano desejava morrer? Ficaram parados por segundos, até que o homem soltou um suspiro e voltou a falar.
- Não precisamos fazer isso. – ele disse em português e ela não deixou de perceber seu sotaque carregado. – Não desse jeito.
- O que quer dizer? – engoliu seco sem tirar o dedo do gatilho.
- Nós vamos passar para o outro lado. – ele disse para ela. – Não tente retaliar.
- Acha que vamos, simplesmente, deixá-los passar? – a declaração escapou cheia de descrença e confusão.
- Só queremos a água. – o americano salientou. – Basta abrirem a barreira e tudo termina bem.
- Inacreditável... – um suspiro descontente saiu por entre os lábios sujos de terra e sangue. – Um americano agindo como o dono do mundo. Por que isso não me surpreende?
- Nesse momento, com o mundo à beira do caos, os Estados Unidos não tem orgulho de serem os donos de nada. – ele retaliou, mas manteve sua expressão neutra. – Queremos apenas manter nossa população viva.
- É meio hipócrita querer salvar o seu povo às custas de outro, não acha? – a moça, inclinou a cabeça para o lado, soltando um riso desdenhoso.
- Vocês poderiam ter dividido as reservas, mas não o fizeram. – o soldado disse, suspirando.
- E por isso vocês resolveram se juntar a outros países e começar uma guerra contra nós. – disse indignada. – O mundo já tinha muitos problemas, não precisava de uma terceira guerra mundial.
- Eu sei. – ele insistiu. – É por isso que estou propondo que nos deixe passar.
- Se fizermos isso, também vão tomar conta do que é nosso por direito. – disse entredentes.
- Mas vamos evitar mais mortes. – seu tom se elevou levemente.
pensou em responder algo, talvez lançar um insulto contra aquele homem prepotente, porém, assim que ele se movimentou novamente, voltou ao seu estado de alerta anterior, surpreendendo-se quando ele apenas retirou o capacete e os óculos especiais, ajoelhando-se à sua frente.
Desconfiada com aquele ato, a Major olhou ao redor, constatando que apesar do combate perdurar, eles estavam sozinhos naquela área. Podia ouvir o som de tiros não muito longe, assim como o leve tremor da terra por conta de novas granadas lançadas ao campo de batalha, mas nenhum soldado brasileiro, americano ou francês havia se aproximado.
Claramente, a mulher estava em desvantagem. Ainda que apontasse uma arma carregada para o homem parado a pouca distância, tinha a plena noção de que ele poderia matá-la, bastava querer. O zumbido em seu ouvido direito a incomodava e seu braço latejava por conta dos estilhaços a ponto de deixá-la tonta de dor. Sem contar todos os machucados causados no momento em que foi lançada para longe graças à explosão.
Se estivesse sozinha, provavelmente já teria desfalecido, mas ter aquele homem à sua frente lhe fitando com aqueles olhos profundamente a obrigava a permanecer desperta. Era como se ele quisesse lê-la de dentro para fora. Não poderia vacilar justo agora.
- Você é a Major . – de repente ele disse e ela franziu o cenho. – , para ser mais exato.
- Como sabe... – começou a dizer, mas foi interrompida.
- Eu sou o responsável pelo meu esquadrão. – o soldado respondeu. – O mínimo que deveria saber é quem estaria à frente dos soldados que iríamos enfrentar.
- Você é... – a garota finalmente entendeu, arregalando os grandes orbes. - !
- É bom saber que fez a sua lição de casa. – um sorriso de canto surgiu em seu rosto empoeirado.
- Eu me lembro de você! – sua voz demonstrava surpresa. – Numa das poucas tentativas de acordo.
- Faz dois anos. – ele foi mais específico. – Eu e mais alguns militares de alta patente acompanhamos o presidente dos Estados Unidos que veio pessoalmente ao Brasil tentar convencê-los a aceitar nosso acordo.
- Eu me lembro. – ela balançou a cabeça positivamente. – Eu estava lá.
- Eu sei. – o rapaz imitou seu gesto. – Estávamos todos na mesma sala, discutindo sobre o futuro do mundo.
- Mas não deu muito certo. – suspirou pesarosa.
- Estávamos tão perto... – o Major disse num murmúrio.
- Por que foi preciso que chegássemos a esse ponto? – ergueu o rosto, encarando-o.
Sem uma resposta plausível, o Major apenas balançou a cabeça negativamente, mostrando que ele não fazia a mínima ideia. Estavam ali seguindo ordens. Ninguém queria uma guerra, mas não havia escolha. Haviam sido recrutados por suas nações e deveriam cumprir sua missão.
Mas a custo de quê?
Quando vidas precisariam ser ceifadas para que aquele inferno finalmente terminasse?
Sentindo seu coração se apertar mais uma vez, a moça virou o rosto, deixando que seu olhar corresse até o irmão que jazia desacordado a uma distância de poucos passos. Ele havia se sacrificado por ela, mas a mulher não poderia ao menos chorar a sua perda. Não enquanto aquela guerra continuasse. Travando o maxilar para evitar que as lágrimas viessem, voltou a encarar o homem parado à sua frente.
- Você disse que não quer mais mortes. – a mulher engoliu seco, continuando a falar. – Eu também gostaria que isso terminasse, mas as coisas não são tão simples.
- Major... – o rapaz deixou seus pertences no chão e se aproximou dela.
Cautelosamente, ergueu a mão direita na direção de . Diante de seus olhos, segurou o cano do rifle e a encarando, o abaixou até que estivesse apoiando no colo dela. Ela piscou algumas vezes sem compreender porque ele o fazia e mais ainda o motivo de permitir que ele a desarmasse sem qualquer resistência de sua parte. Pensou em empunhar sua arma novamente, todavia, a voz de chegou aos seus ouvidos, cobrindo o som dos disparos que agora estavam mais próximos do que antes.
- Você é a líder desse batalhão. – disse com os dedos ainda sobre o rifle. – Uma ordem sua e passamos.
- Em troca de quê? – ela ergueu as sobrancelhas e não permitiu que ele dissesse nada, continuando. – Como posso saber se tudo isso não passa de uma armadilha?
- Quê? – o homem murmurou.
- Estamos sozinhos a mais tempo do que seria normal, conversando como se estivéssemos sentados à beira do mar e não numa guerra. – suas palavras eram firmes. – Sei que existem soldados inimigos por perto esperando a sua ordem para prosseguir. Acha mesmo que posso confiar em você, Major ?
O homem permanecia paralisado diante das palavras de . No momento que a encontrou soube quem ela era, mas achou que por ela estar debilitada, não teria forças para lutar, que dirá para raciocinar como o fazia naquele instante. De fato, estava surpreso com seu pensamento rápido e teria dito isso caso tivesse chance. Entretanto, antes que pudesse mover os lábios, ouviu o som de vozes a poucos metros.
Imediatamente, o homem soube que eram brasileiros e entrou em alerta. Largando a arma de , a olhou mais uma vez antes de se erguer e olhou na direção do som das passadas.
- Última chance. – ele disse para ela, fitando-a com expectativa.
- É melhor sair daqui, Major. – a mulher disse de forma decidida. – Não vai ter uma segunda chance.
Franzindo o cenho diante daquela declaração, deu dois passos para trás, levando as mãos até sua arma que permanecia pendurada pela fivela. Fitou o perímetro, encontrando uma escada improvisada a pouca distância, decidindo que era por ali que escaparia. Encarou mais uma vez, notando que seus óculos e seu comunicador havia ficado ao lado dela.
Não teve tempo para voltar e pegá-los, pois alguém gritou que inimigos haviam adentrado a trincheira, fazendo-o correr até a escada que o levaria na direção do rio. Ao perceber para onde ele iria, tentou atirar, mas já era tarde. Com uma agilidade impressionante, saiu de seu campo de visão, lançando-se para cima junto com sua arma.
Ainda ajoelhada apenas ouviu sua voz vir lá de cima e entendeu no mesmo segundo o que ele quis dizer.
- IN FRONT! (Em frente!) – foi a última vez que o ouviu.
Em seguida, os gritos de guerra preencheram o ambiente à sua volta. Quando o primeiro homem pulou para dentro da trincheira, seu reflexo a fez atirar contra ele, o derrubando no mesmo momento. Porém, sabia que sozinha não teria chances.
Quando se preparava para atacar novamente, se levantando do chão mesmo que com dificuldade, ouviu os disparos vindos de trás de si. Olhou para lá por cima dos ombros e suspirou aliviada ao ver seus soldados vindo em seu auxílio. Alívio que não demorou muito, pois logo mais soldados inimigos tentaram invadir o lugar.
Diante de seus olhos, mais soldados começaram a adentrar a trincheira. Estavam num número maior do que os seus, mas eles tinham a vantagem por terem um campo de visão melhor. Com precisão, a mulher atirou nos que se aproximaram, mesmo sentindo dores por todo o corpo. Ignorando o fato de estar visivelmente machucada, deixou que a adrenalina tomasse conta de suas veias e combateu aqueles que cruzaram o seu caminho.
Quando se virou para disparar mais vezes, percebeu que sua munição havia terminado. Com agilidade, usou o fundo do rifle para desferir um golpe certeiro no rosto de um francês que tentou derrubá-la. Sem cerimônias, largou sua arma e pegou a dele, disparando em duas soldadas que vinham em sua direção. Acertou uma delas, mas a outra se desviou dos disparos e conseguiu desferir um chute em seu braço, derrubando sua arma.
Desarmada, encarou a garota que aparentava ter sua idade. Apesar de ter os olhos cobertos pelos óculos especiais, um sorriso zombeteiro surgiu na face da americana. Sem opções, a brasileira retirou uma faca do seu cinto, a empunhando com firmeza. Sem desmanchar o sorriso, a outra ergueu seu rifle e disparou contra a Major.
