05. Right Here
Finalizada em: 04/06/2018

PRÓLOGO

Tudo começou com um tilintar.
Era um sistema antigo; uma corda presa à maçaneta da porta e, ao mesmo tempo, presa em um pequeno sino no topo. Meu corpo estava dolorido, meu olho permanecia roxo e meu lábio latejava, inchado, mas como um trabalhador dependente dos dois salários mínimos que era pago, tive que ignorar tudo o que sentia. Jogando a bolsa de gelo em alguma das prateleiras embaixo do balcão, me virei por completo, levantando-me do banco de madeira em que estava sentado.
Então, eu a vi. Um corpo extremamente frágil, delicado, coberto por um uniforme de bailarina. Seu cabelo estava amarrado em um dos rabos de cavalo mais bem feitos que eu havia visto e a mochila que carregava em suas costas, grande demais para ela, enroscou-se em algo, a puxando para trás. Ela riu, envergonhada, porque percebeu que eu a observava. Rapidamente, em uma das graciosidades mais desengonçadas, desprendeu a corda e se prostrou segura mais uma vez.
Talvez, se meus dias não fossem sempre inundados por trevas, eu teria percebido a luz do seu sorriso. Talvez, se meus olhos não estivessem tão acostumados a ignorar, eu teria reparado no vermelho que surgiu em suas bochechas. Talvez, se eu não tivesse completamente me esquecido do que era amor, eu conseguiria notar o frio que surgiu em minha barriga assim que ela deu passos em minha direção.
Mas como poderia? Minha alma ainda estava mascarada, presa em celas de titânio. Mal sabia quem eu era, afinal. E, quando você passa anos sem sentir a liberdade, é fácil se esquecer o formato de uma chave.
— Não queremos biscoitos, escoteira, mas obrigada. — Acrescentei a última parte quando lembrei-me que era o recepcionista naquele dia. As palavras educadas, entretanto, nunca cobririam o meu tom bruto ou meus olhos faiscando.
— Não, não. — Dando pequenas risadas, ela balançou sua mão em gestos negativos. Alcançou o balcão e continuou. — Aqui é uma academia de boxe... não é? — Rondava sua cabeça em todas as direções, querendo ter certeza do que dizia. No final, ela parou em meus machucados, abrindo a boca levemente em surpresa. Suspirei forte, porque revirar os olhos para clientes não era permitido. Sem muita outra opção, respondi.
— É, sim, senhora. — Retirei minhas mãos que estavam apoiadas no balcão e segurei o mouse, ativando a tela do computador. Ela contorceu o nariz ao ser chamada assim.
— Vocês dão aula? — Sua aura era algo indescritível. Mesmo quando agia da forma mais natural e imóvel possível, todos poderiam perceber que possuía a leveza das pétalas que balançavam ao ar da primavera. Eu, é claro, permanecia cego a tudo isso. Acenei a cabeça. — Então eu gostaria de ter algumas, por favor. — Não pude evitar de notar o jeito incomum de formar suas frases.
— Seu nome? — Nem olhava mais para ela, começando a digitar no formulário necessário para inscrição.
. — Rapidamente, preenchi a informação. Já havia aberto a boca para perguntar outra coisa quando ela foi mais rápida. — E o seu? — Sorriu gentilmente ao falar, me olhando em expectativa. Eu pisquei meus olhos rapidamente, pensando ter ouvido errado.
— Oi? — Foi o que consegui balbuciar.
— Qual é o seu nome? — Permanecia fitando minha íris à fundo, como se, assim, pudesse enxergar minha mente. Incomodado com a atenção, desviei meus olhos dos dela e algo pareceu clicar em sua mente. — Se você quiser me dizer, é claro. — Foi tão rápida em se corrigir que quase engasgou com ar. Dei de ombros. Não via o porquê não.
. — Voltei a encarar o formulário. Iria terminar ali, mas algo me forçou a continuar. — — murmurei entredentes. O sorriso que ela deu alcançou seus olhos.

O resto da manhã passou como os primeiros momentos. trazendo sua alegria típica em cada palavra pronunciada, mesmo se toda a sua animação fosse repelida pelo asco de minha expressão. No momento em que tudo aconteceu, eu nem ao mesmo pensava duas vezes antes de respondê-la com as piores das atitudes, mas, quando me lembro disso hoje em dia, sinto meu intestino gelar em medo. Pensar que, a qualquer momento, ela poderia ter apenas deixado a academia com raiva, me fazendo perdê-la para sempre, é um dos meus piores pesadelos. Afinal, vivo um sonho com ela. Ou melhor: ela é meu sonho. Minha chave. Minha luz.
E esta é a história de como jurei nunca mais abandoná-la.


