Capítulo Único
se lembrava perfeitamente do momento em que recebera a notícia de que o pai havia sido preso.
Ele se lembrava de estar usando sua melhor blusa - a única que não tinha mais de três anos de uso. Ele se lembrava de estar sentado no piso do trailer, brincando com o dinossauro que havia ganhado no natal de uma das clientes da mãe. Ele se lembrava de já estar com o estômago roncando e o pulso magro se tornando cada vez mais proeminente. Mas, o pior de tudo, era que ele se lembrava perfeitamente de não ter sentido nada.
Se fechasse os olhos e deixasse que seus outros sentidos prevalecessem, ainda conseguia capturar a sensação dos braços da mãe lhe envolvendo, como se ele precisasse ser protegido daquela informação. Ela repetira ‘está tudo bem, está tudo bem’ tantas vezes que o universo parecia ter decidido parar, deixando que a sua voz ecoasse em uma prece que servia a suas próprias necessidades - fossem pessoais ou maternas.
era jovem demais quando percebeu que a mãe havia perdido o marido muito mais do que ele tinha perdido o pai. Era complicado falar na perda de algo que você nunca teve de fato.
Ele tinha ouvido em algum lugar que as memórias de um indivíduo começavam a se consolidar como duradouras a longo prazo a partir dos três anos, em média. Talvez o homem tivesse assumido algum tipo de figura paterna antes disso, mas qualquer que fosse a sua consciência de vida, ela não incluía o carinho, o apoio e sequer a presença que qualquer pessoa esperaria.
Mas ele se lembrava do cheiro de álcool nas poucas vezes em que ele decidia que era uma boa ideia aparecer pelo trailer. Ele se lembrava de ter rezado para que ele não batesse na mãe, como via acontecer nos noticiários que às vezes passavam quando alguém se esquecia de trocar o canal na televisão de satélite aberto do salão de beleza. Felizmente ou não, suas memórias acabavam por aí. Para cada dia que o homem mostrava as caras, ele passava ao menos algumas semanas em qualquer lugar longe o suficiente para que eles não soubessem de nenhum dos vizinhos sobre seu paradeiro.
Provavelmente era por isso que tinha sido tão fácil de acreditar nas palavras do homem que chegou em uma tarde de pouco sol dizendo que sentia muito em ter de dar aquela notícia assim, mas o seu pai havia sido preso depois de se envolver numa briga em um bar e dirigir totalmente embriagado. Aparentemente o carro nem era dele - claro que não, eles nunca tiveram um carro. A lista de motivos parecia só se estender da mesma forma aparentemente infinda com que a mão de sua mãe corria por sua cabeça repetindo ‘está tudo bem, está tudo bem’.
E foi vendo o olhar devastado por trás de toda a força que ela carregava que ele decidiu que seguiria o caminho completamente oposto. Ela ainda se orgulharia muito dele. E ele não descansaria até que esse dia chegasse.
***
sentia os olhos sobre ele, queimando suas costas como se fossem raios laser. Ele não se surpreenderia se tivesse dois buracos como alvos chamuscados nas costas.
Era isso o que ele recebia por ter decidido se juntar à turma de música da igreja literalmente no último dia possível para inscrições.
Sinceramente, já estava completamente ciente do arrependimento que ecoava como um apito agudo bem no fundo de seu tímpano. Uma pena que sua mãe não o tivesse criado com a capacidade de desistir facilmente das coisas.
— Bom, crianças, esse é o - o professor falou, com um sorriso acolhedor. — Ele vai se juntar a nós nas aulas, então vamos recebê-lo bem, ok?
Alguns murmúrios preencheram o pequeno salão, mas ninguém ousou se dirigir diretamente a ele.
— Certo. Vamos começar?
As crianças tiraram seus violões dos cases, posicionando-os cuidadosamente sobre a coxa da forma que haviam aprendido a fazer na primeira aula. baixou o olhar para as mãos livres sobre o colo, beliscando a própria palma apenas para se ocupar.
— Ah, desculpa - o mais velho pediu, correndo para um dos armários e puxando um instrumento marcado pela passagem do tempo. — Vou só afinar esse para você. Acho que ainda toca bem.
não sabia muito bem o que fazer quando recebeu o violão. Olhando discretamente para os lados, tentou imitar os movimentos dos colegas, chutando a posição dos dedos nas cordas sem fazer muita ideia da precisão dos próprios movimentos.
— Aqui. Tenta desse jeito - uma voz doce soou ao seu lado. Os dedos da menina posicionaram os dele com a mesma gentileza sustentada em seu sorriso doce.
Ele olhou para o resultado final, memorizando no tato cada milímetro e ângulo corretos.
— Meu nome é . Pode me chamar se precisar de alguma ajuda.
Ele forçou os lábios a adquirirem uma forma simpática em sua fisionomia. Precisava se lembrar de que não era um animal individualista e quebrar aquela concha que havia construído ao seu redor um pouquinho todo dia. Camadas graduais de um calcário imaginário que já esperava pelo pior de todas as pessoas porque era mais fácil e seguro manter as expectativas baixas e as desconfianças altas.
— Sou o - ele disse, mesmo sabendo que já havia sido apresentado. Parecia o certo a se fazer para as suas noções não muito aprofundadas de traquejo social.
— Que bom que você veio, . Acho que vai gostar da aula - a garota continuou, sem tirar o sorriso do rosto. — O professor é bem legal.
Ele esperava que sim. Não conseguia imaginar aquele homem de óculos redondos e cabelos com cachos ao redor das orelhas sendo qualquer coisa além de extremamente educado e acolhedor.
— Ei, - o professor chamou. — Vamos tocar para você um pouco do que aprendemos nas últimas aulas, pode ser? Daí você pode dar uma olhada antes de tentar.
O garoto assentiu, sabendo que não era exatamente algo ao qual estava aberta a possibilidade de dizer ‘não’. Colou os olhos com tanta força nas mãos do homem mais velho que, por um segundo, pensou que nunca mais conseguiria olhar para qualquer outra direção.
A tentativa da turma de acompanhar a melodia dos Beatles - que ele conhecia como uma das favoritas de sua mãe para cantarolar enquanto arrumava o trailer - era quase boa o suficiente. Quer dizer, eles não eram uma turma tão longamente treinada e entrosada para preparar algum tipo de sinfonia em conjunto. Dado o tempo para desenvolvimento de habilidades sociais e musicais, era um resultado bastante razoável. Mesmo que algumas notas claramente se sobressaíssem entre um acorde e outro, clara e completamente fora do tom. não conseguia não fazer uma careta a cada vez que ouvia um som que quase parecia oco.
— Certo, certo. - O professor interrompeu sua turma. — Acho que nos saímos bem, pessoal. O que acham de continuar treinando essa? Vai ser a primeira música da nossa apresentação aberta às famílias e amigos, então vamos ensaiar até que estejamos seguros de que estamos fazendo o nosso melhor trabalho.
e os demais se espalharam pelo salão e pela varanda, encontrando posições mais confortáveis e locais nos quais pudessem concentrar suas pequenas panelinhas para fazer o que fosse que crianças nessa idade faziam além de seguir as orientações recebidas.
— Ei, ? Vem aqui.
O garoto seguiu a orientação sem pestanejar, sentando-se na cadeira baixa logo ao lado do homem que tinha a barba mais estranhamente interessante do universo.
— Que tal a gente passar por algumas escalas para você se familiarizar melhor com as notas?
Parecia uma boa ideia. O garoto se esforçou para prestar atenção em cada segundo e como soava cada movimento que o mais velho fazia, ditando para ele o crescente em tons. Observava com todo o seu foco as pontas de seus dedos, pensando se também teria calos de esforço repetitivo e pequenas cicatrizes se decidisse que queria ser bom de verdade naquilo.
Fez aquilo umas três vezes antes de acompanhá-lo em uma reprodução engessada e preocupada, mas correta e precisa. não era o melhor aluno quando se tratava de matemática, geografia ou ciências, mas parecia ser muito mais fácil apenas se sentar ali e ser um aluno de música. Talvez aquele papo de sua mãe sobre como cada pessoa tinha um tipo próprio de inteligência fizesse algum sentido no final das contas.
— É isso aí, muito bom - o homem o incentivou. — Você pegou muito rápido. Que tal praticar mais um pouco enquanto eu dou uma olhada no que os seus colegas estão aprontando?
Mas apesar de - aparentemente - ser um bom aluno, tinha cultivado dentro de si uma espécie própria de teimosia com pequenos botões de impaciência prestes a florescer. Algum estranho comichão dentro dele tinha decidido que as escalas já tinham se tornado fáceis demais e algo um pouco mais desafiador não faria mal a ninguém.
Cantarolou baixinho a música que havia acabado de ser apresentada, tentando se lembrar de como o professor a havia tocado no início da aula e raciocinar como as posições e os sons que tinha aprendido se relacionavam e se encontravam em sentido sonoro.
Dedilhando as cordas, encontrou as primeiras notas, mesmo que um pouco mais espaçadas em tempo do que o normal para a composição. Os colegas, orientados a voltar para dentro, fizeram silêncio imediato em estranhamento ao encontrar a figura do novato, sentado no lugar de maior atenção da sala, tocando, em sua primeira aula, a música que eles haviam ensaiado por vários dias.