Usando de seu reflexo apurado, ela se lançou contra o solo e rolou até estar próxima da americana. Sem hesitar, deu-lhe uma rasteira e a soldada foi ao chão, deixando um urro surpreso escapar por entre os lábios. Rapidamente, a Major correu até ela e a imobilizou, tirando-lhe a arma e apontando a faca para seu pescoço.
- I know who you are!(Eu sei quem você é!) – a americana disse enquanto tentava se libertar das pernas que prendiam seus braços.
- And?(E?) – a outra ergueu as sobrancelhas.
- You could let us through.(Você poderia nos deixar passar.) – a soldada berrou. – And end the war!(E acabar com a guerra!)
arregalou os olhos desprotegidos diante das palavras da moça. Mais uma vez um americano dizia que ela poderia ser a responsável pelo fim da guerra. Mas como? Ainda que fosse a responsável pelo batalhão que protegia diretamente o rio Amazonas, sua ordem não tinha um peso tão grande assim. Ainda que fosse uma Major das forças militares brasileiras, existiam muitos outros que estavam numa patente mais alta que a sua e que gozavam de muito mais poder.
Levemente distraída, não percebeu o momento que a moça ergueu o joelho e acertou um golpe em sua cabeça, a lançando contra o chão avermelhado. Tentou reagir, mas a soldada americana foi mais rápida e pegou sua arma novamente, a apontando para ela. Todavia, antes que atirasse, um disparo pôde ser ouvido, a alvejando de uma só vez.
Quando a soldada despencou num só baque, olhou para frente, tentando ver de onde o tiro havia vindo. Surpreendeu-se ao encontrar a cabo ajoelhada entre os corpos, segurando uma pistola. Ela ofegava, coberta de sangue, mas ainda assim se escorou pelas paredes da trincheira, erguendo-se a muito custo.
Ao perceber o estado deplorável da garota, a agiu imediatamente, pegando a arma da americana agora sem vida. Habilmente, mirou em dois homens que iam contra sua aliada e os matou. Em seguida, se levantou e correu até ela, a amparando.
- Soldada! – a segurou antes que ela caísse.
- Major... – a cabo respondeu num sussurro.
- Você não está em condições de continuar aqui. – disse olhando para todos os lados. – Vamos tirá-la desse lugar.
- Não! – a mais nova insistiu. – Eu posso continuar.
- Isso é inaceitável! - rebateu. – Eu vou tirá-la daqui.
Olhando mais uma vez ao redor, constatou que havia menos soldados do que antes. Por enquanto, nenhum deles tinha a vantagem, mas ela poderia escapar. Viu a escada improvisada e pensou em correr até ela, porém, pensou que talvez a garota não conseguisse acompanhá-la e ainda que sim, a subida não era tão fácil para uma pessoa ferida.
Antes que precisasse resolver aquele dilema, avistou um soldado um pouco mais velho que ela se aproximar. Ele vinha a passos largos e a cruz vermelha em seu braço o identificava como um médico de combate. A major esperou ansiosamente por ele, mas assim que o homem se desviou dos corpos entre elas, um disparo foi realizado contra o médico, o derrubando antes que as alcançasse.
- Não... – murmurou, observando-o abismada, pois sabia que ele era o único médico presente na trincheira.
Ainda sem acreditar, apertou seu rifle com força e o ergueu para defender a garota de outros inimigos que se aproximavam. No entanto, um dos soldados de seu batalhão assumiu esse papel. O homem disparava sem hesitar, acertando todos os alvos possíveis, usando de sua visão aguçada que era coberta pelos óculos especiais, se aproximando das soldadas de costas para elas.
- Sargento Matos! – o chamou alto assim que uma ideia lhe encheu a mente.
- Sim, Major! – ele respondeu sem encará-la, continuando os disparos.
- Preciso que me dê cobertura. – deu a ordem.
- Entendido! – o sargento respondeu sem pensar duas vezes. – Apenas siga e estarei logo atrás.
Sem demorar mais um minuto sequer, passou a fivela da arma pelo ombro e fez o mesmo com o braço direito da cabo . A levantou com um pouco de dificuldade, afinal, também estava ferida, e começou a caminhar na direção da escada improvisada. Fez a garota subir degrau por degrau enquanto o sargento permanecia às suas costas, protegendo o perímetro. Quando a soldada finalmente chegou do outro lado, a Major se virou para o homem.
- Vou levar essa soldada a um lugar seguro. – anunciou. – Tome conta de tudo até eu voltar.
- Entendido, senhora. – o mais velho respondeu.
Sem esperar mais, subiu os degraus com a agilidade que lhe restava, logo alcançando a superfície que as levaria em direção ao rio. Foi até a garota, a ajudando a se erguer e a conduziu pela floresta a passos mais lentos do que gostaria. Sabia que não teria forças para carregá-la, por isso resolveu se concentrar no que poderia fazer naquele instante.
Se aproximaram do jipe pertencente a eles, estacionado perto de alguns arbustos. Porém, ao se lembrar que a chave do veículo estava com o médico agora morto, praguejou sua falta de atenção. Não poderia voltar, era muito arriscado. Sem escolhas, continuaram a pé.
Enquanto avançava pela vegetação densa, a Major segurava a soldada com a força que lhe restava, mantendo sua atenção fixada no perímetro ao mesmo tempo em que fazia de tudo para não tropeçar em nenhum galho. Foram por alguns metros, até que a mais nova cedeu às dores e se ajoelhou, obrigando a fazer o mesmo.
- Eu... não consigo... – a garota sussurrou, soltando um gemido agonizante.
- Soldada, vamos lá, você consegue. – a disse entredentes, tentando erguê-la novamente.
- Eu não consigo... – agora as lágrimas já se faziam presentes nos cantos dos olhos escuros. – Me desculpe, me desculpe...
- Nada de pedir desculpas. – a Major balançou a cabeça, passando seu braço na cintura da outra. – Vamos sair daqui.
- Eu só estou atrapalhando. – a cabo abaixou a cabeça. – Major, a senhora precisa seguir sem mim.
- Qual o seu nome? – ela perguntou.
- , senhora. – a garota respondeu.
- , você é uma soldada que faz parte do meu batalhão, o que me faz diretamente responsável pela sua vida. – parou de tentar levantá-la e tomou sua frente, a olhando nos olhos. – E eu não abandono meus soldados, em hipótese alguma.
- Mas... – a moça insistiu. – Eu não posso mais ajudar, não sirvo mais pra nada.
- Isso não interessa. – surpreendendo sua companheira, a Major abriu um sorriso singelo, mas ainda assim sincero. – Você é um ser humano. Acima de qualquer coisa, é a sua vida e a vida de todas essas pessoas que verdadeiramente importa.
- Senhora... – a tentou dizer, mas uma dor aguda em seu abdômen a fez se encurvar ao mesmo tempo em que apoiava a mão sobre o local.
- Já estamos aqui a tempo demais. – disse, retirando a fivela do rifle do ombro, deixando o armamento no chão.
- E pra onde nós vamos? – ela questionou, confusa.
A muito custo, as duas colocaram-se de pé e passou o braço da companheira de batalha sobre seus ombros, segurando sua cintura com as mãos sujas de sangue seco.
- Para um lugar longe do combate. – respondeu, iniciando sua caminhada.
A conversa se encerrou naquele instante, pois precisavam poupar o máximo de energia. Deram os primeiros passos, agora ainda mais lentos do que inicialmente, já que com a queda de adrenalina também começava a sentir as dores lhe dominarem.
Ofegante, a brasileira procurou deixá-las de lado, mas a cada segundo se tornava mais difícil. Seu braço atingido pelos estilhaços voltara a latejar e o zumbindo em seu ouvido, ainda que mais longe, a incomodava. O cheiro de sangue misturado com terra e suor começava a lhe embrulhar o estômago e o calor deixava tudo ainda mais insuportável.
Vagando pela floresta amazônica, sob o sol escaldante do meio do dia, ela finalmente decidiu para onde ia, direcionando sua soldada para cada vez mais longe da batalha. Em certo momento, não ouviram mais nada, apenas o som dos pássaros nos galhos mais altos das árvores, assim como o das águas que corriam logo à frente.
sabia que estavam próximas das margens do rio e que mais alguns metros seriam suficientes para o alcançarem, assim como as palafitas que ficavam lá. Todavia, desfaleceu diante de seus olhos, caindo num só baque, pois ela não conseguiu mais segurá-la. Preocupada, abaixou-se ao seu lado, tirando seu colete e abrindo sua jaqueta camuflada, checando a pulsação em seu pescoço.
Respirou mais calma ao constatar que a mulher ainda estava viva, mas o fato de ter desmaiado deixava as coisas ainda mais complicadas. Fechando os olhos com força, tentou encontrar uma solução para aquela questão, mas nada parecia vir-lhe à mente. Precisava retornar para o campo de batalha, porém, não poderia deixar aquela soldada para trás. Não, ela nunca a deixaria, assim como não deixaria nenhum outro.
Mas como tirá-la dali?
Enquanto ainda ponderava de cabeça baixa, a Major ouviu um ruído atrás de si. Era como o som de um galho se partindo. Imediatamente, abriu as pálpebras, continuando com a cabeça abaixada. Sem movimentos bruscos, tentou analisar de onde o som vinha. Apenas deslizou sua mão esquerda lentamente até tê-la sobre o coldre da outra deitada ao seu lado. De lá, retirou a pistola e a destravou.
Ao ouvir mais um barulho suspeito, duplicou sua atenção, levando o dedo ao gatilho. Em segundos, conseguiu identificar a origem dos ruídos e concluiu que aquelas eram passadas de uma pessoa.