CAPÍTULO UM

9 de julho de 2017
Aquela manhã, assim como todas as outras, começou com o meu atraso.
As poucas gotículas de água que caíam do céu vez ou outra machucavam o meu rosto, devido a velocidade na qual eu corria. Segurava minha mochila em um dos meus ombros, torcendo para que o tênis que usava não escorregasse na calçada úmida, enquanto desviava das poucas pessoas que tinham a coragem de sair em um dia nublado a pé. Ou cuja a mãe tinha levado o carro sem ao menos avisar. Para a minha infelicidade, meu caso era o segundo.
Quase caí ao alcançar a porta da academia, mas consegui manter-me de pé ao segurar na maçaneta. Suspirei aliviado quando o ar quente bateu em minha pele, questionando porque eu não havia pego um casaco, mas logo me lembrei: carros que somem de repente também são a causa para o esquecimento de roupa apropriada.
O conforto que senti, entretanto, foi logo tomado de mim quando, ao fechar a porta, me virei e encontrei Kevin gritando para alguém em seu telefone. Fechei meus olhos para que ele não me visse os revirar.
— Eu já disse que não quero meu irmão no meu aniversário, Carla. Diga a ele que... — Parou em uma de suas frases quando me viu entrar. — Depois nos falamos. — E, sem ao menos ouvir a resposta de Carla, sua secretária, ele terminou a ligação.
Não quis esperar a bronca que viria parado. Andei rapidamente para trás do balcão e coloquei minha mochila no armário designado. Quando voltei para perto do computador, sem nenhuma surpresa, Kevin me esperava.
, ... — Balançava a sua cabeça lentamente. — Já te disse que não gosto quando se atrasa, não disse? — Acenei com a cabeça, mas meu olhar divagava para que não o encontrasse. Kevin detestava que não o olhassem, sendo o narcisista que era. Por isso, agarrou meu queixo com força o suficiente para deixar marca, me forçando a fazê-lo. Tive vontade de vomitar ao encarar sua íris azul. — Não gosto quando ignoram o que digo. Também sabe disso, não sabe? — Acenei a cabeça novamente, querendo me poupar do esforço que teria ao falar. Kevin, com a mesma força que segurava, me largou. — Posso saber o porquê do atraso?
— Minha mãe pegou o carro. — Manti meu tom firme, já acostumado com sua presença tirana. Pude perceber as narinas do meu chefe se inflamarem.
— Você tem pernas.
— Que definitivamente não são tão rápidas quanto um carro. — Resisti ao meu impulso de sorrir de canto. Toda hora era hora de responder, mas existiam momentos apropriados para mostrar satisfação resultado da resposta. Pude ouvir o ranger de dentes de Kevin.
— Isso não é uma desculpa. — Ele cruzou os braços. Eu, sem conseguir me controlar, revirei os olhos na sua frente. Tudo aquilo era longo demais, desnecessário demais. Tinha mais coisas para fazer além de encarar o seu cabelo cheio de gel e seu casaco verde musgo.
— Foram sete minutos de atraso, Kevin. Sete. Nem ao menos abrimos ainda. — Apontei para a porta com o cartaz "fechado" pendurado. — Precisa mesmo disso tudo? — Iria dizer que não me atrasaria novamente, mas sabia que provavelmente não seria capaz de manter a promessa. Kevin estreitou seus olhos.
— É preciso muito mais, . Não posso deixar você agindo como se fosse o dono daqui. É a minha academia.— Me olhou por alguns segundos, bufando. — Mas guardarei essa lição para outro dia. Eu tenho um encontro e não ousaria me atrasar por conta sua. — Dizendo isso, tirou os óculos escuros do bolso e o colocou em seu rosto, sorrindo irônico ao acabar. — Tem sorte que eu não posso te demitir, . Muita sorte. — Saiu da academia logo após. Eu expirei fortemente, sentindo toda a energia negativa sair com ele.
Minha sorte, na verdade, não era não poder ser demitido. Era saber que, em domingos, Kevin não permanecia no trabalho. Ninguém além de mim o fazia, aliás. Não era um dia em que aulas eram dadas, apenas a administração permanecia aberta para ajustes burocráticos. Eu, claro, trabalhava na administração, mas não reclamava; não era como se ficar em casa fosse uma opção melhor.
Fiquei em pé por mais alguns segundos, esperando Kevin voltar tendo esquecido algo, mas após momentos de constatação, percebi que ele tinha saído de verdade. Balancei a minha cabeça em negação enquanto pegava meu banco para sentar; nem eu mesmo sabia como aguentava aquela figura todos os dias.
Rapidamente, terminei tudo o que estava previsto para aquele dia. Minha cabeça já alucinava com nomes, números de inscrições e cronogramas de aulas. Retirei meu olhar do computador, com as têmporas doendo por conta do brilho, e passei a observar a chuva que caía pela janela. Agora, ela retumbava em magnitudes exuberantes. Todos os clarões que surgiam eram o suficiente para iluminar uma sala inteira, e todos os trovões que os seguiam eram capazes de ser confundidos com tiros de guerra. A água que caía do céu era tremenda, cobrindo as calçadas e ruas mal planejadas. O vento corria como se estivesse pronto para assassinar alguém.
Minha outra tarefa era esperar possíveis clientes aparecerem, mas aquele clima tornava a função obsoleta. Ninguém em sã consciência sairia de sua casa quando cinco segundos debaixo da tempestade, certamente, faria sua alma sair de seu corpo.
Ou, pelo menos, era assim que eu pensava.
Estava caindo no sono quando o barulho da porta se abrindo me acordou, revelando uma menina de lábios roxos e roupas encharcadas. Era visível o quanto tremia, estando usando somente uma blusa masculina que alcançava seus joelhos e leggings. O rabo de cavalo permanecia intacto, entretanto. Molhado, mas impecável.
Ela deu passos que criavam poças d’água até a minha direção e pronunciou frases com uma angústia, franzindo seu cenho.
— Me perdoa, me perdoa, me perdoa. — Repetiu isto até que seus braços alcançaram o balcão. Pude reparar em seus pelos arrepiados. — Diga que Tony não está bravo comigo, por favor. — Piscava como se fosse chorar a qualquer momento.
— Por que estaria? — Torci minhas sobrancelhas, observando o rosto familiar se contorcer em agonia. Já fazia uma semana em que havia se matriculado, totalizando cinco dias em que ela teve aula. Em situações normais, eu não me lembraria de datas ou mesmo dos nomes de nossos clientes, mas eram cinco dias em que ela me cumprimentava ao chegar e ao sair. Cinco dias em que eu procurei meios para ignorar o cumprimento sem levá-la a reclamar ao Kevin por minha causa.
— Porque ele detesta que eu me atrase, e eu detesto deixá-lo zangado, mas é que o meu irmão tinha uma apresentação hoje e eu simplesmente não pude faltar já que meus pais estão fora da cidade e... — As palavras jorravam de sua boca enquanto ela mexia seus braços em mil jeitos diferentes, sem mesmo ter espaço para respirar. Eu tive que intervir antes que ela tivesse um ataque.
— Ei, calma. — Segurei seus braços no balcão para que ela conseguisse prestar atenção em mim. Funcionou. — Suas aulas são só em dias de semana. — A encarei para que ela entendesse a informação. Em retorno, só recebi um rosto em expectativa, parecendo querer que eu continuasse. — Hoje é domingo. — falei em tom de obviedade. Em um primeiro momento, ela pendeu sua cabeça para o lado, juntando suas sobrancelhas, pensativa. Mas não demorou seis segundos para que ela arregalasse seus olhos em realização. O som que resultou do tapa que deu em sua própria testa me fez contorcer um pouco.
— Eu não acredito nisso. — Sussurrou, como se falasse para si mesma, fechando suas pálpebras por poucos instantes, mordendo seu lábio inferior em uma forma de se conter. Quando os abriu, uma lágrima rolou por sua bochecha. Não consegui imaginar porque alguém choraria com algo tão bobo assim. — Obrigada, . — Rapidamente a limpou, entretanto, e se virou para ir embora. Mas não conseguiu completar a ação: antes de abrir a porta, parou em seu lugar, observando a chuva que ainda caía pela vitrine de vidro. Seu olhar divagava por todas as direções e, pela primeira vez, carecia de seu brilho entusiasmado. A este ponto, seu dedos já haviam se tornado completamente brancos e sua respiração dolorosamente lenta só colaborava com a minha impressão de que estava perdida.
Desta vez, fui eu quem mentalmente se deu um tapa, incrédulo com o que iria fazer. Suspirei por longos instantes antes de deixar um resquício de voz sair por entre minha boca.
— Vem cá. — Jurei a mim mesmo de que deixaria ela sair na chuva se não ouvisse da primeira vez, mas para a minha infelicidade, ela também era extremamente atenta. Assim, virou seu rosto para me encarar, e, quando nossas visões se encontraram, eu recuei poucos passos; a sensação de estar no polo norte me atingiu, devido aos seus olhos nublados em frio. Tive que piscar os meus para recuperar a consciência.
— P-pra onde? — Agora, sem a montanha de palavras saindo de sua boca, ela não conseguia mais disfarçar o bater de seus dentes. Resolvi não responder, com medo de que minha voz falhasse, ainda impactado com a fragilidade na qual ela se encontrava. Bastei-me em entrar no compartimento que ficava atrás do balcão, esperando que me seguisse. Demorou alguns segundos para ela o fazê-lo de fato.
Chegando lá, em velocidade lenta devido ao seus músculos tensionados — eu imaginei —, pude observá-la pender sua cabeça para o lado novamente, em uma mania que eu estava começando a questionar. Também passei a analisar onde estávamos, tendo muito tempo desde que eu havia entrado na cabine do aquecedor. Como imaginado, uma máquina gigante, responsável pelo controle do clima da academia, estava no canto, ligado por canos de metal. As paredes pintadas em azul bebê combinavam com o pequeno sofá e prateleira brancos que tomavam conta do resto do espaço do quarto. Caminhei em direção ao compartimento, me lembrando o que estava fazendo ali. Tive problemas em achar o que queria em meio a tantas roupas esquecidas, mas quando o fiz, já tinha se sentado no sofá e suas bochechas haviam restaurado um pouco de cor natural. Imediatamente, senti um alívio; não teria que sugerir para que ela se confortasse.
— Aqui está — disse, estendendo a manta encontrada em sua direção. Sem tardar, ela a tomou de minhas mãos delicadamente. Tendo cumprido meu dever, comecei a dirigir-me em direção da saída, mas sua voz, ainda fraca, mas audível, se fez presente.
— Espera! — Ergueu um de seus braços, mesmo coberto pelo tecido. Ela tinha o colocado até em cima de sua cabeça. — Fica aqui. — Seus olhos reluziram em um brilho inocente e seu tom me lembrou uma criança manhosa. Eu quis ficar irritado. Quis sentir nojo de sua falsa inocência. Quis acusá-la de agir de forma tão infantil sendo crescida. Mas não consegui. Não consegui porque sua respiração ofegante, suas pupilas dilatadas e lábios pressionados um nos outros não mentiam; ela estava apavorada. — Por favor — sussurrou em resultado do meu silêncio.
— Tem medo? — Levantei uma de minhas sobrancelhas, tomando cuidado para que os cantos da minha boca também não o fizessem; fazê-la pensar que eu estava zombando era arriscado demais.
— Sim, muito — respondeu no mesmo instante em que perguntei, sem ao menos titubear. Percebi, então, que seu pânico era maior do que seu orgulho. Se é que ela tinha algum, na verdade.
Eu a encarei por alguns momentos antes de me estapear mentalmente mais uma vez. Fechei os olhos, suspirando forte — um hábito que, aliás, se tornava muito mais comum quando eu ficava perto dela. Não percebi que realmente estava considerando a opção, mas quando dei por mim, meus pés já me levavam para a parede em frente ao sofá. Apoiei minhas costas na superfície ao sentar.
— Ah, meu Deus! Esse chão deve estar ardendo em frio, menino. Senta aqui. — tentou encolher-se para o lado, mas era óbvio que o sofá era pequeno demais para duas pessoas. Dei de ombros.
— Ele tem aquecedor, não precisa se preocupar. — Coloquei minhas mãos em meus bolsos, não querendo analisar toda a situação e me arrepender do papel em que estava prestando.
Surpreendentemente, nos segundos que se seguiram, tudo o que eu ouvia eram as trovoadas distantes. Passei a encarar o teto como uma forma de me distrair.
— Obrigada, . — Mas, quando voltei minha atenção para ela, percebi que nunca tinha parado de me fitar. Sua íris, tomada pela essência típica novamente, me causou arrepios que decidi ignorar. — Sabe que não precisava disso, não sabe?
— Não deveria agradecer as pessoas apenas porque não são completos babacas, . — Sem conseguir cortar o nosso contato visual, disse algo que considerava importante, aproveitando sua total atenção. Ela sorriu ao se ajustar de forma mais confortável.
— Você pode ter convencido todo mundo, inclusive a si mesmo, de que não é gentil, mas eu não acredito nisso. — E, então, fechou seus olhos, ainda com os cantos da boca levantados. Eu ri levemente, em escárnio. Ótimo, mais alguém em minha vida para ditar quem eu era ou deixava de ser. Preservei meus pensamentos ao não responder, deixando o gosto amargo em minha boca. Não valia a pena.
Assim, o silêncio voltou a perambular entre nós. Nenhum dos dois parecia se importar, até que ela decidiu cortá-lo.
— Sempre fica sozinho aqui? — Agora, já tinha suas pálpebras abertas, fazendo sua visão caminhar por entre todo o quarto.
— Aos domingos, sim. — Eu fazia o mesmo, procurando, inconscientemente, nunca encontrar os olhos dela. Por uma última vez, todos os sons foram deixados de lado.
— Então, vou te fazer companhia — falou sem preocupação, como se não fosse algo de muito alarde.
Eu não acreditei.