Sentindo os olhos de todos sobre cada movimento seu, se atrapalhou, errando uma nota da forma mais perceptível possível. Ouviu uma risada indiscreta exatamente no mesmo momento em que percebeu seus olhos se prendendo ao chão, queimados pela irradiação do rubor em suas bochechas.
— Era óbvio que ele não ia conseguir - disse o outro garoto, ainda rindo. — Que ridículo.
— Cala a boca, Kelvin - retrucou imediatamente. — Por que você é tão babaca? É por isso que ninguém gosta de você.
— Ei, ei, ei - o professor interveio. — Nada disso, nada de brigas e ofensas. E, Kelvin, com certeza nada de desestimular os colegas também. Peça desculpas.
Seus olhos se reviraram em um amplo raio.
— Desculpa.
Mesmo reconhecendo a falta clara de sinceridade, o mais velho se deu por vencido, sem querer prolongar aquela discussão. Tinha outra coisa que precisava fazer: seguir o seu instinto.
— Tenta de novo - sugeriu a . — Você estava indo muito bem.
Ele não sabia se queria se expor à alta probabilidade de enfrentar uma nova humilhação. Mas não sabia se seria tão pior do que se negar a fazer algo quando sempre teve tanta dificuldade em dizer ‘não’ para as pessoas. Ainda mais para aquelas que pareciam querer apenas o seu bem.
Respirando fundo uma, duas, três vezes, ele conseguiu se acalmar o suficiente para repassar a música na mente - não cantarolaria na frente daqueles olhos críticos pouco construtivos nem que lhe pagassem para isso - e reorganizar a posição das mãos.
O rosto sorridente de assentiu para ele, como se quisesse confirmar que ele podia começar, eles estavam ali. Ela estava ali. Para ouvi-lo, incentivá-lo e, se necessário, para descobrir se seu soco era forte o suficiente para quebrar o nariz de Kelvin com um único golpe.
voltou a tocar, seguindo a melodia tocada em sua mente e o compasso marcado com os pés mesmo que ele sequer estivesse completamente familiarizado com esse conceito. Repetiu o início que já havia tocado com maior destreza e prosseguiu com um receio que se esvaiu imediatamente no momento em que ele corrigiu o erro anterior.
bateu palmas animadas ao perceber os músculos faciais dele abandonando a contração involuntária de apreensão. Balançando também a cabeça no ritmo da canção, seguiu a música como se todo o mundo ao seu redor tivesse se dissolvido como açúcar em água e sumido de sua capacidade de distinção visual. Nada mais importava além da sensação de euforia que escalava os alpes de seu âmago, prestes a ofegar no pico de toda a sua animação. Estava mais envolvido naquilo do que julgava ser possível que alguém um dia ficasse. Ele não estranharia se lhe contassem que, por aquelas dezenas de segundos, o planeta havia parado de girar em respeito e contemplação ao seu momento.
Algumas caretas de estranhamento - e talvez algo como despeito? - começaram a surgir.
— Mas a gente não aprendeu essa parte ainda - alguém falou baixinho, obrigando o professor a assentir vagarosamente com um sorriso de canto.
— Acho que ele já pegou o jeito.
O homem mal podia acreditar que seus olhos estavam finalmente vendo aquilo que sempre havia sido seu sonho, mas se parecia cada vez mais com uma lenda urbana. Ninguém havia lhe ensinado a partitura - ele provavelmente nem saberia o que era se visse uma -, mas ele simplesmente sabia.
— Ele tem algum superpoder? - perguntou ao professor, sem disfarçar por um segundo sequer o quanto achava aquilo literalmente a coisa mais legal que já havia visto desde os filhotes de girafa no zoológico.
— Quase isso. Chama ouvido absoluto. Ele consegue identificar cada uma das notas só de ouvi-las.
A garotinha riu antes de concluir:
— É bem mais legal do que um superpoder.
— Muito mais.
Depois de tocarem todos juntos mais algumas vezes, os alunos foram dispensados, saindo correndo pelo pátio como sempre faziam com toda a energia da infância que parecia ser estocada em baterias de longa duração - para felicidade e desespero de seus pais.
— Ah, - o homem chamou uma última vez. — Venha para as próximas aulas também, ok? Você tem muito talento. Precisa continuar com a música. É um favor que você faz para a humanidade. Nós precisamos disso.
E ele sorriu, sabendo que, no fundo, ele também precisava.
***
Completando o sinal da cruz sobre o peito, estendeu os joelhos, afastando-se do banco que ocupava na igreja que havia virado o seu segundo lar.
Quase todos os seus horários livres das demandas escolares eram passados em meio àquela comunidade. Muitas vezes orando e agradecendo por mais um dia e pela comida na mesa; muitas vezes ajudando o padre a organizar os materiais e trocar lâmpadas e móveis. Mas o que ele mais fazia por ali, tantos anos depois, continuava sendo a música.
O professor Maxwell havia lhe dado uma cópia da chave da sala para que ele pudesse entrar quando quisesse, pegar o violão extra e praticar. Nos horários mais aleatórios possíveis, ele aparecia por lá e treinava. Colocava alguma música para tocar - tentando randomizar ao máximo a sua escolha dentre os discos que o professor mantinha - e fechava os olhos, absorvendo a melodia para reproduzi-la em seguida.
Naquele dia, ele havia feito mais do que simplesmente agradecer - pela vida, pelo aluguel pago, pelo pacote de arroz, pela música, pelo enorme amor das poucas pessoas que também o amavam. Tinha engolido a sensação de que não era justo pedir nada quando tinha saúde e alimento e perguntado se não poderia receber um sinal que fosse de que caminho seguir em meio à confusão nebulosa que havia estabelecido moradia em sua mente nos últimos dias.
Tinha uma vaga como empacotador no pequeno mercado do bairro. O dinheiro ajudaria consideravelmente, mas o horário era muito pouco flexível e faltava pouco demais para ele terminar o colégio e poder ter o diploma de conclusão.
Havia alguns rumores de que uma vaga de garçom seria aberta no restaurante italiano, pois uma de suas funcionárias mais antigas entraria em licença maternidade em poucas semanas. Seria uma vaga noturna, o que facilitava consideravelmente o seu cronograma de manutenção escolar. Contudo, eram pouco mais do que rumores e ele não estava exatamente em uma posição confortável para pagar para esperar e ver.
Em algum momento, também havia ouvido falar em uma posição como chapeiro em uma lanchonete, mas ele não tinha experiência alguma com aquilo. Outras duas vagas interessantes exigiam o Ensino Médio completo - que era exatamente o que ele estava tentando fazer sem que faltasse comida para o almoço do fim do mês.
Eram tantas dificuldades, tantas questões, tantos poréns. Ele não fazia ideia de como seguir. Por mais egoísta que parecesse pedir a Deus algum sinal, ele havia pedido. Uma luz que fosse. Qualquer pequena indicação de qual caminho deveria seguir.
— Sabia que ia te encontrar aqui - a voz que ele conhecia tão bem disse logo às suas costas.
tinha o mesmo sorriso largo de costume em todos os últimos anos. Parecia que seu rosto havia vindo programado de fábrica para aquilo: sorrir. havia tido a sua configuração alterada mais tarde para responder imediatamente com reciprocidade.
— Acho que eu não sou a pessoa mais imprevisível no mundo.
— Não é nem a mais imprevisível nessa conversa - ela completou, rindo.
— Assim você me magoa.
Ela deu de ombros, enquanto prendia o cabelo com um pouco mais de força no rabo de cavalo. Apesar dos fios grossos e pesados, a textura lisa deles insistia em fazer com que a maioria dos elásticos simplesmente deslizasse como em um tobogã.
— Eu trouxe uma coisa - disse finalmente. — Quer me ajudar a pegar lá no carro?
— Mais um carregamento das samosas da sua mãe?
— Não fale das samosas - ela o alertou, estendendo o indicador. — Pode xingar a ela, a mim, a qualquer coisa, mas nunca fale das samosas ou a minha mãe tem uma parada cardíaca enquanto reclama do ultraje.
— Elas são ótimas - ele admitiu. — Nada se compara ao tempero que ela coloca nos cubos de frango.
sorriu, começando a andar para que ele a seguisse até o lugar em que tinha estacionado o carro.
— Vou entregar o elogio a ela. Talvez você, de fato, receba um carregamento de samosas depois disso.
— Eu não reclamaria nem um pouco - respondeu. — Mas o que é que tem no seu carro afinal?
— O que tem de previsível, tem de impaciente. Já estamos chegando, apressadinho.
Tinham algumas crianças brincando e outras apenas berrando e correndo em círculos. A praça cheia daquele jeito quase fazia a vida parecer completamente normal. Era nisso que ele desejava acreditar.
Seu momento de introspecção foi interrompido pelo cessar dos passos de à sua frente. Quase trombou nela, mas teve tempo de evitar o constrangimento dando dois curtos passos para trás. As coisas entre eles já costumavam atingir momentos de certo desconforto entre palavras que ninguém parecia disposto a encontrar coragem para dizer. Ele definitivamente não precisava piorar a situação.
