Capítulo Único
As estrelas pareciam mais brilhantes naquela noite. Talvez fosse como um ornamento para aquela ocasião especial. Talvez fosse apenas o efeito do álcool que já corria por suas veias. piscou algumas vezes para garantir que não era um daqueles aviões que cruzam o céu escuro e te iludem.
— Acho que aquela ali é a Ursa Maior. - apontou antes de levar a garrafa de vinho aos lábios.
estreitou mais os olhos, tentando localizar a constelação que ele apontava. Não entendia aquilo. Simplesmente pareciam algumas estrelas espalhadas.
— Acho que a pessoa que viu uma ursa pela primeira vez deveria estar mais bêbada do que nós estamos - comentou, arrancando risos do namorado.
— Ali é a cabeça. - Ele voltou a apontar. — Aquelas são as patas e o resto é basicamente o corpo.
— É igual aos cachorros palito que minhas famílias palito tinham nos desenhos que eu fazia com quatro anos. As estrelas são bonitas demais para serem estragadas por um doido que quer abstrair algum animal sem sentido delas. Algumas coisas são destruídas por essa nossa necessidade de encontrar uma razão para tudo.
concordou, pegando a mão da garota para depositar um beijo carinhoso. sorriu, aconchegando-se para mais perto do rapaz até que sua cabeça pudesse repousar tranquilamente sobre o ombro dele.
— Obrigada por me trazer aqui. - Ela sorria. — Ver as estrelas no topo de um prédio abandonado definitivamente estava na lista de coisas que eu queria fazer antes de morrer.
riu alto. Ela sempre tinha um jeito de deixar as coisas cômicas - e, muitas vezes, irônicas.
— Duvido muito disso.
— Não estava - ela admitiu. — Mas você me fez perceber que eu deveria ter adicionado isso à lista. É ainda melhor quando algo que não esperamos nos surpreende assim. Posso riscar da lista sem nem ter percebido em algum momento que eu precisava de um momento desses. Boa parte da beleza disso tudo se dá por você. A sua presença sempre muda tudo.
O rapaz puxou a namorada pela nuca, grudando os seus lábios de maneira quase desesperada. Achava incrível como, mesmo com o passar do tempo juntos, a sensação de tocá-la ainda era a mesma da primeira vez. Toda aquela agitação, a movimentação estranha no estômago e o coração acelerado… Eles estavam todos ali e ele realmente esperava que jamais fossem embora.
— Como vai o novo trabalho? - perguntou.
bufou, esfregando as têmporas com as pontas dos dedos.
— Bom, você sabe. Saliva demais, dinheiro de menos. Quer dizer, é o suficiente para pagar o aluguel do quartinho que mais parece uma caixa de fósforos e para ter o mínimo de nutrição necessária para um ser humano. Então, está tudo bem. Poderia ser melhor, mas não é de todo ruim apesar de auxiliar de dentista ser definitivamente algo que eu não colocaria na minha lista de algo que eu gostaria de fazer.
— É temporário - assegurou, abraçando-a lateralmente. — Isso tudo vai passar, sabe? É só um momento.
— Um momento horrível por sinal. Não é a coisa mais legal do mundo ser simplesmente chutada da casa em que você cresceu porque o seu pai está internado para receber suporte psiquiátrico. Pior ainda é ter todos dizendo que sentem muito e sabem que deve ser horrível. Ninguém sabe como é. Nenhum deles passou pelo que eu passei para dizer que sabe como é. Não suporto mais os olhares de pena que acabam assim que eles percebem que isso significa não ter dinheiro para pagá-los. Quando o seu dinheiro acaba, eles simplesmente não se importam mais. É ridículo imaginar que vivemos em um mundo no qual até a empatia das pessoas é comprada.
— Odeio ver você passando por isso. Você sabe o quanto eu queria poder ajudar, não sabe?
respirou fundo enquanto corria as mãos pelas costas do namorado, não sabendo ao certo se estava tentando consolar ele ou ela mesma.
— Eu sei. Sei que a sua família está em maus lençóis e estão inseguros. E você também sabe que eu não aceitaria o seu dinheiro mesmo que estivesse nadando em uma piscina cheia dele.
— Por que as coisas precisam ser tão difíceis? Não podemos simplesmente esquecer o mundo lá fora e sermos felizes? Só por alguns segundos.
sorriu, antes de abaixar o queixo para se aninhar no peito dele. Queria passar a vida toda ali, sentindo o calor que seus corpos trocavam a cada batimento cardíaco.
— Podemos, sim. Esquece tudo isso. Olhe para as estrelas - ela pediu. — Sejamos felizes, mesmo que só por essa noite.
depositou um beijo sobre a cabeça da namorada.
— Aquela constelação ali no canto é a do signo de Leão.
— Parece um cabide deformado. Pelo amor de Deus, que alucinógenos esse povo usava? Eu quero.
+++
cantarolava uma música qualquer que o namorado havia lhe obrigado a ouvir. Lavar a louça era bem menos entediante enquanto tivesse som por perto - por mais que fosse o som de sua voz levemente desafinada que não sabia ao certo sobre as notas que supostamente atingia.
Repetia a canção sem parar, levando-a como acompanhante para um banho rápido. Aprendeu o cabelo em um rabo de cavalo alto e escolheu roupas mais fechadas. As vestes de cores sóbrias combinavam com seu humor pesado. Os dias de visitação eram sempre difíceis, apesar de ela amar o pai com todas as forças. Vê-lo naquele estado era como ter uma centena de adagas dilacerando-a por dentro. Doía como o inferno, mas ela não o abandonaria.
Caminhou até a clínica, anunciou a visita às enfermeiras e seguiu até a sala de convivência. Encontrou seu pai sentado em uma poltrona estampada de encosto alto. O homem olhava através da janela, tendo seu olhar completamente perdido entre as flores coloridas que enchiam o jardim com suas pétalas caídas. Aproximou-se quase que na ponta dos pés, tentando evitar a possibilidade de assustá-lo.
— Ei, pai - encostou levemente no ombro dele, tentando chamar a sua atenção.
O homem abriu um sorriso imenso para ela.
— Minha filha linda! Como você está?
sentiu os olhos se encherem de lágrimas ao presenciar um dos raros momentos de lucidez dele. Sentia falta de quando esses momentos eram o normal e não a exceção. Segurou as mãos dele entre as suas, tentando fazer com que ele sentisse todo o amor que ela mantinha.
— Estou bem, pai. Como o senhor está?
— Bem também. Feliz em te ver. Sente-se - ele pediu, ao que ela atendeu rapidamente. — Como está?
— Bem. Nós dois estamos bem.
— Sabe que faço muito gosto nesse relacionamento, não sabe? Estou esperando o dia em que vou poder segurar o seu braço e te levar até o altar. Caminhar ao seu lado para o que vai ser um dos dias mais importantes da sua vida. E ele é um bom rapaz. Vocês se amam tanto que é bonito de ver. Tudo o que eu mais quero nessa vida é a felicidade de vocês.
secou rapidamente uma lágrima que começava a correr por sua bochecha. Não queria que o pai visse. Não queria que o pai se preocupasse mais.
— Nós seremos muito felizes, pai. E o senhor estará lá para compartilhar essa felicidade conosco, está bem?
Ela abraçou o pai, deixando que suas lágrimas escorressem enquanto sua face estava escondida sobre os ombros dele. Ele era tudo o que ela tinha. Por que o mundo tinha que ser tão cruel a ponto de tirá-lo também?
— Com licença - uma enfermeira chamou. — Preciso dar os remédios dele. Os comprimidos acabam dando bastante sono e fraqueza nos pacientes, então…
assentiu rapidamente, sabendo exatamente o que ela estava insinuando.