CAPÍTULO DOIS

16 de julho de 2017
Eu fechei meus olhos, apoiando os meus braços no balcão, cansado de procurar por alguma música na qual eu realmente queria ouvir. Todas as baixadas em meu celular haviam se tornado obsoletas, e, mesmo se antes conseguiam me preencher em êxtase, agora, no máximo, eram agradáveis o suficiente para que eu não as pulasse antes da metade. Havia até mesmo me esquecido de qual exatamente tocava quando barulhos repetidos me assustaram.
Abri os olhos para ver batendo no balcão com um sorriso no rosto e um laço em seu cabelo — que, sem surpresa alguma, estava preso em um rabo de cavalo.
Desde o último domingo, suas atitudes comigo não haviam mudado. Como sempre, me dava um bom dia e um boa noite ao entrar e sair. O que não era o mesmo, entretanto, era a minha a reação: agora, eu me sentia compelido a, ao menos, acenar em sua direção. Criar escapatórias que não parecessem escapatórias me cansavam.
— Esqueceu de que hoje é domingo novamente? — perguntei com uma de minhas sobrancelhas levantadas, embora soubesse que não era o caso.
— Não. — Colocou um pequeno pote, do qual eu nem reparei que carregava, em cima do balcão, sem tirar seu sorriso do rosto. — Se esqueceu de que eu disse que faria companhia? — Me imitando, também levantou a sua. Eu me reclinei, aproveitando que não sentava mais em um banco, mas em uma cadeira com apoio traseiro. Ao cruzar meus braços, respondi.
— Você tende a acreditar em tudo que dizem para você? — Ela colocou o dedo indicador em seu queixo, como se pensasse.
— Pra falar a verdade, acredito sim. — E deu de ombros. Eu não me surpreendi com a resposta. — Mas olha só o que eu trouxe pra você. — Deixou seu sorriso mais largo, se é que isso era possível, ao me estender o pote preto. Eu questionaria a cor, mas me contentei em suspirar a abrir a tampa. A minha fome não me deixou prestar muita atenção nos detalhes dos biscoitos que surgiram, mas, assim que eu segurei um para melhor inspeção, reparei em seus formatos de flor. Meu rosto perdeu toda a expressão.
— Às vezes eu acho que você nunca saiu do jardim de infância, sabia? — Sem ao menos pensar muito em minhas palavras, soltei a frase. mordeu seus lábios, contente. Levantou sua postura e mexeu seus ombros como se tivesse orgulho do que eu dissera.
— Muitíssimo obrigada. — E, então, deu uma mordida em uma das flores de chocolate.