— Você está pronto para isso?
— Para você ter que perguntar, provavelmente significa que não.
lhe deu uma cotovelada, apertando o botão da chave do carro para destrancar o porta malas.
não precisava de mais do que um segundo para reconhecer aquele formato tão específico e inconfundível.
— Pode me ajudar a pegar?
O rapaz obedeceu, puxando o case pela alça lateral de couro reforçado e minuciosamente costurado.
— Para onde quer que eu leve?
deu de ombros.
— Para onde quiser. É seu. Você faz o que quiser com ele.
Os olhos dele se arregalaram por alguns instantes em completo choque. Demorou para encontrar as palavras tão óbvias - e custosamente expressáveis - para dizer naquele momento:
— Claro que não. Isso não faz sentido algum.
— Como não? Eu estou te dando um violão - ela disse, fazendo questão de desacelerar a voz e fazer uma pausa entre cada uma das palavras proferidas. — Qual é a parte dessa frase que não está fazendo sentido para você?
— Você não pode. Quer dizer, eu não posso. Não posso aceitar.
parecia genuinamente confusa.
— Por que não?
— Porque não é certo. Você não tem que me dar nada.
— Não, não tenho - ela concordou. — Mas eu quero. Então, será que você pode colaborar?
parecia ter travado. não fazia ideia de em que canal ou qual frequência sintonizar para que aquilo voltasse ao normal, mas era como se algum ser superior tivesse clicado em um botão de pause supremo.
— Terra chamando - ela cantarolou.
— Eu…
A garota revirou os olhos, empurrando o violão na direção dele, reforçando a mensagem.
— É um presente. É uma desfeita absurda não aceitar. Se te preocupa tanto receber algo assim, pode me retribuir tocando algo. Sabe como eu sempre adorei te ouvir.
Sua fisionomia amenizou frente à proposta. Só de pensar em dedilhar aquelas cordas, seu peito já se enchia de uma alegria que ele mal sabia descrever. A exceção da mãe, poderia dizer com tranquilidade que a arte da música ocupava o lugar principal em sua vida. E, por mais que ainda estivesse se sentindo errado de alguma forma por aceitar o presente, a tentação era mais forte do que ele.
Com um sorriso, ele se sentou em um dos bancos livres da praça logo ali a alguns passos, abriu o case aos pés e retirou o instrumento, posicionando-o no colo.
— O que você quer ouvir?
deu de ombros.
— Aquilo que você mais sente que precisa tocar.
E aquela pareceria uma pergunta forçada e com propósitos parnasianos e aleatórios demais se tivesse vindo de qualquer pessoa. Mas não quando vinha dela. Não quando era sobre alguém que sabia exatamente o que estava dizendo, pois o conhecia tão bem quanto às linhas tortas que pareciam formar a própria inicial na palma de sua mão.
encontrou a nota exata e começou a tocar.
Cantou sobre a história de um menino que vivia em um trailer e tinha sonhos de ser um astronauta. Cantou sobre como o mundo era um lugar estranhamente cruel onde os sonhos não costumavam prosperar a menos que se tivesse muita perseverança e um pouco de sorte. Cantou sobre todas as coisas que havia passado a semana escrevendo sobre e enviando em trechos gravados com dificuldade em seu aparelho de celular antigo apenas para que pudesse mostrar para ela - a única opinião que ele realmente valorizava e acreditava que sempre seria sincera, mesmo com o viés emocional do laço estreito de amizade que haviam criado ao longo dos anos.
Enquanto ele ganhava confiança, sua voz aumentava de intensidade e seus pés batiam contra os pequenos paralelepípedos de pedra cinza clara no ritmo de sua música. Algumas pessoas começaram a se aproximar, apreciando a cantoria e batendo palmas de forma síncrona para acompanhá-lo.
Quando ele terminou, arriscando uns acordes habilidosos e apressados para finalizar a música, recebeu com um sorriso largo de vários dentes os aplausos de sua pequena plateia.
Enquanto ele acessava sua memória afetiva em busca da primeira melodia que havia aprendido, sentado no chão da sala de música do professor Maxwell, algumas pessoas colocaram notas e moedas no case aberto, saindo antes que ele pudesse impedi-las.
— Gente, não. Não. Parem. Por que eles estão fazendo isso?
— Estão te agradecendo pelo trabalho - respondeu simplesmente.
— Mas eles não podem fazer isso. Eu nem estou pedindo, sabe? Se eu soubesse que isso aconteceria, não teria largado o case no chão.
‘Que erro de principiante, ’ - ele pensava.
— Você não está obrigando ninguém a te pagar, fazer uma doação, ou seja lá o que for. Essas pessoas gostaram da sua música e quiseram retribuir de alguma forma. Chama valorização do trabalho alheio, sabe? Arte e entretenimento também são dignos dessa contribuição.
— Não, não dá.
— Se você me disser que não pode receber por isso, eu vou ter que te dar uma lição de moral em praça pública sobre como é tosco, ainda mais vindo de você, menosprezar o valor da expressão artística. As pessoas vivem disso, . Pelo amor de Deus, qual é o problema? Não é basicamente esse o sonho?
— Mas…
— Não tem nada de ‘mas’. Se você insistir nisso, eu vou considerar como uma ofensa pessoal diretamente endereçada à minha futura carreira como cineasta.
nem pensou em retrucar. Tudo o que pôde fazer foi rir. sabia perfeitamente como utilizar de todos os possíveis artifícios de manipulação emocional e argumentação para para estabelecer seu ponto e convencê-lo de qualquer que fosse o seu ponto de vista.
— E falando nisso, vou gravar você - ela falou, retirando o celular do bolso da calça jeans. — Vai, volta a tocar alguma coisa.
— Por quê?
Ela balançou os ombros.
— Considere como uma prática amadora para a faculdade.
— Você só começa o curso daqui cinco meses - ele a lembrou.
— Mas é sempre bom estar preparada.
O que ele poderia dizer? Era fácil assim fazer o que ela queria.
se afastou dele, procurando o melhor enquadramento para capturar as imagens e o áudio do trabalho. Em sua mente, já conseguia visualizar algumas das ferramentas de edição que seriam úteis de serem utilizadas e percebeu que era simplesmente bom demais naquilo que fazia para que os resultados daquela gravação ficassem restritos aos arquivos e memória de seus eletrônicos. O mundo todo precisava vê-lo. E, por mais que seus planos representassem apenas uma gota d’água no meio do oceano, sabia exatamente por onde começar.
As várias horas gastas de forma quase diária no Youtube finalmente serviriam para algo.
***
— Vamos passar mais uma vez. Tente ficar o mais confortável possível aí dentro. A casa é sua.
soltou uma risada leve. Detestava esse papo de ‘a casa é sua’, mas ao mesmo tempo valorizava a tentativa das pessoas de fazerem com que os outros se sentissem menos desconfortáveis e inibidos, mesmo que com uma frase tão pronta e tão forçada quanto aquela. Qualquer que fosse o mínimo esforço para melhorar a situação deveria ser levado em conta. Muitas pessoas não se importavam nem com isso, afinal.
Por isso, ele simplesmente decidiu dar mais uma chance àquela loucura toda e a si mesmo. Respirou fundo algumas vezes, expirando vagarosamente até que os pulmões estivessem lhe implorando para colocar um pouco de oxigênio para dentro de volta.
— Pronto?
— Pronto - confirmou.
fez sinais de joinhas com as mãos do outro lado da parede de vidro com vedação acústica. O rapaz devolveu o sinal com uma mão, enquanto usava a outra para reposicionar os fones de ouvido grandalhões.
Com a melodia já gravada previamente, o rapaz aguardou o momento exato de entrar e passou a enunciar as palavras que haviam viralizado meses atrás no vídeo gravado no meio da praça, cantando cada uma das notas que tinha escrito com todo o coração e ajustado ao longo do tempo.
O produtor havia encontrado o vídeo com várias centenas de milhares de acessos e uma enxurrada de comentários e entrado em contato inicialmente com , responsável pelo canal. Disse que havia visto o vídeo viral e assistido também a vários outros. Disse que tinha interesse em levá-lo para um estúdio e ver como funcionava a voz e a canção em gravação. Disse que se eles estivessem interessados, tudo o que deveriam fazer era retornar o contato.
E ela estaria mentindo se dissesse que tinha sido fácil convencê-lo a abandonar o próprio casulo de medo e insegurança e só aceitar a oferta sem colocar um peso gigantesco nas costas como se aquele fosse um ultimato que desenhava um alvo enorme bem no meio de sua face. Mas, com muita insistência - e ela poderia dizer orgulhosamente que era incrivelmente boa nisso - e havia conseguido atingir seu objetivo com maestria. Ele estava naquele estúdio gravando sua primeira música autoral, não estava?
Após a última nota, retirou os fones com agilidade, ansioso por saber quais seriam os feedbacks e os resultados daquele teste:
— E aí?
O produtor pressionou o botão que abria o som de sua comunicação com a cabine.