— Tudo bem. Eu vou. - Abaixou-se para deixar um beijo na bochecha de seu progenitor. — Tchau, pai. Eu volto logo, ok?
— Eu sei que volta - ele respondeu com um sorriso. O sorriso que só fazia tudo aquilo parecer mais difícil e injusto.
colocou a bolsa surrada embaixo do braço e seguiu porta afora, torcendo para que seu rosto não estivesse vermelho demais pelo choro. Talvez o vento secasse os resquícios de lágrimas que não pareciam querer ir embora. Foi quando uma voz masculina grossa e rouca interrompeu os seus devaneios.
— Olá, . Sabia que a encontraria por aqui.
A garota sentiu o coração acelerar dentro do peito. O homem era alto, truculento e mantinha uma postura intimidadora. O pior de tudo: não estava sozinho. Três outros homens com portes físicos ainda mais aterrorizantes os cercavam.
— Eu não sei quem vocês são - ela disse quase se engasgando com as palavras. — Será que podem me dar licença? Eu estou atrasada para um compromisso.
Quando ela deu alguns passos para a frente, na tentativa de sair dali, os capangas fecharam a passagem por completo. Ela não tinha como sair dali. Sua única opção era ouvi-los.
— Eu nunca fiz nada para ninguém. - tentava segurar o choro que já estava entalado na garganta. — Por favor, só me deixem ir.
— Quanto a uma coisa a senhorita está completamente certa - o que parecia ser o chefe ali falou. — Você realmente não fez nada. Mas o seu pai fez.
Ela começou a menear a cabeça nervosamente, buscando negar aquele absurdo. Como um homem preso em uma clínica psiquiátrica seria capaz de fazer algo ruim? Mesmo antes de a doença debilitá-lo de vez, seu pai sempre fora um bom homem. Carinhoso, dedicado, oferecendo uma mão amiga e um punhado de compaixão para todos que o rodeavam. Aquilo era simplesmente absurdo.
— Deve haver algum engano. Meu pai é um homem bom.
Os capangas riram baixo, sabendo que aquele movimento era o mais previsível possível. Já haviam visto aquilo acontecendo ao menos uma dezena de vezes. O desespero das garotas era o que alimentava seus egos e até mesmo seu prazer mais íntimo e profundo.
— Sabemos disso. Infelizmente, até os homens bons têm vícios. E alguns vícios podem custar muito, muito caro, sabia?
— Não estou entendendo. Eu juro. Vocês com certeza estão nos confundindo com outras pessoas.
— Não, querida. Sabemos exatamente quem você é e quem ele é. Permita que eu me explique. - O homem pigarreou antes de continuar a falar, mantendo aquela expressão intimidadora. — Eu me chamo Bang. Seu pai frequentou meu estabelecimento por muitos anos. Ia já de madrugada, quando sabia que não acordaria você. Passava horas e horas jogando e apostando com os meus homens e outros visitantes como ele. Acontece que ele teve que ser internado antes de cumprir a sua dívida comigo. Ele me deve muito dinheiro e você sabe como isso funciona, não? Dívidas são as maiores heranças que uma família pode deixar a seus descendentes.
— Eu não tenho dinheiro algum. Mal consigo sobreviver com o pouco que ganho para o meu sustento.
Bang sorriu, quase como se demonstrasse um pingo de compreensão em seu semblante.
— Também sabemos disso. É por isso que estou unindo o útil ao agradável ao oferecer a você um emprego em meu estabelecimento. Você ajudará a servir os meus homens.
— Eu já tenho um emprego. Vou ter que recusar, mas agradeço a proposta.
Os homens bloquearam ainda mais o caminho, mostrando fisicamente que aquela não era uma oferta.
— , … - Bang começou. — Não é como se estivesse aberto a escolhas, sabe? Não é um pedido.
— Eu não quero proximidade alguma com o senhor ou com os seus homens - a garota já havia levantado seu tom de voz bruscamente. — Eu estou muito bem com a minha vida. Deixe-me ir.
— Vejo que é corajosa. Será que a sua coragem permanecerá quando eu disser que temos todas as informações sobre você, seu pai e seu amado ? Eu poderia simplesmente acabar com a vida deles em questão de segundos. Talvez você devesse usar essa coragem toda para protegê-los e não para enfrentar o inevitável.
+++
segurava um papel picotado com uma senha. Riu sozinho ao perceber que tinha retirado uma senha para esperar atendimento quando tudo o que queria era apenas dar um “oi” para a namorada que já não via há alguns dias. Provavelmente seria xingado assim que percebessem que ele não estava lá para fazer uma limpeza ou para trocar as obturações. Não que ele se importasse. Era até engraçado, na verdade.
Quando o visor apitou e mostrou aqueles palitos vermelhos com seu número, o rapaz se levantou e foi até a secretária.
— Como posso ajudá-lo?
— Eu vim entregar um lanche para a minha namorada, já que sei que ela não é muito de comer adequadamente no meio do expediente. Sabe se ela está livre?
— Sua namorada é a , sim?
— Isso. Isso mesmo - ele respondeu, com um sorriso orgulhoso. Amava tanto aquela mulher que era capaz de estampar na testa o quão feliz era por tê-la ao seu lado.
— Ela pediu demissão há alguns dias - a secretaria respondeu. — Provavelmente será mais fácil você procurá-la onde ela mora.
— Obrigado - ele respondeu, sorrindo de forma forçada.
Enquanto caminhava até o lado de fora do consultório, sua cabeça trabalhava a mil por hora. Demissão? Por quê? Será que ela tinha conseguido algo que desse um pouco mais de dinheiro e, consequentemente, algum conforto e estabilidade? E o pior de tudo: por que ela não tinha avisado ou sequer comentado algo com ele? Sempre dividiram e compartilharam tudo, desde o que sentiam até o que pensavam nos momentos mais bizarros e solitários do dia. De repente, ela escondia algo tão importante. Ele simplesmente não conseguia entender.
Puxou o celular rapidamente e clicou no contato que já se encontrava na discagem rápida para emergências. A ligação tocou várias vezes até cair. Foram três tentativas completamente fracassadas e frustrantes. Na quarta, ela atendeu.
— Eu não posso falar agora - respondeu simplesmente.
— Ah, não pode falar? Você passa dias sem dar um sinal de vida e, quando eu apareço no consultório, descubro que você pediu demissão sem nem pensar em comentar sobre isso. E agora vem me tratar assim? Isso é sério, ?
não conseguia nem esconder a irritação em sua voz. Não poderia estar mais inconformado com aquele tratamento.
Um barulho indistinguível começou a atrapalhar a ligação. Ele tinha certeza de que nunca havia ouvido aquelas vozes antes. A única coisa que ele sabia no momento era que a garota estava reclamando ao fundo, parecendo completamente incomodada.
— Eu acho melhor não nos vermos mais. Não está dando certo. - A voz dela parecia mais fria do que o normal, soando quase robótica. — Não me procure.
— Que brincadeira é essa, ? Amor, isso não tem graça alguma.
— Porque não é para ser engraçado. Isso não é uma piada é muito menos uma brincadeira. Acabou, . É o fim.
— Não. Você não pode estar mesmo fazendo isso comigo. Droga, você é tudo para mim. Eu preciso de você na minha vida. Por que está tentando me afastar?
— Porque eu não quero mais nada contigo. Agradeço pelo respeito e pela compreensão.