CAPÍTULO TRÊS

20 de julho de 2017
— Pode me dizer por que ainda não foi pra casa? Sua aula já terminou. — Foi a minha pergunta para a garota que estava sentada em cima do meu balcão, me observando intensamente enquanto eu ajeitava os papéis restantes do dia.
— Porque você ainda não foi para a casa. — Sorriu como se sua resposta fizesse algum sentido. Eu, instantaneamente, parei de me mexer, encarando ela de volta.
— Tá. Então pode me explicar essa sua obsessão em me fazer companhia? Não é como se eu tivesse pedido por isso. — Joguei meus braços pra cima, os cruzando logo após.
— Eu posso parar, se você quiser. — Cruzou suas sobrancelhas, pensativa. Eu fechei meus olhos, sem saber o que dizer.
— Só não gosto muito de falar com pessoas. Consegue entender isso? — Voltei a trabalhar, lembrando-me de que tinha coisas para fazer.
— E, ironicamente, você começou quase todas as nossas conversas. — Ela sorriu, travessa. Eu decidi ignorar a sua frase.
Mais alguns instantes se passaram sem que nenhum dissesse nada.
— Far Cry 3? — Então, ela o interrompeu, apontando para um artigo aberto em meu computador.
— O melhor da franquia. — Dei de ombros, prestando atenção em não trocar nomes de clientes.
— Você joga? Tá brincando! — Arregalou seus olhos em animação. Tive que parar ao entender o que disse.
Você joga? Um jogo repleto de assassinatos e tiros? — Levantei uma sobrancelha, não conseguindo imaginar uma garota tão inocente quanto gostando de atividades grosseiras.
— Eu não passei quarenta horas coletando todos os achievements para você me questionar, . — Cruzou seus braços. Queria parecer ofendida, mas os cantos de sua boca estavam elevados.
— Haja paciência. — Grunhi, mas também sentindo minha expressão se iluminar. — Só terminei a história principal. E com muito custo.
— Mas não disse que era o melhor da franquia? — Gargalhou levemente ao não me entender.
— É mesmo. — Eu permaneci ajeitando os papéis ao meu redor.
— E ainda assim quase não terminou ele? — Desceu do balcão, vendo que eu já estava quase terminando.
— E você acha que eu consegui passar mais de três horas em algum dos outros? — Falei, em tom de obviedade. Ela sorriu, revirando os olhos.
— Talvez devêssemos jogar algo juntos algum dia. — Sugeriu. Eu suspirei.
Talvez devêssemos.


CAPÍTULO QUATRO

30 de julho de 2017
— Está lançando o gancho errado. — eu disse, ao entrar na sala de treino onde estava. Pela quarta vez naquele mês, estávamos passando um domingo juntos. O último havia sido lamentável; disse a ela que não gostaria de falar com ninguém naquele dia, frustrado com coisas que Kevin havia me dito, então ela esperou. Em silêncio. O dia todo. Ao meu lado. Eu, é claro, tinha ficado irritado. A companhia de pessoas, geralmente, tinha esse efeito em mim. Mas, acima de tudo, o que me enfurecia de verdade era isto: quando ela foi embora, em vez de sentir raiva, eu fui tomado pela culpa.
— Você acha? — me perguntou, tristonha. Estava treinando porque, ao contrário de todas as outras vezes, eu não tinha conseguido terminar meu trabalho cedo e ela resolveu ir aperfeiçoar o golpe que tinha dificuldade enquanto me esperava.
— Não levante a parte de trás dos seus pés, mantenha-os firme. — Foi o meu conselho. Eu o achei simples o suficiente, mas , em uma de suas maiores proezas, conseguiu enroscar suas duas pernas enquanto lançava o soco e, como resultado disso, as suas costas se estalaram no chão.
Minha primeira reação foi o choque. Iria correr para ver se ela estava bem, mas antes que eu pudesse sair do meu lugar, a minha confusão se transformou; em instantes, a risada histérica dela ricocheteou por todas as paredes. E a razão de meus olhos arregalados não era sua alegria, mas o quão agradável para os meus ouvidos era o som de seu riso. Aos poucos, entretanto, pude enxergar o lado cômico da situação. Sem ao menos perceber, gargalhava tão alto como ela, que ainda estava no chão. Me aproximei e estendi uma mão para ajudá-la.
— Eu vou beber água — ela disse, ainda ofegante e entre risos. Eu a observei sair pela porta. Quase imediatamente, meu celular tocou. O nome "mãe" no visor me fez suspirar.
— Eu ainda estou no trabalho. — Comecei, imaginando exatamente o que ela iria falar.
— E você acha que eu me importo? — Sua voz estridente soou em meus ouvidos. — Eu preciso do carro pra já!
— E você acha que eu me importo? — Ri com sua audácia. — O carro é meu, eu o comprei com meu dinheiro. — Então, foi a vez dela de rir.
— Dinheiro do emprego que eu te consegui, seu vagabundo. — Ela urrou, parecendo bêbada. Não duvidava que estivesse.
— É, emprego que me deu quando me forçou a deixar a escola. Muito obrigado, mamãe. — Deixei a ironia rolar ao chamá-la assim.
— Você é um bostinha igual seu pai, não é? — Pude até visualizar os seus lábios contorcidos ao falar. — Deveria ter te mandado para o inferno assim como fiz com ele! — Sua voz foi tão alta que, tive certeza, ultrapassou os meus ouvidos.
Tive maior certeza quando ouvi um impacto atrás de mim e, quando me virei para ver, havia se esbarrado com os pesos empilhados no canto. Desliguei a ligação, não querendo mais ouvir o que a mulher tinha pra dizer. tentou disfarçar o vermelho de suas bochechas.
— Eu... esqueci a minha garrafinha. — Apontou para o recipiente azul enquanto mordia seu lábio inferior. Eu sorri de canto, querendo que meus olhos dissessem que estava tudo bem.
Para minha surpresa, ela entendeu.