— E aí eu acho que temos nossa primeira música. Agora precisamos de um álbum.
***
— Opa, cuidado com o degrau - ele avisou.
— E você me diz isso agora?
Sua mãe ria, vendada, balançando o pé cujo dedinho acabara de encontrar um agressor pelo caminho.
— São só mais dois degraus, vamos com calma - ele pediu, tentando conter as próprias risadas toda vez que via a mais velha tentando erguer o nariz a fim de enxergar qualquer dica que fosse por debaixo do tecido que lhe cobria os olhos.
entrelaçou seu braço ao membro superior livre da sogra, ansiosa para que ela finalmente visse o que eles haviam passado boas semanas planejando e organizando apenas para que aquele momento fosse perfeito - exatamente da forma que ela tanto merecia.
— Posso abrir agora? - A mãe perguntou quando percebeu que haviam fincado os pés no chão e parado de andar.
e trocaram olhares de nervosismo e satisfação, sorrindo enquanto inspiravam profundamente.
— Pode - ele respondeu.
Quando a mulher levou as mãos à parte de trás da cabeça e desfez o nó pouco firme, o tecido caiu sobre os dedos, revelando uma fachada pintada com tinta clara e bastante iluminada, com spots de luz espalhados em meio aos arbustos e flores do jardim.
— O que é isso?
— Bem-vinda à sua nova casa, mãe - ele disse, sentindo os olhos enchendo aos poucos de lágrimas.
— Meu Deus - ela balbuciou, com as mãos sobre a boca, sentindo as lágrimas escorrendo pela face com a alegria emocionante daquilo que ela nunca pensou que teria.
— Não é muito grande - falou. — mas tem todos os cômodos necessários, bastantes armários, funcionalidade e todos os eletrodomésticos que você vai precisar já estão aí dentro. Pedi para plantarem as suas flores favoritas e a janela da sua suíte fica virada para elas lá nos fundos. Tem uma mesinha com duas cadeiras na varanda também, para você fazer o seu café e olhar para a paisagem sem ter mil trailers poluindo a sua vista do sol.
A mulher riu entre as lágrimas, sendo obrigada a concordar. Aquela era a mais pura verdade. A vida naquele estacionamento amplo era boa o suficiente, mas abarrotada de barulhos, pessoas nem sempre convenientes e poluição visual. Com o tempo, o que deveria ser uma comunidade altruísta e bem conectada tinha se tornado distante e pouco empática. Era bom o suficiente, mas ela merecia muito mais.
— Eu nem sei o que te dizer.
puxou-a para um abraço apertado, no lugar de amor sublime e genuína compreensão que sabiam que só encontravam no coração do outro. Tinha se tornado quase vinte centímetros mais alto que ela nos últimos anos e beijou o topo de sua cabeça, esperando que ela entendesse com esse gesto todas as palavras que, mesmo que ele dissesse por horas a fio, jamais seriam suficientes para representar tudo o que ela realmente precisava ouvir.
— Eu estou tão orgulhosa de você - ela falou. — Olha onde você chegou.
— Olha onde nós chegamos - ele a corrigiu. — Tudo o que eu sou é por causa de quem você é. E tudo o que eu sempre quis foi poder retribuir ao menos uma vírgula de tudo o que você fez por mim a cada dia das nossas vidas. Eu só tenho a agradecer pela oportunidade de ter a melhor pessoa do mundo todo como mãe.
— Ah, meu filho, eu te amo tanto.
Os dois se abraçaram mais uma vez com força. , entre lágrimas, acabou sendo puxada para o abraço coletivo daquela família que havia estreitado ainda mais seus laços.
Com seu objetivo de vida atingido, respirou profundamente, permitindo-se sentir orgulho de si mesmo.
— Vamos entrar? Quero te apresentar ao lar.
***
pressionou a mão contra a sua coxa, segurando-a com uma delicadeza paradoxalmente firme e um tanto incisiva.
— Será que você pode parar de bater esse pé? Vai deixar um buraco no chão.
juntou as mãos sobre o colo, exalando o ar dos pulmões com calma forçada.
— É impossível não surtar - ele admitiu. — Eu passei três horas tentando meditar hoje. Só conseguia ter crises de taquicardia. E isso porque eu usei aqueles áudios-guia que você me mandou.
Ela sorriu, puxando a mão direita dele cuja aliança combinava com a sua e entrelaçando os seus dedos.
— É por isso que nós nos esforçamos para fingir bem. Ao menos bem o suficiente.
O rapaz olhou em volta, vendo todas as pessoas concentradas demais em conversas entre si, selfies para o instagram ou realmente prestando atenção nos apresentadores sobre o palco, contando piadas e fazendo trocadilhos que careciam de astúcia e de graça.
— A parte boa é que ninguém se importa o suficiente para ligar - ele comentou, rindo.
— Finalmente isso é uma coisa boa - concordou, beijando a bochecha dele de forma carinhosa. — Mas você pode relaxar por você mesmo. Vai dar tudo certo. Você vai ver. Já é incrível que tenhamos chegado até aqui.
A indicação à categoria de ‘Melhor Artista Novo’ tinha sido merecida, apesar do pouco tempo desde o lançamento do seu álbum autointitulado de estreia. Com doze faixas e três singles consolidados e enviados às rádios, as vendas não tinham conquistado a primeira posição no Top da Billboard, mas havia marcado seu território entre as cinco melhores colocações durante sete semanas consecutivas.
O reconhecimento dos fãs pelo seu trabalho era muito mais do que ele poderia ter esperado em qualquer momento de sua vida. Quando os famosos falavam que era tudo uma imensa loucura inacreditável, eles não estavam exagerando nem um pouco. Subir em um palco e ver vários milhares de pessoas ocupando a atmosfera de um festival cantando a sua música mais alto do que você - que tem um microfone de última geração e amplificadores enormes - era surreal demais e sempre o deixava com um sorriso bobo, apenas contemplando a magnitude daquele momento e tentando mensurar a gratidão que sentia por cada ladrilho que havia pisado em seu caminho e pelas pessoas que, pelo bem ou pelo mal, haviam deixado a sua marca em sua história.
Com a movimentação no palco e a alteração de apresentadores, se ajeitou em sua poltrona, sentindo o coração decidir que havia recebido autorização para iniciar uma corrida de cem metros rasos sem oponentes. O momento havia chegado; o ápice, o auge. Tudo o havia levado àquele instante.
A atriz hollywoodiana sorriu largamente, desviando o olhar por apenas um segundo para encontrar a abertura do envelope recebido nos bastidores.
— E o vencedor é…
Tudo o que ele ouvia era um zumbido em uma orelha que parecia presa em um eco de quem acabava de sair com o canal auditivo totalmente tampado por água da piscina.
Foi quem levantou e se arremessou em seus braços, enquanto ele permanecia boquiaberto e estático, preso ao assento.
— Eu sabia! Eu sabia!
Em meio aos aplausos de todos e aos beijos úmidos com as lágrimas dela, finalmente se levantou, caminhando pelo corredor liberado como se estivesse flutuando sobre as nuvens macias de um sonho maluco.
Com abraços e cumprimentos, ele recebeu o prêmio das mãos dos apresentadores e se dirigiu ao microfone para realizar seu discurso de agradecimento.
— Ah, uau… Meu Deus.
A plateia berrava e aplaudia sem parar, enquanto a melodia de sua música mais famosa tocava ao fundo.
— Eu meio que tinha preparado um discurso caso isso acontecesse, mas tinha certeza de que não ganharia, então nem ensaiei - ele falou, arrancando algumas risadas. — Então essa vai ter que ir direto do coração. Obrigado a todos os fãs, a todos os artistas que vieram antes de mim e que virão depois, inspirando todos nós a nos apaixonar cada dia mais por essa dádiva que é a música. Mas, acima de tudo, agradeço às duas mulheres da minha vida: minha mãe e minha esposa, que nunca deixaram que eu desistisse e sempre acreditaram nos meus sonhos, mesmo quando eu mal sabia quais eram. Eu não estaria aqui sem vocês.
Ele respirou fundo, ouvindo os aplausos se tornarem mais altos.
— E, por último, eu agradeço a absolutamente todas as pessoas que colocaram mais pedras no meu caminho e disseram que eu nunca conseguiria ser alguém na vida - ele falou, olhando para o prêmio. — Bom, parece que vocês estavam errados. E, cada dia que eu abria os olhos, era para provar isso a vocês. Muito obrigado!
Ele se lembrava de estar usando sua melhor blusa - a única que não tinha mais de três anos de uso. Ele se lembrava de estar sentado no piso do trailer, brincando com o dinossauro que havia ganhado no natal de uma das clientes da mãe. Ele se lembrava de já estar com o estômago roncando e o pulso magro se tornando cada vez mais proeminente. Mas, o pior de tudo, era que ele se lembrava perfeitamente de não ter sentido nada.
Se fechasse os olhos e deixasse que seus outros sentidos prevalecessem, ainda conseguia capturar a sensação dos braços da mãe lhe envolvendo, como se ele precisasse ser protegido daquela informação. Ela repetira ‘está tudo bem, está tudo bem’ tantas vezes que o universo parecia ter decidido parar, deixando que a sua voz ecoasse em uma prece que servia a suas próprias necessidades - fossem pessoais ou maternas.
era jovem demais quando percebeu que a mãe havia perdido o marido muito mais do que ele tinha perdido o pai. Era complicado falar na perda de algo que você nunca teve de fato.