Ela desligou o telefone sem sequer dar a ele a chance de se despedir. sentou na calçada, apoiando os cotovelos sobre as pernas e encaixando a cabeça entre as mãos. Estava tão perdido que mal sabia o que era aquilo que sentia. Tudo o que ele sabia era que doía e doía muito. Ele sabia que ela não poderia realmente querer dizer aquilo. Mas, então, por que estava o empurrando? Ela era o motivo que ele tinha para acordar diariamente; o motivo para simplesmente se manter respirando. Queria entender o que tinha feito, mas ela sequer respondera.
— Mas que merda. O que vai ser de mim sem você?
*
Quando desligou o celular, engoliu em seco ao sentir as lágrimas se formando de novo. Só queria protegê-lo, então por que aquilo a dilacerava por dentro? Bang se aproximou, repousando a mão sobre o ombro dela e dando aquele sorriso presunçoso que ela tanto detestava.
— Sabe, minha linda, você tomou a decisão certa. Fez o que é melhor para vocês dois.
— Para nós dois ou para você? Seu monstro - ela gritou, empurrando-o com toda a sua força.
Bang agarrou a garota pelo pulso, obrigando-a a olhar para ele. Abusava tanto de sua força que ela já podia sentir a região começando a latejar. Com certeza, ficaria com marcas vermelhas que a fariam se lembrar mais uma vez da violência que vinha sofrendo constantemente. Odiava ter de se submeter àquilo, mas não arriscaria a vida daqueles que tanto amava. Era melhor que fosse a vida dela. Ela se sacrificaria o quanto fosse necessário por eles, independentemente do que esse sacrifício pudesse lhe custar.
— Não dificulte as coisas, minha linda. Sabe como eu detesto ter de machucá-la. Agora, por que não traz uma rodada de uísque para os homens no balcão?
engoliu a vontade de gritar e cuspir na cara daquele desgraçado. Seguiu para o bar e serviu a bebida requisitada aos homens. Eles não poupavam suas “cantadas” e palavras chulas, assediando as mulheres por ali com a frequência de um piscar de olhos. Era de dar nojo ver a que aquelas mulheres tinham que se submeter por medo ou por necessidade. Tinham tantas coisas erradas por ali que ela tinha vontade de correr para o banheiro mais próximo e vomitar. Prostituição forçada, assédio, drogas, armas, contrabando… A lista ainda poderia seguir indefinidamente.
Nunca se imaginara rezando para Deus para que tudo acabasse, mas era exatamente aquilo que ela vinha fazendo nos últimos dias. Não aguentava mais. Não tinha estômago para lidar com aquilo.
— Por favor, eu só quero que isso termine - pediu, antes de seguir até a despensa para repor os destilados no bar.
+++
Duas semanas depois
estava escorada em uma das paredes da fachada. Bang estava coordenando as garotas que fariam o “trabalho noturno”. No meio de todo aquele caos desprezível, ela só precisava de um pouco de ar puro por tempo o suficiente para voltar a ser só aquela que entrega as bebidas.
Estava encolhida em um casaco grosso, trançando as pernas - somente cobertas por uma meia calça - na tentativa falha de conseguir se aquecer ao menos um pouco.
— ? O que está fazendo aqui?
Ao ouvir seu nome, a garota levantou o olhar dando de cara com . Sentiu seu coração acelerar e não era mais daquela forma romântica de antes. O que ela sentia agora era medo; pavor sobre o que poderia acontecer a ele se o vissem por ali.
— Você precisa ir embora agora - ela pediu, tentando não deixar suas emoções transparecerem.
— Esse lugar é perigoso. - estava completamente sem chão. — Você não deveria estar aqui.
— Eu trabalho aqui agora - ela disse friamente, engolindo em seco a vontade de se debulhar em lágrimas ali mesmo.
— Você sabe que não me engana - ele respondeu com pesar. — Eu posso ver nos seus olhos o quão infeliz e amedrontada você está. Era uma das coisas mais lindas no nosso relacionamento, lembra? A forma como sempre conseguimos decifrar o outro só com um olhar.
abaixou a cabeça, sabendo que não conseguiria segurar o choro por muito tempo mais.
— Meu pai tinha dívidas de jogo com esses homens - ela admitiu quase em um sopro. O peso daquela história estava consumindo-a completamente. — Eles me ameaçaram, disseram que machucariam você e ele. Eu simplesmente não podia arriscar as vidas das únicas duas pessoas que eu amo nessa vida.
— Eles tocaram em você? - A voz dele tinha praticamente sumido. Não sabia se aguentaria ouvir a resposta.
— Não. Eu passei as últimas semanas fugindo desse tipo de trabalho - ela respondeu. — Fui obrigada a ir para o quarto com um cara, mas não aconteceu nada. Eu usei a bebida dele para drogá-lo sem que ele percebesse. Dormiu antes que pudesse tentar qualquer coisa. Mas eu não sei por mais quanto tempo eu vou conseguir fugir disso tudo. Esse lugar é horrível.
passou os braços ao redor de sua amada, permitindo-se chorar por ela, por eles e por tudo aquilo que poderia acontecer.
— Eu vou chamar a polícia - ele avisou. — Vou tirar você daqui.
— Ninguém vai ligar para você. Acha que ninguém antes tentou? Eles têm muito dinheiro rolando por aqui e sabem os preços exatos para corromper um oficial mal intencionado ou desesperado.
— Meu pai tem dois amigos policiais. Eu confio neles e eles também vão confiar em mim. Alguma vez eu já te decepcionei?
meneou a cabeça, negando.
— Não vou começar agora. Eu vou tirar você daqui, ouviu?
beijou o topo da cabeça dela, permitindo que ela entrasse a muito contragosto. Seu coração estava completamente despedaçado por finalmente encontrar a razão para o término que ele tanto buscava. Estava mais destruído ainda de saber as coisas horríveis pelas quais ela estava passando só para protegê-lo.
Entrou rapidamente no carro, tanto para acalmar o seu coração por saber que estava tomando as providências cabíveis o mais rápido possível quanto para tentar se livrar daquele sentimento horrível que ainda o faria causar alguma confusão da qual ele se arrependeria profundamente depois. Dirigiu no limite de velocidade até a delegacia, torcendo para que um de seus conhecidos estivesse em plantão.
Empurrou a porta do local com muito mais força do que o necessário - resultado de seu nervosismo -, chamando a atenção dos poucos policiais que ainda ocupavam suas respectivas mesas por ali.
— Eu tenho uma denúncia a fazer - disse, tentando controlar a própria respiração. — E é urgente.
+++
Pela seriedade da situação, ficou decidido que a abordagem policial seria feita na noite seguinte. Pela grande quantidade de crimes ocorrendo ali e por saberem que havia vários inocentes sendo coagidos e chantageados, a situação demandava uma organização impecável e reforços inimagináveis. A operação demandava todo o cuidado, atenção e preparo possíveis. Com muito custo, conseguiu convencer os policiais a ficar por perto após explicar toda a sua preocupação com . Só queria tomá-la nos braços e levá-la para casa, onde ela estaria segura e protegida de todas aquelas coisas horríveis.
A movimentação dos oficiais era tão precisa que quase parecia uma cena meticulosamente gravada para um filme. Alguns se esgueiravam em formação até a porta de entrada, enquanto outros corriam até as laterais e fundos para dar cobertura em casos de tentativa de fuga. Todos estavam armados e cobertos por coletes à prova de balas e outros adereços de proteção. Os dedos e cabeças se movimentavam e concordavam, parecendo compor uma coreografia delicada e precisamente planejada. A hora havia chegado. respirou fundo ao ver os homens começando a entrar no estabelecimento.