- Sei que está aí, seja você quem for. – disse sem receio algum, não esperando qualquer resposta. – Por que não aparece para que possamos decidir isso de forma justa?
- Porque não seria justo lutar contra uma pessoa machucada que está tentando proteger outra ainda mais comprometida. – a voz soou mais perto do que ela imaginou.
E assim que seu cérebro assimilou o seu timbre, juntamente com o sotaque carregado, a mulher arregalou os olhos , sabendo exatamente quem estava às suas costas. Sem acreditar, virou-se na direção da pessoa, a encontrando parada a alguns metros de costas para o tronco de uma árvore. Segurando seu rifle à frente do corpo, o homem a encarava sem qualquer expressão.
- Major ... – disse, tentando não demonstrar a surpresa que sentiu ao vê-lo ali.
- Major . – ele respondeu respeitosamente.
- O que está esperando, por que não atira? – ela franziu o cenho ao vê-lo estático, apenas segurando a arma com firmeza. – A mira de seu rifle está exatamente na minha cabeça, não há como errar.
- Porque, como eu disse, não seria justo. – pela primeira vez ele se moveu, segurando a fivela do armamento e o colocando para trás. – Right?(Certo?)
Sem mais palavras, se aproximou das jovens e, diante do olhar ferino de , se ajoelhou ao seu lado. A encarou nos olhos por longos segundos, mas logo voltou a atenção para que permanecia desfalecida.
- Ela foi atingida pela bomba de estilhaços. – disse antes de qualquer pergunta.
- Então deveria estar morta. – o homem pegou o pulso da soldada e o averiguou.
- Eu também deveria. – ela rebateu, fazendo-o fitá-la novamente. – Então creio que ainda há como salvá-la.
- Apesar de ainda estar respirando, ela logo vai entrar em colapso, especialmente se algum órgão vital foi atingido. – negou com a cabeça, fitando a camiseta interna da garota machada de sangue. – Pelo que parece, foi o que aconteceu.
- Não. – a Major balançou a cabeça freneticamente. – Podemos salvá-la, pelo menos... tentar.
- Como? – o rapaz franziu a testa.
- Temos... alguns médicos alojados nas palafitas. – respondeu a contragosto, pois não se alegrava de compartilhar aquela informação com um inimigo. – Se eu leva-la até lá, eles podem tentar algo até que a tirem daqui e a levem a um hospital.
O americano acompanhava a explicação da mulher sem deixar que nenhum detalhe escapasse. Percebeu que ela não gostaria de ter revelado aquela informação, mas que o fez para ajudar sua soldada em apuros. Ainda a encarando, acenou positivamente com a cabeça. Em seguida, se virou para e passou seus braços sobre o seu corpo, a trazendo para si.
Alarmada com aquela atitude, o agarrou pelo pulso, obrigando-o a parar. Ao se encararem, ela percebeu que estavam muito próximos e que suas respirações lutavam para que soubessem qual deles estava mais ofegante.
- O que pensa que está fazendo? – a brasileira continuou a segurá-lo.
- Você não vai conseguiu levá-la, não é? – sua pergunta saiu mais como uma afirmação.
- E como pode saber? – não se deixou abalar, erguendo as sobrancelhas.
- Também foi atingida pelos estilhaços. – o homem ergueu a mão livre, tocando a manga da jaqueta dela, que já se sujava de sangue.
- Não posso pensar nisso agora. – engoliu seco, sentindo-se incomodada com aquele olhar observador. - A vida dos meus soldados vem antes da minha.
- Não enquanto continuar debilitada. – continuou com seus dedos apoiados no tecido sujo.
- Não estou debilitada! – foi rápida em rebater.
- Mas logo estará. – o homem também elevou um pouco a voz. – Está perdendo sangue. Será que não percebe?
não pôde contestá-lo, sabia que o que aquele homem lhe dizia era verdade. Ela mesma já havia previsto que, em algumas horas, estaria tão mal quanto a cabo ou quem sabe ainda pior caso não recebesse algum tipo de tratamento básico.
Respirando fundo, olhou ao redor, ponderando por breves instantes. Ao se decidir, correu os olhos até , encontrando os seus sobre si. Com um breve aceno de cabeça, mostrou que concordava com suas palavras. O americano imitou seu gesto e essa foi a deixa para que libertasse seu braço. Ainda receosa, abriu os dedos aos poucos e ele esperou que se afastasse por completo e só então fez um primeiro movimento.
Sem demonstrar qualquer tipo de receio, retirou a fivela dos ombros e estendeu a arma para a mulher, que a pegou com cautela.
- Isso vai adiantar as coisas. – ele explicou.
Então se inclinou sobre , a pegando com cuidado e se levantando devagar. Após passar a fivela da arma do Major sobre os ombros, também se ergueu, mordendo os lábios ao sentir uma pontada aguda em seu braço lesionado. Respirando fundo, segurou a pistola com firmeza e se aproximou do rapaz.
- Sabe aonde ir, exatamente? – ele ergueu as sobrancelhas.
- Me siga. – a mulher respondeu apenas.
Sabendo que o tempo não estava a seu favor e ainda receosa por receber a ajuda de um soldado rival, a mulher avançou pela mata, permanecendo a uma distância de poucos passos. Não precisou ir devagar, pois não estava machucado e se demonstrava fisicamente disposto, apesar da batalha. Na realidade, ele estava muito melhor do que que tentava a todo custo ignorar a dor no membro superior.
A caminhada durou alguns minutos e não demoraram a avistar o rio e as palafitas que ficavam a vários metros da margem, interligando-se por meio de pontes menores, tendo uma maior de madeira que os levava à terra firme. Entretanto, havia mais e a Major viu assim que seus olhos treinados correram para adiante.
- Espera! – disse, colocando o braço na frente de .
- O que... – o homem começou a dizer, mas a sentença morreu em meio aos lábios assim que percebeu o motivo da hesitação dela. – Damn it!(Droga!)
praguejou assim que avistou as embarcações brasileiras. Eram em torno de quatro navios de guerra e estavam mais próximos da margem do que o normal, o que só poderia significar que eles já sabiam sobre o ataque e estavam prontos para enviar reforços. Entre eles, havia um navio de assistência hospitalar e provavelmente era para lá que a Major desejava levar a garota.
- Então o que encontramos lá atrás foi apenas uma distração. – disse de repente, fazendo-a encará-lo como cenho franzido. – Também é responsável por esses navios?
- Um deles está sob minha responsabilidade. – ela voltou a fitar as embarcações. - Os outros três não.
- Eu deveria saber que um país como o Brasil seria muito mais forte em água do que em terra ou no ar. – caminhou mais um pouco e então se abaixou, colocando no chão com cuidado.
- Não podemos deixá-la aqui. – disse, confusa.
- Me desculpe, mas não posso avançar mais, eu seria uma isca fácil. – ele se levantou, indo até ela e parando em sua frente. – Além disso, caso a vejam comigo, vão considerá-la uma... traidora.
- Se os seus soldados o vissem comigo também pensariam o mesmo. – a mulher o olhou nos olhos. – So... why did you help us? (Então... por que você nos ajudou?)
Soltando um longo suspiro não deixou de encará-la, permitindo que as palavras chegassem à sua mente. Apesar do sotaque da mulher, tinha que admitir que ela falava muito bem o inglês, uma das melhores que viu no país até o momento. Todavia, sabia que o motivo dela ter se dirigido a ele em seu próprio idioma era mais do que uma demonstração de fluência. desejava que ele fosse sincero e ele seria.
- Quando a guerra começou, eu e meus dois irmãos mais novos não perdemos tempo em nos alistar. – começou a falar.
- Irmãos? – ela questionou.
- Um garoto e uma garota. – o rapaz balançou a cabeça positivamente.
- O que isso tem a ver com a minha pergunta?
- Apesar as dificuldades, estaríamos batalhando por algo justo, a salvação do nosso povo. – ele disse
- Aonde quer chegar? – ela insistiu.
- Você já parou para pensar o que estamos fazendo com o mundo? Desde o momento em que tudo isso começou, estamos nos tratando como inimigos. – o homem respondeu. – No começo a coisa não passou de uma guerra fria, onde os Estados Unidos e seus aliados tentavam fazer o Brasil mudar de ideia. Mas isso não deu certo.
- E agora estão aqui tentando nos obrigar a abrir caminho. – a mulher foi ríspida.
- Esse é o problema. – o soldado abriu os braços. – Enquanto não houverem acordos, enquanto o combate continuar, mais vidas serão perdidas e nada será resolvido.
- Sabe... – semicerrou os olhos. – É estranho ouvir isso, justamente vindo de um Major. Você é um líder, está à frente da guerra, então como pode ser tão hipócrita?
- Eu não estou aqui pela guerra. – foi rápido em rebater. – No começo até poderia estar, mas agora não mais.
- E por que não? – ela riu sem humor.
- Por que, no momento em que vi meus dois irmãos serem despedaçados por uma mina terrestre, eu percebi que nada disso vale a pena. – respondeu, deixando que sua voz se elevasse.
Arregalando os olhos diante daquela declaração, deu um passo para trás sem perceber. Ainda encarava e podia ver a dor em seus olhos apenas por falar sobre os irmãos e ela sabia como ele se sentia. Agora que ele havia mencionado o fato, era como se suas mentes estivessem conectadas, partilhando daquela agonia. Aquele aperto no peito misturado com uma sensação de sufocamento. Era como estar se afogando, mas sem ter quem pudesse puxá-lo para fora da água.
Não, era ainda pior.
Era horrível a ponto de não saber como explicar. Doía cada músculo de seu corpo apenas por pensar no irmão e que não o teria de volta. Mais uma vez, as lágrimas ameaçaram voltar, porém, a Major se manteve firme, cerrando o maxilar e engolindo em seco.
