Última atualização: 31/07/2020

Capítulo Único

As luzes do estúdio estavam parcialmente apagadas. Se o clarão da luz branca ainda estivesse sobre minha cabeça, talvez eu me envolvesse com menos facilidade com o clima intimista da rádio.
O estúdio da rádio da UFPE era surpreendentemente moderno. Os prédios da área de comunicação tinham uma estética de um lugar abandonado e cinza, mas por dentro era outra visão.
A radialista aproximou-se do microfone; o cabelo colorido e debotado parecia seda antiga enrolada em sua cabeça.
— Nossa artista independente de hoje é a querida . Tudo bem com você, ?
— Tudo, Mari! — respondi com mais entusiasmo que eu calculei.
— Qual é a música que irá cantar para nós hoje?
Encarei o papel em cima da mesa. Estava amassado e tinha algumas manchas de caneta. Eu deveria ter passado a limpo; usado uma caneta que vazasse menos tinta. Quem sabe assim meus sentimentos não iriam mostrar-se tão sujos e descuidados.
— Ressentimento.
Mariana levantou as sobrancelhas intrigada.
— Esse é um nome interessante para uma música… estou animada! — ela abriu os braços como se estivesse na frente de uma platéia — Ouviremos agora Ressentimento de .
A sala ficou mais fria; senti blocos de gelo subir pelos braços e cercar meu coração. Pensei nele, a musa daquela música. Ele dizia que quando eu cantava era tão honesta que chegava a ser constrangedor. Então, quando abri a boca para cantar, o soprano médio zunindo pelo microfone, deixei que meus verdadeiros sentimentos flutuassem pela música.
Há uma infinidade de acontecimentos antes do “precisamos conversar”. Três anos de um relacionamento perfeito; dois e meio de felicidade e um semestre de mudança drástica. , a quem amei mais do que qualquer outro homem, tornou-se alguém diferente.
Estávamos sentados no sofá da casa dele. Sempre achei como os tons pastéis do apartamento eram um reflexo da personalidade de . Hoje não penso assim. Ele, que sempre foi muito cuidadoso com as palavras, disse que não sentia mais nenhuma conexão comigo. Queria que eu fosse feliz, mas não com ele. Cada um para seu caminho, sem mais ou menos. Disse que não estava mais disposto a seguir o relacionamento.
As palavras dele deixaram-me com frio igual ao que sentia quando tinha que cantar Ressentimento. Era como se eu fosse descartável. Não houve nenhum choro ou mesmo tentativa de reconciliação. mostrava-se cansado: de mim, do relacionamento, dos encontros nos finais de semana que nós tínhamos… 3 anos fáceis de seguir em frente e deixar no passado.
— Por favor… — sussurrei. — Seja mais sensível. Do que está falando? Está querendo terminar?
A pergunta era retórica. não poderia ser mais óbvio — ainda assim, eu tinha uma pequena esperança de que eu tivesse entendido errado, que ele ligaria a TV e me abraçaria.
Éramos dois jovens apaixonados. Ele entrou na minha vida aos poucos a ponto de transformar-se em uma parte desassociada de minha rotina. Era a primeira pessoa que lia minhas músicas, as ruins e as boas. era o dono da opinião que mais importava para mim.
Por que ele decidira ir embora tão bruscamente?
— Está tarde — disse ele. — Não é seguro você voltar para casa de Uber. Eu te levo.
Apesar de ter uma intenção de cuidado, a voz dele soava com desinteresse. Ele não estava levando-me para casa porque se importava comigo, mas sim porque era o certo a se fazer. era um homem muito íntegro; o caráter imaculado e compreensivo era a sua skin care. Falava, porém, como alguém que tinha visto mais do que deveria. Odiava conversar sobre o passado. Era a única distância que nós dois tínhamos até o término. Enquanto eu tagarelava sobre meus dias preciosos da infância, ele dizia que não gostava desse sentimento constante de nostalgia. Para frente é que se anda, dizia ele.
Na primeira vez que fomos para a casa dele, disse-me que aquele era meu lar também. Entretanto naquele dia ele agiu como se eu fosse uma merda convidada ーpior, uma convidada indesejada.
A viagem de carro foi horrível. Os quinze minutos mais longos da minha vida. Recife pareceu triste, melancólica e quase deprimente. Fria. A cidade estava fria e nem um pouco acolhedora. Ao mesmo tempo, ela zombava das lágrimas que eu engolia.
Ouvi, de repente, o acorde que me lembrava para cantar a próxima estrofe. O choro transformou-se em uma bola de pelo que travava a minha garganta. Como cantar sem pensar nele? Como superá-lo?
Cantei que estava cuidando de mim do jeito que eu cuidava dele. Acendi velas aromáticas, tomei banho de banheira. Fiz minha comida favorita e li poesia sozinha; fiz vários buquês com as flores que comprei, dessa vez não para agradá-lo e sim porque o apartamento ficava mais bonito assim.
Dei uma pausa brusca na música. O guitarrista olhou para mim espantado; disfarcei o erro com um melisma. Senti-me injustiçada, traída, embora nunca tenha se mostrado infiel. Porém, ele traiu meus sentimentos, nossas promessas e nossos planos futuros. Cantei, então, do gosto do beijo dele — doce era, mas deixou um gosto amargo de sangue quando ele partiu.
Eu consegui mentir muito bem para todo mundo dizendo que havia o superado. Quatro meses era bastante tempo, não era? Não éramos tão próximos assim. Ele foi embora porque quis. Havia vários outros homens incríveis pelo mundo. Menti, fantasiei e fingi. Como uma atriz protagonizando a própria vida, eu disse que ele era passado, apesar de estar dedicando um EP para todas as mentiras que ele me dissera. Um dia, eu acreditava, a superação seria real.