Os barulhos dos passos eram discretos e logo foram abafados e substituídos por uma gritaria assustadora. Um estrondo mais alto acabou por destoar de todos os outros. Outros semelhantes se seguiram. Tiros. O rapaz mal se aguentava, nervoso por estar completamente sem noção do que acontecia. Quase inconscientemente, lembrou-se das orações e preces que sua tia lhe ensinara nas noites em que dormira na casa dos primos. Não poderia agir como se sua mente jamais tivesse questionado a existência ou não de um Deus ou força maior, independente de qual fosse. Fato era que, se houvesse alguém em algum lugar olhando por eles, ele esperava que estivesse cuidando de para que as coisas não se tornassem piores do que já eram. Quando sua mente voltou a funcionar de forma minimamente coerente, chamou a ambulância, crente de que sairiam feridos de todo aquele caos.
O rapaz já havia perdido completamente a noção de tempo. Era como se todos os seus sentidos tivessem entrado em suspensão, como em uma espécie de transe. Não fazia sequer ideia de com aquilo havia acontecido, mas, de repente, Bang estava saindo algemado e escoltado por oficiais, juntamente com vários de seus capangas - muitos feridos em maior ou menor grau.
Os socorristas chegaram em sequência, sincronizados com um policial que deixava o estabelecimento com o braço direito ensanguentado.
— Foi um tiro de raspão - o oficial disse. — Não sou eu quem precisa de apoio médico. Mas tem uma garota lá dentro que não teve a mesma sorte.
A movimentação foi incrivelmente rápida, fruto de todos os treinamentos e preparações que os paramédicos dominavam com maestria. Logo, trouxeram a moça na maca. Ela tinha o vestido branco coberto por uma grande mancha escarlate, que, por ironia, combinava precisamente com o tom do couro de sua jaqueta. A face já estava pálida e inexpressiva, mas isso jamais impediria de sentir o seu coração tentar parar de bater por alguns instantes.
— Não. Não é possível. Isso não pode estar acontecendo - ele correu até o veículo, completamente despreocupado com o fato de que as sirenes estridentes não o incomodavam. O zunido dos próprios batimentos cardíacos retomados era muito mais incômodo e cruelmente indevido para aquele momento.
— O senhor precisa se afastar - o socorrista avisou. — Nós precisamos levá-la ao hospital agora. Não há tempo a perder.
— Deixem que eu vá junto. Ela é minha namorada. Por favor, não tirem a minha mulher de mim.
Com um aceno rápido, ele foi autorizado a entrar no veículo, percorrendo todo o trajeto até o hospital mais próximo com lágrimas pesando em suas pálpebras e as mãos agarradas às dela como em uma representação cruel de seu fio de esperança que se perdia junto com os resquícios de vida que ela ainda sustentava.
— Não me deixe - ele murmurava, com a voz embargada. — Por favor. Eu não sei mais viver sem você. Esse pesadelo não pode ser real. Nós fomos feitos para sermos felizes nos braços um do outro. Nada disso é certo e muito menos justo. Eu preciso de você aqui. Fique. Lute. Por nós.
O mundo ao seu redor parecia um borrão. sabia que tinham levado às pressas para o centro cirúrgico e sabia que estava sozinho naquela sala de espera. Sabia como isso pesava e o dilacerava. O medo, a dor, a frustração. Aquela sensação horrível que o consumia e o culpava por não tê-la protegido como prometera ao perceber que a amava com todas as forças que tinha - e as que não tinha também.
Seu olhar estava completamente perdido ao longe, focalizado na parede excessivamente branca. Aquela brancura toda permitia que ele se lembrasse da primeira vez em que vira a neve junto dela. Recordava perfeitamente da risada alegre da garota e de seus gritinhos a cada vez que os pequenos flocos gelados encostavam em sua pele. Eles riram tanto que os músculos abdominais latejavam pelo esforço. Naquele momento, ele pensou que tivesse acabado de atingir o máximo de felicidade a que um ser humano poderia ser submetido. Ele estava errado. Cada dia ao lado dela provava que não existia limite para o quão feliz ele poderia ser. Tudo o que queria era estar ao lado dela e isso já era suficiente. Não precisavam de mais nada.
Riu sozinho ao notar o quão verdadeiro aquilo era. Tinham comemorado o último aniversário dele em um acampamento no meio de um bosque, sem ao menos energia elétrica. Tudo o que tinham era o calor da fogueira, a luz da Lua, o brilho das estrelas, alguns marshmallows e um ao outro - que era o que realmente importava no fim das contas. Dormiram abraçados, sentindo o calor dos próprios corpos e todo o amor que aquilo implicava. Uma das melhores sensações da vida era a de encaixar o rosto na curva do pescoço dela ao dormir. Senti-la ali, perto, protegida em seus braços. Tudo estava certo e perfeito em momentos como aquele. Era ridículo que, de repente, ela estivesse à beira da morte. Ele nem conseguia digerir o peso daquilo tudo. Parecia soar como uma longa viagem, mas não havia adquirido real consciência de que não havia retorno dela.
— Por favor, não tire ela de mim - ele pediu, olhando para o teto.
Passou aproximadamente outras três horas entre andar em círculos pela sala de espera, visitar o refeitório - sem apetite algum para levar uma migalha sequer à boca-, tentar se distrair em vão com qualquer joguinho tonto no celular e chorar com o rosto escondido entre as mãos. Não acreditava. Não podia e não queria acreditar. Não existia sem . Ele daria qualquer coisa para que fosse ele com aquela bala alojada e não ela.
— O senhor é o acompanhante da senhorita ? - Um homem alto, grisalho e vestido de jaleco branco perguntou. Os olhos dele transpareciam um cansaço descomunal.
— Sou. Por favor, diga que são notícias boas.
— Ela acordou e pediu para vê-lo. Disse que tinha certeza de que o senhor estaria aqui.
sentiu os olhos liberando as lágrimas concentradas em completa expressão de alívio. Era como se tivessem tirado inúmeros sacos de cimento de suas costas. Não tinha noção de que carregava todo aquele peso sobre os ombros. Mal sabia definir o que sentia naquele momento.
Caminhou a passos rápidos e, mesmo assim, o tempo parecia demorar infinitamente mais do que o esperado - e necessário- no caminho até o quarto dela. Segurou a respiração antes de abrir a porta de madeira clara com o número 523.
Empurrou a maçaneta com todo o cuidado do mundo. A adrenalina pulsava em suas veias e ouvidos. Era como se estivesse entrando em um campo minado, sem a mínima ideia do que estava lhe esperando do outro lado. Contudo, nunca pensou que um campo de batalha pudesse ser tão aquecedor para seu coração.
Aproximou-se vagarosamente da maca, levando a mão para passá-la carinhosamente pelos cabelos de . Por baixo das vestes do hospital, seu abdômen estava completamente envolvido pelas faixas do curativo. Ela estava completamente imóvel, ainda sentindo grande dificuldade e dor para se mexer.
— Eu sabia que você estaria aqui - ela disse, com a voz rouca e os olhos fechados. Um sorriso fraco se formou em sua face delicada e ferida.
— Como poderia não estar? Eu tinha que ficar contigo. Meu amor, você não imagina o medo que eu senti só de cogitar a possibilidade de te perder para sempre.
— Eu jamais permitiria que você se livrasse de mim tão fácil.
riu, enquanto depositava um beijo terno na testa de sua amada.
— Ainda bem porque eu não faço ideia de como viver sem você. Você é a melhor parte de mim.
— Prometo não ir embora de novo.
E, por algum motivo maior, ele sabia que ela estava certa. Ela estava dentro dele e não havia como tirar algo que já fazia parte intrínseca de quem ele era.
— Acho que aquela ali é a Ursa Maior. - apontou antes de levar a garrafa de vinho aos lábios.
estreitou mais os olhos, tentando localizar a constelação que ele apontava. Não entendia aquilo. Simplesmente pareciam algumas estrelas espalhadas.