Enquanto ainda lutava contra seus sentimentos, viu o homem se aproximar novamente, ainda mais do que antes. Sem dizer nada, ele levou as mãos até o pescoço, retirando algo de lá. Então, ergueu o objeto e ela pôde ver o colar prateado com um pequeno pingente em formato de pomba da mesma cor.
- Minha irmã me deu isso antes de sairmos de casa. – pela primeira vez um pequeno sorriso moldou os lábios do homem. – Ela disse que não estávamos lutando para vencer e sim para alcançar a paz. E eu acredito nela. É por isso que, desde que a vi morrer, não matei mais ninguém e não atirei em você. E esse é o mesmo motivo de eu ajudar essa garota.
A Major permanecia atônita diante de suas palavras. Esperava que ele fosse sincero, mas nunca imaginou que aquele homem lhe revelaria tanto em tão pouco tempo. Tentou dizer algo, mas ele foi mais rápido e estendeu o colar até a moça. Sem hesitação de sua parte, o colocou em seu pescoço sem deixar de encará-la.
- Esse é o símbolo da paz e eu estou dando a você, Major. – ele disse.
- Por quê? – sua voz saiu mais fraca do que gostaria.
- Porque sei que que o seu desejo é o mesmo. – ele sorriu novamente. – Desde o momento que a vi e sei que não estou enganado.
- O que eu poderia fazer? – ela questionou, confusa. – Essa guerra não é minha?
- Vai saber quando chegar a hora. – o rapaz respondeu, finalmente se afastando.
Ainda se olhavam nos olhos, como se pudessem se entender apenas com aquele gesto. Dois soldados de nações rivais em meio a uma floresta conversando sobre seus sentimentos. Algo incomum, que jamais pensou viver. Mas lá estava ela de frente para e mais confusa do que já esteve um dia.
Só voltaram à realidade quando ouviram um gemido baixo vir da cabo . Alarmada, a Major correu até ela, se ajoelhando ao seu lado. também veio, mas sabia que não poderia fazer mais nada.
- Preciso tirá-la daqui logo. – murmurou.
- É melhor chamar reforços. – ele disse. – Preciso ir agora.
Se levantando novamente, a garota retirou a arma dos ombros e a devolveu ao seu dono, que a pegou. Enquanto ainda se encaravam, pigarreou e disse algo que nunca teria dito antes a um inimigo, muito menos a um americano.
- Obrigada... – a palavra saiu a muito custo.
- Não foi nada. – o homem negou com a cabeça. – Apenas lembre-se do que eu disse.
A Major não respondeu, apenas balançou a cabeça em afirmação. Com isso, lhe lançou um último olhar antes de seguir mata à dentro. Quando o perdeu de vista a voltou até a soldada desacordada, checando seu pulso que agora estava mais fraco. Preocupada, usou as forças que lhe restavam e correu até as palafitas em busca dos médicos que permaneciam lá.
Enquanto seguia a passadas rápidas, deixando-a ainda mais ofegante, olhava em volta tentando encontrar um dos médicos que estavam alojados nas palafitas. Quando saiu de entre as árvores, viu uma mulher na porta de uma das casas. Tinha longos cabelos negros e a pele morena típica da região. Em seu colo estava uma criança, uma garotinha que tinha as mesmas características que a mãe.
Sem demora, a soldada ergueu as mãos para ela, as sacudindo freneticamente, ao mesmo tempo em que clamava por ajuda.
- OS MÉDICOS... – a mulher persistiu. - CHAME OS MÉDICOS!
A ribeirinha demorou um tempo para entender o que a outra dizia, mas assim que compreendeu seu pedido, arregalou os olhos e correu para beirada de sua varanda, chamando as pessoas que moravam na casa vizinha.
Quando já alcançava a ponte, a porta foi aberta e duas pessoas saíram na varanda. Suas roupas eram iguais às de , iguais a de todos os outros pertencentes ao exército brasileiro. Carregava um verde camuflado e a bandeira brasileira estava fixada em seus braços esquerdos. A única diferença era a cruz vermelha fixada na manga direita dos uniformes militares e a ausência do colete à prova de balas.
Assustados, a mulher e o homem olharam para a mulher na outra casa e esta apontou para a , que agora já corria sobre a ponte estreita. Ao notarem sua superior, os dois correram em sua direção, encontrando-a ao final da ponte principal.
- Major ? – o homem se aproximou primeiro, semicerrando os olhos negros, estranhando o fato de ter sua superior ali. – O que houve?
- Major! – a outra médica se aproximou, apoiando a mão no ombro da outra, que ofegava violentamente.
- Pires... – a mulher se virou para a médica. – Traga uma maca, imediatamente!
- Sim, senhora! – a moça balançou a cabeça e refez o caminho, adentrando a casa.
- Aragão... você vem comigo. – se virou para o homem.
- Entendido. – ele respondeu sem questionar.
Apesar das dores, que agora se somava ao queimar em seus pulmões causado pela corrida acelerada, ela correu novamente. Seu subordinado a acompanhava de perto, respeitando sua velocidade, pois logo percebeu que a Major precisava de tratamentos. Todavia, seguiu primeiro sua ordem para depois lhe prestar os serviços necessários.
Não demoraram a alcançar e assim que pararam ao seu lado, o médico arregalou os olhos, deixando que um suspiro preocupado escapasse entre os lábios, constatando que seu estado era crítico.
- O que aconteceu com ela? – perguntou, apesar de já desconfiar.
- Uma granada. – ela disse apenas. – Vamos levá-la pra dentro, conversamos sobre isso quando estivermos lá.
- Entendido. – respondeu sem questionar.
Com cuidado, o médico de combate a pegou entre os braços e caminhou até a saída da mata. Simultaneamente, a doutora Pires vinham com a maca e apertou a corrida, parando perto deles, abrindo a maca no chão. Juntos, os dois a ergueram, levando-a para a casa onde estavam atendendo os soldados que haviam passado mal por conta do calor excessivo.
os seguiu de perto e logo adentraram o lugar. Uma pequena casa de madeira com poucos cômodos, onde um casal vivia com três filhos e esperavam o nascimento do quarto bebê. Naquele momento, apenas a mãe e as duas mais novas que aparentavam ter entre três e quatro anos de idade, estavam na casa.
Na sala, os poucos móveis haviam sido afastados e algumas macas estavam dispostas uma do lado da outra. Nelas, os soldados jaziam, recebendo soro para tratar a desidratação. Os médicos responsáveis por eles colocaram a maca da soldada machucada um pouco mais afastada e imediatamente, a mulher tomou as providências básicas. Quanto ao doutor Aragão, este tentava entrar em contato com o navio de assistência hospitalar.
- Aqui é o doutor Aragão, alguém na escuta? Câmbio . – ele falava por meio de um walkie-talkie. – Alguém na escuta?
Enquanto o homem tentava uma comunicação, a Major se aproximou da doutora, que agora vestia um jaleco branco por cima do uniforme, assim como luvas brancas esterilizadas.
- Precisa de ajuda? – ela disse.
- Sim. – sem perder o foco um instante sequer, a outra disse e apontou um frasco ao alcance da mão. – Limpes as mãos com álcool em gel e coloque as luvas.
Sem dizer nada, o fez e voltou a se aproximar delas. A médica já havia retirado a jaqueta de e agora se preparava para cortar sua blusa com uma tesoura. Levaram alguns minutos limpando os machucados da soldada que eram profundos. Os estilhaços a haviam atingido na altura do abdômen, lugar onde o colete não protegia.
- Provavelmente os intestinos foram atingidos. – a médica disse, retirando as luvas. – Não podemos fazer mais nada aqui, precisamos ir para o navio e tentar...
- Vamos salvá-la. – a cortou, recebendo um olhar compreensivo.
- Major, a senhora mais do que ninguém, deve compreender a situação. – ela disse. – Vamos fazer o possível, mas só o fato dessa soldada ainda estar respirando já é um milagre.
- Eu sei. – a engoliu seco. – Mas não é hora de desistir.
- Não vamos desistir. – a doutora Pires sorriu. – É a nossa casa, são nossos soldados. Precisamos mostrar a eles que estão tentando invadir o lugar errado.
- “Desde o momento em que tudo isso começou, estamos nos tratando como inimigos.” – a Major murmurou para si as palavras de .
- Como? – a outra franziu o cenho sem entender.
- Nada. – disse apenas e se levantou. – Apenas... continue o seu trabalho.
Ainda pensativa, caminhou até o outro médico que terminava de se comunicar com o navio hospital. Ao vê-la, o homem abaixou o comunicador e se virou em sua direção.
- E então? – ela quis saber.
- Estão mandando uma pequena embarcação pra que possamos transferi-la para lá. – ele respondeu.
- Ótimo. – balançou a cabeça positivamente. - E quanto a esses homens?
- Eles já estão melhor, precisam ficar apenas mais um pouco sob observação. – o rapaz respondeu. – Mas logo poderão voltar para o campo.
- Certo. – olhou em volta, analisando a casa. – Disse que havia cinco moradores aqui, mas ao chegar vi apenas a mãe e dois filhos.
- O pai e o menino mais velho saíram para pescar, mesmo que tenhamos dito que o melhor seria ficar aqui dentro. – ele explicou.
- Menino mais velho? – a Major inclinou a cabeça para o lado.
- Não tão mais velho. – o homem deu de ombros. – Deve ter entre cinco ou seis anos.
Indignada com o que acabara de ouvir, a mulher soltou um suspiro visivelmente preocupado. Sabia que aquelas famílias tiravam seu sustento diretamente do rio, mas sair assim, sem qualquer proteção e levar uma criança, era algo muito arriscado. Ainda que os embates tivessem cessado por vários dias e que nunca se aproximassem da margem, esse não era um motivo válido para deixar suas casas sem um motivo extremo.