CAPÍTULO CINCO

13 de agosto de 2017
— Não acredito que você realmente trouxe isso pra cá — disse, parado no batente da porta, observando e sua saia florida, de uma maneira muito longe de estar certa, tentar todos os passos que apareciam na TV do quarto.
— Acha mesmo que eu não aproveitaria todo esse equipamento sem trazer meu XBOX, ? — Falava ofegante, dando seu máximo para não pular nenhum movimento, sem tirar seus olhos da tela. — Vem cá, vem dançar comigo. — Eu cruzei meus braços.
— Você está ficando incrivelmente louca, mulher. — Balançava minha cabeça de um lado para o outro. — Jogar Far Cry tudo bem, Mario Kart eu aceito, mas Just Dance? — Arregalei meus olhos para ilustrar meus sentimentos. — Está completamente pirada. — Então, sua música terminou, dando espaço para que ela pudesse me lançar um de seus olhares mais julgadores. Ela tinha recebido quatro estrelas.
— Vai mesmo amarelar, ? — Foi a sua vez de cruzar seus braços.
— Isso não tem nada a ver com medo, . — Imitei seu tom afetado. — Tem a ver com dignidade, morais. Algo que uma comedora de McDonald’s como você não entenderia. — Sorri de canto, sabendo exatamente o que eu estava atiçando. abriu sua boca por completo.
— Não ouse trazer os meus BigMacs nisso ou você vai se arrepender. — Estreitou seus olhos, engrossando seu tom. Eu ri, irônico.
— E o que vai fazer? Piscar seus olhos até que eu morra? — Por algum tempo, ela não falou nada. Permaneceu parada, me olhando com pálpebras meio fechadas. Até que, de repente, começou a saltitar em círculos.
é um frangote, é um frangote, é um frangote… — Repetia vez após vez, em uma melodia infantil qualquer. Eu não acreditei no que estava vendo.
— É isso? Acha mesmo que meu ego irá se ferir assim? — Levantei minha sobrancelha. Ela parou de se mover.
— Não, acho que sua mente vai se enfurecer quando eu continuar fazendo a mesma coisa por horas a fio. — Sorriu, fingindo ingenuidade.
— Você não conseguiria — sussurrei, já imaginando o trauma.
— Duvida? — Pendeu a cabeça para o lado. Quando não respondi, seu sorriso vitorioso se alargou. — A próxima música vai ser Ragatanga… — Apontou para a tela colorida. Eu olhei para ela, olhei para a TV. Olhei para ela, olhei para a TV. Olhei para ela, olhei para TV. Bufei, sem outra opção.
O quão ruim deveria ser, afinal?
— Sai da frente, Barbie. — Carrancudo, me posicionei à frente do sensor.
Depois de muitas tentativas falhas, poses afeminadas chamando por Diego que vinha caminhando, tropeços e risos zombando, eu percebi: era muito pior do que eu havia imaginado.
Porque eu tinha gostado.


CAPÍTULO SEIS

5 de setembro de 2017
— Você fica muito fofo quando dorme, . — foi a primeira coisa que vi ao acordar. Seu cabelo reluzia por debaixo do sol e seu vestido rosa era carregado pelo vento. Estávamos em um lugar distante da cidade, uma espécie de floresta aberta. Como eu havia parado ali? Não fazia ideia. O que eu sabia era: em algum ponto dos domingos compartilhados, eu havia percebido que, de longe, ela era a parte menos estressante do meu dia. E que seus olhos eram extremamente convincentes.
— Eu nem percebi que tinha dormido. — Bocejei, estendendo meu braço na toalha de piquenique. , rapidamente, se deitou em cima dele. Ela, também em algum dos domingos compartilhados, havia decidido que eu gostava de contato físico. Ou decidido completamente ignorar as minhas vontades.
— Você trabalha demais, sabia disso? — Ligeiramente zangada, ela bateu na minha barriga. — Só tem folgas no sábado e olhe lá. Não me surpreenderia se aparecesse desmaiado por aí.
— Admita que não é uma ideia que você detesta. — Sorri de canto, a provocando. Mais uma vez, recebi um tapa. Só que, dessa vez, tinha sido mais forte.
— Ai! — exclamei, pensando que talvez as aulas de boxe estavam mostrando resultado.
— Nunca mais repita isso na sua vida, me ouviu? — E, então, cruzou os braços, franzindo seu cenho. Eu revirei os olhos, mas ainda assim achei graça. Ficamos em silêncio por mais alguns segundos, até sua voz aparecer novamente.
— Essa é a primeira terça em que nos encontramos fora da academia, já reparou? — Eu sorri, achando engraçado a sua aleatoriedade.
— Culpe o feriado. — Ali, uma dúvida surgiu em minha mente. — Não deveria estar passando ele com sua família, aliás? — Ela balançou a cabeça para os lados, fazendo cócegas em minha pele.
— Não. Meu irmão foi passear com a namorada dele e meus pais continuam fora da cidade. — Eu murmurei algum som em compreensão. Voltamos a olhar para as nuvens brancas e céu claro quando ela decidiu interromper o silêncio novamente.
— Às vezes, eu acho que eles viajam tanto assim para fugir das lembranças. — Engoli em seco. Não queria que ela discutisse assuntos dolorosos comigo, porque não me achava preparado o suficiente para lidar com sua tristeza. Ou para vê-la triste.
— Costuma sempre compartilhar sua vida com estranhos? — Por isso, resolvi mudar o foco do jeito mais natural possível. Pareceu funcionar.
— Eu costumo compartilhar com pessoas em que confio. E confio em você. — Então, virou seu rosto em minha direção, deixando os nossos lábios próximos demais. Não pude reparar neles por muito tempo, entretanto. Sua íris sugava toda a minha atenção. — Você não confia em mim? — perguntou. Fui incapaz de responder.
Eu confiava?