— Acho que a pessoa que viu uma ursa pela primeira vez deveria estar mais bêbada do que nós estamos - comentou, arrancando risos do namorado.
— Ali é a cabeça. - Ele voltou a apontar. — Aquelas são as patas e o resto é basicamente o corpo.
— É igual aos cachorros palito que minhas famílias palito tinham nos desenhos que eu fazia com quatro anos. As estrelas são bonitas demais para serem estragadas por um doido que quer abstrair algum animal sem sentido delas. Algumas coisas são destruídas por essa nossa necessidade de encontrar uma razão para tudo.
concordou, pegando a mão da garota para depositar um beijo carinhoso. sorriu, aconchegando-se para mais perto do rapaz até que sua cabeça pudesse repousar tranquilamente sobre o ombro dele.
— Obrigada por me trazer aqui. - Ela sorria. — Ver as estrelas no topo de um prédio abandonado definitivamente estava na lista de coisas que eu queria fazer antes de morrer.
riu alto. Ela sempre tinha um jeito de deixar as coisas cômicas - e, muitas vezes, irônicas.
— Duvido muito disso.
— Não estava - ela admitiu. — Mas você me fez perceber que eu deveria ter adicionado isso à lista. É ainda melhor quando algo que não esperamos nos surpreende assim. Posso riscar da lista sem nem ter percebido em algum momento que eu precisava de um momento desses. Boa parte da beleza disso tudo se dá por você. A sua presença sempre muda tudo.
O rapaz puxou a namorada pela nuca, grudando os seus lábios de maneira quase desesperada. Achava incrível como, mesmo com o passar do tempo juntos, a sensação de tocá-la ainda era a mesma da primeira vez. Toda aquela agitação, a movimentação estranha no estômago e o coração acelerado… Eles estavam todos ali e ele realmente esperava que jamais fossem embora.
— Como vai o novo trabalho? - perguntou.
bufou, esfregando as têmporas com as pontas dos dedos.
— Bom, você sabe. Saliva demais, dinheiro de menos. Quer dizer, é o suficiente para pagar o aluguel do quartinho que mais parece uma caixa de fósforos e para ter o mínimo de nutrição necessária para um ser humano. Então, está tudo bem. Poderia ser melhor, mas não é de todo ruim apesar de auxiliar de dentista ser definitivamente algo que eu não colocaria na minha lista de algo que eu gostaria de fazer.
— É temporário - assegurou, abraçando-a lateralmente. — Isso tudo vai passar, sabe? É só um momento.
— Um momento horrível por sinal. Não é a coisa mais legal do mundo ser simplesmente chutada da casa em que você cresceu porque o seu pai está internado para receber suporte psiquiátrico. Pior ainda é ter todos dizendo que sentem muito e sabem que deve ser horrível. Ninguém sabe como é. Nenhum deles passou pelo que eu passei para dizer que sabe como é. Não suporto mais os olhares de pena que acabam assim que eles percebem que isso significa não ter dinheiro para pagá-los. Quando o seu dinheiro acaba, eles simplesmente não se importam mais. É ridículo imaginar que vivemos em um mundo no qual até a empatia das pessoas é comprada.
— Odeio ver você passando por isso. Você sabe o quanto eu queria poder ajudar, não sabe?
respirou fundo enquanto corria as mãos pelas costas do namorado, não sabendo ao certo se estava tentando consolar ele ou ela mesma.
— Eu sei. Sei que a sua família está em maus lençóis e estão inseguros. E você também sabe que eu não aceitaria o seu dinheiro mesmo que estivesse nadando em uma piscina cheia dele.
— Por que as coisas precisam ser tão difíceis? Não podemos simplesmente esquecer o mundo lá fora e sermos felizes? Só por alguns segundos.
sorriu, antes de abaixar o queixo para se aninhar no peito dele. Queria passar a vida toda ali, sentindo o calor que seus corpos trocavam a cada batimento cardíaco.
— Podemos, sim. Esquece tudo isso. Olhe para as estrelas - ela pediu. — Sejamos felizes, mesmo que só por essa noite.
depositou um beijo sobre a cabeça da namorada.
— Aquela constelação ali no canto é a do signo de Leão.
— Parece um cabide deformado. Pelo amor de Deus, que alucinógenos esse povo usava? Eu quero.
cantarolava uma música qualquer que o namorado havia lhe obrigado a ouvir. Lavar a louça era bem menos entediante enquanto tivesse som por perto - por mais que fosse o som de sua voz levemente desafinada que não sabia ao certo sobre as notas que supostamente atingia.
Repetia a canção sem parar, levando-a como acompanhante para um banho rápido. Aprendeu o cabelo em um rabo de cavalo alto e escolheu roupas mais fechadas. As vestes de cores sóbrias combinavam com seu humor pesado. Os dias de visitação eram sempre difíceis, apesar de ela amar o pai com todas as forças. Vê-lo naquele estado era como ter uma centena de adagas dilacerando-a por dentro. Doía como o inferno, mas ela não o abandonaria.
Caminhou até a clínica, anunciou a visita às enfermeiras e seguiu até a sala de convivência. Encontrou seu pai sentado em uma poltrona estampada de encosto alto. O homem olhava através da janela, tendo seu olhar completamente perdido entre as flores coloridas que enchiam o jardim com suas pétalas caídas. Aproximou-se quase que na ponta dos pés, tentando evitar a possibilidade de assustá-lo.
— Ei, pai - encostou levemente no ombro dele, tentando chamar a sua atenção.
O homem abriu um sorriso imenso para ela.
— Minha filha linda! Como você está?
sentiu os olhos se encherem de lágrimas ao presenciar um dos raros momentos de lucidez dele. Sentia falta de quando esses momentos eram o normal e não a exceção. Segurou as mãos dele entre as suas, tentando fazer com que ele sentisse todo o amor que ela mantinha.
— Estou bem, pai. Como o senhor está?
— Bem também. Feliz em te ver. Sente-se - ele pediu, ao que ela atendeu rapidamente. — Como está?
— Bem. Nós dois estamos bem.
— Sabe que faço muito gosto nesse relacionamento, não sabe? Estou esperando o dia em que vou poder segurar o seu braço e te levar até o altar. Caminhar ao seu lado para o que vai ser um dos dias mais importantes da sua vida. E ele é um bom rapaz. Vocês se amam tanto que é bonito de ver. Tudo o que eu mais quero nessa vida é a felicidade de vocês.
secou rapidamente uma lágrima que começava a correr por sua bochecha. Não queria que o pai visse. Não queria que o pai se preocupasse mais.
— Nós seremos muito felizes, pai. E o senhor estará lá para compartilhar essa felicidade conosco, está bem?
Ela abraçou o pai, deixando que suas lágrimas escorressem enquanto sua face estava escondida sobre os ombros dele. Ele era tudo o que ela tinha. Por que o mundo tinha que ser tão cruel a ponto de tirá-lo também?
— Com licença - uma enfermeira chamou. — Preciso dar os remédios dele. Os comprimidos acabam dando bastante sono e fraqueza nos pacientes, então…
assentiu rapidamente, sabendo exatamente o que ela estava insinuando.
— Tudo bem. Eu vou. - Abaixou-se para deixar um beijo na bochecha de seu progenitor. — Tchau, pai. Eu volto logo, ok?
— Eu sei que volta - ele respondeu com um sorriso. O sorriso que só fazia tudo aquilo parecer mais difícil e injusto.
colocou a bolsa surrada embaixo do braço e seguiu porta afora, torcendo para que seu rosto não estivesse vermelho demais pelo choro. Talvez o vento secasse os resquícios de lágrimas que não pareciam querer ir embora. Foi quando uma voz masculina grossa e rouca interrompeu os seus devaneios.