- Doutor, vou pedir que preste os cuidados necessários à cabo . – a soldada pediu num tom sério. – Caso eu não volte a tempo.
- E para onde a senhora vai, com todo respeito? – o homem franziu a testa.
- Vou atrás dos civis. – falou sem rodeios.
- Mas, Major... – o outro tentou rebater, mas foi cortado.
- Sem mais, soldado. – ela foi firme. – Assuma o seu posto e aguarde novas ordens. Eu vou...
Todavia, antes que terminasse a frase, o som de objetos sendo lançados contra o chão de madeira encheu o ambiente, chamando a atenção de todos no recinto. Alarmada, olhou na direção de onde o barulho havia vindo, se deparando com uma cena chocante. se contorcia violentamente, sem controle de seus membros, enquanto a doutora Pires tentava ajudá-la. Sem demora, os outros dois correram em seu auxílio.
- Está tendo uma convulsão! – a médica disse. - Virem ela de lado!
Com cuidado, mas de forma apressada os dois o fizeram, enquanto erguia a cabeça da mais nova e colocava a jaqueta embrulhada sob ela. Depois, alcançou um pedaço de gaze e a colocou entre os dentes da soldada para evitar que mordesse a própria língua.
Os espasmos não duraram mais do que dois minutos, então sem avisos, a garota parou de se mexer. Trocando um breve olhar, a doutora Pires abaixou-se perto do rosto da soldada para sentir sua respiração, porém, arregalou os olhos ao confirmar que não havia nada.
- Vamos deitá-la de volta. – disse apressada.
- O que houve? – questionou.
- Não está respirando – a mulher respondeu, segurando o pulso da mais nova. – E a pulsação está fraca.
- Vamos fazer uma massagem cardíaca. – o doutor Aragão anunciou.
A Major permaneceu parada enquanto via o homem apoiar as duas mãos entrelaçadas no peitoral de , iniciando a massagem. A doutora se levantou, indo rapidamente até uma caixa com alguns equipamentos, tirando uma máscara para auxiliar o procedimento. Enquanto o rapaz continuava o procedimento, ela colocou a máscara no rosto da garota, induzindo a entrada de ar em seus pulmões.
- Vamos lá. – o médico murmurou, insistindo na massagem.
Após alguns minutos, o procedimento foi interrompido e a mulher se aproximou mais uma vez do nariz da cabo , prestando atenção em sua respiração.
- Alguma resposta? – perguntou.
- Vamos tentar mais uma vez. – foi a resposta que recebeu.
Mais uma vez a dupla iniciou o procedimento. Ao olhar em volta, a pode notar que alguns soldados já haviam despertado e mantinham-se sentados, observando a cena com certa ansiedade. A Major pensou em dizer algo, todavia, notou uma presença um pouco mais ao lado, na beirada do corredor que separava a sala dos outros cômodos.
Recostada à parede de madeira estava uma das filhas do casal que morava na casa. Seus grandes olhos negros mantinham-se esbugalhados e os lábios levemente abertos mostravam o quanto a pequena, que aparentava ter uns três anos de idade, estava aterrorizada com todo aquele movimento. A soldada engoliu seco e fez menção de ir até a menina para tirá-la dali, porém, uma estática a fez parar.
Olhando em volta, encontrou o comunicador antes usado pelo doutor Aragão. O pegou sem hesitar e o atendeu.
- Major falando, câmbio! – falou sem esconder a preocupação.
- Major, estamos quase chegando. – um soldado começou a dizer.
- Quanto tempo? – ela quis saber.
- Entre oito e dez minutos. – deu uma estimativa.
- O quê? – a mulher parecia não acreditar. – Nós não temos esse tempo, precisamos de você agora!
- Eu sei, o doutor Aragão já nos contatou. – respondeu. – Mas a correnteza não está a nosso favor, mesmo que não estejamos tão afastados da margem.
- Soldado, você não entendeu. – ela insistiu. – Temos uma cabo gravemente ferida, além de outros homens se sentindo mal, então, por favor...
- Major... – alguém a chamou, mas ela não lhe deu atenção.
- Estou ordenando que... – insistiu, até sentir uma mão sobre a sua, olhando para lá assustada.
- Major! – o médico a encarava pesaroso. – É tarde demais.
Entendendo o que ele quis dizer, ela olhou para trás, encontrando a doutora Pires sentada ao lado de . Estava exausta e respirava de forma ofegante, mantendo as mãos apoiadas no colo e a cabeça baixa. A cabo permanecia imóvel e o aparelho respiratório jazia ao seu lado, sem mais utilidade.
voltou a encarar o rapaz, notando seu rosto suado pelo esforço e não conseguiu dizer nada. Havia perdido mais um soldado. Mais uma vida. E tudo por conta daquela maldita guerra. Imediatamente lembrou-se do irmão que havia deixado para trás e baixando o rosto, respirou fundo, tentando controlar a raiva que sentiu. Mas então um ruído familiar chegou até seus ouvidos, fazendo-a despertar.
Erguendo os olhos , encontrou a garotinha de antes, paralisada ainda no mesmo lugar. Era como se a pequena sentisse o clima pesado que havia se instalado no ambiente e chorava baixinho, encolhida contra a parede. Comovida, a Major avançou até ela a envolvendo com seus braços.
- Ei... – tentou acalmá-la, sentido a garota agarrar seu pescoço com força. – Está tudo bem, está tudo bem.
Enquanto afagava seu cabelo escuro, olhou em volta e notou que todos prestavam atenção nela. Imediatamente a mulher identificou a surpresa mesclada com admiração em seus rostos abatidos. Ela mesma estava surpresa com sua atitude, por isso não os julgaria. A única coisa que desejava era tirar aquela criança daquele meio.
- Ei, qual o seu nome? – perguntou baixinho.
- Tainá... – o murmúrio veio depois de vários segundos.
- Tainá, o meu nome é . – sua voz era amistosa. - Onde está sua mãe?
A menina não disse nada, apenas se afastou um pouco da mulher e apontou na direção do corredor, para um dos quartos.
- Tudo bem, vamos voltar pra lá, ok? – sorrindo, olhou para a menininha, que balançou a cabeça positivamente.
Passando os braços mais uma vez em volta dela, a trouxe para seu colo. Contou os segundos e se preparou para levantar, dando um leve impulso para cima. Ao conseguir se pôr de pé, olhou diretamente para os médicos, evitando fitar o corpo de .
- Vou levá-la de volta. – voltou a assumir sua expressão séria.
Os subordinados apenas balançaram as cabeças positivamente e ela se contentou com aquilo, dando as costas para ambos. No entanto, antes que avançasse, sentiu o chão balançar sob si, lhe tirando o equilíbrio. Se abaixou novamente para não cair e fitou os colegas logo à frente que também pareciam não compreender a situação.
- O que está... – pensou em perguntar, porém, sequer teve oportunidade para isso.
Um novo tremor se fez presente e a major teve tempo apenas para abraçar a menina contra si, tentando defendê-la do que viria. No segundo seguinte, estava imersa nas águas do rio Amazonas, rodeada por escombros.
Desesperada, segurou a criança com mais firmeza, nadando para a superfície. Não estavam num lugar muito fundo, por isso logo pôde ver os outros soldados nadando em direção as casas inteiras. Os médicos ajudavam a mãe da criança e sua outra filha ainda mais nova.
Respirando pesadamente, ela sabia o que havia acontecido. Alguém havia lançado uma granada contra as palafitas. Analisando o perímetro em volta, deixou que o queixo pendesse ao ver várias das casas destruídas e muitas pessoas, além de corpos em meio aos pedaços de madeira. Mas o que mais a devastou foi ver a margem repleta de soldados.
- Não... – murmurou mordendo os lábios.
Os americanos e os franceses haviam conseguido passar, o que significava que a maior parte dos seus estava caída. Tainá, em seu colo, chorava alto e encostou seus rostos tentando acalmá-la, sem deixar de fitar a cena à frente. Ainda podia ver alguns do seu batalhão tentando criar uma barreira entre os inimigos e o rio. Mas eles não eram suficientes, logo também seriam neutralizados.
Tomando ação, nadou com a menina para uma das casas que ainda estavam de pé, para onde os outros soldados haviam ido, entregando a criança para a mãe que tinha alguns pequenos arranhões pelo corpo.
- Alguém lançou granadas contra a água, mas foram suficientemente potentes para abalar a estrutura das palafitas. – uma mulher explicou.
- Major, o que vamos fazer? – a médica perguntou.
- Não podemos permanecer aqui, logo vão nos atacar novamente. – um dos soldados falou.
- Vamos chamar reforços. – a mulher olhou na direção das embarcações a vários metros.
Um dos comunicadores que eles ainda carregavam funcionava e iniciaram o contato, relatando brevemente a situação para os navios que tinham mais homens à espera de uma ordem para vir até a terra e lutar. Enquanto esperava, parou um instante e após breves segundos de meditação, seu coração se descompassou velozmente, lhe causando uma repentina tontura.
- Senhora, tudo bem? – o doutor Aragão apoiou a mão em seu ombro.
- Os civis. – murmurou.
Com os olhos levemente avermelhados por conta do contato recente com a água, ela olhou para trás, percebendo que todo o perímetro estava cercado de homens combatentes. Não havia como um civil passar. E, caso entrassem na linha de fogo, também não poderia sair. Mordendo a bochecha internamente, fechou os olhos e imediatamente a imagem do irmão lhe veio à mente.
“- Eles vão ficar bem. – falou ao perceber para onde a irmã olhava. – Estão longe da linha de fogo.
- Mas a batalha pode avançar para as margens do rio. – ela observou.