A música finalizou e me senti sugada emocionalmente. A radialista disse alguma coisa, mas só pesquei os elogios que ela teceu-me. Sorri e agradeci — a ela, a produção e aos músicos que me acompanhavam. Sorri, mas queria cair no choro, enrolar-me no edredom e escutar Marília Mendonça. Queria também fumar um cigarro, beber cerveja com procedências duvidosas e amaldiçoar todos os homens pela janela.
Chovia quando saímos do campus. Rachei o Uber com a baterista, uma mulher baixinha que era estudante de Pedagogia. Ela começou a falar de política com o motorista e senti um certo conforto ao saber que éramos os três considerados comunistas pelo atual governo.
Decidi subir de escadas até meu apartamento. O som da minha sandália molhada batendo nos degraus tornou-se a trilha sonora dolorida. Lembrei-me que mandei mensagem para antes de entrar no estúdio e quis sumir. “A música é para você”, eu mandei. Abri o WhatsApp e encontrei uma conversa arrastada, de alguém que queria manter contato desesperadamente e alguém que só não bloqueou por educação. Meu Deus, como eu era patética.
Perdi o fôlego quando cheguei no corredor de casa: à frente do apartamento 17 estava , meu ex-namorado.
Ele tinha o cabelo úmido, embora carrega-se na mão direita um guarda-chuva molhado. Ainda assim, vestia-se tão perfeitamente que senti-me desajeitada.
— O que faz aqui? — indaguei ensaiando ser rude, mas minha voz soou quebradiça.
— Quero conversar.
Deveria ter o mandado embora, xingado e dito pra procurar alguém que estivesse desocupado. Escolhi errado, porém, a curiosidade corroeu meu estômago. Abri a porta para ele e convidei-o a entrar.
parecia uma peça que não se encaixava no quebra-cabeça da minha casa. Os móveis eram baixos demais para o seu um metro e oitenta e quatro; a decoração era feminina demais para ele. Ri sem humor, pensando que nunca tinha reparado nisso antes.
— Ah — disse ele depois de um grande silêncio. — Esse álbum é muito bom, meu favorito deles.
Observei para onde sua atenção estava; era o vinil de Built To Spill que eu ganhara semana passada de meu pai. Eu pensei que estava esgotado, mas ele conseguiu comprar de um conhecido. Keep It Like a Secret era também meu álbum favorito deles; mantive-me calada.
— O que você queria conversar comigo?
levantou os olhos devagar. Pôs as mãos no bolso da jaqueta e deu um passo em minha direção. A ansiedade aumentou.
— Pensei que a essa altura teria me superado.
Dei uma risada seca. Ira correu do meu peito até subir a minha cabeça.
— Puta que me pariu, . Vá se foder.
Poucas palavras, muitos sentimentos. Eu queria que ele sentisse a mesma dor que eu sentia; a tristeza, a solidão, os pensamentos de ansiedade. Queria que ele lembrasse de cada momento bom que tivemos até sentir-se que estava ficando maluco. Queria que ele sentisse o término tanto quanto eu.
Ele não pareceu abalado com meu xingamento; passou os olhos pela mesinha bagunçada e levantou a sobrancelha.
— Você ainda gosta de comer essa porcaria? — comentou da vasilha de plástico de macarrão instantâneo. — Isso faz muito mal.
— Você comia comigo quando namorávamos — encolhi os ombros, vibrando de raiva. — Você dançava brega funk também, lembra disso? Não ficava pagando de roqueiro.
deu mais um passo. A aproximação sufocou-me, mas me mantive fincada no chão. Era a minha casa, minha sala, meu lar e meu refúgio. Ele não estragaria até isso. Ele estendeu a mão até meu rosto e estremeci com o seu toque frio. Quis empurra-lhe, mas o toque acalentava-me de alguma forma. Queria voltar para o ano anterior, quando estávamos bem e felizes. Porém, mesmo que ele dobrasse os joelhos e me pedisse de volta, aqueles meses torturantes, suas palavras cheias de rudeza pairavam entre nós como uma barreira.
— Me esqueça — sussurrou . Os olhos escuros tornaram-se vermelho sangue e eu engoli um grito. — Eu fui a pior coisa que aconteceu com você. Fui abusivo e fiz você sofrer. Esqueça os bons momentos. Esqueça que um dia me amou. Siga em frente. Me odeie.
Pisquei aturdida. Encarei sentindo muito medo.
— Saia daqui — murmurei em terror. — Saia daqui ou chamarei a polícia! Seu monstro! — empurrei com força.
Meu ex-namorado soltou um suspiro.
— Adeus, .
Minha mão tremia. O pânico fez-me checar se a porta estava trancada mais de uma vez. Sozinha, chorei de medo e alívio. Estava segura.

Mais tarde, publiquei uma foto da apresentação de mais cedo no Instagram. Recebi vários comentários de universitários e gente que me acompanhava há um tempo. Um deles perguntava de onde vinha a inspiração para Ressentimento.
“É baseado em um relacionamento abusivo que tive”, respondi.




Fim!



Nota da autora: Hard feelings/Loveless é uma das minhas músicas favoritas do Melodrama. Adoro que a música é uma baladinha triste. Quis deixar a história um pouco mais brasileira e o final é inspirado em uma cena do K-drama Goblin. Espero que tenha curtido a história! Comenta e me diz o que você achou <3 a sua opinião é muito importante.
Até mais.




Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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