CAPÍTULO SETE

17 de setembro de 2017
— Como ousa, ? Como ousa? — repetia, enquanto colocava seu casaco, com um expressão afetada em seu rosto. — Mulan é infinitamente melhor do que Frozen, seu inculto! — Eu, na verdade, não havia assistido nenhum dos dois; Disney não era realmente o meu tipo de filme. Mas eu tinha descoberto naquele dia que Mulan era o favorito de e Frozen, o mais detestado. E, claro, como pirraça-la sempre trazia o mais sincero dos sorrisos em meu rosto, não tardei a usar isso contra ela.
— Aceite, minha cara . — Tirava algumas luvas do chão para colocá-las na estante em que deveriam estar; algo que nenhum cliente parecia entender. — Um camaleão sempre será melhor companheiro do que o dragãozinho. — Dei de ombros, como se recitasse fatos.
— O camaleão é da Rapunzel, bobão. — Me deu língua. Eu suprimi um riso por conta do meu próprio erro. — Só não te dou uns tapas porque já está tarde e tenho que ir embora. — Afinal, nossos encontros nos finais de semana se tornavam cada vez mais longos. Eu, que nem ao menos sabia porque eles haviam começado, encontrava cada menos vontade em mim de que terminassem.
Mordi meus lábios, levantando minhas sobrancelhas em questionamento.
— Eu gostaria de ver você tentar. — Cruzei meus braços, vendo ela arregalar seus olhos em ofensa.
— Acha mesmo que pode enfrentar a mim, a maior lutadora de boxe da história? — Ela repetiu o meu ato, também cruzando os braços. Eu me contentei em sorrir e revirar os olhos.
— Boa noite, . — Ela repetiu o cumprimento e abriu a porta, saindo. De repente, um sentimento profundo controlou meu coração. Era uma pressentimento ruim que ia até a minha boca, fazendo com que eu sentisse amargo. Um calafrio percorreu por minha coluna e eu soube que não podia deixá-la ir sozinha. — Ei, ! — gritei ao deixar a academia e ver sua silhueta na rua. Ela olhou para trás e pensei ter ouvido um “o quê?”. Corri até estar ao seu lado.
— Você não vai fechar a academia mais tarde? — Ela levantou uma sobrancelha ao me questionar
— Eu não estou a fechando ainda, estou apenas te acompanhando. — O que eu disse não foi o suficiente para fazê-la a abaixar.
— E decidiu ser um cavalheiro assim, do nada? — Começou a caminhar novamente e eu a segui.
— Quer que eu vá embora? — Apontei para trás, parando em meu lugar. Ela riu, contorcendo seu nariz e me empurrando para o lado.
— Extremista.
O resto do caminho seguiu a mesma linha; provocações de minha parte e as tentativas falhas dela de combatê-las. Quando viramos a terceira esquina, ela me avisou de que estávamos perto. Caminhamos por mais alguns minutos quando ela parou, subitamente, me fazendo quase cair.
— O que foi? — questionei, tentando enxergar o que seus olhos estáticos encaravam.
— Meu portão está aberto — ela sussurrou, ainda sem mexer qualquer parte de seu corpo. — E meu irmão está na casa de um amigo. — Instintivamente, quando entendi o que queria dizer, me pus à sua frente, liderando o caminho.
— Não saia de trás de mim. — Tentei fazer soar como uma ordem, mas pareceu uma súplica. Ela acenou a cabeça, pondo suas mãos em minhas costas por alguns instantes.
Em passos cautelosos, entramos em sua casa, cuja a porta também tinha sido arrombada. Tentando identificar qualquer movimento suspeito, peguei um dos guarda-chuvas que estavam no canto da sala e entreguei em suas mãos.
— Vou revistar a casa para ver se ainda tem alguém aqui. Se qualquer coisa te assustar, acerte ele na cabeça com isso, tudo bem? — Eu queria fazê-la rir, mas só recebi olhos apreensivos e mãos que tremiam em resposta. Não demorei em procurar o culpado para que eu pudesse lhe dar umas belas porradas.
Vasculhei a sala, a cozinha, todos os quartos e banheiros em ambos os andares. Não encontrei ninguém, mas tinha percebido o óbvio: quem quer que fosse o invasor, havia conseguido levar praticamente tudo.
Retornei à entrada ao descer as escadas e enxerguei o corpo pequeno e retraído encostado na parede, olhando para todas as direções em um ritmo acelerado. Quando me aproximei, ela pulou em susto, suspirando aliviado ao perceber que era eu.
, eles… — Começou a rodear o corpo com seus próprios braços. — Eles levaram tudo, tudo. — Sua voz falhou no meio da frase e meu coração se encolheu. — O que vamos fazer agora? Meus pais estão longe e eu… — Levantou o seu rosto e nossos olhos se encontraram. — ... Eu… eu tô com medo. — Lágrimas começaram a correr por sua bochecha sem nenhum tempo de descanso. Seu peito subia e descia em um ritmo acelerado e parecia que, a qualquer momento, ela iria desmoronar.
Sem pensar em minhas ações, a tomei em meus braços, sentindo seu coração acelerado alcançar a minha pele. Fechei os olhos quando os seus me contornaram e seus soluços se tornaram mais fortes. Entendi que eu precisava daquilo tanto quanto ela.
Se antes eu reclamava de ver entusiasmada, agora eu daria tudo para que pudesse a ter de volta.
Cada som em desespero que saía de sua boca era uma facada em meu coração. Cada vez que seu aperto se tornava mais forte, um desejo de afastá-la de todo o mal me invadia. Cada vez que meus olhos lacrimejavam em empatia, eu percebia o quanto me dilacerava vê-la em dor. E, assim como no nosso primeiro domingo, tudo o que eu queria era achar um cobertor quente o suficiente para que ela se esquecesse do frio.
Como não tinha um, entretanto, me contentei em afagar seus cabelos, sussurrando palavras em conforto. Mentalmente, praguejei-me por não poder fazer mais. Permanecemos, então, ali; talvez por minutos, talvez por horas. Embraçados.
Até que, gradualmente, seus soluços se calaram.


CAPÍTULO OITO

24 de setembro de 2017
Estávamos em um dos parquinhos da cidade, sentados em balanços. , desde que eu passei a acompanhá-la até sua casa, sempre reclamava de que queria visitá-lo. Eu sempre negava, dizendo que estava muito frio, ou muito tarde, ou muito longe. Mas, se tinha algo que eu havia aprendido nos nossos meses de convivência, era nunca duvidar do poder de seus cílios piscantes.
— Qual o seu desenho favorito? — me perguntou, participando do jogo que ela mesmo havia sugerido. De acordo com , não sabíamos um número suficiente de fatos aleatórios um do outro. Eu aproveitei a brisa que passava, fechando meus olhos ao pensar.
— KND, a turma do bairro. — Ela deu breve risos. Eu passei a empurrar o meu balanço para que se mexesse. — O filme da sua vida?
— Nárnia, definitivamente. Você dorme com armários abertos ou fechados? — Eu franzi meu cenho.
— Não reparo nisso. Acho que tanto faz. — Dei de ombros. — Tem namorado? — A frase saiu de minha mente sem que eu pudesse controlá-la. gargalhou.
— Acha mesmo que, se eu tivesse um, você já não saberia? Bobo. — Me deu língua. — Você tem? — Mesmo assim, repetiu minha pergunta.
— Namorado? Não, homens não fazem o meu tipo. — Ela revirou os olhos e tentou me dar uma tapa, mas não me alcançou. — E, não, também não tenho namorada. — Pensei por alguns instantes antes de perguntar. — Se pudesse viajar para qualquer lugar do mundo, agora, para onde iria? — O horizonte naquela área era muito belo, mas eu não conseguia tirar meus olhos de . Mesmo de noite, ela permanecia radiante.
— Suécia. — Sua voz se tornou embargada. Eu suspirei; era lá onde seus pais estavam. — Sinto saudades deles. — Ela continuou, sabendo que eu entenderia. Rapidamente, entretanto, expulsou a melancolia de seus olhos e também forçou seu balanço a se movimentar. Agora, nós dois voávamos. Observá-la se tornou mais difícil. — Qual arma você usaria se estivesse em uma idade média fantástica?
— Um machado — respondi, após alguns segundos sorrindo por conta da pergunta. Mas, tão rápido quanto a felicidade, uma tensão tomou conta de meu corpo. Eu tinha muitas coisas em minha mente. Queria perguntar que tipo de pais não viriam visitar sua filha após ter sido roubada, queria perguntar por que ela não cobrava suas responsabilidades, queria questionar como eles conseguiam abandonar um ser tão valioso quanto , mas me controlei. Expulsei todas as sugestões de minha mente, sabendo que poderiam magoá-la. Expressei, em uma alternativa, uma dúvida que realmente perambulava em minha mente. — Por que decidiu aprender boxe?
— É uma história frustrante, na verdade. — Contorceu seus lábios em uma careta. — Meu irmão chegou em casa todo machucado por conta de uma briga e eu fiquei furiosa. Decidi que teria protegê-lo, de alguma forma.
— Ele costuma arranjar confusão? — Não sabia o porquê, mas pensar que um parente de alguém tão delicado quanto era agressivo soava engraçado.
— Para ser sincera, costuma sim. — Deu pequenas risadas. — Mas, daquela vez, tinha sido muito forte. O babaca que bateu nele conseguiu quebrar seu braço. Sabe o que isso significa para quem toca piano? — Sua voz aumentou inúmeros tons. — Nós nem sabíamos se ele conseguiria seus movimentos normais novamente. — Eu franzi minhas sobrancelhas.
— Você sabe onde foi? Se estava tarde? — Não era o costume da cidade ser tão violenta.
— Foi perto da academia, na verdade. Acho que aconteceu algumas horas antes da minha inscrição. — Arregalei meus olhos. — Mas foi horrível. O pobre pikachu de sua blusa estava todo cheio de sangue. — Eu engoli em seco.
Ah, não.