- Não vai. – ele piscou em sua direção. – É para isso que estamos aqui.”
A cena recente preencheu seus pensamentos e primeira coisa que conseguiu captar foi o sorriso confiante de . Ele acreditava que aquelas pessoas seriam protegidas. acreditava que salvar vidas era um dos de seus principais objetivos.
- É para isso que estamos aqui. – ela sussurrou as palavras com convicção.
- Major?! – o homem a chamou novamente.
- Cuidem dessas pessoas e esperem o apoio. – ordenou, estendendo a mão para ele. – Pode me emprestar sua arma?
- Claro, mas para quê? – ele franziu o cenho.
- Eu volto logo. – ela lhe lançou apenas um sorriso de canto.
Em seguida, se lançou contra a água, mergulhando de cabeça. Com braçadas rápidas e fortes, conseguiu alcançar a margem em poucos minutos e antes mesmo de pisar em solo, buscava o melhor caminho para se desviar do combate.
Escolheu o lado onde havia menos soldados e se arrastou pela vegetação rasteira até poder se livrar de qualquer empecilho que a impedisse de continuar. Fitando o caminho a alguns metros, apertava a pistola entre os dedos, determinada a encontrar e levar os dois civis a um lugar seguro.
gostaria de ser um pouco mais rápida, porém, seus machucados recentes haviam lhe tirado parte da agilidade e, naquele momento, mover-se significava realizar um esforço maior do que o normal. Os cabelos, agora soltos e úmidos, grudavam-se ao rosto e à nuca e a sensação da roupa molhada roçando ao corpo era agoniante. Ofegando, a mulher cravou os olhos em seu objetivo, tendo em mente que qualquer dificuldade valeria à pena caso salvasse aquelas pessoas.
Firme, ergueu-se e iniciou uma corrida frenética na direção da trilha que levava para o lado oeste da floresta, longe da maioria dos combatentes. Avançou por vários metros, mas então algo a fez parar de supetão. Assustada, mirou o exato lugar no chão onde a bala havia atingido, mas não teve tempo para procurar quem realizara o disparo. Novos tiros se fizeram ouvir e a Major usou de seu reflexo apurado, lançando-se ao chão e rolando para longe da linha de fogo.
Quando conseguiu se levantar, voltou a correr. Todavia, agora vários soldados inimigos já haviam notado sua presença e não mediriam esforços para alcançá-la. Travando o maxilar, olhou por cima dos ombros e avistou três homens e duas mulheres atrás de si. Praguejou, apertando os passos e quando mais disparos vieram jogou-se atrás da primeira coisa que viu em seu caminho.
Atrás do rochedo relativamente grande, manteve a concentração e, apesar dos soldados terem parado de atirar, ouvia suas passadas em sua direção. Respirando fundo, apertou a arma que trazia e, contando até três, se levantou o suficiente para continuar protegida, mas disparar contra eles. Num segundo, mirou e atirou derrubando um dos homens, porém, precisou se esconder novamente quando revidaram.
Novamente refez a contagem e se ergueu, acertando mais um deles. No entanto, agora estavam muito perto e seria praticamente impossível se livrar dos três que sobraram. Voltando para trás da pedra, mordeu o lábio inferior. Precisava continuar.
- Um, dois... - com as mãos trêmulas, reiniciou a contagem. – Três...
No momento que se ergueu, disparou contra uma das mulheres e esta foi ao chão. Mas os outros a tinham na mira. Apavorada, tentou realizar mais um disparo, mas a arma não tinha mais munição.
- Merda! – esbravejou quando um dos homens de preto puxou o gatilho.
Num impulso, se jogou no chão, mas sabia que não adiantaria, pois eles sabiam que sua arma estava sem balas. Ouviu mais dois disparos e esperou. Entretanto, mais nada aconteceu. Estranhando, se sentou e encostou na rocha. Inclinando-se para o lado, buscava enxergar algo pelo lado direito. Confusa, franziu o cenho assim que avistou os dois soldados que sobraram, mortos.
Quando ainda olhava para lá, sentiu uma mão em seu ombro e se sobressaltou, se virando na direção da pessoa, mas aliviou-se ao reconhecê-la.
- Sargento Matos. – deixou que um suspiro escapasse pelos lábios.
- Major , o que faz aqui? – o homem questionou.
- É uma longa história. – devolveu enquanto o via se abaixar ao seu lado, sem baixar a guarda um segundo sequer. – Como eles chegaram até aqui?
- Os americanos tinham reforços. – o sargento explicou. – Já estávamos cansados e eles derrubaram mais da metade dos nossos. Os que estão aqui são os que restaram.
- Por que não chamaram reforços também? – a mulher quis saber.
- Tentamos, mas a senhora não respondia. – ele disse. - E precisaríamos passar o pedido para a senhora primeiro.
- Droga... – murmurou, recordando que havia deixado o comunicador para trás.
- Tudo bem? – ele perguntou ao mesmo tempo em que apoiava o rifle sobre a pedra, mirando à frente.
- Sim. – deu de ombros. – Quanto aos reforços, já foram contatados. Logo devem estar aqui.
- Talvez seja tarde. – o outro disse, realizando mais um disparo.
- É o único jeito. – dizia para si mesma. – Eu não sei como acabar com essa guerra.
- Major, está mesmo bem? – o sargento insistiu.
Fechando os olhos, teve vontade de dizer que não, que toda aquela situação em que estavam imersos era desnecessária. O ser humano já havia presenciado duas guerras mundiais e todos os estragos causados por tais. Ainda assim, pareciam não se importar.
Mas ela se importava.
Se importava com os soldados que havia perdido.
Com as famílias aterrorizadas pela guerra.
Com o irmão que deixou caído, sem vida, numa trincheira.
Se importava com os irmãos de , mortos sem sequer terem tentando lutar pela própria vida.
Ela se importava. Seu coração lhe dizia que sim e isso a fazia querer que tudo aquilo acabasse. Ninguém precisava de mais sangue. Humanos eram seres racionais. Onde estava o seu bom-senso quando mais precisavam?
Prendendo as lágrimas que ameaçavam descer pelo rosto sujo e machucado, olhou para baixo e, de forma inconsciente, seus dedos correram até o pingente preso ao pescoço, o segurando com força. havia dito que acreditava nela, que ela poderia trazer a paz, mas como?
Ainda distraída, não percebeu o momento que o sargento Matos ao seu lado parou de atirar.
- Mas... o que significa isso? – apenas quando ouviu sua voz é que despertou de seus devaneios.
- O quê? – questionou, o encarando.
- Por Deus! – exclamou, ainda assustado. – São civis!
- Civis? – compartilhando de seu espanto, a Major se ergueu e olhou por cima da rocha.
Imediatamente os viu caminhando pelos arbustos da floresta e assim que saíram de entre eles, se direcionaram exatamente para a linha de fogo. Enquanto os observava, não precisou se esforçar para saber se tratar das pessoas que pretendia resgatar. Eram o pai e seu pequeno filho, caminhando para dentro do fogo sem ao menos perceber.
- Mas que...
O pai foi o primeiro que viu a situação. Parou imediatamente e continuou segurando o filho pela mão. Na outra estava um balde com alça, provavelmente onde guardava os peixes e também um anzol simples. Temeroso, o homem fez menção de voltar para dentro da floresta, porém, antes que desse o primeiro passo, foi acertado de longe.
Com os olhos arregalados, viu o exato momento que o homem largou seus pertences, indo ao chão num só baque. Ainda descrente, viu o menininho se abaixar ao lado do pai, sacudindo-o para que acordasse. Ao perceber que não adiantaria, a criança agora em prantos, se levantou e, sem qualquer hesitação, correu.
No instante que o garoto se movimentou, o coração da Major parou. Uma respiração entrecortada deixou seus lábios ao acompanhar o percurso do pequeno e ele ia exatamente para onde não deveria. Desesperado, o menino avançou para o meio do combate. Talvez esperasse obter a ajuda de alguém ali ou apenas seguiu por saber que sua casa ficava às margens do rio.
Para , porém, isso não importava. Sentindo o zumbindo em seu ouvido aumentar, a impedindo de ouvir o que o sargento Matos falava ao seu lado, ela se levantou, saindo de trás da pedra. Não pensou em mais nada, via apenas o pequeno garoto desesperado em meio ao caos. Não ouviu mais os tiros em sua direção, nem as próprias passadas cada vez mais rápidas contra o solo vermelho.
Não percebeu o aumento das batidas do seu coração graças à corrida, nem o suor que escorria pela nuca, muito menos os cabelos parcialmente secos cochando-se contra seu rosto. A Major seguia determinada, ignorando as consequências. Se precisasse, morreria para salvar aquela pequena vida. Era para isso que estava ali.
Sua corrida era acelerada e seu objetivo era apenas um, desviando-se de qualquer que passasse em seu caminho. Estava tão focada, que o viu apenas quando já estava a poucos passos do garotinho. Diminuindo a velocidade, abriu a boca perplexa, quando o homem chegou até ele antes dela, o envolvendo em seus braços. Seu rifle estava pendurado para trás e as mãos agora sem luvas. Viu a bandeira americana em seu peito e quando seus olhos se encontraram com os seus, soube o que quis dizer, mesmo sem nenhuma palavra.
Voltando a acelerar os passos, retirou o colete e enfiou um das mãos por dentro da jaqueta verde, alcançando o pedaço de pano que havia guardado ali. Viu que alguns dos seus homens já direcionavam suas armas para o Major , por isso não hesitou em se colocar entre eles, erguendo para que todos vissem o que havia entre seus dedos.
- PAREM! – gritou a plenos pulmões. – APENAS PAREM!
