Capítulo Único
Os aplausos eram poucos, mas suficientes. A maioria das pessoas estava prestando mais atenção em seus copos e suas próprias conversas individuais de toda forma. Ele simplesmente sorria agradecido para aqueles que lhe elogiavam e buscava manter a atuação de conformação. Como se aquilo estivesse bom para ele, quando não era nem de longe o que ele sonhara. Dos pocket shows ele realmente gostava, afinal as pessoas - mesmo que apenas algumas dezenas - estavam ali pela música. Mas os pubs… Se ele não precisasse tanto do cachê, não se daria ao trabalho de estar ali, gastando a voz e as pontas dos dedos por pessoas que raramente se recordavam de sua presença naquele palco relativamente improvisado em uma sexta-feira pós expediente convencional.
Soltou o corpo com certo descuido ao transferir o peso de um pé para outro conforme ignorava o único degrau que lhe permitia uma descida segura da baixa altura em que se encontrava. Ainda estava tentando recuperar o compasso da própria respiração, quando foi obrigado a driblar o próprio cansaço e frustração para sorrir abertamente para o rosto feminino conhecido que se aproximava dele.
— Realmente quem é vivo sempre aparece - sua voz rouca acusou, ironicamente, recebendo um olhar fuzilante de desprezo bem humorado.
— Calado. Você sabe muito bem que passei as duas últimas semanas viajando a trabalho.
— Sei - ele concordou. — Só não sabia que tinham te confinado em algum tipo de retiro espiritual aleatório ou cárcere privado que te impedisse de usar o celular para pelo menos avisar que estava viva.
— Você é muito preocupado, irmãozinho. Notícias ruins vêm em aviões supersônicos cuja velocidade nem a indústria aeroespacial conseguiu desenvolver ainda. Se você não ouviu falar sobre mim, com certeza era porque eu estava bem.
— Vai ter que me perdoar por me importar com você, , mas é meio que a minha função.
A mulher se aproximou dele, ficando na ponta dos pés para abraçá-lo com força. Viajara para vários países, tivera múltiplos relacionamentos de todos os tipos e, mesmo assim, acolhida nos braços do irmão caçula permanecia sendo o lugar que mais lhe trazia conforto e paz em todo o universo.
— Eu sei que você se importa muito comigo - disse, ainda presa contra o corpo dele. — E eu também me importo muito, muito com você. Por isso, eu vim acompanhada.
— Outro namorado, ?
— Não dessa vez. - Deu um meio sorriso. — A mamãe disse que você terminou com a garota que você estava saindo, ficando, transando… Não sei que tipo de verbo você usa para isso.
— Que tal o verbo ir? Como em vá direto ao ponto.
— Seus relacionamentos são deprimentes e eu cansei de te ver jogado por aí, triste por alguém que mal participou da sua vida, de fato, ou participou até demais considerando o caráter duvidoso do ser. Então, considere isso como uma intervenção.
— Não sabia que isso era um episódio de How I Met Your Mother - ele zombou, soltando uma risada nasalada em sequência.
— Ah, você ainda gosta dessa série? Excelente, então vocês já têm algo em comum.
— Vocês quem, ?
A mais velha virou-lhe as costas, esticando o pescoço para procurar por alguém na entrada do pub. Com alguns acenos frenéticos e passadas rápidas, logo pôde ver a silhueta da segunda pessoa a quem insistia em incluir naquele plural que o continha.
— , essa é a . Ela é uma das minhas melhores amigas e eu queria muito que vocês se conhecessem já que são tão importantes para mim. , esse é o , meu irmão caçula.
O rapaz tentou se desvencilhar da vontade absurda que tinha de fuzilar a irmã com os olhos, evitando a atitude para não soar rude frente à tal amiga. Não estava nem um pouco feliz com a armação de , mas jamais seria qualquer coisa além de um admirável cavalheiro se outras pessoas estivessem por perto. Especialmente aquelas que ele desconhecia. Ainda mais quando, de repente, não parecia uma ideia tão ruim assim conhecê-la.
o fitava com os olhos curiosos, por trás dos cílios que batiam carinhosamente contra o próprio rosto. Tinha um meio sorriso observador e, se não fosse a pessoa mais adepta do mundo a se projetar de forma inabalável, provavelmente teria se sentido constrangido e acuado com o peso de seu olhar que parecia analisar e julgar cada milímetro da extensão de seu corpo e de sua alma.
— Muito prazer, - ele disse, estendendo a mão em um cumprimento contido.
O sorriso da mulher repuxou o canto esquerdo de seus lábios, tornando-se mais acentuado. Aceitou o cumprimento de forma educada antes de dizer:
— Pode me chamar de . Só sua irmã, dentre todas as pessoas do mundo, insiste em me chamar de .
— Ela é um saco assim mesmo - concordou, dando de ombros, enquanto via revirando os olhos de forma quase teatral.
— Vocês me amam incondicionalmente e tenho certeza de que só estão enfrentando um pouco de dificuldade de expressar esse amor - ela garantiu.
Com a percepção de que o protótipo de assunto - talvez nem isso - tinha morrido e um longo e constrangedor silêncio se instalaria, fazendo as três pessoas ali desviarem o olhar e fingir atenção em coisas aleatórias que não a mereciam, decidiu tomar as rédeas da situação da forma menos criativa possível por ali.
— Vocês querem beber alguma coisa?
torceu a boca como se estivesse chateada.
— Infelizmente não vou conseguir acompanhar vocês dois hoje. Sabem como é. Essa adaptação de fuso-horário sempre me matando. Mas tenho certeza de que vocês vão se divertir muito - concluiu com um sorriso, antes de dar um beijo na bochecha de cada um deles e acenar enquanto se afastava como se nada de significante tivesse acabado de acontecer por ali.
e ainda piscavam, estáticos. Só não estavam mais chocados com a audácia da situação porque aquele poderia facilmente ser um quadro pintado e assinado por com uma letra cursiva exageradamente detalhada.
— Filha da puta - murmurou, tomando coragem de encarar a mulher à sua frente, tão descrente quanto ele.
— O que ela te disse enquanto eu estava lá fora ao telefone?
— Que essa era uma intervenção por todos os meus relacionamentos de merda - ele admitiu, recebendo uma risada gostosa em resposta.
— Bom, essa é a minha intervenção por não ter idade o suficiente para ficar enfurnada em casa em uma sexta à noite.
O rapaz meneou a cabeça, ainda lidando com os resquícios da dificuldade em absorver a situação. Não que ele tivesse muita opção.
— Acho que ela viu How I Met Your Mother no voo de volta para cá - comentou, forçando-se a manter qualquer tipo de assunto entre eles em vez de tornar aquele momento ainda mais embaraçoso e constrangedor do que ele já era.
— Eu pensei na série na hora também - admitiu. — Ela acabou comentando que você também gostava.
— Eu adoro. Ver séries de comédia em looping é basicamente o que eu faço com quase todo o meu tempo livre.
— Sei que você provavelmente preferia estar vendo uma agora mesmo, mas, já que estamos aqui, meu convite para beber algo ainda está de pé.
— Ah, mini , eu posso ser uma pessoa difícil de tirar de casa, mas quando eu saio é mais difícil ainda me fazer voltar tão cedo.
esboçou um sorriso travesso, enquanto sustentava o olhar que lhe era dirigido com toda a força com que o recebia.
— É por minha conta, então.
— Tem certeza? Não vai ser descontado do seu cachê?
— Esse é o meu cachê - ele respondeu, enquanto ocupavam dois bancos vazios ao balcão.
arregalou os olhos levemente.
— Isso soou um pouco estranho, sabe? Com uma tendência ao alcoolismo. Você precisa de ajuda?
riu, mexendo no próprio cabelo.
— Eu sou pago com outras coisas que não álcool - explicou. — Considere a bebida como algum tipo de cortesia ou sinal de agradecimento por eu ser a melhor atração desse lugar.
A mulher se apoiou na bancada, enquanto girava a poltrona, olhando o seu redor. Tantas pessoas falavam alto, riam, bebiam e flertavam que ela tinha certeza de que poderia levantar a blusa no meio do bar e menos pessoas do que poderia contabilizar nos dedos de uma mão perceberiam a exposição gratuita de seus peitos. Talvez devesse testar sua teoria mais tarde.
— Não é por mal, ok? Tenho certeza de que você é um ótimo cantor, musicista, artista ou o que quer que seja. Mas, para ser a melhor atração desse lugar e para esse público , você provavelmente teria que no mínimo fazer um striptease em cima daquele palco.
— Acho que é exatamente isso que está faltando para a minha carreira deslanchar de vez. Com certeza me lembrarei de te mencionar por isso nos agradecimentos do meu primeiro álbum.
riu alto.
— Meus mais sinceros agradecimentos à mulher que iluminou meu caminho e mudou os rumos da minha vida ao sugerir que eu utilizasse de nudez para conquistar meu espaço na indústria musical - disse ela, forçando uma seriedade inexistente.
— Agradeço a oportunidade de provar que, mais do que um rostinho bonito, posso também ser um corpinho bonito - o rapaz emendou, fechando seu agradecimento imaginário com chave de ouro.
— Profundidade é a coisa mais superestimada do mundo.
ergueu os dedos, sinalizando para Kenan, o barman que ele já conhecia bem, que estavam prontos para pedir.
— Whisky e gelo como sempre para você - o homem comentou, enquanto secava um copo. — E para a senhorita?
— O mesmo que o dele - ela respondeu, agradecendo em seguida.
Quando Kenan trouxe os copos carregados do líquido acastanhado, o rapaz ergueu o copo, sinalizando um brinde singelo que foi correspondido pelo som do choque dos vidros.
— Às intervenções - sugeriu.
— A oportunidades - completou, virando um pouco do conteúdo, sentindo o ardor acolhedor da bebida na garganta. Tinha aprendido a apreciá-lo e desejá-lo, especialmente após um dia longo e cansativo no trabalho. Suas recompensas costumavam ser o álcool ou o açúcar e ela, honestamente, não tinha pretensão alguma de alterar esse padrão comportamental.
repetiu seus movimentos antes de decidir iniciar algum tipo de diálogo com a mulher ao seu lado:
— Como você e minha irmã se conheceram?
sorriu sozinha, lembrando-se daquela tarde de sol irritantemente forte e risadas com uma estranha que ela jamais imaginaria que seria sua melhor amiga em questão de semanas.
— Foi em uma passeata feminista. O tópico da vez era a luta pela equidade salarial. Em meio a tanta gente abarrotando as ruas, acabei encontrando sua irmã, com um daqueles óculos de sol enormes que ela adora e as bochechas tão vermelhas que eu fiquei preocupada que pudesse ser algum tipo de crise alérgica.
— Ela esqueceu o protetor solar?
— Na verdade, ela lembrou, só que no meio do caminho e comprou um qualquer na primeira loja que encontrou. Ela realmente estava tendo uma reação alérgica a ele. Por sorte, eu tinha antialérgico na bolsa. Precaução ou hipocondria, o ponto é que nós passamos o dia juntas depois disso. Terminamos os protestos, colocamos os cartazes embaixo do braço e paramos em um bar próximo para tomar água porque eu fiquei com medo de ter reação com o remédio.
deu uma risada leve, permitindo que seus ombros balançassem suavemente em função do movimento natural e relaxado do próprio corpo.
— Quem disse que nenhuma boa história de vida começava com pessoas tomando água estava totalmente errado - brincou.
— Tiveram muitas cervejas, vinhos e drinks depois, mas de fato.
— Sinto muito por isso. Tenho certeza de que foi quem grudou em você como um carrapato e não a deixou em paz nunca mais. Ela não tem muito bom senso social.
gargalhou, apesar de ela e saberem perfeitamente que aquela era uma grande mentira. poderia se encaixar com facilidade na estranha definição de “social butterfly”, dando-se bem - ou pelo menos fingindo com simpatia e postura louváveis - com praticamente todo mundo. Era difícil não se encantar por ela e por seu jeito expansivo e risonho. A amiga costumava brincar que não gostar dela era quase uma afronta tão grande quanto não gostar de filhotinhos. Quem ousava dizer qualquer uma dessas duas coisas com certeza boa pessoa não era.
— E o que você faz da vida? - perguntou, enquanto cruzava os pés, aproximando os saltos pretos de suas botas.
O rapaz adquiriu uma feição levemente afetada, como se tivesse, de alguma forma, sido ofendido por suas palavras.
— Obrigado por estabelecer que música não é uma profissão. Meu pai também acha isso.
lhe deu um empurrão de leve.
— Sabe perfeitamente que não é isso que eu quero dizer. É só que, em um mundo como o nosso, caras como você geralmente tocam o que gostam de noite, mas fazem o que é preciso para manter uma renda estável de dia.
deu um longo gole em sua bebida, acenando para que Kenan colocasse mais um pouco em seu copo.
— Eu toco aqui e em um outro pub umas duas vezes por semana; três quando a sorte decide jogar a meu favor - ele explicou. — E trabalho como vendedor em uma loja de instrumentos de segunda a sexta. O sonho americano, a não ser pelo fato de estarmos em Manchester.
riu, concordando.
— E esse sempre foi o seu “sonho americano”? - O movimento de seus dedos reforçava no ar a presença das aspas.
— Sempre. Ganhei uma guitarra de brinquedo aos quatro anos e passava o dia inteiro performando para a minha família. Tirando , que queria me matar por isso, todos ainda estavam naquela fase de achar bonitinho praticamente qualquer coisa que uma criança fazia. Foi só quando eu cheguei à adolescência com a convicção total de que não havia nada na vida que eu gostaria de ser além de músico que meu pai surtou de vez. Nem se eu tentasse seria capaz de contar quantos sermões extensos ouvi sobre como isso não era profissão e eu ia morrer de fome por ser um vagabundo.
— Que droga. Eu sinto muito.
— É, eu também - o rapaz concordou. — Mas e você? O que você faz?
— Faço consultoria e estratégias de marketing para a Eyeko, que é uma marca mais voltada para maquiagem para os olhos. É cansativo, tem várias coisas para fazer e várias pessoas querendo dar opinião o tempo todo, sabe? Ainda mais quando vamos envolver redes sociais no assunto. Mas eu adoro o que eu faço, não posso reclamar disso apesar de desejar poder dar um chute forte bem no meio da bunda de vários colegas com frequência.
— E era esse seu sonho de infância?
agitou as cabeças para o lado rapidamente, apertando os lábios enquanto seus cabelos balançavam sobre a própria face.
— Eu não tinha nem ideia de que poderia fazer algo do tipo praticamente até entrar na faculdade. Quando eu era criança, eu queria ser astronauta. Ficava até tarde da noite olhando para as estrelas e passava o dia todo esperando que elas aparecessem de novo. Os dias nublados eram os mais tristes para mim.
riu.
— Entendo o apego. Acho que faz sentido.
— Não faz, não. - Ela riu. — Minha tia falava que eu gostava das estrelas porque vivia no mundo da Lua. Eu só concordava, pensando que deveria ser mesmo muito legal viver lá e não percebia que ela estava me chamando de avoada.
Ele deu de ombros.
— Adultos. - Bufou teatralmente. — Quem é que precisa deles?
— Essa é uma pergunta que eu nunca soube responder.
Pediram uma porção média de batatas fritas para evitar que os estômagos começassem a gritar, implorando por socorro e punição eterna aos seres abomináveis que os regavam a um alto teor alcoólico sem um alimento sequer. A mistura dos gostos de sal, amido e gordura era uma dádiva perfeita que fazia se perguntar quem tinha sido o gênio a testar fritar batatas pela primeira vez e se ele havia recebido todos os prêmios honrosos e cheios de louvor que merecia por salvar a humanidade com isso.
Depois de algumas histórias de infância que não combinavam muito com o whisky forte que corria por suas gargantas, a mulher respirou fundo, enquanto tentava recuperar o fôlego após uma gargalhada que tinha feito com que seu abdômen doesse o suficiente para que ela se arrependesse momentaneamente de ter matado tantos dias de academia naquela semana. Precisava mesmo tomar vergonha na cara, antes que descartassem suas credenciais por falta de uso.
— Sabe, mini - ela começou. — Você é um cara bem legal.
sorriu, evidenciando covinhas profundas que marcavam suas bochechas.
— É que você ainda não me conheceu direito.
— Essa é a parte em que você me sequestra e eu fico sabendo que minha melhor amiga era sua cúmplice durante todo esse tempo e eu serei oferecida em sacrifício a seja lá qual for a crença de vocês?
— Sinto muito. Mas olha só que assassino bonzinho eu sou por fazer sua última refeição ser batata frita.
concordou, com uma careta.
— Tem razão, você é um anjo mesmo. Com certeza esse argumento vai ser suficiente para te livrar do inferno.
— Que bom que concordamos - brincou. — Mas, se você quiser me conhecer melhor, podemos fazer perguntas aleatórias um ao outro.
— Não sei, mini - ela ponderou. — Acabei de estabelecer que você é um cara legal. Não sei se quero saber as suas respostas e correr o risco de mudar de ideia.
— É uma possibilidade. - Ele foi obrigado a concordar. — Mas eu aposto que, na verdade, você vai é acabar percebendo que somos algum tipo de almas gêmeas.
A mulher deu um sorriso de canto.
— me avisou que você tentaria jogar seu charme e esse sorriso bonito para o meu lado.
— Estou fazendo isso desde que você aceitou beber comigo. Devo mesmo estar perdendo a prática se só percebeu agora.
— Ou sou eu que preciso de um letreiro brilhante ofuscando a minha visão para me avisar quando alguém está flertando comigo. Mas pode ser. Vou deixar você fazer a primeira pergunta.
— Qual sua banda favorita?
— E já começamos com a pergunta mais difícil do universo. Vou responder sem pensar muito ou vou acabar trocando a resposta dez vezes. Então, Arctic Monkeys.
— Se você for ao meu próximo show, eu prometo cantar Arabella e dedicar a você.
arregalou os olhos, levando a mão ao peito, surpresa e achando graça pela promessa do gesto.
— Se você pensa que vai me conquistar comprando batata frita e cantando Arctic Monkeys para mim, você está completamente certo.
riu alto.
— Sábado que vem vou tocar com uns amigos em um galpão que transformaram em casa de shows recentemente. Está convidada.
— Bom, me prometeram Arabella, então eu não posso dizer não. Estarei lá. - Ela levou outra batata à boca, antes de se lembrar: — Ah! É minha vez!
Ela deu uma risadinha, fazendo erguer a sobrancelha esquerda.
— Que cara é essa e por que eu estou com medo do que você vai falar?
— Porque você é bobo. - Ela deu de ombros. — Se você cometesse um crime, tipo matar alguém… Para quem você pediria ajuda para acobertar o corpo?
A memória atingiu como um trem em disparada, saindo da estação. Meredith Grey e Cristina Yang falando algo parecido com aquilo era algo de que ele se lembrava perfeitamente, exatamente porque ele já conhecia a resposta, pulando na ponta de sua língua como uma daquelas balinhas explosivas.
— .
— Era esse meu medo - comentou. — Como vamos ter a mesma cúmplice de crimes? A pena por reincidência não deve ser das mais amenas.
— Bom, em nome de todas as vezes em que a levei na casa das amigas, fingi que não a via saindo de madrugada para encontrar com algum namorado e pelas minhas camisas que ela roubou, acho que ela me deve essa. Você pode encontrar outra pessoa para ser presa contigo.
— Ou podemos não cometer assassinatos, também é uma possibilidade.
— Acho que consigo aguentar - ele brincou. — Se você tivesse que beber só uma coisa para o resto da vida, qual seria? Sem ser água.
— Suco de laranja, com bastante gelo, mas sem açúcar. Passarei o resto da minha existência triste sem álcool, mas é melhor do que durar uma semana e morrer com uma cirrose hepática horrorosa.
Não que eles parecessem realmente se importar com aquilo enquanto Kenan despejava mais uma rodada em seus copos.
— Comida favorita?
— O fettuccine que minha mãe faz - respondeu instantaneamente, sentindo a memória gastronômica afetiva acariciando seu estômago e seu coração simultaneamente. Teria que fazer uma visitinha a assim que possível.
— Já estou arrependida de ter perguntado. Vou ficar com vontade.
— Bom, com certeza podemos fazer um almoço em família e minha mãe adora receber convidados. Sua única obrigação é comer até não aguentar mais e dizer que estava ótimo.
— Esse é o tipo de obrigação que eu cumpriria feliz da vida e ainda abaixaria a cabeça e agradeceria pela misericórdia e caridade prestadas a essa pobre alma.
— E você? - questionou, emendando uma correção logo em seguida. — Quer saber, vou fazer a pergunta contrária. O que você não come de jeito nenhum?
— Não gostei. Tema muito sensível. As pessoas adoram me julgar por isso.
— Você não está se ajudando a desviar do assunto. Conseguiu me deixar mais curioso ainda e eu sei ser irritantemente insistente e persuasivo quando eu quero.
bufou, dando-se por vencida.
— Certo, certo. Eu nunca fui uma pessoa com grandes restrições de paladar. Claro que, como qualquer outra pessoa normal, eu prefiro um bom lanche ou uma pizza a um prato simples de salada. Mas eu sempre comi de tudo.
— Se você me falar que detesta doces, eu juro que vou ter que deixar esse estabelecimento agora. É mais do que eu posso suportar, independentemente do quão incrivelmente bonita você é.
— Com certeza não é isso - ela continuou, seguindo como se nem tivesse percebido o elogio. — Bom, eu sempre adorei frutas. Basicamente gosto de quase todas as frutas que eu já experimentei na vida. Menos uma.
levou a mão à boca, forçando um clímax acerca da grande revelação. riu sozinha, pensando que ele deveria estar se perdendo na música quando se esforçava tanto para agir exatamente como o ator de uma daquelas telenovelas mexicanas. Claro que seu conhecimento sobre elas se limitava às cinco temporadas de ‘Jane, the Virgin’, mas isso não vinha ao caso.
— Eu detesto abacate - admitiu.
O rapaz ergueu as sobrancelhas. O choque, ao contrário daquele presente nos segundos anteriores, não carregava consigo falsidade alguma.
— Como assim você detesta abacate? — Não desce. Simples assim.
— Não é possível. - não se conformava. — Abacate fica ótimo com leite, com torradas e é simplesmente perfeito no guacamole. Como você vive sem guacamole?
— Inexplicavelmente eu estou viva. Avisei que você ia me achar estranha. É uma falha de caráter irreparável.