CAPÍTULO NOVE

30 de setembro de 2017
— Eu juro que já vi essa mariposa umas cinco vezes hoje. — A forma como falou, extremamente séria, me fez gargalhar. Meu estômago subia e descia, fazendo a cabeça dela mexer também. Ela continuou a falar quando recuperei meu fôlego. — Como descobriu esse lugar, afinal? — Ela contorceu-se para ajustar melhor a sua pele sobre a grama. A senti olhar para mim, mas eu permaneci a fitar o céu estrelado. Meus pensamentos não estavam conseguindo se focar. Minha mente divagava.
— Minha mãe já conhecia todos os locais em que eu usava para me esconder dela. — Eu pude ouvir engolir em seco. Eu, então, esperei por alguma pergunta sobre meu passado, mas ela não veio. Nunca tinha vindo, na verdade. Algo que me confundia sobre era o quanto conseguia ser extremamente falante e, ainda assim, completamente silenciosa.
Ergui minha cabeça para tentar enxergar a menina em cima de mim, e tudo que a mesma fez foi retribuir o meu olhar.
— Você nunca falou nada sobre a ligação. — Ouvi minha própria voz revelar meus pensamentos. , então, desviou sua atenção de mim, passando a encarar o céu. Eu deixei minha cabeça deitar novamente.
— Todos nós temos os nossos segredos, . — Percebi como mexia em seus dedos, inquieta. — Não quero e nem posso te forçar a nada. Quando estiver pronto pra me contar, eu estarei aqui. — Pendeu sua cabeça para o lado, fazendo alguns de seus fios enrolarem.
Parei por alguns segundos, tentando absorver o que havia me dito. Busquei em mim qualquer aversão a ideia de contá-la, mas não encontrei nada. O assunto já não mais significava muita coisa em minha vida, eu já o havia superado. Por isso não sentia a necessidade de contar para outras pessoas; era de pouca importância. Só que com era diferente. Não queria contar por mim, queria contar por ela. Para que, dessa forma, ela se sentisse mais próxima. E para que, talvez, assim, ela permanecesse por perto.
Todos os meus dias eram assombrados com a impressão de que, a qualquer momento, ela iria voar para longe. E tudo havia se tornado muito mais forte desde a noite no parque.
Engoli em seco mais uma vez. Culpa voltou a tomar conta de mim, mas eu voltei a falar em uma tentativa de ignorá-la.
— Ela diz que matou meu pai — comecei, cruzando minhas sobrancelhas ao tentar reviver as memórias. A respiração de se tornou mais ofegante; algo que tentou disfarçar. — Diz que cortou os freios do carro dele. Mas eu duvido. — Balancei a cabeça para os lados, observando cada estrela como se fosse em um ponto em minha história. Tentava fazer sentido. — Acho que, quando ele morreu, ela se sentiu tão vazia quanto eu. Tão perdida quanto eu. — Deixei meu tom escurecer, sem ao menos perceber. Já não mais falava com , nem estava no gramado. Flutuava no espaço, cavando em meu próprio ser. — Eu preenchi o vazio com a solidão, mas ela… — Fechei os olhos com força súbita. Respirei fundo. — Não sei. Parece que direcionava toda a sua ira em minha direção, como um jeito de lidar com tudo.
— Ela batia em você? — Sua voz saiu em um fio e eu tive vontade de pegá-la no colo.
— Essa não era a pior parte, na verdade. — Sorri de canto, sem graça. — A parte mental sempre me afetou muito mais. — Parei por alguns instantes, dando tempo para que tudo voltasse aos poucos. — Ela me tirou da escola, me proibiu de falar com meus amigos, de interagir com o mundo exterior. Acho que essa foi a forma dela de ter certeza que eu nunca conseguiria deixá-la. — juntou suas sobrancelhas em uma expressão de dor, mas eu alarguei meu sorriso ao sentir um peso em minha garganta. — Isso sempre me confortou, sabe? Saber que ela fazia isso me dizia que ela me queria por perto, como filho. Me dava esperanças de que talvez ela voltasse ao normal. — Minha voz embargou. Só percebi que estava chorando quando se levantou para limpar uma de minhas lágrimas. Fechei meus olhos, deixando que elas rolassem. — Só que não aconteceu. — , então, pegou a minha mão e a embrulhou com as suas próprias. Eu retribui o aperto, temendo esmagar seus ossos com toda a força que colocava.
Permanecemos em um silêncio confortável, como era costumeiro entre nós dois, antes que minhas lágrimas parassem e secasse por completo. Controlei minhas emoções novamente, sentindo a típica apatia sobre o assunto voltar. Só que, desta vez, estava ligeiramente diferente; meu peito, coberto por uma nuvem de calor a me confortar.
Sem querer que o clima continuasse para baixo e que a noite fosse lembrada como triste, entretanto, elevei o meu tom ao mudar de assunto.
— Ela que me deu o emprego, sabia? — desenhava alguma coisa nas costas da minha mão.
— Ela trabalha no ramo? — falou pequeno, ajeitando seu corpo para que fosse mais confortável para mim.
— Não. Ela namora Kevin. — Sorri largo ao sentir sua respiração parar. afastou seu corpo para que pudesse me encarar com seus olhos arregalados.
— Kevin? O dono da academia? Seu chefe? — Naquele momento, ela também ria. — Eu nem sabia que ele era hétero. — Então, minha risada se tornou extrema. Tive que colocar minhas mãos em minha barriga porque não aguentava mais, e ver fazer o mesmo só aumentava o lado cômico do momento. Gradualmente, entretanto, conseguimos nos controlar, passando a observar um ao outro.
Tirei uma mecha de cabelo do seu rosto, o segurando em minha mão por alguns instantes. Foquei em cada parte de seu rosto; desde seu nariz levemente arrebitado até seus lábios entreabertos. Senti que carregava o próprio mundo. Meu mundo.
Mas não consegui fazer mais do que isso. Não sem contar a verdade.
Seus olhos piscando lentamente, entretanto, me impediram de fazê-lo naquele momento.
— Vem, vamos para a casa. Você está com sono. — Me levantei, relutante, tirando todas as plantas de minha roupa. , com um sorriso manhoso em seus lábios, estendeu seus braços. Eu revirei meus olhos, mas a peguei no colo do mesmo jeito.
— Folgada — murmurei, ela riu.