— Olá, . Sabia que a encontraria por aqui.
A garota sentiu o coração acelerar dentro do peito. O homem era alto, truculento e mantinha uma postura intimidadora. O pior de tudo: não estava sozinho. Três outros homens com portes físicos ainda mais aterrorizantes os cercavam.
— Eu não sei quem vocês são - ela disse quase se engasgando com as palavras. — Será que podem me dar licença? Eu estou atrasada para um compromisso.
Quando ela deu alguns passos para a frente, na tentativa de sair dali, os capangas fecharam a passagem por completo. Ela não tinha como sair dali. Sua única opção era ouvi-los.
— Eu nunca fiz nada para ninguém. - tentava segurar o choro que já estava entalado na garganta. — Por favor, só me deixem ir.
— Quanto a uma coisa a senhorita está completamente certa - o que parecia ser o chefe ali falou. — Você realmente não fez nada. Mas o seu pai fez.
Ela começou a menear a cabeça nervosamente, buscando negar aquele absurdo. Como um homem preso em uma clínica psiquiátrica seria capaz de fazer algo ruim? Mesmo antes de a doença debilitá-lo de vez, seu pai sempre fora um bom homem. Carinhoso, dedicado, oferecendo uma mão amiga e um punhado de compaixão para todos que o rodeavam. Aquilo era simplesmente absurdo.
— Deve haver algum engano. Meu pai é um homem bom.
Os capangas riram baixo, sabendo que aquele movimento era o mais previsível possível. Já haviam visto aquilo acontecendo ao menos uma dezena de vezes. O desespero das garotas era o que alimentava seus egos e até mesmo seu prazer mais íntimo e profundo.
— Sabemos disso. Infelizmente, até os homens bons têm vícios. E alguns vícios podem custar muito, muito caro, sabia?
— Não estou entendendo. Eu juro. Vocês com certeza estão nos confundindo com outras pessoas.
— Não, querida. Sabemos exatamente quem você é e quem ele é. Permita que eu me explique. - O homem pigarreou antes de continuar a falar, mantendo aquela expressão intimidadora. — Eu me chamo Bang. Seu pai frequentou meu estabelecimento por muitos anos. Ia já de madrugada, quando sabia que não acordaria você. Passava horas e horas jogando e apostando com os meus homens e outros visitantes como ele. Acontece que ele teve que ser internado antes de cumprir a sua dívida comigo. Ele me deve muito dinheiro e você sabe como isso funciona, não? Dívidas são as maiores heranças que uma família pode deixar a seus descendentes.
— Eu não tenho dinheiro algum. Mal consigo sobreviver com o pouco que ganho para o meu sustento.
Bang sorriu, quase como se demonstrasse um pingo de compreensão em seu semblante.
— Também sabemos disso. É por isso que estou unindo o útil ao agradável ao oferecer a você um emprego em meu estabelecimento. Você ajudará a servir os meus homens.
— Eu já tenho um emprego. Vou ter que recusar, mas agradeço a proposta.
Os homens bloquearam ainda mais o caminho, mostrando fisicamente que aquela não era uma oferta.
— , … - Bang começou. — Não é como se estivesse aberto a escolhas, sabe? Não é um pedido.
— Eu não quero proximidade alguma com o senhor ou com os seus homens - a garota já havia levantado seu tom de voz bruscamente. — Eu estou muito bem com a minha vida. Deixe-me ir.
— Vejo que é corajosa. Será que a sua coragem permanecerá quando eu disser que temos todas as informações sobre você, seu pai e seu amado ? Eu poderia simplesmente acabar com a vida deles em questão de segundos. Talvez você devesse usar essa coragem toda para protegê-los e não para enfrentar o inevitável.
segurava um papel picotado com uma senha. Riu sozinho ao perceber que tinha retirado uma senha para esperar atendimento quando tudo o que queria era apenas dar um “oi” para a namorada que já não via há alguns dias. Provavelmente seria xingado assim que percebessem que ele não estava lá para fazer uma limpeza ou para trocar as obturações. Não que ele se importasse. Era até engraçado, na verdade.
Quando o visor apitou e mostrou aqueles palitos vermelhos com seu número, o rapaz se levantou e foi até a secretária.
— Como posso ajudá-lo?
— Eu vim entregar um lanche para a minha namorada, já que sei que ela não é muito de comer adequadamente no meio do expediente. Sabe se ela está livre?
— Sua namorada é a , sim?
— Isso. Isso mesmo - ele respondeu, com um sorriso orgulhoso. Amava tanto aquela mulher que era capaz de estampar na testa o quão feliz era por tê-la ao seu lado.
— Ela pediu demissão há alguns dias - a secretaria respondeu. — Provavelmente será mais fácil você procurá-la onde ela mora.
— Obrigado - ele respondeu, sorrindo de forma forçada.
Enquanto caminhava até o lado de fora do consultório, sua cabeça trabalhava a mil por hora. Demissão? Por quê? Será que ela tinha conseguido algo que desse um pouco mais de dinheiro e, consequentemente, algum conforto e estabilidade? E o pior de tudo: por que ela não tinha avisado ou sequer comentado algo com ele? Sempre dividiram e compartilharam tudo, desde o que sentiam até o que pensavam nos momentos mais bizarros e solitários do dia. De repente, ela escondia algo tão importante. Ele simplesmente não conseguia entender.
Puxou o celular rapidamente e clicou no contato que já se encontrava na discagem rápida para emergências. A ligação tocou várias vezes até cair. Foram três tentativas completamente fracassadas e frustrantes. Na quarta, ela atendeu.
— Eu não posso falar agora - respondeu simplesmente.
— Ah, não pode falar? Você passa dias sem dar um sinal de vida e, quando eu apareço no consultório, descubro que você pediu demissão sem nem pensar em comentar sobre isso. E agora vem me tratar assim? Isso é sério, ?
não conseguia nem esconder a irritação em sua voz. Não poderia estar mais inconformado com aquele tratamento.
Um barulho indistinguível começou a atrapalhar a ligação. Ele tinha certeza de que nunca havia ouvido aquelas vozes antes. A única coisa que ele sabia no momento era que a garota estava reclamando ao fundo, parecendo completamente incomodada.
— Eu acho melhor não nos vermos mais. Não está dando certo. - A voz dela parecia mais fria do que o normal, soando quase robótica. — Não me procure.
— Que brincadeira é essa, ? Amor, isso não tem graça alguma.
— Porque não é para ser engraçado. Isso não é uma piada é muito menos uma brincadeira. Acabou, . É o fim.
— Não. Você não pode estar mesmo fazendo isso comigo. Droga, você é tudo para mim. Eu preciso de você na minha vida. Por que está tentando me afastar?
— Porque eu não quero mais nada contigo. Agradeço pelo respeito e pela compreensão.
Ela desligou o telefone sem sequer dar a ele a chance de se despedir. sentou na calçada, apoiando os cotovelos sobre as pernas e encaixando a cabeça entre as mãos. Estava tão perdido que mal sabia o que era aquilo que sentia. Tudo o que ele sabia era que doía e doía muito. Ele sabia que ela não poderia realmente querer dizer aquilo. Mas, então, por que estava o empurrando? Ela era o motivo que ele tinha para acordar diariamente; o motivo para simplesmente se manter respirando. Queria entender o que tinha feito, mas ela sequer respondera.
— Mas que merda. O que vai ser de mim sem você?