Os homens mais próximos ouviram sua ordem, encarando-a imediatamente. Aos poucos, um a um no campo de batalha olhou para a direção de onde o brado havia vindo, extasiando-se com a cena que encontravam.
, major do exército americano, permanecia ajoelhado protegendo uma criança brasileira. À sua frente, , Major das forças armadas brasileiras, mantinha-se de pé com o braço erguido e seus cabelos esvoaçavam-se na direção do vento assim como a bandeira branca que segurava em sua mão direita.
Uma bandeira branca.
Um símbolo de rendição, um pedido de trégua.
Uma tentativa de obter a paz.
Os homens e mulheres presentes encaravam boquiabertos o lenço branco que a mulher erguia sem medo. Ela estava desistindo, estava se rendendo, mas não aos inimigos. Estava desistindo da guerra, se negando a tirar mais vidas e a perder mais delas. Era o fim da linha para o seu batalhão, ela bem sabia. Todavia, valeria a pena desistir e salvar os inocentes.
- Major... – de repente ouviu atrás de si, sabendo que era quem falava.
- Você disse que acreditava em mim, Major . – ela respondeu, fitando-o por cima dos ombros. – E eu finalmente entendi o motivo.
- Está se rendendo? – ele questionou.
- Estou acabando com a guerra. – ela o corrigiu.
Após uma breve troca de olhares, rompeu a conexão entre eles, voltando a olhar para o seu povo. Encarou ao redor, preparando-se para começar a explicar os motivos daquele ato, observando atentamente cada rosto, cada soldado que parecia não entender a situação.
- Soldados, em nome do meu batalhão, eu declaro a nossa rendição. – falou com firmeza, ouvindo o burburinho se iniciar.
Dando um passo à frente, abaixou a bandeira a altura do peito e iniciou suas palavras. Palavras que ela não fazia ideia de onde vinham.
- Olhem em volta! – a mulher continuou antes de qualquer questionamento. – Olhem para toda essa destruição, para todas essas vidas perdidas. É sobre isso que querem conversar com seus filhos um dia?
Aos poucos, todos pararam de murmurar, voltando à atenção para a Major, que tinha cada vez mais certeza do que dizia.
- Não somos inimigos! – sua voz saiu ainda mais alta. – Não. No meu coração eu sinto, vocês todos são meus irmãos! Somos seres humanos que apenas querem o melhor para nossos povos, mas a guerra não é a resposta. Nunca foi.
Agora, alguns dos soldados brasileiros traduziam para os outros o que dizia, os deixando espantados.
- Nós queremos fazer deste mundo um lugar melhor para os nossos filhos e para os filhos de nossos filhos. – bradou confiante. – Então, se vocês se importam o suficiente com a vida, criem um lugar melhor. Mas não assim.
Abrindo os braços, apontou em volta para o lugar devastado pelos armamentos. Ainda desconfiados, todos olharam em volta com certo receio.
- Há pessoas morrendo. Crianças! – a Major apontou para o garotinho às suas costas. – E isso não é justo. Então, eu peço do fundo do meu coração. Por favor, transformem suas espadas em relhas de arado.
Dando mais passos adiante, ela sacudiu a bandeira branca mais uma vez sobre a cabeça, reforçando suas palavras.
- Há pouco tempo, uma pessoa disse que não estávamos aqui para vencer uma guerra, mas sim para alcançar a paz. – discretamente ela olhou para . – E agora eu acredito nessas palavras, acredito que podemos fazer do mundo um lugar melhor, pois existe algo dentro de nós que pode superar qualquer mágoa ou tristeza.
Sorrindo, mirou mais uma vez os soldados. Todos mantinham as armas abaixadas, prestando atenção a seu discurso improvisado. Ela não fazia a menor ideia se ele surtiria qualquer efeito, no entanto, agora não era hora para pensar e sim para agir.
- Olhem para dentro de seus corações, soldados, e vão encontrar o mais puro sentimento. – falou, levando a mão que segurava a bandeira até o peito, apoiando-a ali. – O amor é forte, o amor é suficiente para crescermos. Com ele não há medo ou temor, apenas alegria. Apenas paz.
Fechando os olhos por um breve segundo, puxou o ar para os pulmões, logo os abrindo outra vez.
- Por favor, salvem o mundo para nossas crianças. – suavizou o tom de sua fala. – Vamos curar o mundo, juntos. Isso não é apenas uma rendição, é um pedido de trégua. Não precisamos disso, somos melhores, muito melhores. Então deem as mãos e fiquem comigo. Curem o mundo!
No segundo que proferiu as últimas palavras, a Major deixou que o ar escapasse de uma só vez por entre os lábios ressecados. Sentia-se leve, como se tivesse tirado dos ombros um peso enorme. Ela havia feito sua parte, havia desistido da guerra e agora lutava a favor da paz. Queria apenas que todos aqueles homens e mulheres lutassem pelo mesmo.
Ansiosa, permaneceu parada, aguardando a reação de qualquer um deles, o que demorou mais do que o esperado. Por fim, dois soldados que estavam a pouca distância, uma francesa e um brasileiro, se encararam. Ainda receosos, largaram as armas, que permaneceram penduradas pela fivela e ergueram as mãos um para o outro. prendeu a respiração ao notá-los, assim como todos os demais. Deu um leve passo para a frente e esperou.
No segundo que os dedos dos dois soldados se tocaram, porém, um som despertou a atenção de todos. A Major também o ouviu, porém, não teve como reagir, pois o disparo a acertou em cheio a lançando contra o chão num só baque. Urrou, levando a mão até o local atingido, sem entender o que se passava.
Havia fracassado?
Suas palavradas foram em vão?
Sentindo a dor aumentar gradativamente assim como a escuridão em frente à visão, sentiu mãos a alcançarem, checando se estava viva. Tentou focalizar a vista e reconheceu os olhos . a escarava com preocupação.
- Stay with me, please!(Fique comigo, por favor!) – o homem pediu ao mesmo tempo em que segurava sua mão, retirando a bandeira de seus dedos.
Tentou responder, porém, o único som que emitiu foi um gemido doloroso. Sentindo-se cada vez mais fraca, deixou que as lágrimas até agora presas, escorressem pelos cantos dos olhos . A última coisa que conseguiu enxergar foi se levantando e erguendo os braços acima da cabeça. No segundo seguinte estava imersa num vazio sufocante.

- Eu já disse que não consigo fazer isso! – a mulher resmungou revirando os olhos e cruzando os braços abaixo dos seios.
- Ah, qual é! – o rapaz soltou uma gargalhada, se levantando da poltrona, indo até ela. – Deixe de ser tão dramática.
- Dramática? – ela o encarou com os olhos arregalados. – e seu eu deixá-lo cair?
- Você não vai. – ele parou em sua frente, fitando o embrulho em suas mãos. – , é só um bebê.
- Não é só um bebê, seu idiota. – agora ela começava a se irritar. – É o seu filho!
- O que faz dele seu sobrinho. – dessa vez revirou os olhos. – Então, trate logo de pegar essa criança antes que precise levá-la de volta para a Bia.
- Depois não diga que não avisei. – soltando um suspiro contrariado, a garota se chegou até ele.
Erguendo os braços, deixou que o irmão colocasse o filho em seu colo. Ainda temerosa, por não ter jeito com crianças, logo trouxe o bebê para perto do peito, segurando-o com todo o cuidado possível. Fitou o rosto do garotinho, mas este matinha os olhos fechados, cochilando.
- Viu, não é tão difícil. – o mais velho debochou, soltando um riso anasalado.
A mulher o escutou, pensando em rebater aquela fala, todavia, algo a fez parar. De forma preguiçosa, o menino bocejou, passando uma das mãozinhas no rosto de forma desajeitada. Em seguida, abriu os olhos e pôde ver. Eram profundamente , como se ela estivesse olhando para suas próprias íris refletidas num espelho.
- Ele é tão lindo! – murmurou sem ao menos perceber.
- Eu sei. – o pai gabou-se, parando ao seu lado para também poder observar o neném. – A única coisa que não é justa é que os olhos deles tenham o seu e não o meu.
- Culpe o vovô, não eu, os genes são dele. – respondeu, olhando-o com as sobrancelhas erguidas. – Afinal, já deram um nome para ele?
- Bia e eu já decidimos sim. – seus olhos brilharam ao revelar o segredo para a irmã.
- E então? – ela parecia tão radiante quanto ele.
- Essa pequena luz nas nossas vidas se chamará Lucas . – o homem acariciou os fios ralos do bebê.
sorriu diante da revelação, porém, não teve tempo de dizer nada ao irmão, pois seu celular tocou e ele precisou atendê-lo, dizendo que voltaria logo. Assim que o viu sair pela porta, parando no corredor, ela foi até a poltrona, se sentando nela. Segurava o sobrinho com todo o cuidado, sem deixar de fitá-lo nem por um instante. O pequeno Lucas era tão lindo.
Ali, naquele quarto infantil, soube que faria qualquer coisa por aquela criança. Não sabia explicar, mas só de mirá-lo, sentia algo florescer dentro de si. Um amor maior do que tudo o que já havia sentido. Aquele bebê era sangue do seu sangue e seu coração lhe dizia que, caso precisasse, ela lutaria por seu bem estar com a própria vida.
De repente, quando ainda estava distraída, Lucas começou a chorar. Como se tivesse feito aquilo por toda a vida, a mulher apenas o trouxe mais para perto de si, balançando-o levemente na tentativa de acalmá-lo.
- Está tudo bem, querido. – sussurrou de forma amorosa. – Eu estou aqui.
Aos poucos o menino se acalmou até finalmente adormecer nos braços da tia. Se levantando, se chegou ao berço. Deixando um leve beijo na testa de Lucas, o colocou deitado, continuando a observá-lo.