— Não. Na verdade, faz todo o sentido. Eu avisei que nós éramos almas-gêmeas. Em vez de sermos iguais, completamos o que falta no outro. Você odeia abacate e eu odeio abacate. O yin-yang perfeitamente equilibrado.
riu alto.
— Não acredito que estamos mesmo discutindo o impacto do meu gosto sobre frutas para estabelecer se nossos destinos estavam mesmo entrelaçados.
— É claro que estavam - ele confirmou. — Estamos ligados por e abacates.
Os minutos correram e passaram sem que percebessem, dançando entre eles, embalados pela melodia de um jazz ambiente qualquer, enquanto se tornavam horas completas noite afora. A conversa fluía como água, em um movimento contínuo, mesmo que seu curso fosse alterado ao longo da rota, em um riacho de palavras que se encaixavam com mínimos esforços às risadas frequentes. logo descobriu que a companhia do irmão caçula de sua melhor amiga era surpreendentemente mais agradável do que a de Ted, Marshall, Lily, Robin e Barney pela décima vez. E ela não conseguia pensar isso da maioria das pessoas.
Quando perceberam o horário e, a contragosto, decidiram ir embora, fez questão de acompanhá-la no uber até em casa, afirmando que se sentiria mais seguro tendo certeza de que ela chegaria bem, principalmente depois que já tinham perdido a conta de quantas doses haviam consumido.
— Bom, é aqui que eu fico - ela comentou, quando o carro desacelerou em frente a um prédio de altura média, coberto por uma tinta amarelo-clara e algumas rachaduras. sempre brincava que o edifício era a prova clara de que quem vê cara não vê coração. Apesar do estado externo não tão atraente aos olhos, os apartamentos eram incrivelmente aconchegantes e modernos por dentro. Além de que, em anos, ela não podia reclamar de problemas com nenhum de seus vizinhos e essa era definitivamente uma coisa a se valorizar.
assentiu, procurando os olhos dela para o que sugeriria a seguir; a sutileza restante perdida depois do terceiro copo de whisky.
— Qual a chance de você me dar o prazer de te levar para almoçar amanhã?
deu um sorriso de canto.
— Infelizmente, tenho que almoçar com os designers das novas imagens de divulgação do rímel de extensão máxima da Eyeko.
concordou, sabendo que não havia obtido sucesso algum em sua tentativa de disfarçar a pontinha de decepção ao ouvir aquelas palavras.
A mulher, no entanto, moveu-se rapidamente contra o revestimento de couro acinzentado dos bancos do carro.
— Mas eu tenho uma ideia. Tem um lugar ao qual eu vou todo sábado de tarde. Acho que você pode gostar de lá. E podemos sair para tomar um café depois.
O sorriso de se iluminou como a Times Square na contagem regressiva do Ano Novo. Aquelas eram as informações mais vagas que já havia recebido na vida e, mesmo assim, não poderia estar mais ansioso para fazer seja lá o quê, seja lá aonde, com ela. Deveria saber que o fato de ter aceitado aquilo tão rápido era o sinal claro daquilo que sua mãe sempre falava: ele se jogava de cabeça fácil demais. Mas, dessa vez, não estava realmente preocupado em quebrar a cara.
🎼🎼🎼
tinha enviado uma mensagem para ele com um horário e um endereço que não lhe era nem um pouco familiar. passou o percurso inteiro tentando criar hipóteses do que poderia aguardá-lo. Sabia que, provavelmente, não era nenhum evento chique, já que ela havia dito que ele não precisava se preocupar com roupas, mas essa era literalmente a única “pista” que ele tinha.
Quando o aplicativo assinalou a chegada ao destino, agradeceu o motorista, pulando para fora do carro enquanto observava a enorme casa branca, extremamente arborizada à sua frente. Não era exatamente o tipo de lugar que ele esperava encontrar naquela área de Manchester.
Empurrou o portão e caminhou pela passarela de pedras até a entrada, tendo finalmente os indícios mais próximos de onde estava se metendo ao perceber o pequeno playground nos fundos, com balanços e escorregadores.
— Ah, você chegou! Que ótimo!
A voz que havia estado presente em todos os seus sonhos nas poucas horas dormidas soou, trazendo um sorriso imediato para sua face. usava um macaquinho colorido e os cabelos presos em um coque bagunçado no alto da cabeça. Estava simplesmente maravilhosa e tinha a postura clara de quem sabia disso, mesmo que não se importasse.
— O que exatamente é esse lugar?
— Mini , seja bem-vindo ao Instituto Edwards para Crianças Carentes. Esse terreno é de um dos maiores colaboradores do instituto e usamos aos fins de semana, principalmente para lazer dos pequenos.
— E você vem aqui todo sábado?
assentiu, empurrando uma mecha de cabelo que havia se desprendido para atrás de sua orelha.
— É totalmente voluntário e é o que me faz mais feliz nessa vida. Estar com eles me traz uma paz enorme.
Duas crianças passaram correndo e gritando, agarrando-se às pernas dela.
— O que vocês dois estão fazendo?
— O Mike precisa pegar a gente - a menina explicou, expondo os buracos em que os dentes da frente deveriam estar. — E você é o ponto limite. Se ficarmos aqui, ele não pode nos pegar, tia .
A mulher assentiu.
— Mas se vocês ficarem aqui o tempo todo não vão brincar. Vão passar a tarde toda grudados na minha perna? Precisam ganhar do Mike fugindo dele. Não é tão legal desse jeito.
Os dois a encararam, concordando, antes de saírem correndo e gritando mais uma vez.
— Bridget e Lenny - ela explicou para . — O resto deles deve estar correndo lá fora. Mas daqui a pouco é hora da atividade em grupo, daí todos entram e fazemos algo aqui.
“Como você topou vir, pensei que talvez pudesse mostrar algo musical para eles. Eles sempre pedem, mas nos limitamos a cantar músicas infantis desafinadamente porque meu dom musical ficou no útero e foi jogado no lixo junto com a placenta.”
— Eu não trouxe nada.
— Ah, não se preocupe. Tem um violão no depósito. Dei uma limpada nele mais cedo. Estava meio empoeirado de ninguém usar.
— Espero que o dono saiba que isso é um crime. Só tem um problema. Crianças com certeza não são meu público de costume. Eu não faço ideia do que tocar.
deu de ombros.
— Mostra um pouco as coisas do violão e canta qualquer coisa. Eles vão adorar qualquer coisa que você faça. Eles se encantam com facilidade.
— E você? Também se encanta com facilidade?
A mulher riu alto, enquanto colocava as mãos nos bolsos da roupa.
— Quem sabe? Faça seu melhor, mini .
Com alguns gritos e vários gestos exagerados, logo deu conta de colocar todas as crianças para dentro. Rapidamente, estavam todos sentados no chão, em roda, como costumavam fazer semanalmente. se sentiu levemente constrangido por ter tantos olhos curiosos encarando-o. Estava mais nervoso do que ficava antes de seus pequenos shows. Aquilo era diferente de tudo o que já tinha pensado em fazer. Não tinha apenas um grupo de crianças para impressionar. Além de tudo, tinha de pé, encostada à parede com os braços cruzados, encarando-o com um olhar quase desafiador, apenas aguardando seus próximos passos.
— Quem é você? - Um menino cheio de sardas perguntou o que todos eles estavam pensando.
— Eu sou o . E você, como se chama?
— Kieran. Você é namorado da tia ?
encontrou o olhar da mulher no fundo da sala. Ela segurava uma risada.
— Somos só amigos, Kieran.
— Não acredito em você - o pequeno retrucou. — Você não para de olhar para ela.
sentiu as bochechas ardendo e tinha certeza de que todos ali estavam percebendo seu rosto adquirir um tom inédito e vergonhoso de vermelho. Não quis saber como a mulher havia reagido àquele comentário. Não precisava piorar a própria situação. Simplesmente ajeitou o violão no colo e fingiu que os últimos dois minutos não tinham existido. “Apenas uma alucinação coletiva”, repetia a si mesmo.
— Bom, a me disse que vocês gostam bastante de música e eu toco um pouco. Querem ver?
Foi o suficiente para alterar totalmente o foco de atenção das crianças. Assim que posicionou o violão sobre a perna, as crianças murmuraram alguns comentários indistintos e se aproximaram, sentando sobre os próprios joelhos a fim de conseguir chegar um pouco mais perto e ver com mais atenção o que ele tinha a mostrar.
— Primeiro, vocês sabiam que a gente precisa afinar o violão antes de tocar?
Alguns balançaram a cabeça, negando.
— Ou o som sai assim - ele completou, tocando uma nota qualquer, que saiu horrível, como se as cordas do instrumento fossem iguais às presentes em brinquedos.
— Isso foi horrível - Kieran comentou, arrancando risadas das crianças.
— Péssimo, não é? E agora - comentou, enquanto torcia os parafusos, antes de deslizar a ponta do polegar pelas cordas. — Não é mais tão horrível.
— O que você vai tocar? - Bridget questionou.
coçou os cachos, tentando livrar-se dos tufos que já escapavam do corte, tentando cair sobre os olhos.
— Não sei. O que você quer que eu toque?
— Beatles - ela sugeriu, fazendo com que o rapaz concordasse prontamente, enquanto um sorriso largo de formava em seu rosto.
não demorou para decidir o repertório. Prontamente, estava dedilhando acordes muito bem conhecidos, arrancando um sorriso leve de .
— Here comes the sun, doo da doo doo
Here comes the sun and I say: it’s all right
Pequenos ombros e pescoços balançavam no ritmo da melodia. Alguns conheciam a música o suficiente para cantarolar junto dele. O sorriso de só se alargava, vendo as crianças se divertindo e realmente participando daquele momento.
se aproximou, puxando Naomi, a mais nova, para o próprio colo quando decidiu se encaixar à rodinha deles. A menina se enrolou em seus braços como um gato, permitindo que a cabeça caísse sobre o ombro dela. A mulher beijou o topo de sua cabeça, abraçando-a com mais força, enquanto balançava-a delicadamente a cada “doo da doo doo”, fazendo-a rir.
ainda tocou ‘Hey Jude’, conquistando um coro animado e especialmente empenhado em berrar “na na na na na na na” o mais alto que pudessem.
— Ok, ok. Vão tomar água para não machucarem a garganta, meus cantores mega talentosos - mandou assim que deixou o violão de lado.
As crianças saíram correndo, rindo alto enquanto apostavam corrida até o bebedouro da cozinha, que costumava ter a água mais fresca de todo o instituto. Os dois mais velhos ficaram para trás, encontrando-se enfim - quase - a sós. sorriu, aplaudindo lentamente. fez uma reverência desajeitada.
— Tenho que admitir que você se saiu bem melhor do que eu esperava - ela comentou.
— Não acredito que você realmente menosprezou o meu talento.
— O seu talento eu jamais questionaria. Agora, sua cara de desespero nos primeiros dois minutos em que todas as crianças começaram a olhar para você realmente foram uma cena impagável.
— Bom, meu público geralmente está bêbado e não alerta como se tivesse acabado de tomar três litros de suco cheio de açúcar.
meneou a cabeça, sendo obrigada a concordar.
— Eles tinham mesmo praticamente acabado de lanchar. Glicemia infantil é um negócio assustador.
— Você se dá bem com eles - ele constatou a maior obviedade da tarde. — Dá para perceber que eles te adoram.
— E a recíproca é totalmente verdadeira. - Ela tinha o sorriso mais puro e verdadeiro do mundo no rosto. — Participar desse programa com eles foi a decisão mais acertada que eu tomei na vida.
— E lá vem eles - comentou ao ver os pequenos correndo de volta para dentro.
— Do que podemos brincar? - Lenny questionou, pulando de um pé para o outro enquanto aguardava uma resposta.
— Não sei - a mais velha disse. — Que tal se o escolher hoje?
As crianças o encararam, aguardando.
— Ah, eu não sei - tentou driblar o constrangimento. — Faz muito tempo que eu não faço nada do tipo. Acho que nem conheço mais brincadeiras infantis.
“Que não envolvam álcool”, completou mentalmente.
— Para com isso - insistiu. — Você é quase tão criança quanto eles. Deve se lembrar de alguma coisa de que gostava de brincar quando menor.
— Vou ser obrigado a refrescar sua memória sobre o fato de você ser só três anos mais velha do que eu. Mas, sim. Pensando bem, acho que tem uma coisa.
tinha quase certeza do que tinha visto de relance no depósito quando foi buscar o violão. Correu para dentro, sorrindo vitorioso ao confirmar que seu cérebro ainda não tinha chegado à fase de lhe pregar peças. Com algum esforço, puxou uma caixa cheia de bolas emborrachadas de uma prateleira e seguiu até a área de convivência ao ar livre.
— A minha brincadeira favorita sempre foi queimada. Vocês sabem jogar?
Todos concordaram, enquanto se apressavam a pegar uma bola para si.
— Ei, ei! Mas nós nem dividimos os times ainda!
— Já tentamos isso antes - explicou. — E eu tenho uma má notícia.
— Atacar! - Kieran bradou, quase como um guerreiro romano em um filme antigo com muito sangue e pouca confiabilidade histórica.
Os braços passaram a funcionar como catapultas, arremessando as bolas da melhor maneira que conseguiam na direção do visitante e dono da ideia. cobriu o rosto, virando-se de lado para tentar, inutilmente, desviar-se da saraivada de bolas que vinham em sua direção. As gargalhadas aumentavam a cada vez que uma das esferas o atingia, sendo acompanhadas por gritos estridentes ocasionais.
Quando ele finalmente conseguiu passar dez segundos sem ser atingido como se tivesse um gigantesco alvo vermelho bem no meio do peito, retomou sua postura normal, virando-se de frente para o exército mirim.
— Acabaram?
— Não - respondeu, jogando a bola para o alto e a agarrando de novo na sequência. — Falta um arremesso.
— Você não teria coragem.
— Dá para perceber que ainda estamos nos conhecendo. Ou você saberia perfeitamente que eu passei os últimos minutos esperando ansiosamente por esse momento.
Com um movimento rápido dos ombros, arremessou a bola em sua cabeça, fazendo todas as crianças gritarem em comemoração e irem até ela, cumprimentá-la com um high-five.
não pôde evitar a risada, enquanto tentava arrumar os próprios cabelos e ajeitar a camisa.
— Não é exatamente assim que se joga. Mas fico feliz de proporcionar esse divertimento às minhas custas.
— É que assim é bem mais legal - Bridget caçoou.
— Sou obrigada a concordar - emendou a mulher. — E, infelizmente, é minha hora de ir embora, então venham se despedir da gente.
As crianças a rodearam, esmagando-a por todos os lados e direções em um abraço coletivo.
— Vem, tio - Naomi chamou-o, chacoalhando a mãozinha.
sorriu para ele, assentindo com uma piscadela para que ele se aproximasse.
Após alguns instantes assim, as crianças saíram correndo de novo, deixando apenas Kieran para trás com os adultos.
A mulher ajoelhou em sua frente, arrumando uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.
— O que foi, querido? Aconteceu alguma coisa?
— Ele vai voltar?
olhou do menino para , sem entender exatamente o que ele queria dizer.
— Você prefere que ele não volte? - Perguntou, tentando ser o mais cuidadosa possível com as palavras.
O rapaz sentiu a inspiração mais pesada e difícil do que de costume, interrompida pelo bolo que tentava se formar em sua garganta. Não estava preparado para enfrentar aquele tipo de rejeição e, pela primeira vez, sentiu medo genuíno por algo que nem sabia direito o que era. Não sabia porque se importava com aquilo, mas o fazia de corpo e alma. Ver todos tão felizes, animados, brincando e cantando juntos e, acima de tudo, como faziam abrir um sorriso enorme, pendurado de uma bochecha a outra, tinha trazido paz ao seu coração e uma vontade avassaladora de fazer parte daquela felicidade com eles.
— Não. É que as pessoas vêm e quase nunca voltam. E ele é legal.
sorriu ternamente para o menino, abraçando-o com força.
sentiu o peso no peito aliviar de uma só vez; a expiração saindo de sua boca como um pássaro agitado sendo finalmente libertado de sua gaiola.
— Eu vou voltar. Pode ter certeza - assegurou. — E da próxima vez, você escolhe a música.
O garoto concordou, sorrindo e saiu correndo atrás dos amigos.
— Dá para entender porque você é tão apegada a esse lugar - comentou, vendo a mulher secando delicadamente a umidade que emanava com discrição pelo canto dos olhos.
— Eles mexem muito com a gente - admitiu. — Agora, vamos tomar um café? Lembro de ter prometido essa parte como barganha.
🎼
Com dois brownies e dois cafés com creme, e se sentaram em uma mesa para dois, próxima à janela. Alguns adolescentes passaram do lado de fora, andando de bicicleta. Duas crianças brincavam com carrinhos na calçada em frente à loja dos pais. O sol já estava em seu estágio poente, deixando o céu lá fora em um tom agradável de laranja.
— Eu avisei que eles iam te adorar - comentou, comendo um pedaço de seu doce.
— Eu estava me cagando.
— Eu sei. E vi como ficou preocupado de novo quando estávamos saindo.
— O garoto definitivamente me assustou - comentou, deixando uma risada nervosa escapar.
— Kieran é bem sincero quanto aos sentimentos dele. Sempre foi. O instituto nasceu de uma ação colaborativa com um orfanato, sabe? Depois que nós juntamos outras crianças que também poderiam ser beneficiadas por essa oportunidade de lazer e tudo mais. Mas essa é uma das grandes causas desse medo deles sobre as pessoas aparecerem, brincarem, virarem as costas e nunca mais voltarem. Ele só não queria que você fosse mais um. Nós não queríamos.
concordou.
— Não vou. Só me convidar que estarei lá.
— Manterei isso em mente.
— E da próxima vez levo o meu violão. Me senti um pouco estranho tocando com outro.
— Não deu para perceber. Você tocou maravilhosamente bem. E sua voz é incrível. É mesmo um desperdício que esteja tocando só em bares e não em looping no spotify de todo mundo.
deu um sorriso presunçoso.
— E isso porque você disse que não se impressionava fácil.
ergueu o dedo do meio para ele, enquanto levava a caneca fumegante de café aos lábios.
— Já me arrependi do elogio. Retiro o que eu disse. Você tocou como se nunca tivesse visto um instrumento de cordas na vida e cantou como se tivesse uma vitrola quebrada e arranhada na garganta. Horrível. Sinceramente, já deveria ter procurado outro rumo para a sua carreira.
— Acho que não. Eu sou maravilhoso e você sabe. E isso porque nem me ouviu cantando Arctic Monkeys ainda.
— Vou agir como se não estivesse ansiosa para não inflar mais ainda esse seu ego gigantesco. Tenho certeza de que vai ser uma grande merda.
— Obrigado pela confiança. Bom saber que você decidiu ser mais que minha amiga e se tornar também uma fã.
— Bom, sua irmã não estava errada quando disse que você era insuportável.
— E mesmo assim ela me ama. Quem sabe logo logo vocês também não terão isso em comum.
🎼🎼🎼
As linhas contornadas por lápis preto esfumado marcavam seus olhos com uma dureza cortante. tinha encontrado uma camisa antiga preta com alguns cortes e alfinetes segurando as mangas e seus coturnos escuros. Ao entrar na casa de shows, soube que estava igualzinha à sua própria versão de dez anos antes. Existia uma nostalgia reconfortante e prazerosa em se colocar novamente naquela posição, com aquele estilo. Fazia com que ela se lembrasse de todas as loucuras que tinha feito ao tentar conhecer seus rockstars favoritos. Com certeza não esperava estar, aos vinte e oito anos, retornando às suas origens. Mas valia a pena. Mal tinha chegado e já estava adorando viver isso por causa dele.
— Meu Deus, eu não acredito no que meus olhos estão vendo! - Não precisava de muito esforço para reconhecer aquela voz. — Você está surpreendentemente maravilhosa! Eu não esperava isso.
— Tentei vir um pouco mais a caráter - explicou-se. — E também é meio que uma piadinha porque seu irmão decidiu que eu sou fã dele e não me deixa em paz sobre isso.
— Então você se vestiu como tal. Meu Deus, vocês são tão perfeitos um para o outro que me dá ânsia. Mas de um jeito fofo - emendou, fazendo a amiga rir.
— Você é ridícula.
— Não. Eu sou uma irmã e amiga perfeita e, futuramente, também cunhada. Vocês vão perceber que a minha intervenção foi a melhor ideia que eu tive na vida. E eu sou um poço de boas ideias, então isso realmente significa muito.
— Sou obrigada a concordar que a intervenção acabou sendo bem… proveitosa.
— Que nojo, eu não quero saber do sexo de vocês - reclamou, fazendo uma careta. — Ótimo. Agora vou ficar com essa imagem na cabeça.
— Eu nem falei de sexo, foi você quem pensou. Só estou comentando que foi bom conhecê-lo. Ele é um cara legal. Gosto de passar o tempo com ele.
— Que bom que não fui eu quem te contou que ele disse exatamente a mesma coisa de você.
deu um sorriso de canto.
— Acho que nós dois nos damos bem.
— Espero ser a madrinha do casamento - a mulher cantarolou. — E sobre aquela outra coisa?
A amiga sacudiu a cabeça em negação.
— Ainda não, então vou precisar que pelo menos esse segredo você guarde. Mas acho que consigo no próximo mês. - Expirou com força. — Acho que vai dar certo.
— Vamos torcer.
A conversa das duas acabou sendo interrompida por uma voz alta e exagerada nos alto-falantes.
— Senhoras, senhores e pessoas que não se encaixam em nenhuma dessas nomenclaturas. Com vocês, .
O rapaz subiu ao palco, acenando para o público com uma mão, enquanto a outra sustentava o braço da guitarra. Seu sorriso ao encontrar e na plateia foi largo o bastante para superar os holofotes em cima dele e de sua banda improvisada.
— Boa noite a todos e obrigado por virem. Bem, nossa setlist de hoje começa com uma canção em homenagem a alguém bastante especial. Essa é para Arabella.
— Vou assumir que essa seja você - sussurrou, recebendo um tapa de e um gesto para que ficasse em silêncio.
Com os primeiros acordes, logo algumas pessoas já estavam pulando, abrindo os celulares para gravar stories para o instagram ou preparando-se para cantar.
não poderia dizer que não tinha literalmente sonhado com aquele momento durante os últimos dias. Mesmo com todo o trabalho criativo durante o seu sono, contudo, nada poderia tê-la atingido mais do que aquele momento ao vivo e a cores.