Ele tinha ouvido em algum lugar que as memórias de um indivíduo começavam a se consolidar como duradouras a longo prazo a partir dos três anos, em média. Talvez o homem tivesse assumido algum tipo de figura paterna antes disso, mas qualquer que fosse a sua consciência de vida, ela não incluía o carinho, o apoio e sequer a presença que qualquer pessoa esperaria.
Mas ele se lembrava do cheiro de álcool nas poucas vezes em que ele decidia que era uma boa ideia aparecer pelo trailer. Ele se lembrava de ter rezado para que ele não batesse na mãe, como via acontecer nos noticiários que às vezes passavam quando alguém se esquecia de trocar o canal na televisão de satélite aberto do salão de beleza. Felizmente ou não, suas memórias acabavam por aí. Para cada dia que o homem mostrava as caras, ele passava ao menos algumas semanas em qualquer lugar longe o suficiente para que eles não soubessem de nenhum dos vizinhos sobre seu paradeiro.
Provavelmente era por isso que tinha sido tão fácil de acreditar nas palavras do homem que chegou em uma tarde de pouco sol dizendo que sentia muito em ter de dar aquela notícia assim, mas o seu pai havia sido preso depois de se envolver numa briga em um bar e dirigir totalmente embriagado. Aparentemente o carro nem era dele - claro que não, eles nunca tiveram um carro. A lista de motivos parecia só se estender da mesma forma aparentemente infinda com que a mão de sua mãe corria por sua cabeça repetindo ‘está tudo bem, está tudo bem’.
E foi vendo o olhar devastado por trás de toda a força que ela carregava que ele decidiu que seguiria o caminho completamente oposto. Ela ainda se orgulharia muito dele. E ele não descansaria até que esse dia chegasse.
sentia os olhos sobre ele, queimando suas costas como se fossem raios laser. Ele não se surpreenderia se tivesse dois buracos como alvos chamuscados nas costas.
Era isso o que ele recebia por ter decidido se juntar à turma de música da igreja literalmente no último dia possível para inscrições.
Sinceramente, já estava completamente ciente do arrependimento que ecoava como um apito agudo bem no fundo de seu tímpano. Uma pena que sua mãe não o tivesse criado com a capacidade de desistir facilmente das coisas.
— Bom, crianças, esse é o - o professor falou, com um sorriso acolhedor. — Ele vai se juntar a nós nas aulas, então vamos recebê-lo bem, ok?
Alguns murmúrios preencheram o pequeno salão, mas ninguém ousou se dirigir diretamente a ele.
— Certo. Vamos começar?
As crianças tiraram seus violões dos cases, posicionando-os cuidadosamente sobre a coxa da forma que haviam aprendido a fazer na primeira aula. baixou o olhar para as mãos livres sobre o colo, beliscando a própria palma apenas para se ocupar.
— Ah, desculpa - o mais velho pediu, correndo para um dos armários e puxando um instrumento marcado pela passagem do tempo. — Vou só afinar esse para você. Acho que ainda toca bem.
não sabia muito bem o que fazer quando recebeu o violão. Olhando discretamente para os lados, tentou imitar os movimentos dos colegas, chutando a posição dos dedos nas cordas sem fazer muita ideia da precisão dos próprios movimentos.
— Aqui. Tenta desse jeito - uma voz doce soou ao seu lado. Os dedos da menina posicionaram os dele com a mesma gentileza sustentada em seu sorriso doce.
Ele olhou para o resultado final, memorizando no tato cada milímetro e ângulo corretos.
— Meu nome é . Pode me chamar se precisar de alguma ajuda.
Ele forçou os lábios a adquirirem uma forma simpática em sua fisionomia. Precisava se lembrar de que não era um animal individualista e quebrar aquela concha que havia construído ao seu redor um pouquinho todo dia. Camadas graduais de um calcário imaginário que já esperava pelo pior de todas as pessoas porque era mais fácil e seguro manter as expectativas baixas e as desconfianças altas.
— Sou o - ele disse, mesmo sabendo que já havia sido apresentado. Parecia o certo a se fazer para as suas noções não muito aprofundadas de traquejo social.
— Que bom que você veio, . Acho que vai gostar da aula - a garota continuou, sem tirar o sorriso do rosto. — O professor é bem legal.
Ele esperava que sim. Não conseguia imaginar aquele homem de óculos redondos e cabelos com cachos ao redor das orelhas sendo qualquer coisa além de extremamente educado e acolhedor.
— Ei, - o professor chamou. — Vamos tocar para você um pouco do que aprendemos nas últimas aulas, pode ser? Daí você pode dar uma olhada antes de tentar.
O garoto assentiu, sabendo que não era exatamente algo ao qual estava aberta a possibilidade de dizer ‘não’. Colou os olhos com tanta força nas mãos do homem mais velho que, por um segundo, pensou que nunca mais conseguiria olhar para qualquer outra direção.
A tentativa da turma de acompanhar a melodia dos Beatles - que ele conhecia como uma das favoritas de sua mãe para cantarolar enquanto arrumava o trailer - era quase boa o suficiente. Quer dizer, eles não eram uma turma tão longamente treinada e entrosada para preparar algum tipo de sinfonia em conjunto. Dado o tempo para desenvolvimento de habilidades sociais e musicais, era um resultado bastante razoável. Mesmo que algumas notas claramente se sobressaíssem entre um acorde e outro, clara e completamente fora do tom. não conseguia não fazer uma careta a cada vez que ouvia um som que quase parecia oco.
— Certo, certo. - O professor interrompeu sua turma. — Acho que nos saímos bem, pessoal. O que acham de continuar treinando essa? Vai ser a primeira música da nossa apresentação aberta às famílias e amigos, então vamos ensaiar até que estejamos seguros de que estamos fazendo o nosso melhor trabalho.
e os demais se espalharam pelo salão e pela varanda, encontrando posições mais confortáveis e locais nos quais pudessem concentrar suas pequenas panelinhas para fazer o que fosse que crianças nessa idade faziam além de seguir as orientações recebidas.
— Ei, ? Vem aqui.
O garoto seguiu a orientação sem pestanejar, sentando-se na cadeira baixa logo ao lado do homem que tinha a barba mais estranhamente interessante do universo.
— Que tal a gente passar por algumas escalas para você se familiarizar melhor com as notas?
Parecia uma boa ideia. O garoto se esforçou para prestar atenção em cada segundo e como soava cada movimento que o mais velho fazia, ditando para ele o crescente em tons. Observava com todo o seu foco as pontas de seus dedos, pensando se também teria calos de esforço repetitivo e pequenas cicatrizes se decidisse que queria ser bom de verdade naquilo.
Fez aquilo umas três vezes antes de acompanhá-lo em uma reprodução engessada e preocupada, mas correta e precisa. não era o melhor aluno quando se tratava de matemática, geografia ou ciências, mas parecia ser muito mais fácil apenas se sentar ali e ser um aluno de música. Talvez aquele papo de sua mãe sobre como cada pessoa tinha um tipo próprio de inteligência fizesse algum sentido no final das contas.
— É isso aí, muito bom - o homem o incentivou. — Você pegou muito rápido. Que tal praticar mais um pouco enquanto eu dou uma olhada no que os seus colegas estão aprontando?
Mas apesar de - aparentemente - ser um bom aluno, tinha cultivado dentro de si uma espécie própria de teimosia com pequenos botões de impaciência prestes a florescer. Algum estranho comichão dentro dele tinha decidido que as escalas já tinham se tornado fáceis demais e algo um pouco mais desafiador não faria mal a ninguém.
Cantarolou baixinho a música que havia acabado de ser apresentada, tentando se lembrar de como o professor a havia tocado no início da aula e raciocinar como as posições e os sons que tinha aprendido se relacionavam e se encontravam em sentido sonoro.
Dedilhando as cordas, encontrou as primeiras notas, mesmo que um pouco mais espaçadas em tempo do que o normal para a composição. Os colegas, orientados a voltar para dentro, fizeram silêncio imediato em estranhamento ao encontrar a figura do novato, sentado no lugar de maior atenção da sala, tocando, em sua primeira aula, a música que eles haviam ensaiado por vários dias.
Sentindo os olhos de todos sobre cada movimento seu, se atrapalhou, errando uma nota da forma mais perceptível possível. Ouviu uma risada indiscreta exatamente no mesmo momento em que percebeu seus olhos se prendendo ao chão, queimados pela irradiação do rubor em suas bochechas.
— Era óbvio que ele não ia conseguir - disse o outro garoto, ainda rindo. — Que ridículo.
— Cala a boca, Kelvin - retrucou imediatamente. — Por que você é tão babaca? É por isso que ninguém gosta de você.
— Ei, ei, ei - o professor interveio. — Nada disso, nada de brigas e ofensas. E, Kelvin, com certeza nada de desestimular os colegas também. Peça desculpas.