Quando desligou o celular, engoliu em seco ao sentir as lágrimas se formando de novo. Só queria protegê-lo, então por que aquilo a dilacerava por dentro? Bang se aproximou, repousando a mão sobre o ombro dela e dando aquele sorriso presunçoso que ela tanto detestava.
— Sabe, minha linda, você tomou a decisão certa. Fez o que é melhor para vocês dois.
— Para nós dois ou para você? Seu monstro - ela gritou, empurrando-o com toda a sua força.
Bang agarrou a garota pelo pulso, obrigando-a a olhar para ele. Abusava tanto de sua força que ela já podia sentir a região começando a latejar. Com certeza, ficaria com marcas vermelhas que a fariam se lembrar mais uma vez da violência que vinha sofrendo constantemente. Odiava ter de se submeter àquilo, mas não arriscaria a vida daqueles que tanto amava. Era melhor que fosse a vida dela. Ela se sacrificaria o quanto fosse necessário por eles, independentemente do que esse sacrifício pudesse lhe custar.
— Não dificulte as coisas, minha linda. Sabe como eu detesto ter de machucá-la. Agora, por que não traz uma rodada de uísque para os homens no balcão?
engoliu a vontade de gritar e cuspir na cara daquele desgraçado. Seguiu para o bar e serviu a bebida requisitada aos homens. Eles não poupavam suas “cantadas” e palavras chulas, assediando as mulheres por ali com a frequência de um piscar de olhos. Era de dar nojo ver a que aquelas mulheres tinham que se submeter por medo ou por necessidade. Tinham tantas coisas erradas por ali que ela tinha vontade de correr para o banheiro mais próximo e vomitar. Prostituição forçada, assédio, drogas, armas, contrabando… A lista ainda poderia seguir indefinidamente.
Nunca se imaginara rezando para Deus para que tudo acabasse, mas era exatamente aquilo que ela vinha fazendo nos últimos dias. Não aguentava mais. Não tinha estômago para lidar com aquilo.
— Por favor, eu só quero que isso termine - pediu, antes de seguir até a despensa para repor os destilados no bar.
Duas semanas depois
estava escorada em uma das paredes da fachada. Bang estava coordenando as garotas que fariam o “trabalho noturno”. No meio de todo aquele caos desprezível, ela só precisava de um pouco de ar puro por tempo o suficiente para voltar a ser só aquela que entrega as bebidas.
Estava encolhida em um casaco grosso, trançando as pernas - somente cobertas por uma meia calça - na tentativa falha de conseguir se aquecer ao menos um pouco.
— ? O que está fazendo aqui?
Ao ouvir seu nome, a garota levantou o olhar dando de cara com . Sentiu seu coração acelerar e não era mais daquela forma romântica de antes. O que ela sentia agora era medo; pavor sobre o que poderia acontecer a ele se o vissem por ali.
— Você precisa ir embora agora - ela pediu, tentando não deixar suas emoções transparecerem.
— Esse lugar é perigoso. - estava completamente sem chão. — Você não deveria estar aqui.
— Eu trabalho aqui agora - ela disse friamente, engolindo em seco a vontade de se debulhar em lágrimas ali mesmo.
— Você sabe que não me engana - ele respondeu com pesar. — Eu posso ver nos seus olhos o quão infeliz e amedrontada você está. Era uma das coisas mais lindas no nosso relacionamento, lembra? A forma como sempre conseguimos decifrar o outro só com um olhar.
abaixou a cabeça, sabendo que não conseguiria segurar o choro por muito tempo mais.
— Meu pai tinha dívidas de jogo com esses homens - ela admitiu quase em um sopro. O peso daquela história estava consumindo-a completamente. — Eles me ameaçaram, disseram que machucariam você e ele. Eu simplesmente não podia arriscar as vidas das únicas duas pessoas que eu amo nessa vida.
— Eles tocaram em você? - A voz dele tinha praticamente sumido. Não sabia se aguentaria ouvir a resposta.
— Não. Eu passei as últimas semanas fugindo desse tipo de trabalho - ela respondeu. — Fui obrigada a ir para o quarto com um cara, mas não aconteceu nada. Eu usei a bebida dele para drogá-lo sem que ele percebesse. Dormiu antes que pudesse tentar qualquer coisa. Mas eu não sei por mais quanto tempo eu vou conseguir fugir disso tudo. Esse lugar é horrível.
passou os braços ao redor de sua amada, permitindo-se chorar por ela, por eles e por tudo aquilo que poderia acontecer.
— Eu vou chamar a polícia - ele avisou. — Vou tirar você daqui.
— Ninguém vai ligar para você. Acha que ninguém antes tentou? Eles têm muito dinheiro rolando por aqui e sabem os preços exatos para corromper um oficial mal intencionado ou desesperado.
— Meu pai tem dois amigos policiais. Eu confio neles e eles também vão confiar em mim. Alguma vez eu já te decepcionei?
meneou a cabeça, negando.
— Não vou começar agora. Eu vou tirar você daqui, ouviu?
beijou o topo da cabeça dela, permitindo que ela entrasse a muito contragosto. Seu coração estava completamente despedaçado por finalmente encontrar a razão para o término que ele tanto buscava. Estava mais destruído ainda de saber as coisas horríveis pelas quais ela estava passando só para protegê-lo.
Entrou rapidamente no carro, tanto para acalmar o seu coração por saber que estava tomando as providências cabíveis o mais rápido possível quanto para tentar se livrar daquele sentimento horrível que ainda o faria causar alguma confusão da qual ele se arrependeria profundamente depois. Dirigiu no limite de velocidade até a delegacia, torcendo para que um de seus conhecidos estivesse em plantão.
Empurrou a porta do local com muito mais força do que o necessário - resultado de seu nervosismo -, chamando a atenção dos poucos policiais que ainda ocupavam suas respectivas mesas por ali.
— Eu tenho uma denúncia a fazer - disse, tentando controlar a própria respiração. — E é urgente.
Pela seriedade da situação, ficou decidido que a abordagem policial seria feita na noite seguinte. Pela grande quantidade de crimes ocorrendo ali e por saberem que havia vários inocentes sendo coagidos e chantageados, a situação demandava uma organização impecável e reforços inimagináveis. A operação demandava todo o cuidado, atenção e preparo possíveis. Com muito custo, conseguiu convencer os policiais a ficar por perto após explicar toda a sua preocupação com . Só queria tomá-la nos braços e levá-la para casa, onde ela estaria segura e protegida de todas aquelas coisas horríveis.
A movimentação dos oficiais era tão precisa que quase parecia uma cena meticulosamente gravada para um filme. Alguns se esgueiravam em formação até a porta de entrada, enquanto outros corriam até as laterais e fundos para dar cobertura em casos de tentativa de fuga. Todos estavam armados e cobertos por coletes à prova de balas e outros adereços de proteção. Os dedos e cabeças se movimentavam e concordavam, parecendo compor uma coreografia delicada e precisamente planejada. A hora havia chegado. respirou fundo ao ver os homens começando a entrar no estabelecimento.
Os barulhos dos passos eram discretos e logo foram abafados e substituídos por uma gritaria assustadora. Um estrondo mais alto acabou por destoar de todos os outros. Outros semelhantes se seguiram. Tiros. O rapaz mal se aguentava, nervoso por estar completamente sem noção do que acontecia. Quase inconscientemente, lembrou-se das orações e preces que sua tia lhe ensinara nas noites em que dormira na casa dos primos. Não poderia agir como se sua mente jamais tivesse questionado a existência ou não de um Deus ou força maior, independente de qual fosse. Fato era que, se houvesse alguém em algum lugar olhando por eles, ele esperava que estivesse cuidando de para que as coisas não se tornassem piores do que já eram. Quando sua mente voltou a funcionar de forma minimamente coerente, chamou a ambulância, crente de que sairiam feridos de todo aquele caos.