A voz de soava ainda mais rouca, afinada e gostosa do que ela se lembrava, fazendo cada uma de suas terminações nervosas parecer pulsar em resposta aos estímulos auditivos, percorrendo-lhe como uma corrente elétrica. Seus dedos ágeis moviam a palheta azul escura pelas cordas da guitarra. A mulher engoliu em seco, tentando ignorar o fato de que seu foco havia deslizado sorrateiramente para as mãos dele, viajando por caminhos e pensamentos impróprios demais para o ambiente público. Não era à toa que músicos eram oficialmente uma ameaça à sanidade humana.
Deus, era difícil demais tentar montar uma linha de raciocínio coerente. Por sorte, a música sempre foi algo para se sentir muito mais do que para se pensar.
— The horizon tries but it's just not as kind on the eyes as Arabella
Cada palavra era entoada com precisão, enquanto seus olhos pareciam cortá-la de uma forma lenta e sensual. Existia alguma coisa na voz de que fazia sentir um calor intenso vagando por cada um de seus poros. Seu olhar fixo deixava bem claro que ele não se sentia muito diferente.
— Arabella's got a seventies head, but she's a modern lover
It's an exploration, she's made of outer space
And her lips are like the galaxy's edge
And her kiss the color of a constellation falling into place
Se aquela já era oficialmente uma de suas músicas favoritas da vida antes daquela noite, agora ela tinha conseguido atingir algum nível estratosférico de admiração. Precisaria buscar no dicionário uma palavra nova, mais intensa que adoração para representar o que se passava em sua cabeça.
Tudo piorou - ou melhorou - drasticamente quando deu início ao solo de guitarra. A luz amarelada atingia a lateral de seu rosto, evidenciando a mandíbula travada e todos os músculos relacionados retesados ao seu redor. Uma pequena gota de suor deslizava pela linha de seus cabelos, enquanto ele se esforçava em seu solo, obtendo as reações justas de seu público.
— Just might’ve tapped into your mind and soul
You can't be sure
Os gritos e aplausos foram ensurdecedores, potencializados pelo ambiente mais fechado. procurou-a no meio dos demais, lançando uma piscadinha, enquanto dava uma risada sacana e passava a mão nos cabelos. Ridículo. Ele sabia perfeitamente o que estava causando e estava se divertindo às suas custas. Sorte a dele que ela também pretendia tirar seu próprio proveito mais tarde.
Após tocar mais algumas músicas e não desistir por mais de alguns segundos de desviar os olhos de sua fã mais interessante, deixou o palco, recebendo os cumprimentos do público no caminho.
— Eu estou um pouco suado - reclamou, aproximando-se das duas mulheres.
— Tenta ficar aqui embaixo no meio de tanta gente pulando e vai perceber que não é o único - completou, puxando o irmão para um abraço. — Foi ótimo mesmo.
O rapaz soltou a irmã, abraçando sua amiga com força e deixando um beijo que, por pouco, não escapou da bochecha, acertando o canto dos lábios.
— Promessa cumprida - brincou.
— Bom saber que você é um homem de palavra, mini .
riu alto.
— Mini , adorei. Vou começar a usar para te lembrar que eu sou a original e você é… Bem, seja lá o que vem na sequência.
— Já ouviu falar que primeiro vem o rascunho e depois a obra-prima?
A mulher sorriu, piscando rápida e repetidamente; os cílios batendo uns nos outros carregados de toda a sua ironia.
— No nosso caso, acho que estamos mais para obra-prima seguida de uma tentativa de réplica bem mal-feita.
— Deus, por favor, me perdoe por todas as vezes em que eu disse que queria um irmão - se intrometeu. — Eu não sabia o que dizia.
— Você não precisa. - deu de ombros. — Somos basicamente irmãs que não compartilham hereditariedade ou a parte fraternal chata e insuportável. Existem regras que obrigam irmãos a serem chatos com o outro. Nós podemos fugir delas.
— Bem melhor - concordou, grata por ter a amiga.
Os três se afastaram da multidão, pedindo algumas cervejas enquanto jogavam assunto fora e discutiam sobre toda e qualquer coisa. Davam-se tão bem que chegava a parecer que tinham se conhecido por toda a vida ou, para quem assim acreditasse, talvez tivessem se cruzado em tempos anteriores, tendo a familiaridade se marcado como uma tatuagem eterna e imutável.
— Bom, infelizmente preciso ir - disse. — Por favor, não chorem. Sei que minha ausência será sentida, mas viajo amanhã cedo e preciso dormir.
— Avisa quando chegar de viagem - pediu.
— Pode deixar - a outra garantiu, levantando-se.
— Ah, para ela você avisa? - perguntou, sentindo-se verdadeiramente chocado e até mesmo um pouco ofendido. — Bom saber.
— Oh, coitado! - Ela deu um beijo estalado na bochecha dele, enquanto bagunçava seus cachos. — Não precisa ficar chateado. Prometo que te mando um cartão postal.
— Eu te odeio. Boa viagem!
acenou, jogando beijos ao ar enquanto abandonava o estabelecimento, deixando os dois rindo para trás.
deu um longo gole em sua cerveja, enquanto retornava seu olhar para . O jeito que aquelas íris luminosas a fitavam parecia furá-la como mil agulhas. Não sabia porque pagar por sessões de acupuntura quando poderia ter aquilo de graça.
Normalmente, teria se cansado daquele joguinho de sustentação infinita de olhares. Não era do tipo que abaixava a cabeça para os outros, mas também estava longe de ter paciência para aquele tipo de atenção. Mas não era isso que sentia com ele. Não se sentia constrangida. Sentia-se desejada. E, se ele estava, como costumavam dizer, despindo-a com os olhos; bom, então ele poderia muito bem também fazê-lo logo com as mãos.
— Gostei da roupa. - O olhar dele desceu por seu colo. Um sorriso se formou em seus lábios, deixando escorrer o primeiro esboço de malícia.
— Gostei da música - ela emendou. — Nunca tinham dedicado nada para mim.
— Pois deveriam, Arabella.
Ela sentiu um arrepio correndo sua espinha, enquanto virava o último gole de sua bebida.
— Acho que vou pedir a conta.
O rapaz assentiu, chamando o garçom. Pagaram cada um a sua parte, com xingando por ter largado sua parte da conta para trás para ele. Tão típico. Se ela realmente não viajasse tanto, ele começaria a suspeitar que aquele era apenas um método para escapar mais cedo dos lugares e fazer com que alguém pagasse para ela.
Saíram pela porta dos fundos do estabelecimento, passando pela sala em que as bandas que tocavam deixavam os instrumentos. pegou a guitarra e guiou até o lado de fora, com a mão em sua cintura.
— Bom - ela começou —, foi uma noite incrível. Obrigada mesmo por ter me convidado.
— Fico feliz que tenha gostado. Mas tem mais uma coisa que eu quero fazer.
Ele levou a mão livre à nuca dela, aproximando seus rostos a fim de colar seus lábios. correspondeu imediatamente, dividida entre toda a ânsia e a expectativa da espera com uma vontade enorme de sorrir.
O beijo que havia começado calmo, logo ganhou força e agilidade, idealizando em movimentos e aproximações contínuas tudo o que tinham acumulado em um espaço de tempo tão curto. Quase tão curto quanto o espaço que faltava entre a mão dele, deslizando pela cintura dela, para alcançar a barra de sua blusa.
— Quer ir para a minha casa?
A pergunta de saíra ofegante, verbalizando a única coisa que seria capaz de dizer naquele momento. Quando beijou-a avidamente mais uma vez, ela soube perfeitamente a resposta.
🎼🎼🎼
— Onde é que você está me levando?
— , não é possível que você seja incapaz de entender o conceito de surpresa - ele reclamou.
— Não é possível que você seja incapaz de entender o conceito de que eu sou ansiosa demais para saber lidar com surpresas.
Vendada, a mulher acabou tropeçando em uma pequena elevação da calçada, soltando cinco palavrões em sequência para xingar o namorado que só sabia rir da situação.
— Meu Deus, eu te odeio tanto.
— Nada disso. Você me ama incondicionalmente.
— Se não tirar essa porra dos meus olhos logo, vou acabar tendo que repensar isso.
gargalhou às suas costas, obrigando-a a revirar os olhos, mesmo que ninguém pudesse ver sua revolta e irritação. passou as palmas das mãos pelas laterais da calça, tentando se livrar um pouco do suor incômodo que insistia em denunciar o seu nervosismo.
— Não tem problema. Nós já chegamos.
Ele desamarrou o tecido que cobria os olhos dela, permitindo que ela, finalmente, visse onde estavam. sorriu imediatamente, esquecendo-se da inegável vontade de esganá-lo. Conhecia aquela fachada muito bem.
— Feliz aniversário de namoro - ele disse baixinho, ostentando aquele sorriso que era, definitivamente, a coisa que ela mais amava no mundo todo.
Muita coisa havia mudado no decorrer daquele ano em que haviam começado a namorar. tinha, de fato, conseguido o que comentara com . Havia marcado para o rapaz uma reunião com o vice-presidente de uma gravadora que ela conheceu em uma das campanhas de delineador da Eyeko. Pequenas vantagens do choque de interesses dos dois mundos.
mostrou algumas músicas de composição própria - incluindo uma chamada ‘Adore You’ que só descobriu depois ter sido a musa inspiradora - e explicou o que esperava de sua carreira como artista. O homem concordou com tudo, afirmando que, com a voz, a personalidade e a boa aparência, conseguia enxergar perfeitamente um espaço para ele no mercado.
Com isso, havia conseguido seu tão sonhado contrato e passado dias a fio emocionado, com um sorriso que não saía do rosto. acabou perdendo as contas de quantas vezes mandou que ele parasse de agradecê-la sem parar.
E ela esteve por perto durante todo o percurso. Passava no estúdio ao fim de seu próprio expediente, vendo as últimas gravações do dia; viveu as noites em que ele se levantava repentinamente da cama de madrugada porque uma ideia de composição nova tinha surgido; os surtos quando ‘Adore You’ tocou pela primeira vez na rádio local, fazendo os dois chorarem abraçados, enquanto pulavam, até desidratarem. Cada pequeno passo tinha sido dado por ambos. Uma mão sempre segurando a do outro.
E, depois de tanta coisa, ali estavam. Bem em frente ao pub que marcava aquela história.
— Queria te fazer uma surpresa, mesmo que você tenha passado esse ano inteiro reclamando sem parar que detestava. Bom, então eu pensei: o que seria bom o suficiente, mas sem que ela me odiasse depois por ser muito exagerado? Achei que voltar ao lugar onde nos conhecêssemos fosse algo bacana.
— É claro que é. Eu adorei, de verdade. Já faz tanto tempo. Acho que nunca vi esse lugar vazio desse jeito. Talvez seja o horário.
fez uma careta.
— Na verdade, eu meio que reservei o salão inteiro. Deve ser isso.
— Deve ser isso? - perguntou um pouco mais alto. — , isso é exagerado!
— Você me odeia?
A mulher riu, balançando a cabeça em negação. Não conseguia se irritar quando ele fazia aquela cara.
— Obrigada pela surpresa. De verdade.
— Vamos entrar, então?
se apressou a puxar a cadeira dela, tentando ser o mais cavalheiro possível. Pediram os pratos e uma taça de champagne - pela comemoração, como ele tinha afirmado.
Conversaram durante todo o jantar, compartilhando não apenas o que tinha acontecido no dia, como as lembranças que o balcão do bar lhes trazia. estava realmente grata pelo caminho que as coisas tinham tomado. Aquele era, definitivamente, um paralelo de ‘antes e depois’ a que ela poderia assistir anualmente, como em um álbum de fotografias. E esperava, do fundo do coração, sentir-se ainda mais nostálgica e amada quando chegasse o ano seguinte.
— Eu me lembro perfeitamente do momento exato em que você atravessou aquela porta, pisando no meu coração com aquelas botas que você tanto adora - brincou.
— Como você é dramático - reclamou, revirando os olhos com graça.
— Existe uma palavra em espanhol, que eu descobri recentemente - ele prosseguiu. — E eu fiquei tão impressionado com o quanto o significado dela cabia para mim que acabei adotando-a como minha palavra de língua estrangeira favorita.
— Não acredito que ela conseguiu superar ‘croissant’.
O rapaz riu abertamente.
— Para você ter dimensão do impacto da situação.
— E você vai me contar que palavra é? Ou vai me deixar curiosa para saber o que mexeu com você desse jeito?
— Quando você chegou, eu não estava mesmo em um dos meus melhores momentos emocionais. E eu me lembro claramente de como achei estranho me sentir tão feliz sem esforço perto de alguém que eu literalmente tinha acabado de conhecer.
A mulher sorriu de canto, enquanto ele respirava fundo, buscando as palavras seguintes para dar continuidade ao pseudo discurso. Sempre se espantava com o quanto ele era lindo, mas o brilho em seus olhos, voltados apenas para ela, tinha sido capaz de torná-lo, inexplicavelmente, ainda mais querido em seu coração.
— Foi instantâneo. Assim que você sorriu para mim, eu soube que não importava o que viria depois. Naquele exato momento, quando eu te vi pela primeira vez, eu percebi que iria querer estar ao seu lado por toda a minha vida. A palavra que define exatamente essa sensação, em espanhol, é ‘flechazo’.
Ele levou a mão ao bolso, retirando a pequena caixinha e arrancando dela um suspiro surpreso.
— E, em nome do nosso flechazo, , eu queria te perguntar se você aceita se casar comigo.
— É claro que sim - respondeu com a voz chorosa, praticamente saltando da própria cadeira para esmagá-lo em seus braços e lágrimas.
encaixou o anel prata com um pequeno diamante em seu dedo. retirou-o do dedo e abriu um sorriso olhando para a peça, antes de colocá-la de volta em seu anelar.
— Você gravou ‘flechazo’ no anel.
— E a data em que nos conhecemos - completou. — Espero que não tenha achado cafona demais.
Ela meneou a cabeça, sentindo os olhos ainda levemente embaçados pelas lágrimas.
— Está no nível perfeito de cafonice.
pediu uma sobremesa para dividirem e pagou a conta na sequência. Deixaram o estabelecimento de mãos dadas, balançando delicadamente com a brisa leve que permeava a noite de Manchester.
— No que você está pensando? - perguntou, aproximando-se para beijar a lateral da cabeça da noiva.
— Em quais piadinhas completamente vergonhosas eu posso fazer na hora dos votos no casamento.
— A parte boa de preparar um pedido de casamento é que eu já tive bastante tempo para pensar nessas coisas. Já tenho pelo menos umas duas páginas inteiras de conteúdo embaraçoso.
— Se eu não te amasse tanto, quebraria sua cara.
— Eu sou bonito demais para você ter coragem de fazer isso. E eu duvido que você não sentiria falta dos meus beijos e da minha língua na sua…
— ! - ralhou, interrompendo-o. — Já chega, estamos em um ambiente público. Guarde o linguajar para mais tarde.
O homem riu alto, apertando sua mão de leve, enquanto seguiam até o carro.
— Acho que podemos adiantar o mais tarde - sugeriu, com um sorriso sacana. — Quer ir para casa?
— Sabe que esse é o tipo de pergunta que você nem precisa me fazer.
assentiu, com um sorriso, enquanto ligava o carro. estendeu a mão direita, observando o anel de noivado perfeitamente encaixado em seu dedo, brilhando como a fagulha de vida e amor que tinha existido entre eles, inexplicavelmente, desde o primeiro instante. Aquele era, sem sombra de dúvidas, o melhor dia de toda a sua vida. Até deixar de ser.
Sentiu seu celular vibrando na bolsa, pegando-o rapidamente para ver que nome brilhava na tela.
— Ah, é a sua mãe - disse para o noivo.
— Coloca no viva-voz - ele sugeriu, sem tirar os olhos da rua. — Vamos dar a notícia a ela juntos. Dona vai gritar de felicidade até incomodar os vizinhos.
— Oi, ! - cumprimentou, sem conter um décimo sequer de sua explosiva animação.
— Ah, oi. O está com você?
A mulher murchou ao ouvir o tom sério e nada recíproco na voz da sogra.
— Eu estou aqui, mãe - ele respondeu, já sentindo o coração acelerar no peito. — Aconteceu alguma coisa?
Alguns instantes de silêncio mortal pesaram sobre eles antes que ouvissem o choro baixo do outro lado da ligação.
— Mãe, o que aconteceu? - repetiu, tentando manter a voz firme apesar da insistência do medo que lhe assolava para quebrá-la.
— A sua irmã sofreu um acidente - despejou. — Estava voltando de uma festa com o namorado. Aparentemente, tiveram de desviar rápido de um outro carro que vinha na mão errada e acabaram batendo em uma árvore. Ele morreu no local, mas ela…
já sentia a gola da blusa completamente ensopada pelas lágrimas silenciosas que escorriam como em um riacho. Aquilo não poderia estar acontecendo. Não era possível.
permanecia quieto, rígido, apertando o volante com mais força entre os dedos, como se aquilo fosse suficiente para aliviar o turbilhão imparável de coisas que se debatiam e giravam dentro dele como uma máquina de lavar roupas.
— Mãe, onde você está?
— No North Manchester General Hospital. Ela foi direto para cirurgia. Estou aqui fora esperando e…
— Estamos indo para aí - ele interrompeu, realizando uma curva brusca para a esquerda e ignorando completamente todos os limites de velocidade pelo caminho.
passou todo o trajeto tentando conter os próprios soluços, direcionando toda a sua energia em preces desesperadas, implorando para qualquer um que porventura a ouvisse que não levasse deles. Não era justo. Deus, nada daquilo era justo.
desceu do veículo apressadamente, com a noiva correndo logo atrás dele ao adentrarem o hospital. Seus olhos logo encontraram a mãe encolhida em uma poltrona, com o rosto inchado e as mãos trêmulas entrelaçadas sobre o colo.
— Alguma notícia?
ergueu o olhar para eles, extinguindo qualquer mísera possibilidade de que não tivessem percebido quão desgastada e destruída ela estava.
— Nada ainda. Só me mandam esperar, mas ninguém me diz nada sobre a minha filha.
começou a andar em círculos, pisando com força, enquanto mexia nos cabelos com certa violência. sentou ao lado da sogra, tomando sua mão entre as dela, assegurando que estava ali. Para o bem ou para o mal, viesse o pior ou o melhor, estavam juntas. Contudo, sinceramente, ela não fazia ideia do que aconteceria se viesse o pior. Não tinha condições psicológicas para sequer pensar sobre essa possibilidade.
— , meu amor, senta - ela sugeriu.
— Eu não consigo fazer isso agora - ele respondeu simplesmente, sem parar de caminhar. — O que exatamente aconteceu?
pareceu desconcertada.
— O que eu disse para vocês ao telefone. Aparentemente, vinha um outro veículo bem rápido na contra-mão, com os faróis desligados. O amigo com quem ela estava tentou desviar rapidamente e o carro acabou perdendo o controle e batendo em uma árvore.
— Ele estava bêbado?
— O amigo dela? Não - ela prosseguiu. — Conversei com antes de ela sair. Ela disse que tinha um amigo que não bebia e ele a daria uma carona para casa depois, que eu não precisava me preocupar.
parou, de repente, assimilando as palavras.
— E o outro cara?
deu de ombros, sentindo a fraqueza nos braços por sustentar sobre os ombros toda aquela dor dilacerante da espera e da incerteza.
— Não sabemos. Os policiais acham que sim por causa da forma que ele estava dirigindo, mas não conseguiram parar o motorista para saber.
— Sinceramente, talvez seja melhor eu nem saber.
Quando um médico finalmente se aproximou, e se levantaram de supetão, apertando as mãos uma da outra com mais força.
— Vocês são a família de ?
assentiu com a cabeça, incapaz de responder verbalmente através do gigantesco nó que estrangulava sua garganta.
— Eu sinto muito…
— Não - murmurou, sentindo o chão embaixo de seus pés sendo arrancado com força.
— Os ferimentos dela eram graves demais. Nós tentamos de tudo.
— Claramente não tentaram o suficiente - gritou desesperadamente. — Vocês precisam dar um jeito. Como podem simplesmente desistir da minha irmã? Ela vai ficar bem, eu sei disso.
— Senhor, eu entendo a sua frustração e a sua dor, mas o acidente foi muito grave. Ela perdeu muito sangue e alguns de seus órgãos foram dilacerados de forma irreparável. A equipe realmente fez todo o possível para salvá-la, mas, infelizmente, ela faleceu. Sinto muito pela perda de vocês.
O rosto do rapaz ficou vermelho, os olhos marejados e desesperados. Sua cabeça balançava freneticamente, sem qualquer disposição a acreditar que algo tão absurdo quanto aquilo realmente estava acontecendo.
— Não, não, não - ele sussurrava repetidamente. — Isso tem que ser alguma brincadeira de mau gosto, não é possível.
tinha se sentado novamente, encaixando a cabeça entre as mãos, enquanto chorava copiosamente pela perda da filha. , com seu coração também em frangalhos, decidiu engolir a dor insuportável que lhe consumia, enquanto decidia qual dos dois consolar.
estava devastado, desesperado, desacreditado, incontrolável. Não saberia encontrar palavras capazes de definir o que ele sentia. Nada no mundo jamais se compararia àquela dor.
— Não é verdade, não é verdade.
o abraçou, enquanto ele permanecia inquieto em seus braços, o coração batendo desesperadamente contra aquele aperto irrefreável. O mundo parecia prestes a engoli-lo.
— Não pode ser. - Ele finalmente liberou um soluço alto, quando as lágrimas começaram a vir. Apertou a noiva com força, permitindo-se desmontar. — Nós estávamos tão felizes, não pode ser.
— Eu sei, meu amor, eu sei - ela disse, tentando lutar contra as próprias lágrimas.
Ela sabia. Entendia perfeitamente a sensação de ter o melhor dia de sua vida se tornando drasticamente o pior de toda a história. Não era justo. Não era certo. E ela queria intensamente, do fundo de seu coração, que fosse tudo um pesadelo horrível do qual poderia fugir para sempre na manhã seguinte. Mas a dor que sentia lhe dizia que aquilo era tudo real. Real demais. E daquele pesadelo eles não conseguiriam acordar por muito tempo.