Seus olhos se reviraram em um amplo raio.
— Desculpa.
Mesmo reconhecendo a falta clara de sinceridade, o mais velho se deu por vencido, sem querer prolongar aquela discussão. Tinha outra coisa que precisava fazer: seguir o seu instinto.
— Tenta de novo - sugeriu a . — Você estava indo muito bem.
Ele não sabia se queria se expor à alta probabilidade de enfrentar uma nova humilhação. Mas não sabia se seria tão pior do que se negar a fazer algo quando sempre teve tanta dificuldade em dizer ‘não’ para as pessoas. Ainda mais para aquelas que pareciam querer apenas o seu bem.
Respirando fundo uma, duas, três vezes, ele conseguiu se acalmar o suficiente para repassar a música na mente - não cantarolaria na frente daqueles olhos críticos pouco construtivos nem que lhe pagassem para isso - e reorganizar a posição das mãos.
O rosto sorridente de assentiu para ele, como se quisesse confirmar que ele podia começar, eles estavam ali. Ela estava ali. Para ouvi-lo, incentivá-lo e, se necessário, para descobrir se seu soco era forte o suficiente para quebrar o nariz de Kelvin com um único golpe.
voltou a tocar, seguindo a melodia tocada em sua mente e o compasso marcado com os pés mesmo que ele sequer estivesse completamente familiarizado com esse conceito. Repetiu o início que já havia tocado com maior destreza e prosseguiu com um receio que se esvaiu imediatamente no momento em que ele corrigiu o erro anterior.
bateu palmas animadas ao perceber os músculos faciais dele abandonando a contração involuntária de apreensão. Balançando também a cabeça no ritmo da canção, seguiu a música como se todo o mundo ao seu redor tivesse se dissolvido como açúcar em água e sumido de sua capacidade de distinção visual. Nada mais importava além da sensação de euforia que escalava os alpes de seu âmago, prestes a ofegar no pico de toda a sua animação. Estava mais envolvido naquilo do que julgava ser possível que alguém um dia ficasse. Ele não estranharia se lhe contassem que, por aquelas dezenas de segundos, o planeta havia parado de girar em respeito e contemplação ao seu momento.
Algumas caretas de estranhamento - e talvez algo como despeito? - começaram a surgir.
— Mas a gente não aprendeu essa parte ainda - alguém falou baixinho, obrigando o professor a assentir vagarosamente com um sorriso de canto.
— Acho que ele já pegou o jeito.
O homem mal podia acreditar que seus olhos estavam finalmente vendo aquilo que sempre havia sido seu sonho, mas se parecia cada vez mais com uma lenda urbana. Ninguém havia lhe ensinado a partitura - ele provavelmente nem saberia o que era se visse uma -, mas ele simplesmente sabia.
— Ele tem algum superpoder? - perguntou ao professor, sem disfarçar por um segundo sequer o quanto achava aquilo literalmente a coisa mais legal que já havia visto desde os filhotes de girafa no zoológico.
— Quase isso. Chama ouvido absoluto. Ele consegue identificar cada uma das notas só de ouvi-las.
A garotinha riu antes de concluir:
— É bem mais legal do que um superpoder.
— Muito mais.
Depois de tocarem todos juntos mais algumas vezes, os alunos foram dispensados, saindo correndo pelo pátio como sempre faziam com toda a energia da infância que parecia ser estocada em baterias de longa duração - para felicidade e desespero de seus pais.
— Ah, - o homem chamou uma última vez. — Venha para as próximas aulas também, ok? Você tem muito talento. Precisa continuar com a música. É um favor que você faz para a humanidade. Nós precisamos disso.
E ele sorriu, sabendo que, no fundo, ele também precisava.
Completando o sinal da cruz sobre o peito, estendeu os joelhos, afastando-se do banco que ocupava na igreja que havia virado o seu segundo lar.
Quase todos os seus horários livres das demandas escolares eram passados em meio àquela comunidade. Muitas vezes orando e agradecendo por mais um dia e pela comida na mesa; muitas vezes ajudando o padre a organizar os materiais e trocar lâmpadas e móveis. Mas o que ele mais fazia por ali, tantos anos depois, continuava sendo a música.
O professor Maxwell havia lhe dado uma cópia da chave da sala para que ele pudesse entrar quando quisesse, pegar o violão extra e praticar. Nos horários mais aleatórios possíveis, ele aparecia por lá e treinava. Colocava alguma música para tocar - tentando randomizar ao máximo a sua escolha dentre os discos que o professor mantinha - e fechava os olhos, absorvendo a melodia para reproduzi-la em seguida.
Naquele dia, ele havia feito mais do que simplesmente agradecer - pela vida, pelo aluguel pago, pelo pacote de arroz, pela música, pelo enorme amor das poucas pessoas que também o amavam. Tinha engolido a sensação de que não era justo pedir nada quando tinha saúde e alimento e perguntado se não poderia receber um sinal que fosse de que caminho seguir em meio à confusão nebulosa que havia estabelecido moradia em sua mente nos últimos dias.
Tinha uma vaga como empacotador no pequeno mercado do bairro. O dinheiro ajudaria consideravelmente, mas o horário era muito pouco flexível e faltava pouco demais para ele terminar o colégio e poder ter o diploma de conclusão.
Havia alguns rumores de que uma vaga de garçom seria aberta no restaurante italiano, pois uma de suas funcionárias mais antigas entraria em licença maternidade em poucas semanas. Seria uma vaga noturna, o que facilitava consideravelmente o seu cronograma de manutenção escolar. Contudo, eram pouco mais do que rumores e ele não estava exatamente em uma posição confortável para pagar para esperar e ver.
Em algum momento, também havia ouvido falar em uma posição como chapeiro em uma lanchonete, mas ele não tinha experiência alguma com aquilo. Outras duas vagas interessantes exigiam o Ensino Médio completo - que era exatamente o que ele estava tentando fazer sem que faltasse comida para o almoço do fim do mês.
Eram tantas dificuldades, tantas questões, tantos poréns. Ele não fazia ideia de como seguir. Por mais egoísta que parecesse pedir a Deus algum sinal, ele havia pedido. Uma luz que fosse. Qualquer pequena indicação de qual caminho deveria seguir.
— Sabia que ia te encontrar aqui - a voz que ele conhecia tão bem disse logo às suas costas.
tinha o mesmo sorriso largo de costume em todos os últimos anos. Parecia que seu rosto havia vindo programado de fábrica para aquilo: sorrir. havia tido a sua configuração alterada mais tarde para responder imediatamente com reciprocidade.
— Acho que eu não sou a pessoa mais imprevisível no mundo.
— Não é nem a mais imprevisível nessa conversa - ela completou, rindo.
— Assim você me magoa.
Ela deu de ombros, enquanto prendia o cabelo com um pouco mais de força no rabo de cavalo. Apesar dos fios grossos e pesados, a textura lisa deles insistia em fazer com que a maioria dos elásticos simplesmente deslizasse como em um tobogã.
— Eu trouxe uma coisa - disse finalmente. — Quer me ajudar a pegar lá no carro?
— Mais um carregamento das samosas da sua mãe?
— Não fale das samosas - ela o alertou, estendendo o indicador. — Pode xingar a ela, a mim, a qualquer coisa, mas nunca fale das samosas ou a minha mãe tem uma parada cardíaca enquanto reclama do ultraje.
— Elas são ótimas - ele admitiu. — Nada se compara ao tempero que ela coloca nos cubos de frango.
sorriu, começando a andar para que ele a seguisse até o lugar em que tinha estacionado o carro.
— Vou entregar o elogio a ela. Talvez você, de fato, receba um carregamento de samosas depois disso.
— Eu não reclamaria nem um pouco - respondeu. — Mas o que é que tem no seu carro afinal?
— O que tem de previsível, tem de impaciente. Já estamos chegando, apressadinho.
Tinham algumas crianças brincando e outras apenas berrando e correndo em círculos. A praça cheia daquele jeito quase fazia a vida parecer completamente normal. Era nisso que ele desejava acreditar.
Seu momento de introspecção foi interrompido pelo cessar dos passos de à sua frente. Quase trombou nela, mas teve tempo de evitar o constrangimento dando dois curtos passos para trás. As coisas entre eles já costumavam atingir momentos de certo desconforto entre palavras que ninguém parecia disposto a encontrar coragem para dizer. Ele definitivamente não precisava piorar a situação.
— Você está pronto para isso?
— Para você ter que perguntar, provavelmente significa que não.
lhe deu uma cotovelada, apertando o botão da chave do carro para destrancar o porta malas.
não precisava de mais do que um segundo para reconhecer aquele formato tão específico e inconfundível.
— Pode me ajudar a pegar?
O rapaz obedeceu, puxando o case pela alça lateral de couro reforçado e minuciosamente costurado.
— Para onde quer que eu leve?
deu de ombros.
— Para onde quiser. É seu. Você faz o que quiser com ele.
Os olhos dele se arregalaram por alguns instantes em completo choque. Demorou para encontrar as palavras tão óbvias - e custosamente expressáveis - para dizer naquele momento:
— Claro que não. Isso não faz sentido algum.