- Eu sempre vou estar aqui. – completou sua fala. – E eu prometo que não vou falhar.

“E eu prometo que não vou falhar.”

Aquelas palavras se repetiram vez após vez dentro da mente de a ponto de ela não saber mais distinguir o que era sonho ou o que era lembrança. Tudo estava turvo graças à dor e tentar despertar era praticamente impossível. No entanto, ela se esforçou, pois além de sua própria voz havia mais uma bem perto, tentando trazê-lo de volta à superfície.
...”
Ela ouviu o som vir de longe, como se estivesse a metros abaixo d´água.
!”
Agora mais perto.
Quando o terceiro chamado chegou aos seus ouvidos, a mulher abriu os olhos assustada, sentando-se de uma só vez. Imediatamente, uma pontada forte atingiu seu ombro, a fazendo levar a mão até o local, soltando um gemido doloroso.
- Ei, vai com calma. – de repente duas mãos a alcançaram, a segurando com delicadeza.
Sem entender, ergueu os olhos e o encontrou. A fitando com as sobrancelhas erguidas estava , e ele parecia verdadeiramente preocupado.
- Onde nós... – pensou em perguntar, mas ele foi rápido em entender seu raciocínio.
- Estamos no navio hospital. – ele explicou. – O seu navio.
Ainda confusa, piscou os olhos algumas vezes. Logo, porém, fitou a si mesma vendo que, além das calças, usava apenas um top preto. No ombro encontrou um grande curativo no lugar atingido pelo tiro, além da gaze que enrolava todo o braço direito lesionado pelos estilhaços.
Aos poucos, seus sentidos retornavam e ela olhou em volta, percebendo que estava numa espécie de enfermaria. Nas macas com cobertores brancos podia ouvir os gemidos de alguns soldados feridos, mas cortinas os separavam uns dos outros. Visivelmente abatida, voltou a olhar o americano à sua frente, percebendo que este sustentava um sorriso de canto.
- Pensei que dormiria por mais tempo. – ele disse num tom visivelmente debochado.
- Eu costumo acordar sempre antes do esperado. – respondeu, deixando que um riso escapasse pelos lábios. – dizia que isso era irritante.
Todavia, assim que se recordou do irmão, uma dor semelhante ao tiro que havia recebido mais cedo, a acertou em cheio. Mas não no ombro e sim no peito. De maneira inconsciente, levou a mão até lá, fechando os olhos. Agora que estava ali, longe do tumulto da guerra, podia enxergar tudo com mais clareza. E a dor que ela julgou ser insuportável, era dez vezes pior. Foi como se a estivessem dilacerando lenta e dolorosamente.
Antes que percebesse, os olhos estavam cheios de água, que ameaçava descer a qualquer segundo.
- Está tudo bem? – de repente perguntou.
E aquilo foi o suficiente para que a primeira lágrima escorresse. Em seguida, veio a segunda e mais uma e mais uma. Ainda assim, a brasileira tentava ao máximo conter as emoções por estar na frente de outro soldado. Baixou a cabeça, respirando fundo. Para sua surpresa, seus dedos tocaram o seu queixo, fazendo com que erguesse o rosto novamente.
- Não precisa fingir que não dói, pois dói e muito. – ele murmurou apenas para que ela ouvisse. – Eu entendo o que está sentindo, lembra?
- Como sabe o que estou sentindo? – questionou.
- Conversei com seus superiores. – explanou. – Um dos soldados morto em combate era seu irmão. .
Sem conseguir responder, apenas balançou a cabeça positivamente.
- Todos perderam muito, . – ele se abaixou em sua frente, passando os dedos sob seus olhos. – E infelizmente não podemos mudar isso.
- Eu sei. – ela concordou, fechando as pálpebras ao sentir o seu toque.
- Felizmente, isso não precisa continuar. – completou e ela voltou a encará-lo.
- Como? – a pergunta escapou baixa, quase morrendo entre os lábios.
- Eu disse que havia conversado com seus superiores que estão nesse navio. – o sorriso de canto voltou. – Eles já sabem o que você fez.
- Sabem? – arregalou os olhos.
- Todos já sabem. – ele balançou a cabeça positivamente.
- Presumo que serei punida quando estivermos de volta à base. – suspirou.
- Você não entende, não é mesmo? – dessa vez o homem riu levemente.
- Não entendo o quê? – ela o encarou confusa.
sentou-se ao seu lado na cama. Isso os aproximou ainda mais e constatou como os olhos dele eram profundamente a ponto de quase poder enxergar o seu reflexo neles. Sem quebrar o contato que existia, ele pegou a mão da mulher, a apertando com vigor.
- O que houve? – ela estranhou o ato.
- ... – ele apoiou a outra mão sobre a dela. – O que você fez foi o maior ato de coragem que alguém poderia demonstrar.
- Eu me rendi. – negou.
- Você salvou uma vida. A vida de uma criança inocente. – o Major a corrigiu. – Sabe o impacto que isso teve sobre as tropas?
- Claro que sim. – apontou para o próprio ombro. – Levei um tiro.
- Depois disso. – o homem insistiu, continuando seu relato. – No momento em que você caiu, eu peguei a sua bandeira e também declarei rendição. Não havia mais motivos para continuarmos o combate.
- E os outros? – franziu a testa.
- É isso que quero que veja. – dessa vez seu sorriso aumentou.
Antes que questionasse aquela sentença, viu estender-lhe a mão livre. Um pouco hesitante, a aceitou e ele a ajudou a se levantar. Tirando sua jaqueta, a ajudou a vesti-la por conta dos ferimentos. Em seguida, caminharam para fora da enfermaria, indo pelos corredores do navio.
Caminhavam ao convés principal e por onde passava, recebia olhares respeitosos. Um pouco incomodada, respirou fundo e decidiu ignorar aquela atenção inconveniente, especialmente num momento como aquele. Logo alcançaram o convés principal e lá encontraram os superiores da brasileira, que a saudaram de forma respeitosa.
Após, a levou até a borda do navio e apontou na direção que queria. Eles ainda estavam nas margens do rio, mas a uma distância considerável. Porém, ainda podiam ver a terra firme.
- O que tanto quer me mostrar? – perguntou, olhando para o rapaz.
- Lá! – ele apontou novamente. – Olhe com mais atenção.
Ela o fez. Então, finalmente pode ver, arregalando os olhos graças ao espanto. Sem acreditar, segurou as barras de ferro à sua frente com força, se debruçando para enxergar melhor. Abrindo os lábios, viu os soldados sentados, tomando a área esverdeada. Todos eles, de todas as nações que antes batalhavam pela água.
- O que... o que estão fazendo lá? – perguntou.
- Estão esperando que acorde. – respondeu.
- Há quanto tempo? – continuou olhando para lá.
- Dois dias. – ele revelou.
Ainda espantada, se virou para ele, ao se lado. Abrindo um sorriso, finalmente percebeu o que o Major queria lhe mostrar.
- E o que ainda estamos fazendo aqui? – disse entusiasmada.
Após a autorização do coronel presente, e mais alguns soldados, junto com tomaram um dos botes e navegaram até a margem do rio Amazonas. A Major precisou de ajuda para sair e manteve-se todo o momento ao seu lado.
Assim que os avistaram, os soldados que já estavam lá começaram a se levantar. Estavam todos reunidos. Brasileiros, franceses e americanos, como se uma batalha nunca tivesse ocorrido. Aos poucos, todos estavam ao redor da Major, cochichando entre si o fato de ela já estar de pé.
Sem palavras, se virou para como se esperasse que ele dissesse algo. Felizmente, ele entendeu.
- Todos os batalhões que estão aqui presentes entraram num acordo. Decidiram não mais lutar. – o homem explicou. - Os superiores aqui presentes, dos três países, aceitaram o acordo. Por enquanto, estamos num período de trégua, aguardando a resposta das nações que não estão aqui.
- Então não é o fim da guerra? – por um segundo o sentimento de vitória se esvaiu.
- É o começo do fim. – ele a encorajou. – As tropas estão nos apoiando, uma a uma. É só uma questão de tempo.
balançou a cabeça positivamente, entendendo o que ele quis dizer. Apenas olhou para frente ao ouvir passos em sua direção. Olhou rapidamente para lá, encontrando um homem bem mais alto a encarando com os olhos esverdeados. Imediatamente o reconheceu, assim como a bandeira em seu peito. Era o Major do exército francês.
Sem dizer nada, o homem estendeu a mão para ela. Sorrindo, espelhou o gesto. No instante que as mãos se uniram, todos ao redor bradaram em alegria. Era uma vitória em nome da paz.
Uma paz que nunca seria absoluta, eles bem sabiam. No entanto, por mais frágil que esta fosse, valia a pena lutarem por ela. Eles tinham o dever de fazer do mundo um lugar melhor para os seus filhos.
Ainda apertando a mão daquele homem, se recordou do sobrinho que estava em casa com a mãe. Ela havia prometido que cuidaria dele e o estava cumprindo. Logo voltaria para casa com a esperança de que eles iniciariam um acordo. Um simples ato realizado em meio ao desespero foi crucial para que a faísca da bondade se acendesse e ela tendia a se transformar numa forte chama.
Enquanto permanecia no meio de todos aqueles soldados, a Major teve a certeza de que aqueles homens e mulheres haviam sido corajosos para se alistarem a favor de sua nação. Porém, eram ainda mais bravos por lutarem agora a favor da paz, deixando que o amor prevalecesse.
A humanidade ainda não estava perdida, eles ainda poderiam mudar a situação e era isso o que acontecia. Lentamente, poderiam unir esforços e, para o bem de todas as gerações futuras, finalmente curar o mundo.





END



Nota da autora: Sem nota.




Nota da beta: Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.


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