CAPÍTULO DEZ

Quando percebi em qual portão o táxi estava parando, quase me arrependi de ter concordando em acompanhar . Não me entenda mal, eu adorava passar um tempo ao lado dela. Mas cemitérios sempre causavam um bolo em meu estômago.
Eu deveria ter adivinhado pelas flores em suas mãos e vestido preto, entretanto.
— É aqui mesmo, muito obrigada — ela disse, pagando o motorista logo após. Saiu por sua porta e eu fiz o mesmo, seguindo seus movimentos. Quando o som do carro indo embora alcançou os nossos ouvidos, olhou para o portão e, depois, olhou para mim, como se dissesse: “Vamos?”. Fomos.
Às vezes, eu tinha a impressão de que avançava em nossa amizade muito mais rápido do que eu. Sempre percebia e elevava o nosso nível de proximidade antes mesmo de eu poder analisar a situação. Ao olhar para trás em nossa história, entretanto, o que eu via era outra coisa; ela somente era a primeira a notar a mudança de sentimentos. Eu, talvez de forma mais intensa do que ela, sempre havia dado lugar para melhoras. Ela, afinal, nunca arrombava meu coração, mas pedia gentilmente se podia ter mais espaço. Eu só nunca havia conseguido negar.
E, ao caminhar ao lado dela, percebendo como os raios de sol passavam ao redor de seu rosto, repelindo de mim a vontade de piscar, entendi exatamente o porquê.
Seguíamos por um caminho cercado por flores, evitando a parte central do cemitério, onde a maioria dos túmulos estavam. Àquele ponto, já sabia que estávamos lá para visitar alguém querido por ela, mas não conhecer quem deixava as minhas palmas cada vez mais suadas. E o fato dela não dizer nada, apenas, casualmente, olhar para mim com seu sorriso tão conhecido e amado, só me trazia mais vontade de sair correndo.
Mas eu deveria continuar. Deveria apoiá-la, estar com ela em sua visita. Se ela havia me chamado, afinal, era porque precisava de mim naquele momento. E que tipo de idiota eu seria se decidisse abandonar ?
Sem que nem ao menos percebesse, porque divagava, paramos em frente a uma sepultura de mármore branca, sozinha. Ler o nome engravado fez minha boca secar: Angelina . Passei alguns segundos tentando controlar a minha própria respiração ofegante quando decidiu falar.
— Quando eu era pequena, — Ela não olhava para mim. Nem para qualquer lugar físico. Sua íris parecia navegar, desprendida do mundo material. — Angelina dizia que nosso destino já estava fadado desde o nosso nascimento. Eu nunca acreditei nisso, mas… não é irônico alguém batizada de anjo morrer tão jovem? — Riu seco. Eu não soube o que dizer.
— Às vezes, coincidências são poéticas. — Mas não pude deixá-la esperando por uma resposta.
— Então acredita em coincidências, ? — Desviou sua atenção para mim, encarando meus olhos como sempre fazia. — Não em destino?
— Nunca tive motivos o suficiente para acreditar nele. — Dei de ombros, tentando não falar muito; estava com um sentimento ruim em meu estômago. Visitar quem quer que fosse Angelina não parecia ser doloroso para , visto que ela permanecia extremamente composta, então por que havia me chamado? Todos lidavam com o luto de uma maneira diferente, mas era preciso eu estar ali?
Ela riu diante da minha resposta, mas não parecia feliz.
— Ela era minha irmã. Minha gêmea. Mas, um dia, ela caiu de cama, tossindo muito. No outro, ela já nem estava mais em casa. Ou entre nós. — Lambeu seus lábios, passando a encarar as flores em seu colo. — Meus pais nunca me contaram a sua doença. Não estiveram conosco o suficiente para fazê-lo, afinal. — Então, voltou a me olhar. — Eu praticamente criei Lucas sozinha, sabe? Todas as noites em que passávamos juntos, sem nossos pais, eu jurava que nunca o deixaria sofrer, nunca o deixaria sozinho. — Aproximou-se mais de mim. — Consegue imaginar o que senti quando o vi chegando machucado em casa? — Droga, droga, droga. Por que voltar àquele assunto, ? Já não me torturava o suficiente ao lembrar disso a cada minuto?
, eu… — Suspirei fundo, sabendo que não aguentaria não contar para ela.
— Eu sei, . — Ela me interrompeu em tom gentil. Eu senti meus olhos se arregalarem.
— Sabe? Sabe o quê? — Dei alguns passos para trás, por puro instinto defensivo.
— Sei que foi você que bateu nele. — Minha respiração parou. — Eu sempre soube, desde o primeiro dia.
— Desde o dia de sua inscrição? — E, então, voltou em força total. Encarei aquele rosto que não deixava de sorrir para mim e minha mente se tornou um branco puro. — Mas… mas como?
— Acha mesmo que ele não te reconheceria, que não sabia quem você era? Nós víamos você trabalhar toda vez que passávamos na frente da academia, bobo. — Ela estava calma. Completamente calma. O que me aliviava, de alguma forma, mas minha cabeça ainda estava em êxtase demais para poder processar a informação. Imediatamente, me exaltei ao tentar me explicar.
— Não foi de propósito, eu juro! A academia tinha sido assaltada e ele estava tentando arrombar a porta dos fundos. Kevin sempre desconta de meu salário quando coisas assim acontecem, então eu pensei que… eu pensei que… eu pensei que ele fosse o ladrão! E ele era mais forte do que eu pensava, eu tive que brigar com ele porque pensei que iria me matar…
! Calma! — Dessa vez, foi ela quem segurou as minhas mãos. Encostou-se o suficiente para olhar-me nos olhos. — Eu sei exatamente o que aconteceu. Acredite, ele não te culpou quando me contou. — Eu juntei minhas sobrancelhas.
— Mas você parecia tão brava no parque. — Ela riu, parecendo envergonhada.
— Eu só queria te assustar um pouquinho.
— Então… você não começou as aulas pra bater em mim? — Sorri de canto, com a cabeça mais fria e calma.
— Não. — Balançou-se de um lado para o outro, travessa. — Comecei as aulas pra te conhecer. Eu não queria te julgar antes de falar contigo. — Abri a boca leventemente, já tranquilo.
— Eu não acredito nisso, menina. — Como alguém poderia ser tão amável?
— Pode acreditar, menino. — Gargalhou. — Mas, se antes eu conheci quem quebrou o braço do meu irmão, então agora eu quero conhecer o menino bonito da academia. — Senti meu coração gelar e uma pontada atingiu minha barriga. Ela estava gostando de outra pessoa? Queria que eu a apresentasse para outro empregado? Talvez um dos instrutores? Mas o que eu ia fazer se me deixasse? Como seriam os meus dias se ela estivesse com outro alguém?
— Meu nome é . — estendeu suas mãos. — E o seu?
— Oi? — Pisquei meus olhos, ainda perdido em meus pensamentos.
— Qual o seu nome? — Naquela hora, entendi os cantos de suas bocas erguidos. Também sorri, incrédulo. — Se quiser me dizer, é claro.
. — E, então, soube exatamente o que me forçou a continuar. — . — Apertei a sua mão, não deixando de encarar sua íris por um segundo.
E essa foi a história de como jurei nunca mais abandoná-la.




Fim.



Nota da autora: Gente, o que dizer dessa fic? UAHSUASH sinceramente, eu não faço a menor ideia do que achei dela. A minha premissa era básica: mostrar o crescimento gradual de uma relação, onde eles não se beijavam nenhuma vez. O que eu não levei em consideração foi 1) fic sem beijo deve ser entediante pra vocês e 2) uma songfic deve ser CURTA. Era pra ser leve, mas às vezes acho que ficou rala. Enfim, de qualquer forma, eu decidi postar mesmo assim porque pensei que deve valer, ao menos, o tempo de vocês. Espero (realmente) que eu esteja certa T.T



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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