— Como não? Eu estou te dando um violão - ela disse, fazendo questão de desacelerar a voz e fazer uma pausa entre cada uma das palavras proferidas. — Qual é a parte dessa frase que não está fazendo sentido para você?
— Você não pode. Quer dizer, eu não posso. Não posso aceitar.
parecia genuinamente confusa.
— Por que não?
— Porque não é certo. Você não tem que me dar nada.
— Não, não tenho - ela concordou. — Mas eu quero. Então, será que você pode colaborar?
parecia ter travado. não fazia ideia de em que canal ou qual frequência sintonizar para que aquilo voltasse ao normal, mas era como se algum ser superior tivesse clicado em um botão de pause supremo.
— Terra chamando - ela cantarolou.
— Eu…
A garota revirou os olhos, empurrando o violão na direção dele, reforçando a mensagem.
— É um presente. É uma desfeita absurda não aceitar. Se te preocupa tanto receber algo assim, pode me retribuir tocando algo. Sabe como eu sempre adorei te ouvir.
Sua fisionomia amenizou frente à proposta. Só de pensar em dedilhar aquelas cordas, seu peito já se enchia de uma alegria que ele mal sabia descrever. A exceção da mãe, poderia dizer com tranquilidade que a arte da música ocupava o lugar principal em sua vida. E, por mais que ainda estivesse se sentindo errado de alguma forma por aceitar o presente, a tentação era mais forte do que ele.
Com um sorriso, ele se sentou em um dos bancos livres da praça logo ali a alguns passos, abriu o case aos pés e retirou o instrumento, posicionando-o no colo.
— O que você quer ouvir?
deu de ombros.
— Aquilo que você mais sente que precisa tocar.
E aquela pareceria uma pergunta forçada e com propósitos parnasianos e aleatórios demais se tivesse vindo de qualquer pessoa. Mas não quando vinha dela. Não quando era sobre alguém que sabia exatamente o que estava dizendo, pois o conhecia tão bem quanto às linhas tortas que pareciam formar a própria inicial na palma de sua mão.
encontrou a nota exata e começou a tocar.
Cantou sobre a história de um menino que vivia em um trailer e tinha sonhos de ser um astronauta. Cantou sobre como o mundo era um lugar estranhamente cruel onde os sonhos não costumavam prosperar a menos que se tivesse muita perseverança e um pouco de sorte. Cantou sobre todas as coisas que havia passado a semana escrevendo sobre e enviando em trechos gravados com dificuldade em seu aparelho de celular antigo apenas para que pudesse mostrar para ela - a única opinião que ele realmente valorizava e acreditava que sempre seria sincera, mesmo com o viés emocional do laço estreito de amizade que haviam criado ao longo dos anos.
Enquanto ele ganhava confiança, sua voz aumentava de intensidade e seus pés batiam contra os pequenos paralelepípedos de pedra cinza clara no ritmo de sua música. Algumas pessoas começaram a se aproximar, apreciando a cantoria e batendo palmas de forma síncrona para acompanhá-lo.
Quando ele terminou, arriscando uns acordes habilidosos e apressados para finalizar a música, recebeu com um sorriso largo de vários dentes os aplausos de sua pequena plateia.
Enquanto ele acessava sua memória afetiva em busca da primeira melodia que havia aprendido, sentado no chão da sala de música do professor Maxwell, algumas pessoas colocaram notas e moedas no case aberto, saindo antes que ele pudesse impedi-las.
— Gente, não. Não. Parem. Por que eles estão fazendo isso?
— Estão te agradecendo pelo trabalho - respondeu simplesmente.
— Mas eles não podem fazer isso. Eu nem estou pedindo, sabe? Se eu soubesse que isso aconteceria, não teria largado o case no chão.
‘Que erro de principiante, ’ - ele pensava.
— Você não está obrigando ninguém a te pagar, fazer uma doação, ou seja lá o que for. Essas pessoas gostaram da sua música e quiseram retribuir de alguma forma. Chama valorização do trabalho alheio, sabe? Arte e entretenimento também são dignos dessa contribuição.
— Não, não dá.
— Se você me disser que não pode receber por isso, eu vou ter que te dar uma lição de moral em praça pública sobre como é tosco, ainda mais vindo de você, menosprezar o valor da expressão artística. As pessoas vivem disso, . Pelo amor de Deus, qual é o problema? Não é basicamente esse o sonho?
— Mas…
— Não tem nada de ‘mas’. Se você insistir nisso, eu vou considerar como uma ofensa pessoal diretamente endereçada à minha futura carreira como cineasta.
nem pensou em retrucar. Tudo o que pôde fazer foi rir. sabia perfeitamente como utilizar de todos os possíveis artifícios de manipulação emocional e argumentação para para estabelecer seu ponto e convencê-lo de qualquer que fosse o seu ponto de vista.
— E falando nisso, vou gravar você - ela falou, retirando o celular do bolso da calça jeans. — Vai, volta a tocar alguma coisa.
— Por quê?
Ela balançou os ombros.
— Considere como uma prática amadora para a faculdade.
— Você só começa o curso daqui cinco meses - ele a lembrou.
— Mas é sempre bom estar preparada.
O que ele poderia dizer? Era fácil assim fazer o que ela queria.
se afastou dele, procurando o melhor enquadramento para capturar as imagens e o áudio do trabalho. Em sua mente, já conseguia visualizar algumas das ferramentas de edição que seriam úteis de serem utilizadas e percebeu que era simplesmente bom demais naquilo que fazia para que os resultados daquela gravação ficassem restritos aos arquivos e memória de seus eletrônicos. O mundo todo precisava vê-lo. E, por mais que seus planos representassem apenas uma gota d’água no meio do oceano, sabia exatamente por onde começar.
As várias horas gastas de forma quase diária no Youtube finalmente serviriam para algo.
— Vamos passar mais uma vez. Tente ficar o mais confortável possível aí dentro. A casa é sua.
soltou uma risada leve. Detestava esse papo de ‘a casa é sua’, mas ao mesmo tempo valorizava a tentativa das pessoas de fazerem com que os outros se sentissem menos desconfortáveis e inibidos, mesmo que com uma frase tão pronta e tão forçada quanto aquela. Qualquer que fosse o mínimo esforço para melhorar a situação deveria ser levado em conta. Muitas pessoas não se importavam nem com isso, afinal.
Por isso, ele simplesmente decidiu dar mais uma chance àquela loucura toda e a si mesmo. Respirou fundo algumas vezes, expirando vagarosamente até que os pulmões estivessem lhe implorando para colocar um pouco de oxigênio para dentro de volta.
— Pronto?
— Pronto - confirmou.
fez sinais de joinhas com as mãos do outro lado da parede de vidro com vedação acústica. O rapaz devolveu o sinal com uma mão, enquanto usava a outra para reposicionar os fones de ouvido grandalhões.
Com a melodia já gravada previamente, o rapaz aguardou o momento exato de entrar e passou a enunciar as palavras que haviam viralizado meses atrás no vídeo gravado no meio da praça, cantando cada uma das notas que tinha escrito com todo o coração e ajustado ao longo do tempo.
O produtor havia encontrado o vídeo com várias centenas de milhares de acessos e uma enxurrada de comentários e entrado em contato inicialmente com , responsável pelo canal. Disse que havia visto o vídeo viral e assistido também a vários outros. Disse que tinha interesse em levá-lo para um estúdio e ver como funcionava a voz e a canção em gravação. Disse que se eles estivessem interessados, tudo o que deveriam fazer era retornar o contato.
E ela estaria mentindo se dissesse que tinha sido fácil convencê-lo a abandonar o próprio casulo de medo e insegurança e só aceitar a oferta sem colocar um peso gigantesco nas costas como se aquele fosse um ultimato que desenhava um alvo enorme bem no meio de sua face. Mas, com muita insistência - e ela poderia dizer orgulhosamente que era incrivelmente boa nisso - e havia conseguido atingir seu objetivo com maestria. Ele estava naquele estúdio gravando sua primeira música autoral, não estava?
Após a última nota, retirou os fones com agilidade, ansioso por saber quais seriam os feedbacks e os resultados daquele teste:
— E aí?
O produtor pressionou o botão que abria o som de sua comunicação com a cabine.
— E aí eu acho que temos nossa primeira música. Agora precisamos de um álbum.
— Opa, cuidado com o degrau - ele avisou.
— E você me diz isso agora?
Sua mãe ria, vendada, balançando o pé cujo dedinho acabara de encontrar um agressor pelo caminho.
— São só mais dois degraus, vamos com calma - ele pediu, tentando conter as próprias risadas toda vez que via a mais velha tentando erguer o nariz a fim de enxergar qualquer dica que fosse por debaixo do tecido que lhe cobria os olhos.
entrelaçou seu braço ao membro superior livre da sogra, ansiosa para que ela finalmente visse o que eles haviam passado boas semanas planejando e organizando apenas para que aquele momento fosse perfeito - exatamente da forma que ela tanto merecia.
— Posso abrir agora? - A mãe perguntou quando percebeu que haviam fincado os pés no chão e parado de andar.
e trocaram olhares de nervosismo e satisfação, sorrindo enquanto inspiravam profundamente.