O rapaz já havia perdido completamente a noção de tempo. Era como se todos os seus sentidos tivessem entrado em suspensão, como em uma espécie de transe. Não fazia sequer ideia de com aquilo havia acontecido, mas, de repente, Bang estava saindo algemado e escoltado por oficiais, juntamente com vários de seus capangas - muitos feridos em maior ou menor grau.
Os socorristas chegaram em sequência, sincronizados com um policial que deixava o estabelecimento com o braço direito ensanguentado.
— Foi um tiro de raspão - o oficial disse. — Não sou eu quem precisa de apoio médico. Mas tem uma garota lá dentro que não teve a mesma sorte.
A movimentação foi incrivelmente rápida, fruto de todos os treinamentos e preparações que os paramédicos dominavam com maestria. Logo, trouxeram a moça na maca. Ela tinha o vestido branco coberto por uma grande mancha escarlate, que, por ironia, combinava precisamente com o tom do couro de sua jaqueta. A face já estava pálida e inexpressiva, mas isso jamais impediria de sentir o seu coração tentar parar de bater por alguns instantes.
— Não. Não é possível. Isso não pode estar acontecendo - ele correu até o veículo, completamente despreocupado com o fato de que as sirenes estridentes não o incomodavam. O zunido dos próprios batimentos cardíacos retomados era muito mais incômodo e cruelmente indevido para aquele momento.
— O senhor precisa se afastar - o socorrista avisou. — Nós precisamos levá-la ao hospital agora. Não há tempo a perder.
— Deixem que eu vá junto. Ela é minha namorada. Por favor, não tirem a minha mulher de mim.
Com um aceno rápido, ele foi autorizado a entrar no veículo, percorrendo todo o trajeto até o hospital mais próximo com lágrimas pesando em suas pálpebras e as mãos agarradas às dela como em uma representação cruel de seu fio de esperança que se perdia junto com os resquícios de vida que ela ainda sustentava.
— Não me deixe - ele murmurava, com a voz embargada. — Por favor. Eu não sei mais viver sem você. Esse pesadelo não pode ser real. Nós fomos feitos para sermos felizes nos braços um do outro. Nada disso é certo e muito menos justo. Eu preciso de você aqui. Fique. Lute. Por nós.
O mundo ao seu redor parecia um borrão. sabia que tinham levado às pressas para o centro cirúrgico e sabia que estava sozinho naquela sala de espera. Sabia como isso pesava e o dilacerava. O medo, a dor, a frustração. Aquela sensação horrível que o consumia e o culpava por não tê-la protegido como prometera ao perceber que a amava com todas as forças que tinha - e as que não tinha também.
Seu olhar estava completamente perdido ao longe, focalizado na parede excessivamente branca. Aquela brancura toda permitia que ele se lembrasse da primeira vez em que vira a neve junto dela. Recordava perfeitamente da risada alegre da garota e de seus gritinhos a cada vez que os pequenos flocos gelados encostavam em sua pele. Eles riram tanto que os músculos abdominais latejavam pelo esforço. Naquele momento, ele pensou que tivesse acabado de atingir o máximo de felicidade a que um ser humano poderia ser submetido. Ele estava errado. Cada dia ao lado dela provava que não existia limite para o quão feliz ele poderia ser. Tudo o que queria era estar ao lado dela e isso já era suficiente. Não precisavam de mais nada.
Riu sozinho ao notar o quão verdadeiro aquilo era. Tinham comemorado o último aniversário dele em um acampamento no meio de um bosque, sem ao menos energia elétrica. Tudo o que tinham era o calor da fogueira, a luz da Lua, o brilho das estrelas, alguns marshmallows e um ao outro - que era o que realmente importava no fim das contas. Dormiram abraçados, sentindo o calor dos próprios corpos e todo o amor que aquilo implicava. Uma das melhores sensações da vida era a de encaixar o rosto na curva do pescoço dela ao dormir. Senti-la ali, perto, protegida em seus braços. Tudo estava certo e perfeito em momentos como aquele. Era ridículo que, de repente, ela estivesse à beira da morte. Ele nem conseguia digerir o peso daquilo tudo. Parecia soar como uma longa viagem, mas não havia adquirido real consciência de que não havia retorno dela.
— Por favor, não tire ela de mim - ele pediu, olhando para o teto.
Passou aproximadamente outras três horas entre andar em círculos pela sala de espera, visitar o refeitório - sem apetite algum para levar uma migalha sequer à boca-, tentar se distrair em vão com qualquer joguinho tonto no celular e chorar com o rosto escondido entre as mãos. Não acreditava. Não podia e não queria acreditar. Não existia sem . Ele daria qualquer coisa para que fosse ele com aquela bala alojada e não ela.
— O senhor é o acompanhante da senhorita ? - Um homem alto, grisalho e vestido de jaleco branco perguntou. Os olhos dele transpareciam um cansaço descomunal.
— Sou. Por favor, diga que são notícias boas.
— Ela acordou e pediu para vê-lo. Disse que tinha certeza de que o senhor estaria aqui.
sentiu os olhos liberando as lágrimas concentradas em completa expressão de alívio. Era como se tivessem tirado inúmeros sacos de cimento de suas costas. Não tinha noção de que carregava todo aquele peso sobre os ombros. Mal sabia definir o que sentia naquele momento.
Caminhou a passos rápidos e, mesmo assim, o tempo parecia demorar infinitamente mais do que o esperado - e necessário- no caminho até o quarto dela. Segurou a respiração antes de abrir a porta de madeira clara com o número 523.
Empurrou a maçaneta com todo o cuidado do mundo. A adrenalina pulsava em suas veias e ouvidos. Era como se estivesse entrando em um campo minado, sem a mínima ideia do que estava lhe esperando do outro lado. Contudo, nunca pensou que um campo de batalha pudesse ser tão aquecedor para seu coração.
Aproximou-se vagarosamente da maca, levando a mão para passá-la carinhosamente pelos cabelos de . Por baixo das vestes do hospital, seu abdômen estava completamente envolvido pelas faixas do curativo. Ela estava completamente imóvel, ainda sentindo grande dificuldade e dor para se mexer.
— Eu sabia que você estaria aqui - ela disse, com a voz rouca e os olhos fechados. Um sorriso fraco se formou em sua face delicada e ferida.
— Como poderia não estar? Eu tinha que ficar contigo. Meu amor, você não imagina o medo que eu senti só de cogitar a possibilidade de te perder para sempre.
— Eu jamais permitiria que você se livrasse de mim tão fácil.
riu, enquanto depositava um beijo terno na testa de sua amada.
— Ainda bem porque eu não faço ideia de como viver sem você. Você é a melhor parte de mim.
— Prometo não ir embora de novo.
E, por algum motivo maior, ele sabia que ela estava certa. Ela estava dentro dele e não havia como tirar algo que já fazia parte intrínseca de quem ele era.
FIM
Nota da autora: É uma short, bem shortzinha. Tenho até medo de ter desapontado vocês. Perdoem a tia aqui por não conseguir viver sem um drama daqueles, mesmo em tão pouco espaço.
Espero que tenham gostado - ou ao menos não odiado - da história e, por favor, digam o que acharam aqui nos comentários.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo.
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Stitches
03. I Did Something Bad
04. Someone New
04. Warning
06. If I Could Fly
08. No Goodbyes
10. Is it Me
11. Robot
12. Be Alright
13. Part of Me
13. See Me Now
A Million Dreams
4th of the July
Dark Moon
Not Over
Side by Side
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