🎼🎼🎼
chegou mais tarde da Eyeko naquele dia. Tinha avisado que provavelmente o faria, pois precisava fechar com a equipe de mídias sociais os intervalos e padrões de divulgação e impulsionamento da nova linha de rímel de extensão máxima à prova d’água. Não que ele tivesse demonstrado esboçar qualquer reação àquilo. Desde que falecera, o caçula vinha se comportando praticamente como um morto-vivo, blindado a qualquer tipo de demonstração de sentimentos e emoções. Tinha vivido o luto intensamente, colocando tudo para fora durante os três primeiros dias, mas, depois disso, se trancou dentro das barreiras e muralhas que construíra em torno de si.
— , cheguei - ela avisou da entrada da cobertura em que moravam.
Não recebeu resposta, enquanto deixava as chaves do carro na cestinha do aparador. Tirou os sapatos como de costume, deixando-os na entrada.
não estava na cozinha e nem na sala de estar, o que só lhe dava duas opções: ou ele estava dormindo mais cedo - e ela duvidava muito dessa possibilidade, já que ele mal parecia dormir de madrugada - ou o ciclo estava se repetindo.
Caminhou a passos pesados até o pequeno bar que tinham montado no apartamento, encontrando a infeliz cena com a qual não era capaz de se acostumar, independentemente da frequência com a qual ela acabava ocorrendo. O homem estava sentado de uma forma totalmente torta e pouco confortável sobre a banqueta, o corpo arremessado sobre o balcão. logo viu a garrafa de whisky caída e vazia.
— Ai, amor, de novo - lamentou-se, sentindo um aperto no coração.
Não era a primeira vez que aquilo acontecia nem durante os últimos dez dias, quem dirá nos últimos quatro meses.
sentia seu coração se quebrar em milhares de pedacinhos pontiagudos, dilacerando-a por dentro. Era doloroso demais vê-lo daquele jeito, tão bêbado e acabado. Queria ser capaz de tomar para si ao menos uma parte de sua dor. Aceitaria qualquer coisa que pudesse aliviá-lo daquele sofrimento, mesmo que já tivesse sua própria cota de dor naquele processo de luto.
Respirou fundo, antes de encostar nele. Não tinha força alguma para arrastá-lo até o quarto para que deitasse corretamente e descansasse.
— … , por favor, levanta. - Ela o sacudiu com a maior delicadeza possível.
Após algumas tentativas, ele ergueu a cabeça, esfregando os olhos pesados.
— O que foi?
sentiu o estômago embrulhar com o cheiro intenso do álcool.
— Vamos para a cama, para você dormir melhor.
Ele aceitou a mão oferecida, apoiando-se nela enquanto caminhava para o quarto, um passo incerto atrás do outro. Ao menos, estava consciente o suficiente para se lembrar de escovar os dentes e se trocar antes de permitir que o corpo despencasse contra o colchão, dormindo praticamente na sequência.
ligou o chuveiro sobre os próprios ombros, deixando que a água quente criasse ao menos a ilusão de poder lavar sua angústia. Quando respirou fundo, o choro veio lhe fazer sua rotineira companhia. Não aguentava mais. Aquela situação era simplesmente insustentável. Já tinha dado espaço demais.
Com o coração apertado, decidiu que, pela manhã, teria que fazer alguma coisa.
🎼
acordou sentindo as consequências de ter, mais uma vez, bebido demais. Ao decidir ir até a cozinha, a fim de devolver o mínimo de hidratação, interrompeu-se no caminho, encontrando sentada em uma poltrona. As pernas cruzadas acima do assento e as olheiras profundas marcando a expressão de quem tinha passado a noite em claro pensando demais.
— Não vi que você já tinha acordado - ele comentou simplesmente, esfregando as têmporas.
— - ela disse, a voz mais firme do que esperava. — Nós precisamos conversar.
— Não olhe para mim desse jeito. Pode falar o que quiser, mas não me venha com esse olhar. Eu não quero a sua pena.
respirou fundo, corrigindo sua postura ao máximo para tentar sugar qualquer oportunidade de ganhar confiança em suas palavras.
— , você não pode beber desse jeito. Não faz nada bem para a sua saúde e você sabe muito bem disso.
— Não precisa se preocupar. Estou bebendo em casa para não cair morto na sarjeta ou correr o risco de causar a morte da irmã de alguém.
A mulher tentou conter as lágrimas.
— Você acha que ela iria gostar de te ver assim? Ser praticamente um alcoólatra está diminuindo sua dor?
abaixou a cabeça, engolindo em seco, sem coragem de encará-la ao admitir:
— Não. Mas, pelo menos, eu apago.
— , não é isso que iria querer para você. Óbvio que nós sentimos a falta dela. Todos estamos sofrendo com o luto, mas já se passaram quatro meses. Você precisa começar a trabalhar esse luto de formas menos destrutivas. A gente pode procurar ajuda, sabe? Talvez terapia seja uma opção.
A risada irônica saiu quase como um rosnado.
— Você não tem o direito de me mandar superar. Eu perdi a minha irmã, caralho!
— É por isso que eu disse trabalhar o luto e não superar. Não se supera uma coisa dessas. A dor diminui, mas ela não vai embora.
“E você pode falar o quanto quiser sobre como perdeu a sua irmã. Eu não estou tentando, e nunca tentei, colocar a minha perda em pé de competição com a sua. Mas ela era o mais próximo que eu tive de uma relação fraterna. Você não é o único sofrendo, . Eu só estou tentando passar por isso com você. Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, caramba.”
— Eu não quero mesmo ter essa conversa agora - ele murmurou, ameaçando ignorá-la e seguir seu rumo para a cozinha.
não desistiu.
— E vamos ter essa conversa quando, ? Quando eu chegar do serviço de noite e você estiver embriagado de novo e eu preciso te colocar na cama como uma criança? Que droga de vida você espera que tenhamos?
— Sinceramente? Se te incomoda tanto, pode ir. Não estou te prendendo. Achei que o compromisso que tínhamos era sobre ficar ao lado do outro, mas é uma escolha sua.
Foi a vez de soltar uma risada sarcástica e estrangulada, sem acreditar que estava sendo obrigada a ouvir aquilo. Ele sequer estava ouvindo o que ela dizia.
— Eu não estou ao seu lado? , eu literalmente estou te implorando para deixar que eu esteja por perto. Você está sendo tão injusto, puta que pariu.
— Estou mesmo? Tem certeza?
— É claro que eu tenho certeza, inferno! Sou eu quem está todos os dias ao seu lado. Eu que me mantive do seu lado, tentando te fazer comer nas primeiras semanas, te abraçando quando você chorava de madrugada, te acordando bêbado mesmo sem nem saber direito quem você tinha se tornado.
— Sinto muito por ser um fardo conviver comigo.
Ela estava tentando manter a calma. Deus sabia que estava mesmo. Mas existiam limites.
— Você tem noção de que eu recusei minha promoção na Eyeko para ficar com você? Eu recebi proposta de um cargo bem melhor, mas a sede é em Nova York. E mesmo tendo lutado a minha carreira inteira por isso, eu recusei imediatamente porque sabia que uma mudança desse porte seria demais para você. Para nós.
— Ótimo. Além de um fardo na convivência, também sou o destruidor de sonhos.
— Não foi isso que eu disse. Você está distorcendo absolutamente tudo que eu falo - ela reclamou, frustrada.
— E você esperava que eu me sentisse como com essa informação sendo arremessada no meu colo?
— , me escuta - sua voz saiu em tom de súplica.
— Como eu já disse, eu não tenho intenção alguma de dar continuidade a essa discussão. Pode ir para Nova York. Cansei de atrasar a sua vida. Espero que seja feliz.
Ele deu as costas, seguindo corredor afora em direção à porta de entrada.
— , volta aqui. Não terminamos.
— Terminamos, sim.
E com uma batida forte demais, que ecoou em sua orelha enquanto ela tentava pensar no que fazer, ele sumiu de sua vista.
foi até o quarto, encontrando a cama ainda bagunçada, o travesseiro dele ainda quente. Fungou, tentando se convencer a parar de despejar aquelas lágrimas inúteis. Não adiantava. Nada mais adiantava.
Quando abriu sua mala de viagem sobre a cama e começou a colocar nela as primeiras peças de roupa, a mulher ergueu o olhar para o teto, imaginando uma comunicação através dele.
— Eu tentei - murmurou, com a voz embargada. — Eu juro que tentei.
🎼🎼🎼
levou exatos seis dias para digerir tudo o que tinha acontecido. Apesar de toda a recusa e revolta momentâneos, havia passado as últimas cento e quarenta e quatro completamente sóbrio. Toda vez em que o pensamento sobre uma dose de whisky sequer rodeava a sua mente, sentia o estômago revirando. Não conseguia deixar de ouvir as palavras dela, lembrando-lhe de como aquela era apenas uma tentativa inútil de autodestruição e jamais iria querer aquilo para o irmão.
Tinha exagerado, sabia disso. Arrependia-se de cada uma das palavras e acusações que tinha feito enquanto o sangue fervia. Ela estava certa, como de costume. Ele precisava de ajuda. E precisava engolir o próprio orgulho e deixar de ser ingrato. Ela realmente esteve ao seu lado o tempo todo e só queria seu bem.
Foi com esse pensamento que ele voltou para o apartamento, com um discurso quase ensaiado, mas em constante mutação, sobre como havia realmente se perdido em sua própria dor e tomado as decisões mais erradas possíveis. Mas queria melhorar. Por ela. Por eles. Por .
— ? - Chamou da porta. — Podemos conversar?
Correu até o quarto, esperando encontrá-la lá, revendo The Office pela milésima vez ou algo do tipo.
Ao encontrar a cama desarrumada, exatamente do jeito que tinha deixado naquela manhã, sentiu a aceleração atingindo o peito.
— Não, não, não - murmurou repetidamente, enquanto abria o closet, confirmando o vazio em suas prateleiras, gavetas e cabides.
A mala de viagem tinha sumido junto com ela. Ele só conseguia ouvir a própria voz dizendo para que ela fosse para Nova York, praticamente expulsando-a de sua vida.
O pânico tomou seus pulmões, fazendo o ar faltar. O choro desesperado não melhorou em nada a situação. Se ela tivesse realmente ido embora, ele jamais se perdoaria.
Entrou no carro rapidamente, indo até aquele que sabia ser o lugar favorito dela. Era sua última esperança antes de aceitar que tinha mesmo destruído de tudo.
Kieran estava brincando no quintal da frente, sendo o primeiro a avistar .
— Oi, tio - cumprimentou, tentando usar as pequenas mãos para proteger os olhos do sol.
— Oi, Kie. Escuta, a passou por aqui?
— Não desde semana passada. Achamos estranho quando ela não veio, mas a tia Karen disse que ela só estava meio doente.
— Entendi. Claro, doente - concordou. — Obrigado, Kie. Nos vemos logo para eu finalmente ter minha revanche no Monopoly.
O menino riu, concordando e acenando enquanto o homem entrava de volta no carro. fechou os olhos, respirando fundo, enquanto seguia até a cafeteria próxima que ela tanto amava.
Assim que chegou ao local, flagrou a si mesmo olhando desesperadamente em todas as direções, buscando-a em cada canto inutilmente. O lugar estava estranhamente lotado e, mesmo com dezenas de faces por ali, a única que ele precisava ver parecia ter sumido de vez.
— Senhor? - A atendente o retirou de seus devaneios. — Quer fazer um pedido?
Não, não queria. Não tinha apetite algum no momento. Constrangido, contudo, decidiu pedir o básico.
— Infelizmente, nosso café acabou, senhor. Posso lhe oferecer um chá?
— Que tipo de cafeteria não tem café? - Ele sentiu seus ânimos se alterando ainda mais, explosivo por tão pouco.
— Desculpe, senhor. Estamos com a casa inesperadamente cheia e nosso fornecedor teve problemas na estrada. Uma das funcionárias foi ao mercado comprar um pouco enquanto as coisas não normalizam. Se o senhor quiser esperar…
Seu problema não era o café. Não era a atendente. Seu problema era única e exclusivamente sua própria culpa, apunhalando seu coração como uma adaga.
— Não faz mal. Eu que peço desculpas pela reação. Bom trabalho.
Voltou para o veículo sem olhar para trás, trancando-se atrás do vidro insulfilmado, isolando-se para chorar e soluçar em paz ao constatar o óbvio: estava sozinho por ter, por muito tempo, recusado não estar.
E por mais dolorido que fosse, não podia dizer que não entendia. Havia chegado a um ponto em que não sabia nem se era mais uma pessoa que ele gostaria de ter por perto. Não a culpava por ter ido embora. Se ele pudesse, também o abandonaria.
Mas aquela sensação ao tomar consciência de que talvez ela nunca mais fosse precisar dele foi avassaladora. Não conseguia conceber um mundo sem ela ao seu lado. E o pior é que ele sabia perfeitamente: quem sempre precisou dela foi ele, e não o contrário. Mas sua teimosia destruiu a coisa mais especial que tinha construído na vida. Se já deveria estar decepcionada pelos últimos tempos, agora ela devia estar odiando-o.
Se antes havia achado ter atingido o fundo do poço, agora sabia que a realidade poderia ser bem pior, especialmente quando sentia seu corpo inteiro afundando, caindo em queda livre sem ter mais ninguém para cobrir com curativos os seus machucados.
🎼🎼🎼
respirou fundo, colando a testa ao piano. Na última quinzena, tinha virado uma máquina de composição, escrevendo material suficiente para um álbum completo.
E era tudo sobre ela. Sempre era. Começava com uma melodia, pensando em um assunto diferente e, quando se dava conta, já estava falando dela de novo. Tinha total consciência de que escrevia músicas demais sobre , mas era totalmente impossível desviar seu foco quando tudo em que conseguia pensar era sobre ela.
Será que estava bem? Estava feliz? Estava mesmo melhor sem ele ou também sentia sua falta? Continuava se importando, independentemente de onde estivesse? Será que ela tinha se adaptado ao fuso horário e à loucura de Nova York? Por Deus, ele nem sabia se ela realmente tinha partido para Nova York. Sua decisão acerca da iniciativa de deixá-la em paz e dar espaço para que as coisas se acalmassem era excruciante. Não aguentava mais abrir o whatsapp ou o facebook e quase ceder aos seus impulsos desesperados, que queriam implorar de joelhos para que ela voltasse para casa.
Pegou o celular, abrindo o instagram dela. Não havia atualização alguma; apenas as fotos que ele já conhecia tão bem e amava com todo o coração. A mais recente, dela sorrindo largamente nos bastidores de seu primeiro show em Londres, era a sua imagem favorita. Aquilo era felicidade. A felicidade que os dois sempre compartilharam. E, por mais egoísta que fosse, ele sabia que nunca poderia ser feliz daquela forma de novo sem ela.
Deslizou para as mensagens diretas, cometendo o erro de captar a informação de que ela estava online naquele momento. A força de vontade necessária para ignorar aquele fato era muito maior do que a que ele, de fato, tinha.
Apertou o gravador em um impulso de coragem e começou, balbuciando um pouco, enquanto buscava as palavras certas para dizer:
— Oi, . - Sua voz saiu mais cansada do que ele imaginara, lembrando-o de como estava exausto. — Desculpa por te encher o saco com esse áudio. Eu juro por tudo que há de mais importante nessa vida, e você está no topo dessa lista, que eu tentei te dar espaço. Eu jurei para mim mesmo que não ia te incomodar, até porque, seja lá onde você estiver, sei que a culpa é minha. , eu estraguei tudo.
Ele respirou fundo, tentando se livrar daquela vontade de chorar que queimava seus olhos.
— Eu passei todos os segundos dos últimos dias remoendo meu arrependimento e como eu sou a pessoa mais idiota e estúpida do mundo por ter dito todas aquelas coisas. Eu fui ingrato, sim. Eu falei várias merdas da boca para fora, nas quais nós dois sabemos que eu nunca acreditei. Sei que você se importa. Sei que se importou demais se se dispôs a estar comigo durante os quatro piores meses da minha vida, por mais destruído e quase alcoólatra que eu possa ter ficado. Sei que te machuquei. Deve ter sido horrível chegar e me ver naquele estado, ainda mais quando não foi um evento isolado. Não consigo nem imaginar toda a força que você teve para suportar tudo isso. Mas é o que você me disse, afinal; na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Você com certeza soube levar essa promessa adiante melhor do que eu.
Droga, por que aquilo era tão difícil? Tinha tanto a dizer que o esforço para encontrar as palavras e moldá-las de uma forma coerente parecia grande demais. Enxugou uma lágrima que escorrera pela bochecha, antes de prosseguir naquele monólogo que ele não sabia - mas esperava - se ela iria ouvir. E, se ouvisse, talvez não respondesse. Ele sabia que merecia aquilo. Mas não podia evitar ter ao menos um pingo de esperança correndo em seu sistema.
— Sei que compartilhamos uma irmã, mesmo que por causas diferentes. Tenho certeza de que o luto deve ter sido tão doloroso e sufocante para você como foi para mim. Ainda é, na verdade. Você tinha razão quando disse que esse não era o tipo de coisa para se superar e, sim, para aprender a conviver. E eu deveria ter estado ao seu lado para aprendermos como seguir juntos, como nos dispusemos a estar.
“, eu sinto muito pela sua perda e sinto mais ainda por não estar lá para você. Me arrependo intensamente de ter te afastado no momento em que mais precisamos um do outro. Eu me perdi no caminho e me tornei alguém que eu não conhecia. Mas perder você doeu muito mais. Eu não sei viver sem você. Sei que você é forte, decidida, completa e sempre amei isso em você. Mas, mesmo que não precise de mim, eu preciso admitir que preciso de você. Sempre precisei. Sinto muito se as palavras que saíram da minha boca naquele dia disseram o contrário.”
inspirou mais uma vez, percebendo que precisava parar. Aquele áudio estava muito mais longo do que deveria, ainda mais para alguém que talvez nunca mais quisesse ouvir sua voz.
— , eu te amo com todo meu coração e minha alma. Você sempre será o maior presente que recebi em minha vida e tenho a quem agradecer eternamente por isso. - Seus olhos se encheram de lágrimas novamente com a lembrança. — Sinto muito por todos os momentos em que eu fiz você se sentir como se isso não fosse verdade. Perdão por estragar tudo. Sei perfeitamente que não tenho direito algum de pedir algo do tipo depois de tudo, mas, se existir qualquer possibilidade de consertarmos tudo e recuperarmos o que tivemos, por favor, me avise.
Enviou o áudio antes que voltasse a divagar e tornasse aquilo ainda mais desgastante e incômodo. Bloqueou a tela do celular, tentando convencer a si mesmo que a ansiedade não causava zumbidos em seu tímpano, incomodando-o como um inseto irritante e inconveniente que aparecia para infernizar suas orelhas no meio da madrugada.
Seus dedos correram pelas teclas, buscando notas em um acorde que, inconscientemente, ele já conhecia. Com a repetição das notas, sentiu as palavras formando frases, compostas em versos. Fechou os olhos, encontrando o tempo entre as notas antes de começar a cantar o que sabia que seria o refrão de mais uma música. Mais uma sobre ela. Mais uma sobre a sensação de queda livre que sua vida tomava sem ela.
— What am I now? What am I now?
What if I’m someone I don’t want around?
I’m falling again, I’m falling again, I’m falling
What am I now? What am I now?
What if I’m someone you won’t talk about?
I’m falling again, I’m falling again, I’m falling
O verso que veio na sequência fez sentir a dor atingi-lo na espinha, irradiando por todo o corpo. Não importava quantas vezes tivesse dito aquilo, a dor não diminuía.
— And I get the feeling that you’ll never need me again
Juntou as suas mãos sobre o colo, sem coragem de continuar uma palavra sequer. Seu coração parecia ter desaprendido a bater da forma fisiologicamente certa. Dava a impressão de estar tão ferido e confuso quanto seu dono.
Antes que pudesse começar a espiralar, repassando todo o seu arrependimento para se martirizar e se culpar como vinha fazendo cíclica e diariamente, a tela do seu telefone acendeu com a notificação do aplicativo, indicando uma mensagem.
Seu coração esmurrou suas costelas antes mesmo que ele terminasse de assimilar as palavras recebidas em resposta.
“Vamos conversar. Você sabe onde me encontrar.”
Ele se levantou bruscamente do piano, tropeçando nos pés do assento e quase caindo de boca contra o piso.
— Péssima hora para precisar ir ao hospital - disse a si mesmo, rindo nervosamente.
Tantas coisas se passavam ao mesmo tempo por sua cabeça, que ele sentia que seu cérebro poderia simplesmente explodir ou superaquecer a qualquer momento. Não se importou por não estar bem vestido o suficiente, nem por não ter almoçado direito. Todo o medo, excitação, ansiedade e esperança que sentia forravam seu estômago suficientemente bem para comunicar que ele só precisava ter uma coisa em mente naquele instante: encontrá-la.
Ao entrar no carro, entretanto, percebeu que não fazia ideia de onde ir. A mensagem enigmática não tinha realmente ajudado a esclarecer muita coisa.
Pensou no pub, na casa de shows, no estacionamento vazio em que tinham passado a noite apenas pela graça de fazer algo levemente proibido… Não, nada daquilo fazia sentido.
Foi quando a obviedade da resposta lhe acertou como uma bigorna em uma animação antiga da Cartoon Network. Era sábado, afinal. Checou o relógio no celular apenas para confirmar sua hipótese certeira. Só havia um lugar no qual poderia estar.
Cumpriu o trajeto em tempo recorde, chegando às portas do local em bem menos tempo do que se esperaria se não tivesse optado pelo atalho que desviava do trânsito vespertino.
Inspirou e expirou três vezes, inalando o cheiro de terra molhada e ouvindo os gritos infantis que ele tinha aprendido a adorar por causa dela.
Kieran estava no portão, encarando-o com o sorriso banguela.
— Ei, amigão! - tocou em sua mão. — Não tinha um buraco na sua boca da última vez em que eu te vi.
— Meu dente caiu semana passada - ele explicou. — Ficou preso na maçã que eu comi. Foi legal, mas meio nojento.
— Que horror - o mais velho comentou, fazendo o pequeno rir. — Você estava me esperando.
A criança assentiu, tomando a mão dele na sua.
— Claro que sim. Vem.
Kieran guiou pelo caminho de pedras até o grande salão. não conseguiu conter a forma com que sua face se iluminou automaticamente ao vê-la sentada no chão, tendo o rosto pintado por várias crianças.
Com as bochechas pintadas de vermelho intenso e as sobrancelhas mais azuis e tortas do que qualquer coisa, o avistou, sorrindo ternamente quando seus olhares se cruzaram.
respirou fundo, enquanto permitia que todo o amor que sentia por aquela mulher tomasse conta de si.
— Viu? - Kieran perguntou. — Vai ficar tudo bem.
Soltou o corpo com certo descuido ao transferir o peso de um pé para outro conforme ignorava o único degrau que lhe permitia uma descida segura da baixa altura em que se encontrava. Ainda estava tentando recuperar o compasso da própria respiração, quando foi obrigado a driblar o próprio cansaço e frustração para sorrir abertamente para o rosto feminino conhecido que se aproximava dele.
— Realmente quem é vivo sempre aparece - sua voz rouca acusou, ironicamente, recebendo um olhar fuzilante de desprezo bem humorado.
— Calado. Você sabe muito bem que passei as duas últimas semanas viajando a trabalho.
— Sei - ele concordou. — Só não sabia que tinham te confinado em algum tipo de retiro espiritual aleatório ou cárcere privado que te impedisse de usar o celular para pelo menos avisar que estava viva.
— Você é muito preocupado, irmãozinho. Notícias ruins vêm em aviões supersônicos cuja velocidade nem a indústria aeroespacial conseguiu desenvolver ainda. Se você não ouviu falar sobre mim, com certeza era porque eu estava bem.
— Vai ter que me perdoar por me importar com você, , mas é meio que a minha função.
A mulher se aproximou dele, ficando na ponta dos pés para abraçá-lo com força. Viajara para vários países, tivera múltiplos relacionamentos de todos os tipos e, mesmo assim, acolhida nos braços do irmão caçula permanecia sendo o lugar que mais lhe trazia conforto e paz em todo o universo.
— Eu sei que você se importa muito comigo - disse, ainda presa contra o corpo dele. — E eu também me importo muito, muito com você. Por isso, eu vim acompanhada.
— Outro namorado, ?
— Não dessa vez. - Deu um meio sorriso. — A mamãe disse que você terminou com a garota que você estava saindo, ficando, transando… Não sei que tipo de verbo você usa para isso.
— Que tal o verbo ir? Como em vá direto ao ponto.
— Seus relacionamentos são deprimentes e eu cansei de te ver jogado por aí, triste por alguém que mal participou da sua vida, de fato, ou participou até demais considerando o caráter duvidoso do ser. Então, considere isso como uma intervenção.
— Não sabia que isso era um episódio de How I Met Your Mother - ele zombou, soltando uma risada nasalada em sequência.
— Ah, você ainda gosta dessa série? Excelente, então vocês já têm algo em comum.
— Vocês quem, ?
A mais velha virou-lhe as costas, esticando o pescoço para procurar por alguém na entrada do pub. Com alguns acenos frenéticos e passadas rápidas, logo pôde ver a silhueta da segunda pessoa a quem insistia em incluir naquele plural que o continha.
— , essa é a . Ela é uma das minhas melhores amigas e eu queria muito que vocês se conhecessem já que são tão importantes para mim. , esse é o , meu irmão caçula.
O rapaz tentou se desvencilhar da vontade absurda que tinha de fuzilar a irmã com os olhos, evitando a atitude para não soar rude frente à tal amiga. Não estava nem um pouco feliz com a armação de , mas jamais seria qualquer coisa além de um admirável cavalheiro se outras pessoas estivessem por perto. Especialmente aquelas que ele desconhecia. Ainda mais quando, de repente, não parecia uma ideia tão ruim assim conhecê-la.
o fitava com os olhos curiosos, por trás dos cílios que batiam carinhosamente contra o próprio rosto. Tinha um meio sorriso observador e, se não fosse a pessoa mais adepta do mundo a se projetar de forma inabalável, provavelmente teria se sentido constrangido e acuado com o peso de seu olhar que parecia analisar e julgar cada milímetro da extensão de seu corpo e de sua alma.
— Muito prazer, - ele disse, estendendo a mão em um cumprimento contido.
O sorriso da mulher repuxou o canto esquerdo de seus lábios, tornando-se mais acentuado. Aceitou o cumprimento de forma educada antes de dizer:
— Pode me chamar de . Só sua irmã, dentre todas as pessoas do mundo, insiste em me chamar de .
— Ela é um saco assim mesmo - concordou, dando de ombros, enquanto via revirando os olhos de forma quase teatral.
— Vocês me amam incondicionalmente e tenho certeza de que só estão enfrentando um pouco de dificuldade de expressar esse amor - ela garantiu.
Com a percepção de que o protótipo de assunto - talvez nem isso - tinha morrido e um longo e constrangedor silêncio se instalaria, fazendo as três pessoas ali desviarem o olhar e fingir atenção em coisas aleatórias que não a mereciam, decidiu tomar as rédeas da situação da forma menos criativa possível por ali.
— Vocês querem beber alguma coisa?
torceu a boca como se estivesse chateada.
— Infelizmente não vou conseguir acompanhar vocês dois hoje. Sabem como é. Essa adaptação de fuso-horário sempre me matando. Mas tenho certeza de que vocês vão se divertir muito - concluiu com um sorriso, antes de dar um beijo na bochecha de cada um deles e acenar enquanto se afastava como se nada de significante tivesse acabado de acontecer por ali.
e ainda piscavam, estáticos. Só não estavam mais chocados com a audácia da situação porque aquele poderia facilmente ser um quadro pintado e assinado por com uma letra cursiva exageradamente detalhada.
— Filha da puta - murmurou, tomando coragem de encarar a mulher à sua frente, tão descrente quanto ele.
— O que ela te disse enquanto eu estava lá fora ao telefone?
— Que essa era uma intervenção por todos os meus relacionamentos de merda - ele admitiu, recebendo uma risada gostosa em resposta.
— Bom, essa é a minha intervenção por não ter idade o suficiente para ficar enfurnada em casa em uma sexta à noite.
O rapaz meneou a cabeça, ainda lidando com os resquícios da dificuldade em absorver a situação. Não que ele tivesse muita opção.
— Acho que ela viu How I Met Your Mother no voo de volta para cá - comentou, forçando-se a manter qualquer tipo de assunto entre eles em vez de tornar aquele momento ainda mais embaraçoso e constrangedor do que ele já era.
— Eu pensei na série na hora também - admitiu. — Ela acabou comentando que você também gostava.
— Eu adoro. Ver séries de comédia em looping é basicamente o que eu faço com quase todo o meu tempo livre.
— Sei que você provavelmente preferia estar vendo uma agora mesmo, mas, já que estamos aqui, meu convite para beber algo ainda está de pé.
— Ah, mini , eu posso ser uma pessoa difícil de tirar de casa, mas quando eu saio é mais difícil ainda me fazer voltar tão cedo.
esboçou um sorriso travesso, enquanto sustentava o olhar que lhe era dirigido com toda a força com que o recebia.
— É por minha conta, então.
— Tem certeza? Não vai ser descontado do seu cachê?
— Esse é o meu cachê - ele respondeu, enquanto ocupavam dois bancos vazios ao balcão.
arregalou os olhos levemente.
— Isso soou um pouco estranho, sabe? Com uma tendência ao alcoolismo. Você precisa de ajuda?
riu, mexendo no próprio cabelo.
— Eu sou pago com outras coisas que não álcool - explicou. — Considere a bebida como algum tipo de cortesia ou sinal de agradecimento por eu ser a melhor atração desse lugar.
A mulher se apoiou na bancada, enquanto girava a poltrona, olhando o seu redor. Tantas pessoas falavam alto, riam, bebiam e flertavam que ela tinha certeza de que poderia levantar a blusa no meio do bar e menos pessoas do que poderia contabilizar nos dedos de uma mão perceberiam a exposição gratuita de seus peitos. Talvez devesse testar sua teoria mais tarde.
— Não é por mal, ok? Tenho certeza de que você é um ótimo cantor, musicista, artista ou o que quer que seja. Mas, para ser a melhor atração desse lugar e para esse público , você provavelmente teria que no mínimo fazer um striptease em cima daquele palco.
— Acho que é exatamente isso que está faltando para a minha carreira deslanchar de vez. Com certeza me lembrarei de te mencionar por isso nos agradecimentos do meu primeiro álbum.
riu alto.
— Meus mais sinceros agradecimentos à mulher que iluminou meu caminho e mudou os rumos da minha vida ao sugerir que eu utilizasse de nudez para conquistar meu espaço na indústria musical - disse ela, forçando uma seriedade inexistente.
— Agradeço a oportunidade de provar que, mais do que um rostinho bonito, posso também ser um corpinho bonito - o rapaz emendou, fechando seu agradecimento imaginário com chave de ouro.
— Profundidade é a coisa mais superestimada do mundo.
ergueu os dedos, sinalizando para Kenan, o barman que ele já conhecia bem, que estavam prontos para pedir.
— Whisky e gelo como sempre para você - o homem comentou, enquanto secava um copo. — E para a senhorita?
— O mesmo que o dele - ela respondeu, agradecendo em seguida.
Quando Kenan trouxe os copos carregados do líquido acastanhado, o rapaz ergueu o copo, sinalizando um brinde singelo que foi correspondido pelo som do choque dos vidros.
— Às intervenções - sugeriu.
— A oportunidades - completou, virando um pouco do conteúdo, sentindo o ardor acolhedor da bebida na garganta. Tinha aprendido a apreciá-lo e desejá-lo, especialmente após um dia longo e cansativo no trabalho. Suas recompensas costumavam ser o álcool ou o açúcar e ela, honestamente, não tinha pretensão alguma de alterar esse padrão comportamental.
repetiu seus movimentos antes de decidir iniciar algum tipo de diálogo com a mulher ao seu lado:
— Como você e minha irmã se conheceram?
sorriu sozinha, lembrando-se daquela tarde de sol irritantemente forte e risadas com uma estranha que ela jamais imaginaria que seria sua melhor amiga em questão de semanas.
— Foi em uma passeata feminista. O tópico da vez era a luta pela equidade salarial. Em meio a tanta gente abarrotando as ruas, acabei encontrando sua irmã, com um daqueles óculos de sol enormes que ela adora e as bochechas tão vermelhas que eu fiquei preocupada que pudesse ser algum tipo de crise alérgica.
— Ela esqueceu o protetor solar?
— Na verdade, ela lembrou, só que no meio do caminho e comprou um qualquer na primeira loja que encontrou. Ela realmente estava tendo uma reação alérgica a ele. Por sorte, eu tinha antialérgico na bolsa. Precaução ou hipocondria, o ponto é que nós passamos o dia juntas depois disso. Terminamos os protestos, colocamos os cartazes embaixo do braço e paramos em um bar próximo para tomar água porque eu fiquei com medo de ter reação com o remédio.
deu uma risada leve, permitindo que seus ombros balançassem suavemente em função do movimento natural e relaxado do próprio corpo.
— Quem disse que nenhuma boa história de vida começava com pessoas tomando água estava totalmente errado - brincou.
— Tiveram muitas cervejas, vinhos e drinks depois, mas de fato.
— Sinto muito por isso. Tenho certeza de que foi quem grudou em você como um carrapato e não a deixou em paz nunca mais. Ela não tem muito bom senso social.
gargalhou, apesar de ela e saberem perfeitamente que aquela era uma grande mentira. poderia se encaixar com facilidade na estranha definição de “social butterfly”, dando-se bem - ou pelo menos fingindo com simpatia e postura louváveis - com praticamente todo mundo. Era difícil não se encantar por ela e por seu jeito expansivo e risonho. A amiga costumava brincar que não gostar dela era quase uma afronta tão grande quanto não gostar de filhotinhos. Quem ousava dizer qualquer uma dessas duas coisas com certeza boa pessoa não era.
— E o que você faz da vida? - perguntou, enquanto cruzava os pés, aproximando os saltos pretos de suas botas.
O rapaz adquiriu uma feição levemente afetada, como se tivesse, de alguma forma, sido ofendido por suas palavras.
— Obrigado por estabelecer que música não é uma profissão. Meu pai também acha isso.
lhe deu um empurrão de leve.
— Sabe perfeitamente que não é isso que eu quero dizer. É só que, em um mundo como o nosso, caras como você geralmente tocam o que gostam de noite, mas fazem o que é preciso para manter uma renda estável de dia.
deu um longo gole em sua bebida, acenando para que Kenan colocasse mais um pouco em seu copo.
— Eu toco aqui e em um outro pub umas duas vezes por semana; três quando a sorte decide jogar a meu favor - ele explicou. — E trabalho como vendedor em uma loja de instrumentos de segunda a sexta. O sonho americano, a não ser pelo fato de estarmos em Manchester.
riu, concordando.
— E esse sempre foi o seu “sonho americano”? - O movimento de seus dedos reforçava no ar a presença das aspas.
— Sempre. Ganhei uma guitarra de brinquedo aos quatro anos e passava o dia inteiro performando para a minha família. Tirando , que queria me matar por isso, todos ainda estavam naquela fase de achar bonitinho praticamente qualquer coisa que uma criança fazia. Foi só quando eu cheguei à adolescência com a convicção total de que não havia nada na vida que eu gostaria de ser além de músico que meu pai surtou de vez. Nem se eu tentasse seria capaz de contar quantos sermões extensos ouvi sobre como isso não era profissão e eu ia morrer de fome por ser um vagabundo.
— Que droga. Eu sinto muito.
— É, eu também - o rapaz concordou. — Mas e você? O que você faz?
— Faço consultoria e estratégias de marketing para a Eyeko, que é uma marca mais voltada para maquiagem para os olhos. É cansativo, tem várias coisas para fazer e várias pessoas querendo dar opinião o tempo todo, sabe? Ainda mais quando vamos envolver redes sociais no assunto. Mas eu adoro o que eu faço, não posso reclamar disso apesar de desejar poder dar um chute forte bem no meio da bunda de vários colegas com frequência.
— E era esse seu sonho de infância?
agitou as cabeças para o lado rapidamente, apertando os lábios enquanto seus cabelos balançavam sobre a própria face.
— Eu não tinha nem ideia de que poderia fazer algo do tipo praticamente até entrar na faculdade. Quando eu era criança, eu queria ser astronauta. Ficava até tarde da noite olhando para as estrelas e passava o dia todo esperando que elas aparecessem de novo. Os dias nublados eram os mais tristes para mim.
riu.
— Entendo o apego. Acho que faz sentido.
— Não faz, não. - Ela riu. — Minha tia falava que eu gostava das estrelas porque vivia no mundo da Lua. Eu só concordava, pensando que deveria ser mesmo muito legal viver lá e não percebia que ela estava me chamando de avoada.
Ele deu de ombros.
— Adultos. - Bufou teatralmente. — Quem é que precisa deles?
— Essa é uma pergunta que eu nunca soube responder.
Pediram uma porção média de batatas fritas para evitar que os estômagos começassem a gritar, implorando por socorro e punição eterna aos seres abomináveis que os regavam a um alto teor alcoólico sem um alimento sequer. A mistura dos gostos de sal, amido e gordura era uma dádiva perfeita que fazia se perguntar quem tinha sido o gênio a testar fritar batatas pela primeira vez e se ele havia recebido todos os prêmios honrosos e cheios de louvor que merecia por salvar a humanidade com isso.
Depois de algumas histórias de infância que não combinavam muito com o whisky forte que corria por suas gargantas, a mulher respirou fundo, enquanto tentava recuperar o fôlego após uma gargalhada que tinha feito com que seu abdômen doesse o suficiente para que ela se arrependesse momentaneamente de ter matado tantos dias de academia naquela semana. Precisava mesmo tomar vergonha na cara, antes que descartassem suas credenciais por falta de uso.
— Sabe, mini - ela começou. — Você é um cara bem legal.
sorriu, evidenciando covinhas profundas que marcavam suas bochechas.
— É que você ainda não me conheceu direito.
— Essa é a parte em que você me sequestra e eu fico sabendo que minha melhor amiga era sua cúmplice durante todo esse tempo e eu serei oferecida em sacrifício a seja lá qual for a crença de vocês?
— Sinto muito. Mas olha só que assassino bonzinho eu sou por fazer sua última refeição ser batata frita.
concordou, com uma careta.
— Tem razão, você é um anjo mesmo. Com certeza esse argumento vai ser suficiente para te livrar do inferno.
— Que bom que concordamos - brincou. — Mas, se você quiser me conhecer melhor, podemos fazer perguntas aleatórias um ao outro.
— Não sei, mini - ela ponderou. — Acabei de estabelecer que você é um cara legal. Não sei se quero saber as suas respostas e correr o risco de mudar de ideia.
— É uma possibilidade. - Ele foi obrigado a concordar. — Mas eu aposto que, na verdade, você vai é acabar percebendo que somos algum tipo de almas gêmeas.
A mulher deu um sorriso de canto.
— me avisou que você tentaria jogar seu charme e esse sorriso bonito para o meu lado.
— Estou fazendo isso desde que você aceitou beber comigo. Devo mesmo estar perdendo a prática se só percebeu agora.
— Ou sou eu que preciso de um letreiro brilhante ofuscando a minha visão para me avisar quando alguém está flertando comigo. Mas pode ser. Vou deixar você fazer a primeira pergunta.
— Qual sua banda favorita?
— E já começamos com a pergunta mais difícil do universo. Vou responder sem pensar muito ou vou acabar trocando a resposta dez vezes. Então, Arctic Monkeys.
— Se você for ao meu próximo show, eu prometo cantar Arabella e dedicar a você.
arregalou os olhos, levando a mão ao peito, surpresa e achando graça pela promessa do gesto.
— Se você pensa que vai me conquistar comprando batata frita e cantando Arctic Monkeys para mim, você está completamente certo.
riu alto.
— Sábado que vem vou tocar com uns amigos em um galpão que transformaram em casa de shows recentemente. Está convidada.
— Bom, me prometeram Arabella, então eu não posso dizer não. Estarei lá. - Ela levou outra batata à boca, antes de se lembrar: — Ah! É minha vez!
Ela deu uma risadinha, fazendo erguer a sobrancelha esquerda.
— Que cara é essa e por que eu estou com medo do que você vai falar?
— Porque você é bobo. - Ela deu de ombros. — Se você cometesse um crime, tipo matar alguém… Para quem você pediria ajuda para acobertar o corpo?
A memória atingiu como um trem em disparada, saindo da estação. Meredith Grey e Cristina Yang falando algo parecido com aquilo era algo de que ele se lembrava perfeitamente, exatamente porque ele já conhecia a resposta, pulando na ponta de sua língua como uma daquelas balinhas explosivas.
— .
— Era esse meu medo - comentou. — Como vamos ter a mesma cúmplice de crimes? A pena por reincidência não deve ser das mais amenas.
— Bom, em nome de todas as vezes em que a levei na casa das amigas, fingi que não a via saindo de madrugada para encontrar com algum namorado e pelas minhas camisas que ela roubou, acho que ela me deve essa. Você pode encontrar outra pessoa para ser presa contigo.
— Ou podemos não cometer assassinatos, também é uma possibilidade.
— Acho que consigo aguentar - ele brincou. — Se você tivesse que beber só uma coisa para o resto da vida, qual seria? Sem ser água.
— Suco de laranja, com bastante gelo, mas sem açúcar. Passarei o resto da minha existência triste sem álcool, mas é melhor do que durar uma semana e morrer com uma cirrose hepática horrorosa.
Não que eles parecessem realmente se importar com aquilo enquanto Kenan despejava mais uma rodada em seus copos.
— Comida favorita?
— O fettuccine que minha mãe faz - respondeu instantaneamente, sentindo a memória gastronômica afetiva acariciando seu estômago e seu coração simultaneamente. Teria que fazer uma visitinha a assim que possível.
— Já estou arrependida de ter perguntado. Vou ficar com vontade.
— Bom, com certeza podemos fazer um almoço em família e minha mãe adora receber convidados. Sua única obrigação é comer até não aguentar mais e dizer que estava ótimo.
— Esse é o tipo de obrigação que eu cumpriria feliz da vida e ainda abaixaria a cabeça e agradeceria pela misericórdia e caridade prestadas a essa pobre alma.
— E você? - questionou, emendando uma correção logo em seguida. — Quer saber, vou fazer a pergunta contrária. O que você não come de jeito nenhum?
— Não gostei. Tema muito sensível. As pessoas adoram me julgar por isso.
— Você não está se ajudando a desviar do assunto. Conseguiu me deixar mais curioso ainda e eu sei ser irritantemente insistente e persuasivo quando eu quero.
bufou, dando-se por vencida.
— Certo, certo. Eu nunca fui uma pessoa com grandes restrições de paladar. Claro que, como qualquer outra pessoa normal, eu prefiro um bom lanche ou uma pizza a um prato simples de salada. Mas eu sempre comi de tudo.
— Se você me falar que detesta doces, eu juro que vou ter que deixar esse estabelecimento agora. É mais do que eu posso suportar, independentemente do quão incrivelmente bonita você é.
— Com certeza não é isso - ela continuou, seguindo como se nem tivesse percebido o elogio. — Bom, eu sempre adorei frutas. Basicamente gosto de quase todas as frutas que eu já experimentei na vida. Menos uma.
levou a mão à boca, forçando um clímax acerca da grande revelação. riu sozinha, pensando que ele deveria estar se perdendo na música quando se esforçava tanto para agir exatamente como o ator de uma daquelas telenovelas mexicanas. Claro que seu conhecimento sobre elas se limitava às cinco temporadas de ‘Jane, the Virgin’, mas isso não vinha ao caso.
— Eu detesto abacate - admitiu.
O rapaz ergueu as sobrancelhas. O choque, ao contrário daquele presente nos segundos anteriores, não carregava consigo falsidade alguma.
— Como assim você detesta abacate? — Não desce. Simples assim.
— Não é possível. - não se conformava. — Abacate fica ótimo com leite, com torradas e é simplesmente perfeito no guacamole. Como você vive sem guacamole?
— Inexplicavelmente eu estou viva. Avisei que você ia me achar estranha. É uma falha de caráter irreparável.
— Não. Na verdade, faz todo o sentido. Eu avisei que nós éramos almas-gêmeas. Em vez de sermos iguais, completamos o que falta no outro. Você odeia abacate e eu odeio abacate. O yin-yang perfeitamente equilibrado.
riu alto.
— Não acredito que estamos mesmo discutindo o impacto do meu gosto sobre frutas para estabelecer se nossos destinos estavam mesmo entrelaçados.
— É claro que estavam - ele confirmou. — Estamos ligados por e abacates.
Os minutos correram e passaram sem que percebessem, dançando entre eles, embalados pela melodia de um jazz ambiente qualquer, enquanto se tornavam horas completas noite afora. A conversa fluía como água, em um movimento contínuo, mesmo que seu curso fosse alterado ao longo da rota, em um riacho de palavras que se encaixavam com mínimos esforços às risadas frequentes. logo descobriu que a companhia do irmão caçula de sua melhor amiga era surpreendentemente mais agradável do que a de Ted, Marshall, Lily, Robin e Barney pela décima vez. E ela não conseguia pensar isso da maioria das pessoas.
Quando perceberam o horário e, a contragosto, decidiram ir embora, fez questão de acompanhá-la no uber até em casa, afirmando que se sentiria mais seguro tendo certeza de que ela chegaria bem, principalmente depois que já tinham perdido a conta de quantas doses haviam consumido.
— Bom, é aqui que eu fico - ela comentou, quando o carro desacelerou em frente a um prédio de altura média, coberto por uma tinta amarelo-clara e algumas rachaduras. sempre brincava que o edifício era a prova clara de que quem vê cara não vê coração. Apesar do estado externo não tão atraente aos olhos, os apartamentos eram incrivelmente aconchegantes e modernos por dentro. Além de que, em anos, ela não podia reclamar de problemas com nenhum de seus vizinhos e essa era definitivamente uma coisa a se valorizar.
assentiu, procurando os olhos dela para o que sugeriria a seguir; a sutileza restante perdida depois do terceiro copo de whisky.
— Qual a chance de você me dar o prazer de te levar para almoçar amanhã?
deu um sorriso de canto.
— Infelizmente, tenho que almoçar com os designers das novas imagens de divulgação do rímel de extensão máxima da Eyeko.
concordou, sabendo que não havia obtido sucesso algum em sua tentativa de disfarçar a pontinha de decepção ao ouvir aquelas palavras.
A mulher, no entanto, moveu-se rapidamente contra o revestimento de couro acinzentado dos bancos do carro.
— Mas eu tenho uma ideia. Tem um lugar ao qual eu vou todo sábado de tarde. Acho que você pode gostar de lá. E podemos sair para tomar um café depois.
O sorriso de se iluminou como a Times Square na contagem regressiva do Ano Novo. Aquelas eram as informações mais vagas que já havia recebido na vida e, mesmo assim, não poderia estar mais ansioso para fazer seja lá o quê, seja lá aonde, com ela. Deveria saber que o fato de ter aceitado aquilo tão rápido era o sinal claro daquilo que sua mãe sempre falava: ele se jogava de cabeça fácil demais. Mas, dessa vez, não estava realmente preocupado em quebrar a cara.
tinha enviado uma mensagem para ele com um horário e um endereço que não lhe era nem um pouco familiar. passou o percurso inteiro tentando criar hipóteses do que poderia aguardá-lo. Sabia que, provavelmente, não era nenhum evento chique, já que ela havia dito que ele não precisava se preocupar com roupas, mas essa era literalmente a única “pista” que ele tinha.
Quando o aplicativo assinalou a chegada ao destino, agradeceu o motorista, pulando para fora do carro enquanto observava a enorme casa branca, extremamente arborizada à sua frente. Não era exatamente o tipo de lugar que ele esperava encontrar naquela área de Manchester.
Empurrou o portão e caminhou pela passarela de pedras até a entrada, tendo finalmente os indícios mais próximos de onde estava se metendo ao perceber o pequeno playground nos fundos, com balanços e escorregadores.
— Ah, você chegou! Que ótimo!
A voz que havia estado presente em todos os seus sonhos nas poucas horas dormidas soou, trazendo um sorriso imediato para sua face. usava um macaquinho colorido e os cabelos presos em um coque bagunçado no alto da cabeça. Estava simplesmente maravilhosa e tinha a postura clara de quem sabia disso, mesmo que não se importasse.
— O que exatamente é esse lugar?
— Mini , seja bem-vindo ao Instituto Edwards para Crianças Carentes. Esse terreno é de um dos maiores colaboradores do instituto e usamos aos fins de semana, principalmente para lazer dos pequenos.
— E você vem aqui todo sábado?
assentiu, empurrando uma mecha de cabelo que havia se desprendido para atrás de sua orelha.
— É totalmente voluntário e é o que me faz mais feliz nessa vida. Estar com eles me traz uma paz enorme.
Duas crianças passaram correndo e gritando, agarrando-se às pernas dela.
— O que vocês dois estão fazendo?
— O Mike precisa pegar a gente - a menina explicou, expondo os buracos em que os dentes da frente deveriam estar. — E você é o ponto limite. Se ficarmos aqui, ele não pode nos pegar, tia .
A mulher assentiu.
— Mas se vocês ficarem aqui o tempo todo não vão brincar. Vão passar a tarde toda grudados na minha perna? Precisam ganhar do Mike fugindo dele. Não é tão legal desse jeito.
Os dois a encararam, concordando, antes de saírem correndo e gritando mais uma vez.
— Bridget e Lenny - ela explicou para . — O resto deles deve estar correndo lá fora. Mas daqui a pouco é hora da atividade em grupo, daí todos entram e fazemos algo aqui.
“Como você topou vir, pensei que talvez pudesse mostrar algo musical para eles. Eles sempre pedem, mas nos limitamos a cantar músicas infantis desafinadamente porque meu dom musical ficou no útero e foi jogado no lixo junto com a placenta.”
— Eu não trouxe nada.
— Ah, não se preocupe. Tem um violão no depósito. Dei uma limpada nele mais cedo. Estava meio empoeirado de ninguém usar.
— Espero que o dono saiba que isso é um crime. Só tem um problema. Crianças com certeza não são meu público de costume. Eu não faço ideia do que tocar.
deu de ombros.
— Mostra um pouco as coisas do violão e canta qualquer coisa. Eles vão adorar qualquer coisa que você faça. Eles se encantam com facilidade.
— E você? Também se encanta com facilidade?
A mulher riu alto, enquanto colocava as mãos nos bolsos da roupa.
— Quem sabe? Faça seu melhor, mini .
Com alguns gritos e vários gestos exagerados, logo deu conta de colocar todas as crianças para dentro. Rapidamente, estavam todos sentados no chão, em roda, como costumavam fazer semanalmente. se sentiu levemente constrangido por ter tantos olhos curiosos encarando-o. Estava mais nervoso do que ficava antes de seus pequenos shows. Aquilo era diferente de tudo o que já tinha pensado em fazer. Não tinha apenas um grupo de crianças para impressionar. Além de tudo, tinha de pé, encostada à parede com os braços cruzados, encarando-o com um olhar quase desafiador, apenas aguardando seus próximos passos.
— Quem é você? - Um menino cheio de sardas perguntou o que todos eles estavam pensando.
— Eu sou o . E você, como se chama?
— Kieran. Você é namorado da tia ?
encontrou o olhar da mulher no fundo da sala. Ela segurava uma risada.
— Somos só amigos, Kieran.
— Não acredito em você - o pequeno retrucou. — Você não para de olhar para ela.
sentiu as bochechas ardendo e tinha certeza de que todos ali estavam percebendo seu rosto adquirir um tom inédito e vergonhoso de vermelho. Não quis saber como a mulher havia reagido àquele comentário. Não precisava piorar a própria situação. Simplesmente ajeitou o violão no colo e fingiu que os últimos dois minutos não tinham existido. “Apenas uma alucinação coletiva”, repetia a si mesmo.
— Bom, a me disse que vocês gostam bastante de música e eu toco um pouco. Querem ver?
Foi o suficiente para alterar totalmente o foco de atenção das crianças. Assim que posicionou o violão sobre a perna, as crianças murmuraram alguns comentários indistintos e se aproximaram, sentando sobre os próprios joelhos a fim de conseguir chegar um pouco mais perto e ver com mais atenção o que ele tinha a mostrar.
— Primeiro, vocês sabiam que a gente precisa afinar o violão antes de tocar?
Alguns balançaram a cabeça, negando.
— Ou o som sai assim - ele completou, tocando uma nota qualquer, que saiu horrível, como se as cordas do instrumento fossem iguais às presentes em brinquedos.
— Isso foi horrível - Kieran comentou, arrancando risadas das crianças.
— Péssimo, não é? E agora - comentou, enquanto torcia os parafusos, antes de deslizar a ponta do polegar pelas cordas. — Não é mais tão horrível.
— O que você vai tocar? - Bridget questionou.
coçou os cachos, tentando livrar-se dos tufos que já escapavam do corte, tentando cair sobre os olhos.
— Não sei. O que você quer que eu toque?
— Beatles - ela sugeriu, fazendo com que o rapaz concordasse prontamente, enquanto um sorriso largo de formava em seu rosto.
não demorou para decidir o repertório. Prontamente, estava dedilhando acordes muito bem conhecidos, arrancando um sorriso leve de .
— Here comes the sun, doo da doo doo
Here comes the sun and I say: it’s all right
Pequenos ombros e pescoços balançavam no ritmo da melodia. Alguns conheciam a música o suficiente para cantarolar junto dele. O sorriso de só se alargava, vendo as crianças se divertindo e realmente participando daquele momento.
se aproximou, puxando Naomi, a mais nova, para o próprio colo quando decidiu se encaixar à rodinha deles. A menina se enrolou em seus braços como um gato, permitindo que a cabeça caísse sobre o ombro dela. A mulher beijou o topo de sua cabeça, abraçando-a com mais força, enquanto balançava-a delicadamente a cada “doo da doo doo”, fazendo-a rir.
ainda tocou ‘Hey Jude’, conquistando um coro animado e especialmente empenhado em berrar “na na na na na na na” o mais alto que pudessem.
— Ok, ok. Vão tomar água para não machucarem a garganta, meus cantores mega talentosos - mandou assim que deixou o violão de lado.
As crianças saíram correndo, rindo alto enquanto apostavam corrida até o bebedouro da cozinha, que costumava ter a água mais fresca de todo o instituto. Os dois mais velhos ficaram para trás, encontrando-se enfim - quase - a sós. sorriu, aplaudindo lentamente. fez uma reverência desajeitada.
— Tenho que admitir que você se saiu bem melhor do que eu esperava - ela comentou.
— Não acredito que você realmente menosprezou o meu talento.
— O seu talento eu jamais questionaria. Agora, sua cara de desespero nos primeiros dois minutos em que todas as crianças começaram a olhar para você realmente foram uma cena impagável.
— Bom, meu público geralmente está bêbado e não alerta como se tivesse acabado de tomar três litros de suco cheio de açúcar.
meneou a cabeça, sendo obrigada a concordar.
— Eles tinham mesmo praticamente acabado de lanchar. Glicemia infantil é um negócio assustador.
— Você se dá bem com eles - ele constatou a maior obviedade da tarde. — Dá para perceber que eles te adoram.
— E a recíproca é totalmente verdadeira. - Ela tinha o sorriso mais puro e verdadeiro do mundo no rosto. — Participar desse programa com eles foi a decisão mais acertada que eu tomei na vida.
— E lá vem eles - comentou ao ver os pequenos correndo de volta para dentro.
— Do que podemos brincar? - Lenny questionou, pulando de um pé para o outro enquanto aguardava uma resposta.
— Não sei - a mais velha disse. — Que tal se o escolher hoje?
As crianças o encararam, aguardando.
— Ah, eu não sei - tentou driblar o constrangimento. — Faz muito tempo que eu não faço nada do tipo. Acho que nem conheço mais brincadeiras infantis.
“Que não envolvam álcool”, completou mentalmente.
— Para com isso - insistiu. — Você é quase tão criança quanto eles. Deve se lembrar de alguma coisa de que gostava de brincar quando menor.
— Vou ser obrigado a refrescar sua memória sobre o fato de você ser só três anos mais velha do que eu. Mas, sim. Pensando bem, acho que tem uma coisa.
tinha quase certeza do que tinha visto de relance no depósito quando foi buscar o violão. Correu para dentro, sorrindo vitorioso ao confirmar que seu cérebro ainda não tinha chegado à fase de lhe pregar peças. Com algum esforço, puxou uma caixa cheia de bolas emborrachadas de uma prateleira e seguiu até a área de convivência ao ar livre.
— A minha brincadeira favorita sempre foi queimada. Vocês sabem jogar?
Todos concordaram, enquanto se apressavam a pegar uma bola para si.
— Ei, ei! Mas nós nem dividimos os times ainda!
— Já tentamos isso antes - explicou. — E eu tenho uma má notícia.
— Atacar! - Kieran bradou, quase como um guerreiro romano em um filme antigo com muito sangue e pouca confiabilidade histórica.
Os braços passaram a funcionar como catapultas, arremessando as bolas da melhor maneira que conseguiam na direção do visitante e dono da ideia. cobriu o rosto, virando-se de lado para tentar, inutilmente, desviar-se da saraivada de bolas que vinham em sua direção. As gargalhadas aumentavam a cada vez que uma das esferas o atingia, sendo acompanhadas por gritos estridentes ocasionais.
Quando ele finalmente conseguiu passar dez segundos sem ser atingido como se tivesse um gigantesco alvo vermelho bem no meio do peito, retomou sua postura normal, virando-se de frente para o exército mirim.
— Acabaram?
— Não - respondeu, jogando a bola para o alto e a agarrando de novo na sequência. — Falta um arremesso.
— Você não teria coragem.
— Dá para perceber que ainda estamos nos conhecendo. Ou você saberia perfeitamente que eu passei os últimos minutos esperando ansiosamente por esse momento.
Com um movimento rápido dos ombros, arremessou a bola em sua cabeça, fazendo todas as crianças gritarem em comemoração e irem até ela, cumprimentá-la com um high-five.
não pôde evitar a risada, enquanto tentava arrumar os próprios cabelos e ajeitar a camisa.
— Não é exatamente assim que se joga. Mas fico feliz de proporcionar esse divertimento às minhas custas.
— É que assim é bem mais legal - Bridget caçoou.
— Sou obrigada a concordar - emendou a mulher. — E, infelizmente, é minha hora de ir embora, então venham se despedir da gente.
As crianças a rodearam, esmagando-a por todos os lados e direções em um abraço coletivo.
— Vem, tio - Naomi chamou-o, chacoalhando a mãozinha.
sorriu para ele, assentindo com uma piscadela para que ele se aproximasse.
Após alguns instantes assim, as crianças saíram correndo de novo, deixando apenas Kieran para trás com os adultos.
A mulher ajoelhou em sua frente, arrumando uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.
— O que foi, querido? Aconteceu alguma coisa?
— Ele vai voltar?
olhou do menino para , sem entender exatamente o que ele queria dizer.
— Você prefere que ele não volte? - Perguntou, tentando ser o mais cuidadosa possível com as palavras.
O rapaz sentiu a inspiração mais pesada e difícil do que de costume, interrompida pelo bolo que tentava se formar em sua garganta. Não estava preparado para enfrentar aquele tipo de rejeição e, pela primeira vez, sentiu medo genuíno por algo que nem sabia direito o que era. Não sabia porque se importava com aquilo, mas o fazia de corpo e alma. Ver todos tão felizes, animados, brincando e cantando juntos e, acima de tudo, como faziam abrir um sorriso enorme, pendurado de uma bochecha a outra, tinha trazido paz ao seu coração e uma vontade avassaladora de fazer parte daquela felicidade com eles.
— Não. É que as pessoas vêm e quase nunca voltam. E ele é legal.
sorriu ternamente para o menino, abraçando-o com força.
sentiu o peso no peito aliviar de uma só vez; a expiração saindo de sua boca como um pássaro agitado sendo finalmente libertado de sua gaiola.
— Eu vou voltar. Pode ter certeza - assegurou. — E da próxima vez, você escolhe a música.
O garoto concordou, sorrindo e saiu correndo atrás dos amigos.
— Dá para entender porque você é tão apegada a esse lugar - comentou, vendo a mulher secando delicadamente a umidade que emanava com discrição pelo canto dos olhos.
— Eles mexem muito com a gente - admitiu. — Agora, vamos tomar um café? Lembro de ter prometido essa parte como barganha.
Com dois brownies e dois cafés com creme, e se sentaram em uma mesa para dois, próxima à janela. Alguns adolescentes passaram do lado de fora, andando de bicicleta. Duas crianças brincavam com carrinhos na calçada em frente à loja dos pais. O sol já estava em seu estágio poente, deixando o céu lá fora em um tom agradável de laranja.
— Eu avisei que eles iam te adorar - comentou, comendo um pedaço de seu doce.
— Eu estava me cagando.
— Eu sei. E vi como ficou preocupado de novo quando estávamos saindo.
— O garoto definitivamente me assustou - comentou, deixando uma risada nervosa escapar.
— Kieran é bem sincero quanto aos sentimentos dele. Sempre foi. O instituto nasceu de uma ação colaborativa com um orfanato, sabe? Depois que nós juntamos outras crianças que também poderiam ser beneficiadas por essa oportunidade de lazer e tudo mais. Mas essa é uma das grandes causas desse medo deles sobre as pessoas aparecerem, brincarem, virarem as costas e nunca mais voltarem. Ele só não queria que você fosse mais um. Nós não queríamos.
concordou.
— Não vou. Só me convidar que estarei lá.
— Manterei isso em mente.
— E da próxima vez levo o meu violão. Me senti um pouco estranho tocando com outro.
— Não deu para perceber. Você tocou maravilhosamente bem. E sua voz é incrível. É mesmo um desperdício que esteja tocando só em bares e não em looping no spotify de todo mundo.
deu um sorriso presunçoso.
— E isso porque você disse que não se impressionava fácil.
ergueu o dedo do meio para ele, enquanto levava a caneca fumegante de café aos lábios.
— Já me arrependi do elogio. Retiro o que eu disse. Você tocou como se nunca tivesse visto um instrumento de cordas na vida e cantou como se tivesse uma vitrola quebrada e arranhada na garganta. Horrível. Sinceramente, já deveria ter procurado outro rumo para a sua carreira.
— Acho que não. Eu sou maravilhoso e você sabe. E isso porque nem me ouviu cantando Arctic Monkeys ainda.
— Vou agir como se não estivesse ansiosa para não inflar mais ainda esse seu ego gigantesco. Tenho certeza de que vai ser uma grande merda.
— Obrigado pela confiança. Bom saber que você decidiu ser mais que minha amiga e se tornar também uma fã.
— Bom, sua irmã não estava errada quando disse que você era insuportável.
— E mesmo assim ela me ama. Quem sabe logo logo vocês também não terão isso em comum.
As linhas contornadas por lápis preto esfumado marcavam seus olhos com uma dureza cortante. tinha encontrado uma camisa antiga preta com alguns cortes e alfinetes segurando as mangas e seus coturnos escuros. Ao entrar na casa de shows, soube que estava igualzinha à sua própria versão de dez anos antes. Existia uma nostalgia reconfortante e prazerosa em se colocar novamente naquela posição, com aquele estilo. Fazia com que ela se lembrasse de todas as loucuras que tinha feito ao tentar conhecer seus rockstars favoritos. Com certeza não esperava estar, aos vinte e oito anos, retornando às suas origens. Mas valia a pena. Mal tinha chegado e já estava adorando viver isso por causa dele.
— Meu Deus, eu não acredito no que meus olhos estão vendo! - Não precisava de muito esforço para reconhecer aquela voz. — Você está surpreendentemente maravilhosa! Eu não esperava isso.
— Tentei vir um pouco mais a caráter - explicou-se. — E também é meio que uma piadinha porque seu irmão decidiu que eu sou fã dele e não me deixa em paz sobre isso.
— Então você se vestiu como tal. Meu Deus, vocês são tão perfeitos um para o outro que me dá ânsia. Mas de um jeito fofo - emendou, fazendo a amiga rir.
— Você é ridícula.
— Não. Eu sou uma irmã e amiga perfeita e, futuramente, também cunhada. Vocês vão perceber que a minha intervenção foi a melhor ideia que eu tive na vida. E eu sou um poço de boas ideias, então isso realmente significa muito.
— Sou obrigada a concordar que a intervenção acabou sendo bem… proveitosa.
— Que nojo, eu não quero saber do sexo de vocês - reclamou, fazendo uma careta. — Ótimo. Agora vou ficar com essa imagem na cabeça.
— Eu nem falei de sexo, foi você quem pensou. Só estou comentando que foi bom conhecê-lo. Ele é um cara legal. Gosto de passar o tempo com ele.
— Que bom que não fui eu quem te contou que ele disse exatamente a mesma coisa de você.
deu um sorriso de canto.
— Acho que nós dois nos damos bem.
— Espero ser a madrinha do casamento - a mulher cantarolou. — E sobre aquela outra coisa?
A amiga sacudiu a cabeça em negação.
— Ainda não, então vou precisar que pelo menos esse segredo você guarde. Mas acho que consigo no próximo mês. - Expirou com força. — Acho que vai dar certo.
— Vamos torcer.
A conversa das duas acabou sendo interrompida por uma voz alta e exagerada nos alto-falantes.
— Senhoras, senhores e pessoas que não se encaixam em nenhuma dessas nomenclaturas. Com vocês, .
O rapaz subiu ao palco, acenando para o público com uma mão, enquanto a outra sustentava o braço da guitarra. Seu sorriso ao encontrar e na plateia foi largo o bastante para superar os holofotes em cima dele e de sua banda improvisada.
— Boa noite a todos e obrigado por virem. Bem, nossa setlist de hoje começa com uma canção em homenagem a alguém bastante especial. Essa é para Arabella.
— Vou assumir que essa seja você - sussurrou, recebendo um tapa de e um gesto para que ficasse em silêncio.
Com os primeiros acordes, logo algumas pessoas já estavam pulando, abrindo os celulares para gravar stories para o instagram ou preparando-se para cantar.
não poderia dizer que não tinha literalmente sonhado com aquele momento durante os últimos dias. Mesmo com todo o trabalho criativo durante o seu sono, contudo, nada poderia tê-la atingido mais do que aquele momento ao vivo e a cores.
A voz de soava ainda mais rouca, afinada e gostosa do que ela se lembrava, fazendo cada uma de suas terminações nervosas parecer pulsar em resposta aos estímulos auditivos, percorrendo-lhe como uma corrente elétrica. Seus dedos ágeis moviam a palheta azul escura pelas cordas da guitarra. A mulher engoliu em seco, tentando ignorar o fato de que seu foco havia deslizado sorrateiramente para as mãos dele, viajando por caminhos e pensamentos impróprios demais para o ambiente público. Não era à toa que músicos eram oficialmente uma ameaça à sanidade humana.
Deus, era difícil demais tentar montar uma linha de raciocínio coerente. Por sorte, a música sempre foi algo para se sentir muito mais do que para se pensar.
— The horizon tries but it's just not as kind on the eyes as Arabella
Cada palavra era entoada com precisão, enquanto seus olhos pareciam cortá-la de uma forma lenta e sensual. Existia alguma coisa na voz de que fazia sentir um calor intenso vagando por cada um de seus poros. Seu olhar fixo deixava bem claro que ele não se sentia muito diferente.
— Arabella's got a seventies head, but she's a modern lover
It's an exploration, she's made of outer space
And her lips are like the galaxy's edge
And her kiss the color of a constellation falling into place
Se aquela já era oficialmente uma de suas músicas favoritas da vida antes daquela noite, agora ela tinha conseguido atingir algum nível estratosférico de admiração. Precisaria buscar no dicionário uma palavra nova, mais intensa que adoração para representar o que se passava em sua cabeça.
Tudo piorou - ou melhorou - drasticamente quando deu início ao solo de guitarra. A luz amarelada atingia a lateral de seu rosto, evidenciando a mandíbula travada e todos os músculos relacionados retesados ao seu redor. Uma pequena gota de suor deslizava pela linha de seus cabelos, enquanto ele se esforçava em seu solo, obtendo as reações justas de seu público.
— Just might’ve tapped into your mind and soul
You can't be sure
Os gritos e aplausos foram ensurdecedores, potencializados pelo ambiente mais fechado. procurou-a no meio dos demais, lançando uma piscadinha, enquanto dava uma risada sacana e passava a mão nos cabelos. Ridículo. Ele sabia perfeitamente o que estava causando e estava se divertindo às suas custas. Sorte a dele que ela também pretendia tirar seu próprio proveito mais tarde.
Após tocar mais algumas músicas e não desistir por mais de alguns segundos de desviar os olhos de sua fã mais interessante, deixou o palco, recebendo os cumprimentos do público no caminho.
— Eu estou um pouco suado - reclamou, aproximando-se das duas mulheres.
— Tenta ficar aqui embaixo no meio de tanta gente pulando e vai perceber que não é o único - completou, puxando o irmão para um abraço. — Foi ótimo mesmo.
O rapaz soltou a irmã, abraçando sua amiga com força e deixando um beijo que, por pouco, não escapou da bochecha, acertando o canto dos lábios.
— Promessa cumprida - brincou.
— Bom saber que você é um homem de palavra, mini .
riu alto.
— Mini , adorei. Vou começar a usar para te lembrar que eu sou a original e você é… Bem, seja lá o que vem na sequência.
— Já ouviu falar que primeiro vem o rascunho e depois a obra-prima?
A mulher sorriu, piscando rápida e repetidamente; os cílios batendo uns nos outros carregados de toda a sua ironia.
— No nosso caso, acho que estamos mais para obra-prima seguida de uma tentativa de réplica bem mal-feita.
— Deus, por favor, me perdoe por todas as vezes em que eu disse que queria um irmão - se intrometeu. — Eu não sabia o que dizia.
— Você não precisa. - deu de ombros. — Somos basicamente irmãs que não compartilham hereditariedade ou a parte fraternal chata e insuportável. Existem regras que obrigam irmãos a serem chatos com o outro. Nós podemos fugir delas.
— Bem melhor - concordou, grata por ter a amiga.
Os três se afastaram da multidão, pedindo algumas cervejas enquanto jogavam assunto fora e discutiam sobre toda e qualquer coisa. Davam-se tão bem que chegava a parecer que tinham se conhecido por toda a vida ou, para quem assim acreditasse, talvez tivessem se cruzado em tempos anteriores, tendo a familiaridade se marcado como uma tatuagem eterna e imutável.
— Bom, infelizmente preciso ir - disse. — Por favor, não chorem. Sei que minha ausência será sentida, mas viajo amanhã cedo e preciso dormir.
— Avisa quando chegar de viagem - pediu.
— Pode deixar - a outra garantiu, levantando-se.
— Ah, para ela você avisa? - perguntou, sentindo-se verdadeiramente chocado e até mesmo um pouco ofendido. — Bom saber.
— Oh, coitado! - Ela deu um beijo estalado na bochecha dele, enquanto bagunçava seus cachos. — Não precisa ficar chateado. Prometo que te mando um cartão postal.
— Eu te odeio. Boa viagem!
acenou, jogando beijos ao ar enquanto abandonava o estabelecimento, deixando os dois rindo para trás.
deu um longo gole em sua cerveja, enquanto retornava seu olhar para . O jeito que aquelas íris luminosas a fitavam parecia furá-la como mil agulhas. Não sabia porque pagar por sessões de acupuntura quando poderia ter aquilo de graça.
Normalmente, teria se cansado daquele joguinho de sustentação infinita de olhares. Não era do tipo que abaixava a cabeça para os outros, mas também estava longe de ter paciência para aquele tipo de atenção. Mas não era isso que sentia com ele. Não se sentia constrangida. Sentia-se desejada. E, se ele estava, como costumavam dizer, despindo-a com os olhos; bom, então ele poderia muito bem também fazê-lo logo com as mãos.
— Gostei da roupa. - O olhar dele desceu por seu colo. Um sorriso se formou em seus lábios, deixando escorrer o primeiro esboço de malícia.
— Gostei da música - ela emendou. — Nunca tinham dedicado nada para mim.
— Pois deveriam, Arabella.
Ela sentiu um arrepio correndo sua espinha, enquanto virava o último gole de sua bebida.
— Acho que vou pedir a conta.
O rapaz assentiu, chamando o garçom. Pagaram cada um a sua parte, com xingando por ter largado sua parte da conta para trás para ele. Tão típico. Se ela realmente não viajasse tanto, ele começaria a suspeitar que aquele era apenas um método para escapar mais cedo dos lugares e fazer com que alguém pagasse para ela.
Saíram pela porta dos fundos do estabelecimento, passando pela sala em que as bandas que tocavam deixavam os instrumentos. pegou a guitarra e guiou até o lado de fora, com a mão em sua cintura.
— Bom - ela começou —, foi uma noite incrível. Obrigada mesmo por ter me convidado.
— Fico feliz que tenha gostado. Mas tem mais uma coisa que eu quero fazer.
Ele levou a mão livre à nuca dela, aproximando seus rostos a fim de colar seus lábios. correspondeu imediatamente, dividida entre toda a ânsia e a expectativa da espera com uma vontade enorme de sorrir.
O beijo que havia começado calmo, logo ganhou força e agilidade, idealizando em movimentos e aproximações contínuas tudo o que tinham acumulado em um espaço de tempo tão curto. Quase tão curto quanto o espaço que faltava entre a mão dele, deslizando pela cintura dela, para alcançar a barra de sua blusa.
— Quer ir para a minha casa?
A pergunta de saíra ofegante, verbalizando a única coisa que seria capaz de dizer naquele momento. Quando beijou-a avidamente mais uma vez, ela soube perfeitamente a resposta.
— Onde é que você está me levando?
— , não é possível que você seja incapaz de entender o conceito de surpresa - ele reclamou.
— Não é possível que você seja incapaz de entender o conceito de que eu sou ansiosa demais para saber lidar com surpresas.
Vendada, a mulher acabou tropeçando em uma pequena elevação da calçada, soltando cinco palavrões em sequência para xingar o namorado que só sabia rir da situação.
— Meu Deus, eu te odeio tanto.
— Nada disso. Você me ama incondicionalmente.
— Se não tirar essa porra dos meus olhos logo, vou acabar tendo que repensar isso.
gargalhou às suas costas, obrigando-a a revirar os olhos, mesmo que ninguém pudesse ver sua revolta e irritação. passou as palmas das mãos pelas laterais da calça, tentando se livrar um pouco do suor incômodo que insistia em denunciar o seu nervosismo.
— Não tem problema. Nós já chegamos.
Ele desamarrou o tecido que cobria os olhos dela, permitindo que ela, finalmente, visse onde estavam. sorriu imediatamente, esquecendo-se da inegável vontade de esganá-lo. Conhecia aquela fachada muito bem.
— Feliz aniversário de namoro - ele disse baixinho, ostentando aquele sorriso que era, definitivamente, a coisa que ela mais amava no mundo todo.
Muita coisa havia mudado no decorrer daquele ano em que haviam começado a namorar. tinha, de fato, conseguido o que comentara com . Havia marcado para o rapaz uma reunião com o vice-presidente de uma gravadora que ela conheceu em uma das campanhas de delineador da Eyeko. Pequenas vantagens do choque de interesses dos dois mundos.
mostrou algumas músicas de composição própria - incluindo uma chamada ‘Adore You’ que só descobriu depois ter sido a musa inspiradora - e explicou o que esperava de sua carreira como artista. O homem concordou com tudo, afirmando que, com a voz, a personalidade e a boa aparência, conseguia enxergar perfeitamente um espaço para ele no mercado.
Com isso, havia conseguido seu tão sonhado contrato e passado dias a fio emocionado, com um sorriso que não saía do rosto. acabou perdendo as contas de quantas vezes mandou que ele parasse de agradecê-la sem parar.
E ela esteve por perto durante todo o percurso. Passava no estúdio ao fim de seu próprio expediente, vendo as últimas gravações do dia; viveu as noites em que ele se levantava repentinamente da cama de madrugada porque uma ideia de composição nova tinha surgido; os surtos quando ‘Adore You’ tocou pela primeira vez na rádio local, fazendo os dois chorarem abraçados, enquanto pulavam, até desidratarem. Cada pequeno passo tinha sido dado por ambos. Uma mão sempre segurando a do outro.
E, depois de tanta coisa, ali estavam. Bem em frente ao pub que marcava aquela história.
— Queria te fazer uma surpresa, mesmo que você tenha passado esse ano inteiro reclamando sem parar que detestava. Bom, então eu pensei: o que seria bom o suficiente, mas sem que ela me odiasse depois por ser muito exagerado? Achei que voltar ao lugar onde nos conhecêssemos fosse algo bacana.
— É claro que é. Eu adorei, de verdade. Já faz tanto tempo. Acho que nunca vi esse lugar vazio desse jeito. Talvez seja o horário.
fez uma careta.
— Na verdade, eu meio que reservei o salão inteiro. Deve ser isso.
— Deve ser isso? - perguntou um pouco mais alto. — , isso é exagerado!
— Você me odeia?
A mulher riu, balançando a cabeça em negação. Não conseguia se irritar quando ele fazia aquela cara.
— Obrigada pela surpresa. De verdade.
— Vamos entrar, então?
se apressou a puxar a cadeira dela, tentando ser o mais cavalheiro possível. Pediram os pratos e uma taça de champagne - pela comemoração, como ele tinha afirmado.
Conversaram durante todo o jantar, compartilhando não apenas o que tinha acontecido no dia, como as lembranças que o balcão do bar lhes trazia. estava realmente grata pelo caminho que as coisas tinham tomado. Aquele era, definitivamente, um paralelo de ‘antes e depois’ a que ela poderia assistir anualmente, como em um álbum de fotografias. E esperava, do fundo do coração, sentir-se ainda mais nostálgica e amada quando chegasse o ano seguinte.
— Eu me lembro perfeitamente do momento exato em que você atravessou aquela porta, pisando no meu coração com aquelas botas que você tanto adora - brincou.
— Como você é dramático - reclamou, revirando os olhos com graça.
— Existe uma palavra em espanhol, que eu descobri recentemente - ele prosseguiu. — E eu fiquei tão impressionado com o quanto o significado dela cabia para mim que acabei adotando-a como minha palavra de língua estrangeira favorita.
— Não acredito que ela conseguiu superar ‘croissant’.
O rapaz riu abertamente.
— Para você ter dimensão do impacto da situação.
— E você vai me contar que palavra é? Ou vai me deixar curiosa para saber o que mexeu com você desse jeito?
— Quando você chegou, eu não estava mesmo em um dos meus melhores momentos emocionais. E eu me lembro claramente de como achei estranho me sentir tão feliz sem esforço perto de alguém que eu literalmente tinha acabado de conhecer.
A mulher sorriu de canto, enquanto ele respirava fundo, buscando as palavras seguintes para dar continuidade ao pseudo discurso. Sempre se espantava com o quanto ele era lindo, mas o brilho em seus olhos, voltados apenas para ela, tinha sido capaz de torná-lo, inexplicavelmente, ainda mais querido em seu coração.
— Foi instantâneo. Assim que você sorriu para mim, eu soube que não importava o que viria depois. Naquele exato momento, quando eu te vi pela primeira vez, eu percebi que iria querer estar ao seu lado por toda a minha vida. A palavra que define exatamente essa sensação, em espanhol, é ‘flechazo’.
Ele levou a mão ao bolso, retirando a pequena caixinha e arrancando dela um suspiro surpreso.
— E, em nome do nosso flechazo, , eu queria te perguntar se você aceita se casar comigo.
— É claro que sim - respondeu com a voz chorosa, praticamente saltando da própria cadeira para esmagá-lo em seus braços e lágrimas.
encaixou o anel prata com um pequeno diamante em seu dedo. retirou-o do dedo e abriu um sorriso olhando para a peça, antes de colocá-la de volta em seu anelar.
— Você gravou ‘flechazo’ no anel.
— E a data em que nos conhecemos - completou. — Espero que não tenha achado cafona demais.
Ela meneou a cabeça, sentindo os olhos ainda levemente embaçados pelas lágrimas.
— Está no nível perfeito de cafonice.
pediu uma sobremesa para dividirem e pagou a conta na sequência. Deixaram o estabelecimento de mãos dadas, balançando delicadamente com a brisa leve que permeava a noite de Manchester.
— No que você está pensando? - perguntou, aproximando-se para beijar a lateral da cabeça da noiva.
— Em quais piadinhas completamente vergonhosas eu posso fazer na hora dos votos no casamento.
— A parte boa de preparar um pedido de casamento é que eu já tive bastante tempo para pensar nessas coisas. Já tenho pelo menos umas duas páginas inteiras de conteúdo embaraçoso.
— Se eu não te amasse tanto, quebraria sua cara.
— Eu sou bonito demais para você ter coragem de fazer isso. E eu duvido que você não sentiria falta dos meus beijos e da minha língua na sua…
— ! - ralhou, interrompendo-o. — Já chega, estamos em um ambiente público. Guarde o linguajar para mais tarde.
O homem riu alto, apertando sua mão de leve, enquanto seguiam até o carro.
— Acho que podemos adiantar o mais tarde - sugeriu, com um sorriso sacana. — Quer ir para casa?
— Sabe que esse é o tipo de pergunta que você nem precisa me fazer.
assentiu, com um sorriso, enquanto ligava o carro. estendeu a mão direita, observando o anel de noivado perfeitamente encaixado em seu dedo, brilhando como a fagulha de vida e amor que tinha existido entre eles, inexplicavelmente, desde o primeiro instante. Aquele era, sem sombra de dúvidas, o melhor dia de toda a sua vida. Até deixar de ser.
Sentiu seu celular vibrando na bolsa, pegando-o rapidamente para ver que nome brilhava na tela.
— Ah, é a sua mãe - disse para o noivo.
— Coloca no viva-voz - ele sugeriu, sem tirar os olhos da rua. — Vamos dar a notícia a ela juntos. Dona vai gritar de felicidade até incomodar os vizinhos.
— Oi, ! - cumprimentou, sem conter um décimo sequer de sua explosiva animação.
— Ah, oi. O está com você?
A mulher murchou ao ouvir o tom sério e nada recíproco na voz da sogra.
— Eu estou aqui, mãe - ele respondeu, já sentindo o coração acelerar no peito. — Aconteceu alguma coisa?
Alguns instantes de silêncio mortal pesaram sobre eles antes que ouvissem o choro baixo do outro lado da ligação.
— Mãe, o que aconteceu? - repetiu, tentando manter a voz firme apesar da insistência do medo que lhe assolava para quebrá-la.
— A sua irmã sofreu um acidente - despejou. — Estava voltando de uma festa com o namorado. Aparentemente, tiveram de desviar rápido de um outro carro que vinha na mão errada e acabaram batendo em uma árvore. Ele morreu no local, mas ela…
já sentia a gola da blusa completamente ensopada pelas lágrimas silenciosas que escorriam como em um riacho. Aquilo não poderia estar acontecendo. Não era possível.
permanecia quieto, rígido, apertando o volante com mais força entre os dedos, como se aquilo fosse suficiente para aliviar o turbilhão imparável de coisas que se debatiam e giravam dentro dele como uma máquina de lavar roupas.
— Mãe, onde você está?
— No North Manchester General Hospital. Ela foi direto para cirurgia. Estou aqui fora esperando e…
— Estamos indo para aí - ele interrompeu, realizando uma curva brusca para a esquerda e ignorando completamente todos os limites de velocidade pelo caminho.
passou todo o trajeto tentando conter os próprios soluços, direcionando toda a sua energia em preces desesperadas, implorando para qualquer um que porventura a ouvisse que não levasse deles. Não era justo. Deus, nada daquilo era justo.
desceu do veículo apressadamente, com a noiva correndo logo atrás dele ao adentrarem o hospital. Seus olhos logo encontraram a mãe encolhida em uma poltrona, com o rosto inchado e as mãos trêmulas entrelaçadas sobre o colo.
— Alguma notícia?
ergueu o olhar para eles, extinguindo qualquer mísera possibilidade de que não tivessem percebido quão desgastada e destruída ela estava.
— Nada ainda. Só me mandam esperar, mas ninguém me diz nada sobre a minha filha.
começou a andar em círculos, pisando com força, enquanto mexia nos cabelos com certa violência. sentou ao lado da sogra, tomando sua mão entre as dela, assegurando que estava ali. Para o bem ou para o mal, viesse o pior ou o melhor, estavam juntas. Contudo, sinceramente, ela não fazia ideia do que aconteceria se viesse o pior. Não tinha condições psicológicas para sequer pensar sobre essa possibilidade.
— , meu amor, senta - ela sugeriu.
— Eu não consigo fazer isso agora - ele respondeu simplesmente, sem parar de caminhar. — O que exatamente aconteceu?
pareceu desconcertada.
— O que eu disse para vocês ao telefone. Aparentemente, vinha um outro veículo bem rápido na contra-mão, com os faróis desligados. O amigo com quem ela estava tentou desviar rapidamente e o carro acabou perdendo o controle e batendo em uma árvore.
— Ele estava bêbado?
— O amigo dela? Não - ela prosseguiu. — Conversei com antes de ela sair. Ela disse que tinha um amigo que não bebia e ele a daria uma carona para casa depois, que eu não precisava me preocupar.
parou, de repente, assimilando as palavras.
— E o outro cara?
deu de ombros, sentindo a fraqueza nos braços por sustentar sobre os ombros toda aquela dor dilacerante da espera e da incerteza.
— Não sabemos. Os policiais acham que sim por causa da forma que ele estava dirigindo, mas não conseguiram parar o motorista para saber.
— Sinceramente, talvez seja melhor eu nem saber.
Quando um médico finalmente se aproximou, e se levantaram de supetão, apertando as mãos uma da outra com mais força.
— Vocês são a família de ?
assentiu com a cabeça, incapaz de responder verbalmente através do gigantesco nó que estrangulava sua garganta.
— Eu sinto muito…
— Não - murmurou, sentindo o chão embaixo de seus pés sendo arrancado com força.
— Os ferimentos dela eram graves demais. Nós tentamos de tudo.
— Claramente não tentaram o suficiente - gritou desesperadamente. — Vocês precisam dar um jeito. Como podem simplesmente desistir da minha irmã? Ela vai ficar bem, eu sei disso.
— Senhor, eu entendo a sua frustração e a sua dor, mas o acidente foi muito grave. Ela perdeu muito sangue e alguns de seus órgãos foram dilacerados de forma irreparável. A equipe realmente fez todo o possível para salvá-la, mas, infelizmente, ela faleceu. Sinto muito pela perda de vocês.
O rosto do rapaz ficou vermelho, os olhos marejados e desesperados. Sua cabeça balançava freneticamente, sem qualquer disposição a acreditar que algo tão absurdo quanto aquilo realmente estava acontecendo.
— Não, não, não - ele sussurrava repetidamente. — Isso tem que ser alguma brincadeira de mau gosto, não é possível.
tinha se sentado novamente, encaixando a cabeça entre as mãos, enquanto chorava copiosamente pela perda da filha. , com seu coração também em frangalhos, decidiu engolir a dor insuportável que lhe consumia, enquanto decidia qual dos dois consolar.
estava devastado, desesperado, desacreditado, incontrolável. Não saberia encontrar palavras capazes de definir o que ele sentia. Nada no mundo jamais se compararia àquela dor.
— Não é verdade, não é verdade.
o abraçou, enquanto ele permanecia inquieto em seus braços, o coração batendo desesperadamente contra aquele aperto irrefreável. O mundo parecia prestes a engoli-lo.
— Não pode ser. - Ele finalmente liberou um soluço alto, quando as lágrimas começaram a vir. Apertou a noiva com força, permitindo-se desmontar. — Nós estávamos tão felizes, não pode ser.
— Eu sei, meu amor, eu sei - ela disse, tentando lutar contra as próprias lágrimas.
Ela sabia. Entendia perfeitamente a sensação de ter o melhor dia de sua vida se tornando drasticamente o pior de toda a história. Não era justo. Não era certo. E ela queria intensamente, do fundo de seu coração, que fosse tudo um pesadelo horrível do qual poderia fugir para sempre na manhã seguinte. Mas a dor que sentia lhe dizia que aquilo era tudo real. Real demais. E daquele pesadelo eles não conseguiriam acordar por muito tempo.
chegou mais tarde da Eyeko naquele dia. Tinha avisado que provavelmente o faria, pois precisava fechar com a equipe de mídias sociais os intervalos e padrões de divulgação e impulsionamento da nova linha de rímel de extensão máxima à prova d’água. Não que ele tivesse demonstrado esboçar qualquer reação àquilo. Desde que falecera, o caçula vinha se comportando praticamente como um morto-vivo, blindado a qualquer tipo de demonstração de sentimentos e emoções. Tinha vivido o luto intensamente, colocando tudo para fora durante os três primeiros dias, mas, depois disso, se trancou dentro das barreiras e muralhas que construíra em torno de si.
— , cheguei - ela avisou da entrada da cobertura em que moravam.
Não recebeu resposta, enquanto deixava as chaves do carro na cestinha do aparador. Tirou os sapatos como de costume, deixando-os na entrada.
não estava na cozinha e nem na sala de estar, o que só lhe dava duas opções: ou ele estava dormindo mais cedo - e ela duvidava muito dessa possibilidade, já que ele mal parecia dormir de madrugada - ou o ciclo estava se repetindo.
Caminhou a passos pesados até o pequeno bar que tinham montado no apartamento, encontrando a infeliz cena com a qual não era capaz de se acostumar, independentemente da frequência com a qual ela acabava ocorrendo. O homem estava sentado de uma forma totalmente torta e pouco confortável sobre a banqueta, o corpo arremessado sobre o balcão. logo viu a garrafa de whisky caída e vazia.
— Ai, amor, de novo - lamentou-se, sentindo um aperto no coração.
Não era a primeira vez que aquilo acontecia nem durante os últimos dez dias, quem dirá nos últimos quatro meses.
sentia seu coração se quebrar em milhares de pedacinhos pontiagudos, dilacerando-a por dentro. Era doloroso demais vê-lo daquele jeito, tão bêbado e acabado. Queria ser capaz de tomar para si ao menos uma parte de sua dor. Aceitaria qualquer coisa que pudesse aliviá-lo daquele sofrimento, mesmo que já tivesse sua própria cota de dor naquele processo de luto.
Respirou fundo, antes de encostar nele. Não tinha força alguma para arrastá-lo até o quarto para que deitasse corretamente e descansasse.
— … , por favor, levanta. - Ela o sacudiu com a maior delicadeza possível.
Após algumas tentativas, ele ergueu a cabeça, esfregando os olhos pesados.
— O que foi?
sentiu o estômago embrulhar com o cheiro intenso do álcool.
— Vamos para a cama, para você dormir melhor.
Ele aceitou a mão oferecida, apoiando-se nela enquanto caminhava para o quarto, um passo incerto atrás do outro. Ao menos, estava consciente o suficiente para se lembrar de escovar os dentes e se trocar antes de permitir que o corpo despencasse contra o colchão, dormindo praticamente na sequência.
ligou o chuveiro sobre os próprios ombros, deixando que a água quente criasse ao menos a ilusão de poder lavar sua angústia. Quando respirou fundo, o choro veio lhe fazer sua rotineira companhia. Não aguentava mais. Aquela situação era simplesmente insustentável. Já tinha dado espaço demais.
Com o coração apertado, decidiu que, pela manhã, teria que fazer alguma coisa.
acordou sentindo as consequências de ter, mais uma vez, bebido demais. Ao decidir ir até a cozinha, a fim de devolver o mínimo de hidratação, interrompeu-se no caminho, encontrando sentada em uma poltrona. As pernas cruzadas acima do assento e as olheiras profundas marcando a expressão de quem tinha passado a noite em claro pensando demais.
— Não vi que você já tinha acordado - ele comentou simplesmente, esfregando as têmporas.
— - ela disse, a voz mais firme do que esperava. — Nós precisamos conversar.
— Não olhe para mim desse jeito. Pode falar o que quiser, mas não me venha com esse olhar. Eu não quero a sua pena.
respirou fundo, corrigindo sua postura ao máximo para tentar sugar qualquer oportunidade de ganhar confiança em suas palavras.
— , você não pode beber desse jeito. Não faz nada bem para a sua saúde e você sabe muito bem disso.
— Não precisa se preocupar. Estou bebendo em casa para não cair morto na sarjeta ou correr o risco de causar a morte da irmã de alguém.
A mulher tentou conter as lágrimas.
— Você acha que ela iria gostar de te ver assim? Ser praticamente um alcoólatra está diminuindo sua dor?
abaixou a cabeça, engolindo em seco, sem coragem de encará-la ao admitir:
— Não. Mas, pelo menos, eu apago.
— , não é isso que iria querer para você. Óbvio que nós sentimos a falta dela. Todos estamos sofrendo com o luto, mas já se passaram quatro meses. Você precisa começar a trabalhar esse luto de formas menos destrutivas. A gente pode procurar ajuda, sabe? Talvez terapia seja uma opção.
A risada irônica saiu quase como um rosnado.
— Você não tem o direito de me mandar superar. Eu perdi a minha irmã, caralho!
— É por isso que eu disse trabalhar o luto e não superar. Não se supera uma coisa dessas. A dor diminui, mas ela não vai embora.
“E você pode falar o quanto quiser sobre como perdeu a sua irmã. Eu não estou tentando, e nunca tentei, colocar a minha perda em pé de competição com a sua. Mas ela era o mais próximo que eu tive de uma relação fraterna. Você não é o único sofrendo, . Eu só estou tentando passar por isso com você. Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, caramba.”
— Eu não quero mesmo ter essa conversa agora - ele murmurou, ameaçando ignorá-la e seguir seu rumo para a cozinha.
não desistiu.
— E vamos ter essa conversa quando, ? Quando eu chegar do serviço de noite e você estiver embriagado de novo e eu preciso te colocar na cama como uma criança? Que droga de vida você espera que tenhamos?
— Sinceramente? Se te incomoda tanto, pode ir. Não estou te prendendo. Achei que o compromisso que tínhamos era sobre ficar ao lado do outro, mas é uma escolha sua.
Foi a vez de soltar uma risada sarcástica e estrangulada, sem acreditar que estava sendo obrigada a ouvir aquilo. Ele sequer estava ouvindo o que ela dizia.
— Eu não estou ao seu lado? , eu literalmente estou te implorando para deixar que eu esteja por perto. Você está sendo tão injusto, puta que pariu.
— Estou mesmo? Tem certeza?
— É claro que eu tenho certeza, inferno! Sou eu quem está todos os dias ao seu lado. Eu que me mantive do seu lado, tentando te fazer comer nas primeiras semanas, te abraçando quando você chorava de madrugada, te acordando bêbado mesmo sem nem saber direito quem você tinha se tornado.
— Sinto muito por ser um fardo conviver comigo.
Ela estava tentando manter a calma. Deus sabia que estava mesmo. Mas existiam limites.
— Você tem noção de que eu recusei minha promoção na Eyeko para ficar com você? Eu recebi proposta de um cargo bem melhor, mas a sede é em Nova York. E mesmo tendo lutado a minha carreira inteira por isso, eu recusei imediatamente porque sabia que uma mudança desse porte seria demais para você. Para nós.
— Ótimo. Além de um fardo na convivência, também sou o destruidor de sonhos.
— Não foi isso que eu disse. Você está distorcendo absolutamente tudo que eu falo - ela reclamou, frustrada.
— E você esperava que eu me sentisse como com essa informação sendo arremessada no meu colo?
— , me escuta - sua voz saiu em tom de súplica.
— Como eu já disse, eu não tenho intenção alguma de dar continuidade a essa discussão. Pode ir para Nova York. Cansei de atrasar a sua vida. Espero que seja feliz.
Ele deu as costas, seguindo corredor afora em direção à porta de entrada.
— , volta aqui. Não terminamos.
— Terminamos, sim.
E com uma batida forte demais, que ecoou em sua orelha enquanto ela tentava pensar no que fazer, ele sumiu de sua vista.
foi até o quarto, encontrando a cama ainda bagunçada, o travesseiro dele ainda quente. Fungou, tentando se convencer a parar de despejar aquelas lágrimas inúteis. Não adiantava. Nada mais adiantava.
Quando abriu sua mala de viagem sobre a cama e começou a colocar nela as primeiras peças de roupa, a mulher ergueu o olhar para o teto, imaginando uma comunicação através dele.
— Eu tentei - murmurou, com a voz embargada. — Eu juro que tentei.
levou exatos seis dias para digerir tudo o que tinha acontecido. Apesar de toda a recusa e revolta momentâneos, havia passado as últimas cento e quarenta e quatro completamente sóbrio. Toda vez em que o pensamento sobre uma dose de whisky sequer rodeava a sua mente, sentia o estômago revirando. Não conseguia deixar de ouvir as palavras dela, lembrando-lhe de como aquela era apenas uma tentativa inútil de autodestruição e jamais iria querer aquilo para o irmão.
Tinha exagerado, sabia disso. Arrependia-se de cada uma das palavras e acusações que tinha feito enquanto o sangue fervia. Ela estava certa, como de costume. Ele precisava de ajuda. E precisava engolir o próprio orgulho e deixar de ser ingrato. Ela realmente esteve ao seu lado o tempo todo e só queria seu bem.
Foi com esse pensamento que ele voltou para o apartamento, com um discurso quase ensaiado, mas em constante mutação, sobre como havia realmente se perdido em sua própria dor e tomado as decisões mais erradas possíveis. Mas queria melhorar. Por ela. Por eles. Por .
— ? - Chamou da porta. — Podemos conversar?
Correu até o quarto, esperando encontrá-la lá, revendo The Office pela milésima vez ou algo do tipo.
Ao encontrar a cama desarrumada, exatamente do jeito que tinha deixado naquela manhã, sentiu a aceleração atingindo o peito.
— Não, não, não - murmurou repetidamente, enquanto abria o closet, confirmando o vazio em suas prateleiras, gavetas e cabides.
A mala de viagem tinha sumido junto com ela. Ele só conseguia ouvir a própria voz dizendo para que ela fosse para Nova York, praticamente expulsando-a de sua vida.
O pânico tomou seus pulmões, fazendo o ar faltar. O choro desesperado não melhorou em nada a situação. Se ela tivesse realmente ido embora, ele jamais se perdoaria.
Entrou no carro rapidamente, indo até aquele que sabia ser o lugar favorito dela. Era sua última esperança antes de aceitar que tinha mesmo destruído de tudo.
Kieran estava brincando no quintal da frente, sendo o primeiro a avistar .
— Oi, tio - cumprimentou, tentando usar as pequenas mãos para proteger os olhos do sol.
— Oi, Kie. Escuta, a passou por aqui?
— Não desde semana passada. Achamos estranho quando ela não veio, mas a tia Karen disse que ela só estava meio doente.
— Entendi. Claro, doente - concordou. — Obrigado, Kie. Nos vemos logo para eu finalmente ter minha revanche no Monopoly.
O menino riu, concordando e acenando enquanto o homem entrava de volta no carro. fechou os olhos, respirando fundo, enquanto seguia até a cafeteria próxima que ela tanto amava.
Assim que chegou ao local, flagrou a si mesmo olhando desesperadamente em todas as direções, buscando-a em cada canto inutilmente. O lugar estava estranhamente lotado e, mesmo com dezenas de faces por ali, a única que ele precisava ver parecia ter sumido de vez.
— Senhor? - A atendente o retirou de seus devaneios. — Quer fazer um pedido?
Não, não queria. Não tinha apetite algum no momento. Constrangido, contudo, decidiu pedir o básico.
— Infelizmente, nosso café acabou, senhor. Posso lhe oferecer um chá?
— Que tipo de cafeteria não tem café? - Ele sentiu seus ânimos se alterando ainda mais, explosivo por tão pouco.
— Desculpe, senhor. Estamos com a casa inesperadamente cheia e nosso fornecedor teve problemas na estrada. Uma das funcionárias foi ao mercado comprar um pouco enquanto as coisas não normalizam. Se o senhor quiser esperar…
Seu problema não era o café. Não era a atendente. Seu problema era única e exclusivamente sua própria culpa, apunhalando seu coração como uma adaga.
— Não faz mal. Eu que peço desculpas pela reação. Bom trabalho.
Voltou para o veículo sem olhar para trás, trancando-se atrás do vidro insulfilmado, isolando-se para chorar e soluçar em paz ao constatar o óbvio: estava sozinho por ter, por muito tempo, recusado não estar.
E por mais dolorido que fosse, não podia dizer que não entendia. Havia chegado a um ponto em que não sabia nem se era mais uma pessoa que ele gostaria de ter por perto. Não a culpava por ter ido embora. Se ele pudesse, também o abandonaria.
Mas aquela sensação ao tomar consciência de que talvez ela nunca mais fosse precisar dele foi avassaladora. Não conseguia conceber um mundo sem ela ao seu lado. E o pior é que ele sabia perfeitamente: quem sempre precisou dela foi ele, e não o contrário. Mas sua teimosia destruiu a coisa mais especial que tinha construído na vida. Se já deveria estar decepcionada pelos últimos tempos, agora ela devia estar odiando-o.
Se antes havia achado ter atingido o fundo do poço, agora sabia que a realidade poderia ser bem pior, especialmente quando sentia seu corpo inteiro afundando, caindo em queda livre sem ter mais ninguém para cobrir com curativos os seus machucados.
respirou fundo, colando a testa ao piano. Na última quinzena, tinha virado uma máquina de composição, escrevendo material suficiente para um álbum completo.
E era tudo sobre ela. Sempre era. Começava com uma melodia, pensando em um assunto diferente e, quando se dava conta, já estava falando dela de novo. Tinha total consciência de que escrevia músicas demais sobre , mas era totalmente impossível desviar seu foco quando tudo em que conseguia pensar era sobre ela.
Será que estava bem? Estava feliz? Estava mesmo melhor sem ele ou também sentia sua falta? Continuava se importando, independentemente de onde estivesse? Será que ela tinha se adaptado ao fuso horário e à loucura de Nova York? Por Deus, ele nem sabia se ela realmente tinha partido para Nova York. Sua decisão acerca da iniciativa de deixá-la em paz e dar espaço para que as coisas se acalmassem era excruciante. Não aguentava mais abrir o whatsapp ou o facebook e quase ceder aos seus impulsos desesperados, que queriam implorar de joelhos para que ela voltasse para casa.
Pegou o celular, abrindo o instagram dela. Não havia atualização alguma; apenas as fotos que ele já conhecia tão bem e amava com todo o coração. A mais recente, dela sorrindo largamente nos bastidores de seu primeiro show em Londres, era a sua imagem favorita. Aquilo era felicidade. A felicidade que os dois sempre compartilharam. E, por mais egoísta que fosse, ele sabia que nunca poderia ser feliz daquela forma de novo sem ela.
Deslizou para as mensagens diretas, cometendo o erro de captar a informação de que ela estava online naquele momento. A força de vontade necessária para ignorar aquele fato era muito maior do que a que ele, de fato, tinha.
Apertou o gravador em um impulso de coragem e começou, balbuciando um pouco, enquanto buscava as palavras certas para dizer:
— Oi, . - Sua voz saiu mais cansada do que ele imaginara, lembrando-o de como estava exausto. — Desculpa por te encher o saco com esse áudio. Eu juro por tudo que há de mais importante nessa vida, e você está no topo dessa lista, que eu tentei te dar espaço. Eu jurei para mim mesmo que não ia te incomodar, até porque, seja lá onde você estiver, sei que a culpa é minha. , eu estraguei tudo.
Ele respirou fundo, tentando se livrar daquela vontade de chorar que queimava seus olhos.
— Eu passei todos os segundos dos últimos dias remoendo meu arrependimento e como eu sou a pessoa mais idiota e estúpida do mundo por ter dito todas aquelas coisas. Eu fui ingrato, sim. Eu falei várias merdas da boca para fora, nas quais nós dois sabemos que eu nunca acreditei. Sei que você se importa. Sei que se importou demais se se dispôs a estar comigo durante os quatro piores meses da minha vida, por mais destruído e quase alcoólatra que eu possa ter ficado. Sei que te machuquei. Deve ter sido horrível chegar e me ver naquele estado, ainda mais quando não foi um evento isolado. Não consigo nem imaginar toda a força que você teve para suportar tudo isso. Mas é o que você me disse, afinal; na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Você com certeza soube levar essa promessa adiante melhor do que eu.
Droga, por que aquilo era tão difícil? Tinha tanto a dizer que o esforço para encontrar as palavras e moldá-las de uma forma coerente parecia grande demais. Enxugou uma lágrima que escorrera pela bochecha, antes de prosseguir naquele monólogo que ele não sabia - mas esperava - se ela iria ouvir. E, se ouvisse, talvez não respondesse. Ele sabia que merecia aquilo. Mas não podia evitar ter ao menos um pingo de esperança correndo em seu sistema.
— Sei que compartilhamos uma irmã, mesmo que por causas diferentes. Tenho certeza de que o luto deve ter sido tão doloroso e sufocante para você como foi para mim. Ainda é, na verdade. Você tinha razão quando disse que esse não era o tipo de coisa para se superar e, sim, para aprender a conviver. E eu deveria ter estado ao seu lado para aprendermos como seguir juntos, como nos dispusemos a estar.
“, eu sinto muito pela sua perda e sinto mais ainda por não estar lá para você. Me arrependo intensamente de ter te afastado no momento em que mais precisamos um do outro. Eu me perdi no caminho e me tornei alguém que eu não conhecia. Mas perder você doeu muito mais. Eu não sei viver sem você. Sei que você é forte, decidida, completa e sempre amei isso em você. Mas, mesmo que não precise de mim, eu preciso admitir que preciso de você. Sempre precisei. Sinto muito se as palavras que saíram da minha boca naquele dia disseram o contrário.”
inspirou mais uma vez, percebendo que precisava parar. Aquele áudio estava muito mais longo do que deveria, ainda mais para alguém que talvez nunca mais quisesse ouvir sua voz.
— , eu te amo com todo meu coração e minha alma. Você sempre será o maior presente que recebi em minha vida e tenho a quem agradecer eternamente por isso. - Seus olhos se encheram de lágrimas novamente com a lembrança. — Sinto muito por todos os momentos em que eu fiz você se sentir como se isso não fosse verdade. Perdão por estragar tudo. Sei perfeitamente que não tenho direito algum de pedir algo do tipo depois de tudo, mas, se existir qualquer possibilidade de consertarmos tudo e recuperarmos o que tivemos, por favor, me avise.
Enviou o áudio antes que voltasse a divagar e tornasse aquilo ainda mais desgastante e incômodo. Bloqueou a tela do celular, tentando convencer a si mesmo que a ansiedade não causava zumbidos em seu tímpano, incomodando-o como um inseto irritante e inconveniente que aparecia para infernizar suas orelhas no meio da madrugada.
Seus dedos correram pelas teclas, buscando notas em um acorde que, inconscientemente, ele já conhecia. Com a repetição das notas, sentiu as palavras formando frases, compostas em versos. Fechou os olhos, encontrando o tempo entre as notas antes de começar a cantar o que sabia que seria o refrão de mais uma música. Mais uma sobre ela. Mais uma sobre a sensação de queda livre que sua vida tomava sem ela.
— What am I now? What am I now?
What if I’m someone I don’t want around?
I’m falling again, I’m falling again, I’m falling
What am I now? What am I now?
What if I’m someone you won’t talk about?
I’m falling again, I’m falling again, I’m falling
O verso que veio na sequência fez sentir a dor atingi-lo na espinha, irradiando por todo o corpo. Não importava quantas vezes tivesse dito aquilo, a dor não diminuía.
— And I get the feeling that you’ll never need me again
Juntou as suas mãos sobre o colo, sem coragem de continuar uma palavra sequer. Seu coração parecia ter desaprendido a bater da forma fisiologicamente certa. Dava a impressão de estar tão ferido e confuso quanto seu dono.
Antes que pudesse começar a espiralar, repassando todo o seu arrependimento para se martirizar e se culpar como vinha fazendo cíclica e diariamente, a tela do seu telefone acendeu com a notificação do aplicativo, indicando uma mensagem.
Seu coração esmurrou suas costelas antes mesmo que ele terminasse de assimilar as palavras recebidas em resposta.
“Vamos conversar. Você sabe onde me encontrar.”
Ele se levantou bruscamente do piano, tropeçando nos pés do assento e quase caindo de boca contra o piso.
— Péssima hora para precisar ir ao hospital - disse a si mesmo, rindo nervosamente.
Tantas coisas se passavam ao mesmo tempo por sua cabeça, que ele sentia que seu cérebro poderia simplesmente explodir ou superaquecer a qualquer momento. Não se importou por não estar bem vestido o suficiente, nem por não ter almoçado direito. Todo o medo, excitação, ansiedade e esperança que sentia forravam seu estômago suficientemente bem para comunicar que ele só precisava ter uma coisa em mente naquele instante: encontrá-la.
Ao entrar no carro, entretanto, percebeu que não fazia ideia de onde ir. A mensagem enigmática não tinha realmente ajudado a esclarecer muita coisa.
Pensou no pub, na casa de shows, no estacionamento vazio em que tinham passado a noite apenas pela graça de fazer algo levemente proibido… Não, nada daquilo fazia sentido.
Foi quando a obviedade da resposta lhe acertou como uma bigorna em uma animação antiga da Cartoon Network. Era sábado, afinal. Checou o relógio no celular apenas para confirmar sua hipótese certeira. Só havia um lugar no qual poderia estar.
Cumpriu o trajeto em tempo recorde, chegando às portas do local em bem menos tempo do que se esperaria se não tivesse optado pelo atalho que desviava do trânsito vespertino.
Inspirou e expirou três vezes, inalando o cheiro de terra molhada e ouvindo os gritos infantis que ele tinha aprendido a adorar por causa dela.
Kieran estava no portão, encarando-o com o sorriso banguela.
— Ei, amigão! - tocou em sua mão. — Não tinha um buraco na sua boca da última vez em que eu te vi.
— Meu dente caiu semana passada - ele explicou. — Ficou preso na maçã que eu comi. Foi legal, mas meio nojento.
— Que horror - o mais velho comentou, fazendo o pequeno rir. — Você estava me esperando.
A criança assentiu, tomando a mão dele na sua.
— Claro que sim. Vem.
Kieran guiou pelo caminho de pedras até o grande salão. não conseguiu conter a forma com que sua face se iluminou automaticamente ao vê-la sentada no chão, tendo o rosto pintado por várias crianças.
Com as bochechas pintadas de vermelho intenso e as sobrancelhas mais azuis e tortas do que qualquer coisa, o avistou, sorrindo ternamente quando seus olhares se cruzaram.
respirou fundo, enquanto permitia que todo o amor que sentia por aquela mulher tomasse conta de si.
— Viu? - Kieran perguntou. — Vai ficar tudo bem.
FIM
Nota da autora: Ufa! Mais um ficstape em que eu me emocionei demais e esqueci o conceito de shortfic, rs. Mas é a vida.
Espero que vocês não me odeiem muito e que, apesar de tudo, tenham gostado da história. Foi feita com muito carinho.
Por favor, deixem comentários aí embaixo, lá nos meus grupos ou me mandem uma mensagem dizendo o que acharam, mesmo que seja para me ameaçar de morte. Sei que às vezes eu mereço.
Obrigada pela leitura e pela paciência <3
Sem mais delongas, espero que tenham gostado e, se você chegou até aqui, eu agradeço profundamente por me dar uma chance.
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Blow Me (One Last Kiss)
02. Stitches
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Robot
11. Nós
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallflower
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