— Pode - ele respondeu.
Quando a mulher levou as mãos à parte de trás da cabeça e desfez o nó pouco firme, o tecido caiu sobre os dedos, revelando uma fachada pintada com tinta clara e bastante iluminada, com spots de luz espalhados em meio aos arbustos e flores do jardim.
— O que é isso?
— Bem-vinda à sua nova casa, mãe - ele disse, sentindo os olhos enchendo aos poucos de lágrimas.
— Meu Deus - ela balbuciou, com as mãos sobre a boca, sentindo as lágrimas escorrendo pela face com a alegria emocionante daquilo que ela nunca pensou que teria.
— Não é muito grande - falou. — mas tem todos os cômodos necessários, bastantes armários, funcionalidade e todos os eletrodomésticos que você vai precisar já estão aí dentro. Pedi para plantarem as suas flores favoritas e a janela da sua suíte fica virada para elas lá nos fundos. Tem uma mesinha com duas cadeiras na varanda também, para você fazer o seu café e olhar para a paisagem sem ter mil trailers poluindo a sua vista do sol.
A mulher riu entre as lágrimas, sendo obrigada a concordar. Aquela era a mais pura verdade. A vida naquele estacionamento amplo era boa o suficiente, mas abarrotada de barulhos, pessoas nem sempre convenientes e poluição visual. Com o tempo, o que deveria ser uma comunidade altruísta e bem conectada tinha se tornado distante e pouco empática. Era bom o suficiente, mas ela merecia muito mais.
— Eu nem sei o que te dizer.
puxou-a para um abraço apertado, no lugar de amor sublime e genuína compreensão que sabiam que só encontravam no coração do outro. Tinha se tornado quase vinte centímetros mais alto que ela nos últimos anos e beijou o topo de sua cabeça, esperando que ela entendesse com esse gesto todas as palavras que, mesmo que ele dissesse por horas a fio, jamais seriam suficientes para representar tudo o que ela realmente precisava ouvir.
— Eu estou tão orgulhosa de você - ela falou. — Olha onde você chegou.
— Olha onde nós chegamos - ele a corrigiu. — Tudo o que eu sou é por causa de quem você é. E tudo o que eu sempre quis foi poder retribuir ao menos uma vírgula de tudo o que você fez por mim a cada dia das nossas vidas. Eu só tenho a agradecer pela oportunidade de ter a melhor pessoa do mundo todo como mãe.
— Ah, meu filho, eu te amo tanto.
Os dois se abraçaram mais uma vez com força. , entre lágrimas, acabou sendo puxada para o abraço coletivo daquela família que havia estreitado ainda mais seus laços.
Com seu objetivo de vida atingido, respirou profundamente, permitindo-se sentir orgulho de si mesmo.
— Vamos entrar? Quero te apresentar ao lar.
pressionou a mão contra a sua coxa, segurando-a com uma delicadeza paradoxalmente firme e um tanto incisiva.
— Será que você pode parar de bater esse pé? Vai deixar um buraco no chão.
juntou as mãos sobre o colo, exalando o ar dos pulmões com calma forçada.
— É impossível não surtar - ele admitiu. — Eu passei três horas tentando meditar hoje. Só conseguia ter crises de taquicardia. E isso porque eu usei aqueles áudios-guia que você me mandou.
Ela sorriu, puxando a mão direita dele cuja aliança combinava com a sua e entrelaçando os seus dedos.
— É por isso que nós nos esforçamos para fingir bem. Ao menos bem o suficiente.
O rapaz olhou em volta, vendo todas as pessoas concentradas demais em conversas entre si, selfies para o instagram ou realmente prestando atenção nos apresentadores sobre o palco, contando piadas e fazendo trocadilhos que careciam de astúcia e de graça.
— A parte boa é que ninguém se importa o suficiente para ligar - ele comentou, rindo.
— Finalmente isso é uma coisa boa - concordou, beijando a bochecha dele de forma carinhosa. — Mas você pode relaxar por você mesmo. Vai dar tudo certo. Você vai ver. Já é incrível que tenhamos chegado até aqui.
A indicação à categoria de ‘Melhor Artista Novo’ tinha sido merecida, apesar do pouco tempo desde o lançamento do seu álbum autointitulado de estreia. Com doze faixas e três singles consolidados e enviados às rádios, as vendas não tinham conquistado a primeira posição no Top da Billboard, mas havia marcado seu território entre as cinco melhores colocações durante sete semanas consecutivas.
O reconhecimento dos fãs pelo seu trabalho era muito mais do que ele poderia ter esperado em qualquer momento de sua vida. Quando os famosos falavam que era tudo uma imensa loucura inacreditável, eles não estavam exagerando nem um pouco. Subir em um palco e ver vários milhares de pessoas ocupando a atmosfera de um festival cantando a sua música mais alto do que você - que tem um microfone de última geração e amplificadores enormes - era surreal demais e sempre o deixava com um sorriso bobo, apenas contemplando a magnitude daquele momento e tentando mensurar a gratidão que sentia por cada ladrilho que havia pisado em seu caminho e pelas pessoas que, pelo bem ou pelo mal, haviam deixado a sua marca em sua história.
Com a movimentação no palco e a alteração de apresentadores, se ajeitou em sua poltrona, sentindo o coração decidir que havia recebido autorização para iniciar uma corrida de cem metros rasos sem oponentes. O momento havia chegado; o ápice, o auge. Tudo o havia levado àquele instante.
A atriz hollywoodiana sorriu largamente, desviando o olhar por apenas um segundo para encontrar a abertura do envelope recebido nos bastidores.
— E o vencedor é…
Tudo o que ele ouvia era um zumbido em uma orelha que parecia presa em um eco de quem acabava de sair com o canal auditivo totalmente tampado por água da piscina.
Foi quem levantou e se arremessou em seus braços, enquanto ele permanecia boquiaberto e estático, preso ao assento.
— Eu sabia! Eu sabia!
Em meio aos aplausos de todos e aos beijos úmidos com as lágrimas dela, finalmente se levantou, caminhando pelo corredor liberado como se estivesse flutuando sobre as nuvens macias de um sonho maluco.
Com abraços e cumprimentos, ele recebeu o prêmio das mãos dos apresentadores e se dirigiu ao microfone para realizar seu discurso de agradecimento.
— Ah, uau… Meu Deus.
A plateia berrava e aplaudia sem parar, enquanto a melodia de sua música mais famosa tocava ao fundo.
— Eu meio que tinha preparado um discurso caso isso acontecesse, mas tinha certeza de que não ganharia, então nem ensaiei - ele falou, arrancando algumas risadas. — Então essa vai ter que ir direto do coração. Obrigado a todos os fãs, a todos os artistas que vieram antes de mim e que virão depois, inspirando todos nós a nos apaixonar cada dia mais por essa dádiva que é a música. Mas, acima de tudo, agradeço às duas mulheres da minha vida: minha mãe e minha esposa, que nunca deixaram que eu desistisse e sempre acreditaram nos meus sonhos, mesmo quando eu mal sabia quais eram. Eu não estaria aqui sem vocês.
Ele respirou fundo, ouvindo os aplausos se tornarem mais altos.
— E, por último, eu agradeço a absolutamente todas as pessoas que colocaram mais pedras no meu caminho e disseram que eu nunca conseguiria ser alguém na vida - ele falou, olhando para o prêmio. — Bom, parece que vocês estavam errados. E, cada dia que eu abria os olhos, era para provar isso a vocês. Muito obrigado!
FIM
Nota da autora: Eu sei que a história é curtinha, mas ela foi escrita no pior momento de toda a minha vida, onde eu só precisava dessa sensação simples de que as coisas podem dar certo e há esperança mesmo em meio ao caos de cada dia.
Assim como o Billy é o cachorrinho do Lauv, dedico essa história à minha estrelinha que se foi há pouco. Que o céu seja cheio de todas as frutas e brincadeiras que você mais amava, meu anjo. Te amo paara sempre <3
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
UM BEIJO E UM QUEIJO!
Caixinha de comentários: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
01. Mine
02. Blow Me (One Last Kiss)
02. Boyfriend
02. cardigan
02. Dance Again
02. Don't Let It Break Your Heart
02. Stitches
03. Dear Patience
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Try Hard
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. All of Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Boys Will Be Boys
11. Nós
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. They Don't Know About Us
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
Evermore
MV: deja vu
MV: Golden
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallfower
Assim como o Billy é o cachorrinho do Lauv, dedico essa história à minha estrelinha que se foi há pouco. Que o céu seja cheio de todas as frutas e brincadeiras que você mais amava, meu anjo. Te amo paara sempre <3
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
UM BEIJO E UM QUEIJO!
Caixinha de comentários: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
01. Mine
02. Blow Me (One Last Kiss)
02. Boyfriend
02. cardigan
02. Dance Again
02. Don't Let It Break Your Heart
02. Stitches
03. Dear Patience
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Try Hard
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. All of Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Boys Will Be Boys
11. Nós
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. They Don't Know About Us
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
Evermore
MV: deja vu
MV: Golden
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallfower