Prólogo
Você foi embora, e hoje, sou eu quem vou.
Capítulo Único
Domingo, 10 de junho de 2018 - Recife, PE.
Na medida em que as ondas quebravam na beira da praia, a água chegava até onde eu estava sentada, molhando meus pés descalços, e fazendo cócegas em minhas rugas. A água do mar estava quentinha, não da maneira que eu me lembrava, mas, ainda assim, agradável o suficiente para que eu sentisse vontade de ficar o dia inteiro por ali.
- Vamos, vovó! Catarina está esperando no carro, é o seu dia!
- Se é meu dia, pequeno, porque não posso ficar mais um pouco por aqui? Sente-se comigo! - eu sorri, estendendo-lhe a mão, e a criança sorriu de volta para mim, não demorando a aceitar meu convite, e deixando que a água tocasse seus pés também.
- Por que a senhora gosta tanto de vir a praia?
- O mar é mágico, pequeno, ele é capaz de curar dores, se você quiser muito.
- Já curou sua dor nas costas?
- Não. - eu gargalhei. - Não é desse tipo de dor que me refiro, Miguel. São as dores da alma, sabe?
- Tipo a saudade?
- Exatamente essa!
- Vó! Vai perder o seu próprio parabéns daqui a pouco!
- Já estou indo, querida! Vamos, Miguel, me ajude aqui, antes que sua irmã dedure a gente para sua mãe!
- Ela não faria isso! Catarina é gente fina, vovó!
- Eu sei, querido, eu sei! Mas ela é adulta, e os adultos escutam muito a razão.
O garotinho riu, enquanto tentava genuinamente ajudar-me a ficar de pé. Minhas costas doíam, mas eu ainda conseguia me levantar sozinha. É verdade que levava um pouco mais de tempo do que alguém jovem, mas valia a pena sentar na areia, de frente para o mar, e poder me lembrar vividamente, e com cada pedacinho de minha memória, de como seus olhos pareciam negros se vistos de longe, e o quão surpresa eu fiquei ao olhá-los de perto, e notar que na verdade, eram da mesma cor que o mar que eu gostava de encarar. A dor nas costas parecia insignificante perto do sentimento que as lembranças proporcionavam ao meu coração velho. Minha neta sorriu, abrindo rapidamente a porta do carro para mim, e depois de certificar-se que seu irmão estava no banco de trás, virou-se para mim e perguntou se eu precisava de ajuda para colocar o cinto de segurança. Eu sorri, e neguei sua ajuda.
- Eu sou velha, querida, não inválida. - gargalhei.
- Vovó, nem eu mesma consigo colocar esse treco direito! - ela riu enquanto reclamava, e fez uma careta quando eu apertei os cintos do fusca que era tão velho quanto eu. - Como é que a senhora fez isso?
- Anos de prática, meu amor. Muitos anos.
- Certo, vamos logo, eu ‘tô morrendo de fome!
Depois da terceira tentativa, o motor ruiu um barulho alto, e tanto Catarina, quanto Miguel, soltaram um grito de comemoração quando o carro resolveu ligar, e andar. Era sempre uma batalha entre o veículo e o motorista. E que saudades eu tinha do primeiro motorista daquele fusquinha azul, que vendeu como pão com manteiga aqui no Brasil, quando eu ainda era moça. Encostei minha cabeça no vidro, e deixei um sorriso escapar por meus lábios enquanto as paisagens do bairro da Ilha do Retiro, famoso por seu estádio de futebol, passavam por meus olhos, enquanto minha neta dirigia. Voltar finalmente para o lugar no qual eu cresci, mesmo que só agora no fim de minha vida, era uma forma de voltar para ele, mesmo que eu não o pudesse ver.
Quando pisei no jardim de minha casa pude notar a decoração. Os balões estavam amarrados em pedras medianas que os impediam de voar, em volta da pequena mesa redonda decorada com bolo e docinhos. As velinhas denunciavam minha idade: 85 anos.
- Feliz Aniversário! - Alan foi o primeiro a berrar, me abraçando. Um pequeno zumbido ecoou no meu ouvido direito com seu grito, mas eu não disse nada, pois seu abraço era terno e familiar. Eu o amava como um filho, apesar de ele ser meu genro.
- Parabéns, mãe! - Olívia, minha filha, rodeou-me por seus braços logo após seu marido me soltar. Eu fiz um carinho em sua cabeça, e depois em seu rosto, absorvendo o máximo de detalhes sobre ela que minha visão me permitisse enxergar. No dia em que eu partisse, seria de quem mais eu sentiria falta. Quando a gente fica velho, pensamos bastante na morte. Como vai ser, e o que vamos sentir. Se irei sentir, e se vou ter o poder de fazer com que minha filha sinta a minha presença. Rapidamente senti mais corpos quentes rodeando o meu, e incontáveis abraços de feliz aniversário. Uma pequena lágrima molhou o meu rosto naquele momento, mas eu a enxuguei rapidamente para que ninguém notasse. Minha linda família se preocupava demais comigo todos os dias para que tivessem também que se importar com o meu choro.
Algum tempo depois, eu me recolhi até o meu antigo quarto, cuidadosamente preparado para uma senhora, mas ainda com a mesma essência que tive na juventude. Peguei a chave em cima da penteadeira e destranquei a gaveta da cômoda, segurando a caixinha velha e empoeirada em minhas mãos. Sentei-me na cama quando Catarina entrou, sentando-se ao meu lado.
- Oi, vovó. Mamãe vai nos levar à praia para vermos o pôr do sol. A senhora gostaria de ir?
- Acho que prefiro ficar aqui, coração.
- O que aconteceu, vovó?
- Por que, querida?
- A senhora veio para o quarto do nada, percebi que está tristonha o dia todo. Você não gostou de vir para Recife? Podemos ir embora no momento em que a senhora quiser voltar para casa.
- Não é isso, querida, eu adoro esse lugar. Ele me traz lindas recordações, apesar de doloridas.
- Quer me contar?
- Você tem um tempinho para escutar sua velha falando mais do que o velho da cobra?
- Sempre vou ter tempo para senhora, vovó! Mas quero ouvir sua história sentada na areia, olhando o pôr do sol. Por favor! - ela fez um biquinho e implorou juntando as mãos, fazendo-me rir de sua atuação.
- Certo, então vamos ver o pôr do sol. Vou levar minha caixinha para lhe mostrar.
- Agora só falta a senhora me prometer que essa história que você vai me contar não é sobre romance, pelo amor de Deus! A mamãe não cala a boca o dia todo sobre como o destino a uniu com meu pai.
- Poxa, meu bem, sinto ter que desapontá-la.
Sábado, 10 de junho de 1950 - Recife, PE.
Meus pés molhados grudavam na areia quente enquanto eu caminhava. O tempo não estava tão quente como de costume, mas o sol estava vivo o bastante para fazer minha cabeça doer por ter ficado tanto tempo na praia.
Eu gostava de nadar enquanto pensava, a água fazia com que meus pensamentos se organizassem para que eu pudesse tomar decisões. Era quase como uma terapia.
E foi naquele dia, nem tão quente, mas quente o suficiente, que senti meu coração aquecer pela primeira vez. Eu não sabia que eu andava por aí procurando encontrá-lo, e não sabia também o quanto eu precisava que aquele sentimento brotasse dentro de mim até o momento em que aconteceu. Senti como se eu finalmente estivesse livre. Era profundamente estranho como todos os livros românticos que eu já havia lido em minha vida fizeram sentido quando meus olhos encontraram os seus. À primeira vista, me pareciam negros como o céu em uma noite de inverno, mas brilhantes, como o luar estrelado visto do campo. Eu senti como se borboletas voassem em sincronia dentro de mim, e por uma fração de segundo, era como se o mundo inteiro tivesse parado exatamente naquele momento, para que nossos olhos enfim se conectassem. Infelizmente, a realidade me atingiu como um chute na canela quando eu bati a minha perna em uma lixeira.
- Aí! - exclamei, escorando-me no lixo.
- Você está bem? - ele perguntou alto, quase gritando por cima do barulho que o bonde que cortava a rua fazia. Eu levantei a cabeça, encarando o homem com cabelos castanhos lisos e desgrenhados, grandes o suficiente para que ele os prendesse para trás. Preocupado, ele atravessou a rua com pressa, perguntando-me novamente se eu estava bem. Sua voz era maravilhosamente rouca, porém aveludada, e eu me perguntava se era possível alguém ter uma voz tão linda assim no mundo real.
Pisquei algumas vezes antes de conseguir responder. Meus olhos percorriam seu rosto, seu corpo e seus movimentos, para guardar o máximo de detalhes que meu cérebro pudesse captar. Ao encarar seus olhos, percebi que era o sol que estava escurecendo a minha visão e na verdade, a cor que os tingia era azul, como a imensidão que abrangia todo o oceano.
- Estou bem, obrigada. – murmurei, enquanto ele estendia a mão para que eu pudesse me equilibrar. Parei de esfregar a minha perna dolorida e descansei a palma de minha mão na dele, fazendo-o ajudar-me a subir a parte alta da calçada. Envergonhada, e com os pés sujos de areia, calcei as sandálias que estavam guardadas na minha bolsa.
- Eu... Eu só estava um pouco distraída.
- Quase não notei. – ele riu fraco mostrando suas covinhas para mim, o que me fez sorrir quase que imediatamente para ele.
- Sou ! na verdade, mas as pessoas me chamam de por aqui. Como você se chama?
- Me chamo , é um prazer conhecê-lo, - eu estendi minha mão para cumprimentá-lo, mas a puxei de volta ao notar que estava suja de areia, e molhada. Lembrei-me que eu estava completamente encharcada pois havia acabado de sair do mar, e toquei em meus cabelos, que deveriam estar horrorosos - Perdão pela falta de jeito.
- Sem problemas, . É um prazer finalmente conhecê-la - puxou minha mão suja de areia e beijou as costas dela, sorrindo novamente para mim. Foi então que notei suas vestimentas. Ele estava com uma calça surrada, com suspensórios caídos e uma regata branca manchada de graxa. Sua pele bronzeada, bem queimada de sol também estava um pouco suada como se ele tivesse trabalhado o dia todo em um local pouco arejado ou com ar quente.
- Finalmente?
- Peço perdão pelo atrevimento, mas eu já pude observá-la algumas vezes enquanto você lia um livro ou dois abaixo daquela árvore em frente à praia, ou sentada na primeira mesa daquele quiosque. – ele apontou enquanto meu resto denunciava o quão amedrontada eu tinha ficado, então, chacoalhando as mãos ele apressou-se a continuar. – Veja bem, eu não sou um pervertido, deixe-me explicar, eu trabalho ali naquela oficina. Do outro lado da rua, no pé do morro e sempre vejo as mesmas pessoas, todos os dias.
- Você pregou-me um susto.
- Não foi mesmo a minha intenção, .
- Ei, ! Volte ao trabalho, garoto! Temos que entregar esse carro até as três da tarde!
- Já estou indo, senhor! - revirou os olhos e sorriu para mim como quem pede desculpas. – Eu tenho que ir agora, mas podemos conversar outro dia, se quiser. Estou sempre por aqui.
- Eu também estou.
Observei atravessar a rua correndo e entrar na oficina enquanto seu chefe lhe batia um pano sujo nas costas. Percebi que era uma brincadeira interna dos dois quando riu, batendo outro pano velho no homem, começando uma pequena guerra entre os dois. Caminhei então até o quiosque costumeiro e pedi um suco, me sentando para ler o livro que estava em minha bolsa, pensando em aumentar a frequência a qual eu vinha até aqui.
- Oi de novo, !
- Oi, - eu ri, fechando meu livro.
- Você queria muito falar comigo outra vez, não é?
- O quê? - senti minhas bochechas ruborizarem, como ele poderia saber disso, afinal?
- Já são seis horas, . Você ficou aqui a tarde inteira.
- Ai, meu Deus! Eu não o vi o tempo passar enquanto lia, eu preciso ir para casa! Meus pais vão me matar!
- Eu posso acompanhá-la até em casa se quiser.
- Não precisa, obrigada. Eu moro só a uma quadra daqui, é bem perto.
- Eu insisto, . Já está escurecendo, afinal e eu tenho plena consciência de que você pode cuidar de si mesma, não me interprete mal, só estou querendo ser um cavalheiro.
- Nada mal!
Nós dois olhamos um para o outro e caímos na gargalhada. tirou a minha bolsa de meu ombro e colocou em cima do seu, ignorando meus protestos completamente e me deixando mais uma vez sem graça. Andamos lado a lado o caminho mais longo até a minha casa enquanto conversávamos coisas banais como qual era o meu livro favorito ou seu carro dos sonhos.
- Quantos anos você tem? - eu continuei nossa sequência de perguntas e ele me respondeu que tinha 19 anos. Ele pareceu-me mais velho à um primeiro momento, mas depois percebi que a realidade dele o envelhecia, pois, seus sonhos eram de um jovem adulto recém feito.
- E quantos anos você tem, ?
- Estou completando dezessete anos hoje.
- Hoje é seu aniversário? Ora, porque não me disse antes!
- Nem ao menos me lembrei.
- Espere um momento. – ele riu, levantando o seu dedo indicador em sinal para que eu ficasse ali e atravessou a rua, até a casa dos Oliveira, em frente à minha. Ele tirou um alicate pequeno do bolso de sua calça e cortou uma pequena margarida que crescia ali junto das outras. Eu gargalhei notando que ele traria a flor até mim. – Agora sim, feliz aniversário, senhorita !
Peguei a pequena flor e coloquei presa atrás de minha orelha, entre meus cabelos e fiz uma pose como se estivesse prestes a tirar um retrato. – Como estou?
- Você está muito elegante. – ele riu enquanto segurava a minha mão e me rodopiava abaixo da luz amarelada do post na calçada, fazendo nossa sombra ficar visível na parede. - Eu não pretendia dizer-lhe isso, pelo menos não hoje, mas está a garota mais elegante que eu já conheci.
- Muito obrigada! Pelo elogio, e pelo presente. Gostei muito de conversar com você, .
- Digo-lhe o mesmo. Poderei ter o prazer de desfrutar de sua companhia outra vez?
- Em breve!
- Contarei os dias, as horas e os minutos.
- Eu também vou. Boa noite, .
- Boa noite, .
Eu sorri abertamente ao entrar em casa, e coloquei as mãos no peito, sentindo meu coração disparado. Desejei esperançosamente que eu pudesse mesmo voltar a encontrá-lo.
- Viu o passarinho verde? Você parece feliz. Finalmente vai aceitar o pedido de Alberto?
Minha expressão mudou na mesma hora. Meu sorriu murchou, dando lugar para uma carranca, e um bico em meus lábios.
- Já disse que não, mamãe. Que susto a senhora me pregou!
- Por que está tão eufórica, ? E onde você estava até este horário, senhorita? Sabe que seu pai não gosta que chegue tarde em casa.
- São só seis e trinta, mamãe.
- Mesmo assim, você precisa estar descansada para seu dia amanhã, ele será longo.
- Já disse que não vou conhecer o Alberto. Não vou me casar com ele, não preciso conhecê-lo. Fim de papo.
- Seu pai quer conhecê-lo, .
- Ele que se case com Alberto então.
- , não seja teimosa. Você sabe o quanto é importante para a família.
- Não vou me casar com ele. Não vou me casar. Eu tenho 17 anos! Vocês não deveriam querer que eu estudasse?
- Meu amor, queremos isso. Com Alberto, seu futuro pode ser brilhante. Ele é um ótimo partido, e a família dele é ótima também.
- Eu disse NÃO! Vocês não têm esse direito, ninguém mais arranja casamentos neste país!
Entrei em meu quarto e fechei a porta, ainda sem acreditar na ideia absurda de meus pais. Se eles estavam pensando que eu ia ceder sem antes expressar meu ponto de vista, estavam muito, mas muito enganados.
- Feliz aniversário para mim – suspirei.
Domingo, 11 de junho de 1950 – Recife, PE.
Quando os primeiros raios de sol entraram pela janela de meu quarto, iluminando o meu rosto eu quis chorar como uma criança quando leva um tombo. Subi o edredom para cima de minha cabeça e pedi com todas as minhas forças que minha mãe não entrasse em meu quarto. Não deu certo.
- Bom dia, minha preciosa!
- Bom dia. – murmurei espiando-a abrir meu guarda-roupa e retirar algumas peças de dentro dele, estendendo-as sobre a cadeira estofada de minha penteadeira.
- Levante-se, tome um banho e se vista com as roupas que preparei. Você terá aula de piano primeiro e depois iremos almoçar com os De Castro conforme combinado.
Bufei.
Quando tirei o cobertor de cima de mim, a primeira coisa que meus olhos focalizaram foi a margarida pequena que tirei de meus cabelos e deixei em cima do criado-mudo ao lado de minha cama. Sorri ao me lembrar dele e tive a força necessária para me levantar e decidir dar um basta hoje nessa história de casamento.
Lá para o meio-dia um carro preto e bonito do qual eu não via todos os dias parou em frente à casa de minha professora de piano. Eu alisei a minha saia florida e ajeitei o meu suéter vermelho aguardando enquanto ela verificava quem estava ali. A surpresa tingiu-me os olhos quando ela voltou para dizer-me que o carro estava ali para me apanhar e levar-me até a residência de Alberto de Castro.
- Nós ainda não acabamos a aula. – protestei.
- Não tem problema, querida. Podemos repor o que falta em outra ocasião. – enquanto ela proferia as palavras, me empurrava devagar para fora de sua casa.
O motorista me escoltou até o carro e alguns minutos depois estávamos na casa de Alberto. Ele abriu a porta do carro para mim no momento exato em que meu pai e um homem de sua idade, se não ainda mais velho, abriram a porta de entrada da casa. Os dois estavam rindo e bebendo um líquido marrom de cheiro forte. Meu estômago embrulhou-se.
- Essa deve ser sua bela filha, !
- Oi, princesa! Como foi sua aula?
- Oi, pai. Interrompida. Você terá que pagar uma reposição.
- Não será problema, meu amor. Querida, quero que conheça o Dr. Alberto De Castro.
Ergui uma sobrancelha pensando que só podia ser uma pegadinha. O velho deu uma risada grossa e alta, e percebi que ele fedia a tabaco.
- Na verdade, queremos que você conheça o meu filho Alberto! Ele ainda não chegou, está ocupado no hospital, mas logo irá aparecer para o almoço. Vamos entrando, vamos!
Respirei um pouco mais aliviada, mas nem tanto, no fim das contas. Minha mãe e a esposa do Dr. Alberto De Castro estavam discutindo os detalhes do meu casamento. Ambas tinham uma revista de vestidos de noivas nas mãos e conversavam empolgadas sobre toda essa história que nem se quer notaram a minha presença nos minutos que fiquei sentada próximo a elas. Cruzei toda a sala minuciosamente decorada em tons de dourado e abri as portas de vidros que davam acesso para o jardim impecavelmente cuidado. Eu tinha que admitir, adoraria ter um jardim assim em minha casa. Sentia o cheiro das rosas mesmo estando longe delas, e escutava o canto dos pássaros por todo lugar. De longe, era o ponto auto do meu dia até aquele momento. Pensei que só poderia ter um outro ponto auto no dia se conseguisse fugir daquele almoço e encontrar . E foi exatamente o que eu tentei fazer ao atravessar todo o jardim até chegar ao portão dos fundos. Sorri comigo mesma e corri até ele puxando as correntes. Infelizmente havia um cadeado me trancando para o lado de dentro.
- Será que eu consigo pular? – me perguntei dando um passo para trás para verificar a altura.
- Eu não faria isso se fosse você.
Pulei com o susto e levei as mãos até meu peito. Encarei o garoto a minha frente, que me sorria com um olhar um tanto curioso, um tanto satisfeito, e o analisei de volta, tão rude quanto eu pude ser naquele momento. Seus cabelos eram encaracolados num tom castanho escuro quase pretos. Seus olhos também eram bem escuros, porém um pouco mais claros que os fios de sua cabeça. Sua pele era tão branca quanto a minha, mas enquanto minhas bochechas possuíam um tom rosado, seu rosto era bem mais pálido, quase como se ele estivesse cansado, mesmo aparentando não ser tão mais velho que eu.
- Já terminou de me comer com os olhos?
- Isso foi grosseiro. Mas eu lhe faço a mesma pergunta, o que está olhando, afinal?
- Nada! Nada! Você é muito bonita, . Imagino que deve ser a , certo? A filha do Sr. Coutinho?
- Sou.
- Eu sou Alberto, encantado em conhecê-la. Peço perdão pela demora, eu sou interno no Hospital do cento, e peguei um paciente de última hora.
- Sem problemas.
- Tem certeza? Não pareceu isso quanto você tentou escapar daqui pulando um portão com lanças.
- Eu não ia pular! – ri, um tanto quanto nervosa, pois eu sabia muito bem que sim, eu seria capaz de pular.
- Não. Porque eu te interrompi. Sou o seu herói.
- Ora, céus! Devo então meus sinceros agradecimentos a você. - falei com a voz totalmente arrastada, pintada com uma falsa simpatia, e ele me acompanhou.
- Seu sorriso tão lindo me basta como qualquer agradecimento, bela senhorita.
Nós dois caímos na gargalhada. Alberto deu tanta risada que ficou vermelho e eu pude sentir as lágrimas saindo de meus olhos por conta da crise de riso da pior interpretação de um flerte na face da Terra. Ele foi rápido ao me estender um pequeno lenço branco para que eu pudesse enxugar os olhos, e enquanto eu fazia, Alberto aproximou-se de mim para ajeitar uma mecha de meus cabelos que havia se soltado do meu coque. Ele sorriu amigavelmente para mim.
- Espero que possamos ser bons amigos, . – falou, ainda sorrindo, mas sua voz denunciava um tom de tristeza que seu rosto não transparecia.
- Ai estão os pombinhos! O almoço já vai ser servido! Vocês dois, entrem, por favor! - A senhora De Castro apareceu acenando abaixo da soleira da porta para nos chamar. Ela sorriu maternalmente para nós dois, e Alberto estendeu a mão para que eu fosse na frente.
O almoço se estendeu a tarde inteira. Alberto voltou para o hospital enquanto nossos pais trancaram-se no escritório e nossas mães faziam a lista dos convidados para o casamento. Eu encontrei uma biblioteca enorme na casa e me escondi lá dentro, onde chorei a maior parte da tarde. Odiava esse papel da donzela em perigo que precisava ser salva, mas eu definitivamente não tinha as rédeas da minha vida. Havia sido educada em casa à minha vida inteira, e as únicas garotas da minha idade que eu conhecia eram as filhas das amigas dos meus pais, que viviam sob as mesmas condições impostas a mim. Eu estava completamente sozinha e perdida dentro de mim mesma e dos meus anseios e desejos, sem a menor ideia de como lutar por eles em vez de lutar contra eles.
Já era noite quando finalmente voltamos para casa. Desejei boa noite aos meus pais e me retirei para meu quarto. Estava tão exausta de pensar e de chorar que adormeci em minha cama com a mesma roupa que havia passado o dia.
Segunda, 12 de junho de 1950 – Recife, PE.
Pensei que estivesse sonhando quando ouvi alguns estalos dentro de meu quarto, mas, na verdade, eu estava despertando com o barulho leve, porém agudo que eu estava ouvindo. Abri meus olhos devagar notando pelo relógio que eram cinco e meia da manhã e levei mais dez segundos para entender que os estalos não eram dentro de meu quarto, mas sim do lado de fora de minha janela. Pulei da cama e corri para olhar para o lado de fora, vendo lançar pedrinhas insistentemente em direção ao meu quarto. Quando ele me viu, abriu um enorme sorriso e fez sinal para que eu abrisse a janela. Eu sorri imediatamente comigo mesma, sentindo meu coração sapatear dentro de mim enquanto eu abria com cuidado a janela, tentando não fazer muito barulho.
- O que você está fazendo aqui? Você está maluco, ?!
- A culpa é inteiramente sua, ! Não apareceu na praia hoje, eu esperei o dia inteiro por você. Partiu meu coração.
- Eu também senti saudades, se é isso que você quer me dizer.
- Consegue escapar?
- Essa hora da madrugada? Não! É muito perigoso! - eu sussurrei, rindo.
- Vamos! Tenho certeza que você vai gostar da programação.
Comprimi meus lábios e pensei por um segundo. Dane-se!
Coloquei minhas pernas para fora da janela, que não era tão alta, e eu já havia escapado por ali antes, e então me lancei ao gramado. me segurou levemente pela cintura, depois, demos nossas mãos e percorremos juntos toda a rua escura até a calçada da praia, ora dançando, ora gargalhando. diminuiu o passo perto de onde eu costumava ficar para ler.
- O que estamos fazendo aqui?
- É a hora dourada.
- Como assim?
- O sol nasce exatamente às cinco e cinquenta e sete da manhã. Vamos ver isso acontecer juntos. – ele sorriu mais abertamente enquanto passava seu casaco por meus ombros. Nós tiramos nossos sapatos e seguramos com uma de nossas mãos, enquanto a outra estava entrelaçada na do outro. Caminhamos pela areia fria até perto de onde as ondas estavam se quebrando e aguardamos. As cinco e cinquenta e cinco o céu ficou mais claro e já era possível ver a cor da água do mar à nossa frente. Às cinco e cinquenta e seis, a linha do horizonte aderiu uma coloração amarelada, ficando mais intensa e laranja a cada segundo que se passava até que às cinco e cinquenta e sete em ponto o sol despontou sob o mar e nasceu. A hora dourada era incrivelmente bonita. Incrivelmente deslumbrante. Uma imagem linda, que apesar de eu ter crescido em frente às praias, era a primeira vez que eu presenciava.
- Uau. – foi a única coisa que saiu de minha boca enquanto eu recostava preguiçosamente minha cabeça no ombro de .
- Preciso te contar uma coisa, bela .
- O que foi?
- Você crê em amor à primeira vista? Paixão predestinada? Essas coisas todas?
- Acredito que todas as coisas acontecem porque elas precisam acontecer.
- Já é um começo.
- Por quê?
- Fiz uma promessa a mim mesmo e tenho para mim que a quebrei quando nos conhecemos.
- Não estou entendendo.
- Quando a vi lendo na praia pela primeira vez, Boris me pegou fitando-a. E fez uma piada como se eu estivesse no mundo da lua, perdido em pensamentos, por sua causa.
- Quem é Boris?
- O dono da oficina em que trabalho.
- Certo, continue.
- Então eu disse a ele e prometi a mim mesmo que se eu a conhecesse um dia eu não me apaixonaria por você. Mas desde que nos conhecemos eu não consigo parar de pensar em você. Acho que a promessa já era.
- Fico feliz em saber que não sou a única a pensar demais no outro por aqui.
- Espero que no próximo dia doze de junho eu possa chamá-la de namorada, senhorita .
- E nós iremos comemorar vendo o nascer do sol em uma ilha paradisíaca.
me levou para casa vinte minutos após o sol nascer, pois todos os despertadores de minha casa apitavam às sete da manhã. Eu voltei por minha janela novamente orando para que ninguém me pegasse, e menos ainda, que pudessem vê-lo saindo dos arredores da propriedade.
Era mágico como parecia que quando estávamos juntos todos os problemas de meu mundo desapareciam e eu não conseguia pensar em mais nada a não ser em seu seguro e em como suas mãos pareciam ficar mais quentes quando estavam em contato com as minhas. Mas era uma pena também quando essa sensação acabava no momento em que eu pisava dentro de minha casa, dando lugar ao sentimento de quão perturbador era perceber que nos apaixonamos por alguém que nunca poderíamos ter.
Estava melancólica lá pelas oito da manhã quando minha mãe adentrou meu quarto. Eu não havia conseguido pregar os olhos desde o momento em que tinha voltado para a cama, e tinha a sensação de que a minha cabeça explodiria a qualquer momento.
- Já está acordada! Maravilha! Bom dia, querida, apronte-se, por favor, você tem visita.
- Quem é?
- Alberto.
Quando desci, Alberto estava aguardando-me na sala. Abriu um lindo sorriso ao me ver e beijou a minha mão em cumprimento. Eu mordi o lábio inferior respirando fundo.
- Você está estonteante, !
- Obrigada. Você também está muito apresentável. O que faz aqui tão cedo?
- Vim falar sobre nosso casamento.
As palavras que eu não gostaria de ouvir. Respirei fundo, tomei toda a coragem que estava mentalizando possuir na última uma hora de meia e então eu disse. Baixo, mas disse.
- Talvez eu não queira me casar com você, Alberto.
- Aí. – ele colocou as mãos no coração e fingiu sentir uma pontada no peito. – Essa doeu! Doeu demais! Mas quer ouvir uma coisa engraçada? Eu também não quero me casar com você, . – sussurrou baixinho perto de meu ouvido.
A surpresa tingiu meus olhos inevitavelmente. Eu dei um passo em sua direção e ele deu um passo para mais perto de mim, sorrindo.
- Você é uma bela moça, . Mas eu vou te contar um segredo: eu já tenho uma pessoa para amar.
- Nossa família nunca vai aceitar.
- Eles não precisam saber, .
- Como não? Eles estão planejando um casamento!
- Marcamos a data para o fim do ano e ganhamos tempo. Podemos fingir que estamos nos dando bem, e aceitando essa imposição. É questão de tempo até estarmos livres para viver nossas vidas como quisermos viver.
- Espero que você esteja correto. E quando chegar a data, o que faremos?
- Não apareceremos no casamento.
- Você é mais maluco que eu.
- Não podem nos forçar a dizer sim se nós não formos até a igreja.
- Tomara que você esteja certo. E espero que seja feliz, Alberto.
- Eu vou ser! E espero que você também seja, querida . Temos um trato?
- Temos um trato.
Meu semblante não mascarou a esperança que dominou o meu coração naquele momento. E pela felicidade que Alberto beijou a minha bochecha, não haviam mais máscaras dominando-o também.
Terça, 20 de junho de 1950 – Recife, PE.
- Então... - eu comecei dizendo. ergueu os olhos para mim por cima dos óculos de grau que usava para ler. Eu mordi o lábio inferior e dei uma risadinha ao chacoalhar a minha cabeça negativamente para ele. - Não é nada, esquece.
- Não. - ele disse firme, fechando o livro. - Você está inquieta há dias! O que você quer me dizer?
- Nada, pode continuar lendo.
pegou a minha bolsa e guardou o livro dentro dela. Quando eu não comecei a falar, ele olhou para seu pulso e bateu o dedo indicador nele teatralmente informando-me que seu horário de almoço chegaria ao fim a qualquer momento. Todos os dias eu ia até a praia após as minhas aulas pela manhã e início de tarde. O motorista me levava até meus professores particulares e depois eu o dispensava com a desculpa de querer ler um pouco na praia. Isso acontecia pontualmente às três da tarde quando saia para almoçar no quiosque em frente ao que eu me sentava às vezes. Na maioria das vezes era quem lia o capítulo do livro ao qual eu já havia lido para que pudéssemos comentar sobre ele juntos ao fim da tarde. Ele limpava as mãos geralmente sujas de graxa e lavava seu rosto que reluzia o suor do tempo quente de Pernambuco. Atravessava a rua com um largo sorriso estampado em sua boca, e com olhos que me lembravam o mar. Era lindo de olhar. Depois abria o livro na página que eu já havia deixada marcada e perdia-se por lá. Até que vez ou outra pegava-me olhando-o com carinho.
- E então?
- Certo... Eu não sei como posso te dizer isso.
- O que houve, ?
- Vai haver um baile na minha casa... Neste fim de semana.
- Está me convidando para ir?
- Bom. – eu parei e encarei o tamborilar de meus próprios dedos sobre a mesa, respirei fundo e soube que a hora seria aquela. Eu não poderia continuar escondendo aquilo dele por muito mais tempo, afinal. – Estou convidando-o. Mas antes você precisa saber uma coisa... Esse baile... Bom, é um baile de noivado. O meu noivado.
me encarou nos olhos totalmente sem reação por cerca de trintas segundos e depois começou a rir o suficiente para que sua pele bronzeada ganhasse uma tonalidade vermelho vivo.
- Você está brincando, não é?
- , me ouve. – eu segurei suas mãos por cima da mesa, mas desvencilhou-se. – Eu posso explicar. Eu juro. Deixe-me explicar, por favor.
- Para, por favor. Você vai se casar com outro homem, ! Como pôde esconder isso de mim durante todo esse tempo?
- Não! Me escuta! Eu não quero me casar, ! O meu pai arranjou esse casamento!
- Agora tudo faz sentido! Eu sou um passatempo para você? Que não te deixa entediada enquanto você não precisa cumprir suas obrigações com o homem que o seu pai escolheu para você?
- Não! , para, por favor. Deixe-me falar!
- Não tenho absolutamente nada para ouvir de você, . Eu achei que... Eu não sei mais o que eu achei.
- Não faz isso comigo. – eu falei no momento em que ele se levantou. - Não vá. Por favor.
- O meu almoço já está acabando, bela . Eu tenho que ir.
- Eu amo você. - murmurei. estava de costas e eu não tenho certeza se ele me escutou, pois, apesar de parar por um segundo, ele voltou a andar sem nem ao menos olhar para trás. Para onde eu havia ficado. Para onde ele havia me deixado.
Eu fiquei aguardando-o.
Até as seis da tarde eu fiquei sentada na cadeira daquela mesa bebendo o mesmo suco de laranja que eu havia pedido às três da tarde. Meu estômago embrulhou quando às seis e doze da tarde eu notei que era Boris quem estava fechando a oficina, e não , como em todos os dias. Levantei-me e caminhei até ele.
- Boa tarde, senhor. Poderia me dizer se ainda está por aqui? - elevei a minha cabeça ao perguntar, tentando verificar se conseguia enxergá-lo lá dentro por entre os buraquinhos na porta de aço da oficina.
- Então você é a bela que murchou o garoto hoje, né? Ele saiu tem um bocado de tempo já, moça. Disse-me que amanhã cumpre horário. Não queria te ver nem pintada de ouro.
- Eu entendo... Obrigada.
- Igualmente, querida. – Boris sorriu para mim e baixou a cabeça em sinal de despedida antes de virar-se e caminhar na direção oposta a que eu ia. Suspirei enquanto andava totalmente desnorteada até a minha casa e torci para que meu pai ainda não tivesse voltado do trabalho. Sentia meus olhos úmidos a ponto de a qualquer momento se encharcarem de água, eu só queria encolher-me em minha cama, sem precisar encarar meus pais no jantar.
- Droga. – sussurrei ao notar o carro parado em frente à entrada de minha casa. Tratei de recompor-me da maneira que pude enquanto entrava e suspirei de alívio ao notar que era apenas Alberto ali. Sem pensar, corri em sua direção buscando um abraço fraterno que eu sabia que ele não iria recusar-me.
- , o que houve? Está trêmula!
- Só me deixe ficar aqui, Alberto. Por favor.
- Não, não, não. A senhorita vai me contar o que aconteceu ou terei que comunicar seus pais. E tenho certeza que você não quer isto, certo?
Puxei todo o ar que pude para dentro e inflei meus pulmões antes de começar a contar tudo para Alberto. Falei sobre , como o conheci, como me sentia sobre ele e o que havia acontecido a apenas algumas horas para que eu ficasse da maneira que estava. Alberto foi compreensivo e afagou os meus cabelos enquanto algumas lágrimas acabavam por escapar de meus olhos.
- Fique tranquila, . Se for preciso eu mesmo irei falar com esse homem para desfazer este mal entendido, tudo bem?
- Não precisa, Alberto. Ele pode ficar ainda mais chateado. Talvez seja hora mesmo de eu tirar de minha cabeça, afinal, nunca poderíamos viver em paz juntos sem travar uma guerra com meus pais.
- E você vai desistir do possível grande amor de sua vida tão fácil assim? Não parece a que eu conheci algum tempo atrás que seria capaz de pular um portão repleto de lanças só para escapar de um almoço ao qual ela não queria fazer parte.
Eu sorri.
- É bom tê-lo como amigo, Alberto.
Algum tempo depois, despedi-me de Alberto na porta da frente e acenei para ele sorrindo agradecida por suas palavras de carinho, mas no momento em que fechei a porta, os pensamentos sobre estar andando por cima de uma corda bamba preencheram a minha mente. A quem eu estava querendo enganar? Eu jamais venceria uma batalha contra meus pais. Muito menos uma guerra.
Novamente notei barulhos dentro de meu quarto. Dessa vez eu demorei apenas alguns segundos para me levantar e notar que eram pedrinhas em minha janela outra vez. Eu mal tive tempo para terminar de abri-la e lançou-se para dentro, envolvendo-me em seu abraço quente.
- O que está fazendo aqui? - eu sussurrei contra seu peito.
- Vim implorar o seu perdão. Agi como uma criança mais cedo, , e nunca foi a minha intenção desrespeitá-la ou duvidar do seu amor por mim. A simples ideia de não poder mais vê-la, de não poder mais segurar suas mãos e não poder mais sonhar que um dia seríamos um do outro fez-me muito infeliz. Eu não a deixei explicar nenhuma parte da história, e também peço desculpas por isso. Se voltarmos a ficar juntos, isso nunca mais irá se repetir.
- Eu senti a sua falta. Essas horas que ficamos distantes... Pareceram muito tempo para mim.
- Eu também senti a sua falta, bela . E eu queria dizer-lhe que também a amo. E irei amá-la para sempre, mesmo que você case-se com outro homem.
- O que eu ia dizer mais cedo é que Alberto não quer se casar comigo, . Ele disse-me que já ama outra pessoa, me propondo fingir a farsa de um noivado, para agradarmos nossos pais, e no fim, não iremos aparecer para a cerimônia.
- Essa notícia deixou-me tão feliz que eu poderia beijá-la.
A simples possibilidade de ser beijada por deixou-me completamente perplexa. Senti novamente como se meu coração estivesse dando piruetas dentro de meu peito em sintonia com o familiar frio no pé da barriga que se fez presente automaticamente. olhou-me nos olhos e eu pude sentir toda a ardente luxúria e a paixão que ele fazia permanecer contida em respeito à minha honra. Ele deixou seu olhar baixar até a minha boca e passou suavemente às costas de sua mão sob a pele de minha bochecha quando tomou a decisão de me beijar.
Eu sempre imaginei que quando esse momento chegasse, um milhão de coisas poderiam se passar na minha cabeça, mas de todas essas coisas, eu nunca cheguei a cogitar pensar em minha mãe e no quanto ela me disse a vida inteira que beijo não era uma coisa de moça direita. Talvez eu estivesse com um pouco de medo. Ou talvez isso tivesse acontecido pelo simples fato de minha mãe ter batido na porta de meu quarto para me desejar boa noite e eu tivesse dado um pulo de susto.
olhou-me surpreso, inegavelmente contendo sua vontade de rir.
- Boa noite, bela . É melhor eu ir.
- Nos vemos amanhã?
- Sempre que quiser.
Sábado, 24 de junho de 1950 – Recife, PE.
Passei minhas mãos nervosamente em meu vestido de seda azul lavanda. As joias da família pareciam pesar três vezes mais do que de fato pesavam e o meu cabelo, geralmente liso, outrora molhado de água do mar, parecia produzido demais no penteado repleto de cachos ao qual se encontrava no momento. Eu sentia como se minha cabeça fosse pender para um lado ou outro a qualquer momento, e eu sentia que meu coração não ficaria por muito mais tempo quieto dentro de meu peito, pois a data de meu casamento havia sido anunciada há alguns minutos: Primeiro de Setembro.
- ! Oh, meu amor! Você está tão linda! Seus pais devem estar tão orgulhosos! - minha tia sorriu ao me abraçar. - Mariê, minha linda filha, casou-se em Paris! Você pensa em casar-se no estrangeiro também?
- Não, tia. Meu noivo e eu temos outros planos para o casamento.
- Ah, jura? Me conta!
- É surpresa! - dei o meu melhor sorriso ao afagar-lhe o ombro e sair rapidamente de perto dela. Todos aqueles abraços, cumprimentos e felicidades estavam me deixando desnorteada. Girei os olhos ao notar meu pai conversando animadamente com uma das melhores amigas de minha mãe e sua filha, Susanna. Aproveitei aquele minuto de sua distração para escapar daquela festa e respirar um ar puro no jardim. Para a minha surpresa, meu convidado de honra já estava lá.
- Boa noite, senhorita. – disse ele quando notou minha presença. abriu seu melhor sorriso quando eu me aninhei em seu abraço. Ele beijou suavemente meus cabelos e então deu um passo para trás para olhar-me melhor.
- Você está belíssima esta noite, .
- Você também não está nada mal.
- Vesti a minha melhor camisa. – ele rodopiou ao pronunciar a frase, o que só me fez rir ainda mais.
- Estou feliz que tenha vindo.
- Estou feliz que tenha me convidado.
abraçou-me outra vez e eu aproveitei aqueles segundos de paz para sentir seu perfume. Agarrei-me a ele com mais força, enquanto ele brincava de forma carinhosa com uma mecha de meus cabelos cuidadosamente arrumados. O silêncio que existia entre nós dois não era constrangedor, pelo contrário. Eu me sentia perfeitamente bem, totalmente vívida e completamente livre. Liberdade essa que só era proporcionada a mim em momentos em que estivéssemos juntos. E foi absurdamente apoiada no misto de liberdade e confiança que pairava sobre nós dois que eu sussurrei o quanto estava com medo, fazendo com que me apertasse um pouco mais contra si.
- Não sinta. – ele sussurrou de volta e continuou. – Você é forte, é incrível. Você é uma menina inteligente, que sabe o que quer e quando quer. E eu sei que não irá deixar que ninguém acorrente seus sonhos.
- ... – eu sorri, entre lágrimas. - Eu sinto como se não tivesse saída. É como se houvesse uma parede dentro de mim, que cada vez mais aperta o meu peito.
- Quietinha, bela . Vai ficar tudo bem, eu te prometo.
Quando ouvimos um limpar de garganta vindo de trás de nós dois, eu pulei com o susto, limpando meu rosto antes de virar-me e suspirei de alívio ao notar que era Alberto.
- Acho que você deve ser , não é? Sou Alberto, é um prazer. – ambos apertaram as mãos e eu dei um sorriso fraco para Alberto. - Você está lindíssima, .
- Obrigada, Alberto.
- Peço perdão por interromper, mas precisamos ir para dentro, . Eu preciso te dar aquela coisinha, sabe?
- Ah não! Agora?
Comecei a suar frio no mesmo instante. apertou a minha mão em sinal de força e fez um movimento com a cabeça para eu ir em frente. Respirei fundo segurando a mão de Alberto e sussurrei para que ele fosse rápido com o show. Ao entrar no interior da casa, a música suave que tocava parou no mesmo instante e todos os olhos das pessoas presentes ali voltaram-se para nós dois. Meus pais e os pais de Alberto estavam juntos e conversaram orgulhosamente entre si, quando Alberto bateu em uma taça de vidro pedindo um momento de silêncio.
- Querida . – Alberto virou-se para poder segurar uma de minhas mãos, a apertando delicadamente para mostrar que eu só encontraria verdades em suas palavras. – Desde o primeiro momento em que a vi, eu soube que seria impossível não amá-la, e juro-te que no que for depender apenas de mim, você será sempre feliz. Não importa o que signifique sua felicidade. Aceite esse anel como uma promessa de que não quebrarei minhas palavras.
Eu entendi cada uma de suas palavras. Entendi perfeitamente que elas eram de coração e que todos ali interpretariam da forma errada a qual ele queria que eu interpretasse. Eu lhe sorri com todo o carinho e amor que nutri por sua amizade nos últimos dias e naquele momento eu soube que ele também sabia. Alberto colocou o anel em meu dedo e beijou delicadamente a minha mão enquanto todas as pessoas comemoravam nosso falso noivado. Pelo canto do olho pude notar parado perto da porta de acesso ao jardim, com o olhar irrevogavelmente ferido.
Alberto e eu dançamos calmamente uma música juntos. Em seus acordes finais, ele riu enquanto sussurrava em meu ouvido para que eu voltasse para os braços de meu verdadeiro amor. Eu carinhosamente lhe beijei a bochecha e esgueirei-me por entre as pessoas até a porta principal que me levaria de volta ao jardim, onde bebericava um vinho tinto.
- Você demorou dessa vez.
- Precisávamos fazer uma cena juntos.
- Eu vi. Belo anel.
- .
- Eu sei, eu sei. É que é um pouco difícil ver a garota que você ama aceitando um pedido de casamento de outro homem. Você não imagina quão doloroso foi para mim ouvir aquelas palavras.
- Eu amo você. E só você, . Um dia iremos poder revelar nosso amor ao mundo e esse dia será o mais feliz de nossas vidas.
- Um dia usarei de belas palavras para pedir a senhorita em casamento. E lhe darei um beijo no momento em que você aceitar ser minha.
- Quem é você, rapaz? - a voz grave do pai de Alberto soou alta entrando no jardim e apontando o indicador para .
- Meu nome é , muito prazer, Doutor - disse, mantendo uma admirável calma que não existia em mim.
- Foi você quem o convidou, ? De onde o conhece?
- Na verdade, papai – Alberto chegou sorrindo para todos nós e eu respirei um pouco mais aliviada naquele momento. – Eu convidei o . Ele é um ótimo amigo, estudamos juntos.
- Oh! Entendo. É um prazer conhecê-lo, .
- Igualmente, Doutor.
- Aqui está, . O drink que me pediu para buscar. Perdi alguma coisa?
- Obrigada, Alberto. Não perdeu nada, estava me contando como eram as aulas de vocês dois já que eu sempre fui educada em casa.
- Se vocês me dão licença, crianças, eu preciso voltar para dentro.
O pai de Alberto virou as costas no momento exato em que eu soltei o ar que prendia em meus pulmões. deu risada e Alberto fez questão de fechar as portas do acesso.
- Se vocês me dão licença, pombinhos, irei escapar desse baile agora. Se eu fosse vocês, faria o mesmo.
E nós fizemos. Saímos pelos fundos de minha casa e caminhamos juntos até a praia, onde deitamos na areia para olhar as estrelas. As várias constelações que enfeitavam o céu daquela linda noite de junho brilhavam sob nossos olhares quando apontou o dedo indicador para o céu.
- ! - eu reprovei. - Não se aponta os dedos para as estrelas.
- E por que não?
- Pode nascer verrugas nos dedos.
- Isso é superstição!
- E daí? Você acredita em destino e não acredita em verrugas?
Nós dois rimos com a comparação. Deitada em seu peito, eu comecei a desenhar círculos com meu dedo na mão que ele repousava perto de meu rosto.
- Sem apontar agora, você está vendo aquela estrela?
- Qual?
- Aquela mais brilhante, próxima a constelação das três marias.
- Sim. O que tem ela?
- Aquela é a nossa estrela. Sempre que estivermos longe um do outro, só precisamos olhar para ela para que possamos sentir que estamos próximos de novo.
- . – murmurei, mais para mim mesma, porém eu sabia que ele havia escutado.
- Podia passar uma estrela cadente agora para que pudéssemos pedir algo. O que você ia querer?
- Eu já sei o que eu quero.
Não aguardei uma pergunta, não aguardei uma reação, nem mesmo um instante de hesitação. Eu não pensei, eu apenas levei meus lábios até os seus, ficando na ponta dos pés e sentindo o mundo inteiro rodopiar ao meu redor. sabia muito bem conduzir-me, e produziu tal feito com maestria, me deixando sem ar. Nossas bocas apenas separaram-se quando uma chuva rala do fim da noite caiu sobre nós. Eu sorri, envergonhada, e não soube o que dizer. Ele, no entanto, encarou-me com o olhar repleto de um misto de sentimentos que eu não consegui identificar e subiu sua mão para repousar em minha nuca, sorrindo antes de beijar-me novamente, sem deixar antes de me dizer que ele também já sabia o que pediria a uma estrela. Naquela noite, senti novamente as borboletas em meu estômago, que mesmo que por um tempo elas tivessem permanecido adormecidas dentro de mim, eu tinha certeza que a partir daquele momento elas jamais repousariam calmamente outra vez.
Meados de julho de 1950 – Ilha do Retiro, Recife, PE.
Eu estava lendo mais um capítulo de meu livro, sentada no mesmo lugar costumeiro de sempre quando um garoto, um pouco mais novo que eu, que trabalhava limpando os quiosques da calçada me ofereceu uma folha de papel, dobrada algumas vezes. Notei que tratava-se de um pequeno bilhete.
- O moço da oficina mandou para você. - ele não demorou a explicar ao notar a confusão em meus olhos.
“Oi, coração.
Peço que me perdoe, mas hoje eu não poderei ir almoçar com você, pois estamos com muito trabalho aqui na oficina. Fico triste, pois faz um mês desde que nos falamos pela primeira vez e eu sinto como se fizessem anos que eu a conheço. Não se chateie, e me encontre na parte mais distante da praia antes que a noite acabe. Tenho um presente para você. Com amor, Bezerra. – 10 de julho de 1950.”.
- Você aguarda um minuto, para que eu possa responder? - eu sorri, começando a imitar sua saudação em pedaço de guardanapo, já que não tinha nenhuma folha de papel comigo.
- Claro.
“Oi, coração.
Já que você não vem, eu vou para casa, pois meus pais estão em cima de mim há alguns dias. Vou sentir a sua falta, mas já estou ansiosa pelo cair da noite. Espero poder passá-la toda com você. É o maior presente que eu poderia querer. Com amor, Coutinho. – 10 de julho de 1950.”.
- Aqui, você leva de volta para ele, por favor? Obrigada.
Levantei-me e fui lentamente caminhando para minha casa. Para a minha sorte não havia ninguém lá quando eu cheguei. Subi para meu quarto e deixei o bilhete junto à margarida que me dera em meu aniversário, carinhosamente guardados dentro do primeiro livro que lemos juntos. Deitei em minha cama pensando no quanto eu tinha sorte de viver um amor de verdade. Sorri comigo mesma.
Durante todo o dia eu fiz questão de ser a filha perfeita que meus pais se orgulhavam de citar aos quatro ventos. Tomei chá com minha mãe e quando a noite chegou eu toquei piano para meu pai após o jantar. Já era tarde quando me recolhi, e mais tarde ainda quando pulei a janela e corri a plenos pulmões até a praia. Passei pelo caminho pequeno de pedras até chegar à parte deserta da praia, onde a areia parecia mais limpa e as ondas mais fortes.
- . - eu chamei.
- Aqui! - apesar de ouvir sua voz meus olhos ainda não haviam o encontrado. A noite escura demais impossibilitava que minha visão enxergasse um pouco mais à frente de poucos metros. Quando finalmente o notei, eu sorri. não queria que de fato pudessem nos ver ou nos encontrar aquela noite, por isso, estendeu uma toalha entre duas grandes árvores e por este motivo eu não o havia visto de longe. Haviam algumas velas decorando o local, cuidadosamente colocadas dentro de alguns tubinhos transparentes que pareciam copos, para que o vento não as apagasse, mesmo que o tempo estivesse bem calmo naquela noite. Haviam pratos e talheres e algumas flores para decorar tudo.
- Está lindo! - falei sorrindo e dando-lhe um beijo leve nos lábios. - Você fez tudo isso?
- Espero que esteja com fome. Preparei um jantar para nós.
- Como foi seu dia? - perguntei beliscando um pãozinho e tomando um gole pequeno do vinho que seu Boris havia nos dado, de acordo com .
- Bom, chegou um carro novo para gente hoje, por isso eu não consegui sair. É um fusca e pertence a um lote de 30 unidades que chegou no Brasil com adiantamento nesse mês. Deveria ser até um pecado essa belezura de carro estar todo amassado de batida, o dono deve ser completamente desmiolado.
Eu ri enquanto ele continuava falando com paixão do fusquinha lindo azul bebê, como o descreveu para mim.
- A única parte ruim é que não vamos receber o pagamento do dono se não conseguirmos consertar o carro. Boris está totalmente pilhado. Me deu o vinho e disse para eu estar inspirado às seis da manhã na oficina.
- Eu tenho certeza absoluta que vocês dois irão conseguir. São os melhores! Se você quiser eu posso tentar ajudá-lo também.
- Você é incrível, sabia?
- Eu faço o que eu posso!
Gargalhei quando me puxou com força para seus braços me enchendo de beijos.
- Quero passar a minha vida inteira ao seu lado, bela .
- E eu quero ser completamente sua.
deitou-se sob a toalha em cima da areia fina e aproximou nossos rostos para então beijar suavemente meus lábios. Eu dei uma leve puxadinha em seus cabelos, e ele retribuiu apertando-me um pouco mais. Naquela noite, no lugar mais escondido e mais nosso que qualquer outro, com uma lua prateada e brilhantes estrelas sob nossas cabeças, o mundo pertencia a nós quando nos deitamos um dentro do outro para nos amarmos da última forma que ainda faltava amar.
***
Quando o amanhecer apareceu na linha do horizonte sob a praia eu me apoiei em meus cotovelos por cima de para lhe dizer bom dia. Ele sorriu um sorriso sonolento e esfregou seus olhos para então dar-me um selinho demorado.
- Preciso ir para casa.
- E eu para a oficina, mas te levo em casa antes.
Nós dois arrumamos todas as coisas e recolhemos todas as velas para então partir. Fomos rindo, completamente felizes com o que havíamos vivido no anoitecer e eu tenho certeza absoluta que pressenti o que estava por vir no momento em que me demorei mais que o necessário no abraço quente do homem que eu amava. Ao pular a janela de volta para o meu quarto acenei para que mandou-me um beijo de despedida e virou as costas em direção à praia de volta.
- Oi, coração. - senti cada pedacinho de meu corpo petrificar ao ouvir a voz que veio de dentro de meu quarto. Quando me virei, notei meu pai sentado na cadeira de minha penteadeira, de frente para a janela, com meu livro aberto em suas mãos. Ele apertou a margarida com força fazendo com que ela se despedaçasse e caísse sob seus pés. Depois, fez questão de picar o bilhete em pedacinhos mínimos e levantando-se jogou-os com força no meu rosto. Eu não consegui dizer uma palavra se quer – Eu esperava mais de você, ! Saindo às escuras com um pobretão sujo de graxa! Com um casamento milionário marcado, francamente. FRANCAMENTE! - ele gritou com toda a braveza que poderia ter gritado, chacoalhando-me e apertando meus braços com tanta força que ficaram vermelhos na mesma hora.
- O senhor está me machucando, papai. – sussurrei.
- Cale a boca! Sua imunda! Eu vou antecipar o seu casamento! No que depender de mim, você se casa hoje. Está me entendendo? HOJE.
- Eu não vou me casar!
Os raios de sol começaram a clarear meu quarto e quando a luz bateu no rosto de meu eu pude notar que suas bochechas estavam exalando um vermelho vibrante repleto de raiva.
- Esqueça esse rapaz que você conheceu. Para o seu próprio bem, . E para o bem dele também. Isso é uma ordem.
- Eu tenho o direito de opinar sobre minha própria vida! Eu tenho uma escolha!
- Não, você não tem! Porque você é minha filha, e filha minha faz o que eu digo e ponto final.
- A sua filha bastarda Suzanna também o obedece? Ou este é um privilégio meu, papai?
- O que você disse?
- Não tente negar, papai. Escutei a sua conversa com a mãe dela durante o chá da tarde. E se o senhor não me deixar em paz eu vou contar tudo o que eu sei para a minha mãe.
Não tive tempo de prever ou me defender. A mão de meu pai estalou com força em meu rosto no segundo em que eu terminei de proferir as palavras. As lágrimas começaram a sair descontroladas quando eu coloquei a mão sob o local que ardia queimando. Cai no chão amedrontada quando meu pai virou de costas pronto para sair de meu quarto.
- Espero não precisar fazer isso outra vez, .
O tempo, a vida e a nossa existência são um mistério. Ou ainda, são a combinação de várias pecinhas que ora se encaixam perfeitamente, e em outros momentos, se forem colocadas lado a lado podem provocar o maior caos já lançado sob o mundo. É o efeito-borboleta em sua forma mais impetuosa. Pode parecer até mesmo amargo pensar que todas as decisões que você toma desbloqueiam caminhos únicos aos quais você precisa seguir. Ali, naquele exato instante eu não sabia. Eu ainda não tinha a menor ideia, mas no momento exato em que o relógio bateu meia-noite em ponto fazendo a passagem do dia 10 para o dia 11 de julho de 1950 eu não teria mais motivos para continuar em frente.
Quando a tarde despontou lá perto das três horas eu desafiei todas as terminações nervosas de meu corpo e pulei a janela de meu quarto. Sabia que meu pai estava trabalhando naquele horário, porém, durante todo o dia, a cada hora a minha mãe vinha até meu quarto para ver se eu estava bem, e para novamente informar-me que meu pai não quer que eu saia de casa, por isso, ela continua trancando-me dentro do quarto. Haviam colocado o motorista da casa de prontidão próximo a minha janela, mas por alguma razão desconhecida ele não estava mais ali. Corri o mais rápido que pude, e fiz um caminho diferente até a oficina em que trabalhava para que ninguém conseguisse vir atrás de mim. Ao chegar lá me deparei com ele e Boris empurrando o fusca para fora da oficina. Boris deu um abraço em , e um sorriso triste para mim.
- O que aconteceu?
- Fui despedido.
- O quê? Como assim?
- Não conseguimos consertar o carro e o dono decidiu que não ia pagar. Mandou que ficássemos com o carro. Boris gastou muito dinheiro para trocar as peças, para dar um jeito na pintura, bom, essas coisas. Então não vai ter dinheiro para me pagar, aí me deu o fusca e me demitiu. Disse que se as coisas melhorarem ele vai se lembrar de mim.
- Eu sinto muito, .
- Está tudo bem, eu vou dar um jeito. O que é isso no seu rosto? Parece um arranhão.
- Não é nada.
- Você consegue me ajudar a empurrar até a minha casa? É logo naquela esquina.
Apesar de eu fazer muita força, era quem fazia com que o carro se movimentasse. Quando conseguimos enfim entrar no quintal de sua pequena casa, nos escoramos no carro azul para descansar. Eu respirei fundo, de cabeça baixa, encarando meus pés.
- Eu acho melhor ficarmos algum tempo sem nos ver. – disse baixo em uma inútil tentativa de que minha voz não transparecesse a minha vontade de chorar. – Meu pai nos descobriu.
- Eu sei, . Seu pai era o dono do fusca. Ele veio ordenar para que eu me afaste de você hoje cedo.
- Eu sinto tanto! - comecei a chorar e puxou-me para seus braços suplicando para que eu não chorasse.
- Corta meu coração ouvi-la em prantos, . Por favor, não chore, eu darei um jeito nisso, está bem? Eu lhe prometo, eu lhe prometo.
Um segundo depois o carro de Alberto parou em frente à casa de e eu limpei as minhas lágrimas para olhar com mais facilidade para dentro.
- Olá, ! Vim despedir-me de você. - Alberto falou alto, de dentro do carro, fazendo sinal para que fossemos até lá. Ele abriu a porta passando rapidamente por ela e me dando um abraço apertado. Pude notar um pequeno garotinho no banco de trás, com cabelos finos e claros como o mel, e um homem com cabelos iguais ao do garoto sentado à frente, que sorriu para mim.
- O que aconteceu?
- Nossos pais querem antecipar nosso casamento para hoje à noite. Nós poderíamos nos casar e viver com nossos amantes, mas , as pessoas que amamos são incríveis e merecem muito mais. Sem contar que aqui, nessa cidade, não importa com quem nos casaremos, seremos sempre controlados por nossas famílias e controlaremos a nossa no futuro. Temos que nos libertar desse lugar.
- Para onde você vai?
- Para longe, . O mais longe que eu puder. Este é Daniel, ele é quem eu amo. Ele é o meu verdadeiro amor, . E aqui, onde vivemos, eu nunca poderei ser feliz com ele. Se tens esperança de viver seu amor, sugiro que faça o mesmo, .
- Espero que possamos nos ver de novo, Alberto.
- Nos veremos, querida . Sei que nos veremos!
Nos abraçamos mais uma vez e eu sorri em meio às lágrimas quando desejei todas as felicidades do mundo para Alberto, que partiu em seguida. segurou a minha mão e me assegurou que não iriam nos separar. E eu acreditei nele. Com cada pedacinho de esperança que eu nutria dentro de mim eu acreditei em suas palavras e aguardei que chegasse o dia em que viveríamos em uma casinha simples em frente ao mar e nossos filhos brincariam e cresceriam juntos com o bebê loirinho de Alberto e Daniel enquanto nós envelhecíamos lado a lado durante o resto de nossas vidas. E se eu soubesse que aquela seria a última vez que eu veria o grande amor da minha vida, eu teria feito tudo diferente.
Meados de setembro de 1950 - Recife, PE.
Fazia algum tempo desde que eu vira pela última vez. Fazia algum tempo desde que eu vira Alberto pela última vez. Fazia algum tempo desde que eu vira qualquer pessoa pela última vez, se não a minha mãe, que me trazia às refeições todos os dias pontualmente às oito da manhã, meio dia, quatro da tarde e oito da noite. Escorei-me na grade fina perfeitamente pregada a minha janela, deixando que o sol fraco do fim da tarde batesse em meu rosto e fechei meus olhos, soltando um suspiro cansado e melancólico. Agachei-me embaixo da janela e segurei o rosto com as mãos olhando meu quarto quieto, silencioso e triste. Eu sentia tanta falta da água! Sentia falta do mar e de como meus pensamentos fluíam enquanto eu nadava. Sentia falta da areia fina e quente queimando meus pés descalços enquanto corríamos pela praia de mãos dadas. Sentia tanta falta dele! De como seus lábios beijavam-me suavemente da mesma forma que as ondas beijam a praia. De como ele me olhava com tanta ternura quanto olharia para algum bem tão precioso quanto a vida. Da forma como eu me sentia segura e ao mesmo tempo livre quando estava ao seu lado. E agora, aqui estava eu, trancada dentro de meu próprio quarto feito passarinho preso em uma gaiola.
Esgueirei-me para debaixo da cama e puxei uma pequena caixinha com um monte de cartas de . Abracei-as contra meu peito sentindo o cheiro dele nos papéis enquanto meu coração tremia de saudades. Peguei a primeira carta que havia recebido de logo após nos despedirmos no dia em que Alberto foi embora. Era doloroso lembrar-me daquele dia.
Quando cheguei em casa no início da noite todas as luzes estavam apagadas e eu notei que não havia ninguém em casa. Descobri em seguida que meu pai havia dado à noite de folga para todos os empregados. Minha mãe estava chorando na sala quando eu entrei.
- Mamãe?
- ! – ela abraçou-me – O que eu fiz para você, minha filha? Por que você teima em desobedecer o seu pai?
- Mamãe por que a senhora está chorando? O que aconteceu?
- Alberto foi embora de casa! Os De Castro descobriram o caso que você está tendo com o rapaz da oficina, . Você manchou as famílias! Seu pai está uma fera, !
- Alberto foi embora porque não queria casar-se comigo também, mamãe.
- Não interessa a verdade, . Só interessa o que o Doutor De Castro está espalhando pela cidade.
- Mamãe... A senhora precisa ficar do meu lado.
- Não posso ficar contra seu pai, . Suba, seu pai precisa falar com você.
Minha mãe limpou as lágrimas de seu rosto e depositou um beijo em minha testa carinhosamente. Fez um sinal para que eu subisse.
Enfrentei vagarosamente escada por escada até encontrar a porta de meu quarto entreaberta. Quando pisei dentro do quarto só tive tempo de notar as grades inseridas em minha janela. Quando meu pai acertou-me o primeiro soco, eu caí no chão estrondosamente.
Era manhã do dia seguinte quando eu finalmente acordei. A bandeja de café da manhã estava delicadamente posta em cima de minha penteadeira. Senti uma lágrima escorregar por meu olho direito quando tentei levantar. Meu corpo inteiro estava coberto por hematomas. A maioria ainda estava amarelado, alguns outros estavam começando a ganhar uma tonalidade cor de beterraba. Meu rosto estava inchado, e uma pequena manchinha vermelho-sangue havia aparecido na parte branca de meu olho esquerdo, onde o soco de meu pai havia me atingido. A dor em meu corpo era grande, mas a dor emocional que meus pais estavam causando-me era imensa, e eu tinha certeza absoluta que eu nunca iria recuperar-me verdadeiramente daquela tortura. Eu chorei durante aquele dia inteiro. Chorei por mim, por , por Alberto e por Daniel. Chorei por minha mãe. Chorei por todas as mulheres submissas aos homens de suas famílias e por cada bofetada que a maioria delas já havia levado na vida. Orei. Orei para que um dia, de alguma forma, alguém pudesse olhar por todas nós.
O sol estava se pondo quando eu notei o garoto que limpava os quiosques na praia do outro lado da rua. Olhei-o vindo até minha casa, dando a volta nos arbustos e vindo até a minha janela.
- Oi, moça. O te mandou essa carta. O que aconteceu com seu rosto?
- Não foi nada, não se preocupe. Não conte a , está bem? Você aguarda um minutinho, caso eu precise responder?
- Você que manda, moça.
“Oi, bela .
De acordo com os últimos acontecimentos tenho pedido com todas as minhas forças que você esteja bem. Deus deve estar de saco cheio de mim, pois estou incomodando-o com minhas preces a cada hora. Se você está lendo essa carta significa que Deus gosta um pouco de mim e guiou os passos de Toninho para que ele a levasse para você em segurança até a sua casa. Ele ficará aguardando que você escreva uma mensagem para mim também, se você quiser escrever. Foi essa a forma que encontrei para que possamos nos comunicar, pelo menos uma vez na semana, enquanto não podemos nos ver. Espero que este período passe logo, estou morrendo de saudades suas. Com amor, seu .
13 de Julho de 1950.”.
Em meio às lágrimas, respondi a carta de assegurando-lhe que estava bem, mas trancada em meu quarto e enfatizei o quanto eu o amava. Dei uma gorjeta retirada de meu pote cor-de-rosa de economias para o garoto, que descobri chamar-se Toninho, pelo favor prestado. E assim seguiram-se os dias.
“Oi, meu amor.
Sinto sua falta todos os dias. Olhar para a praia e não vê-la lá é tão frustrante quanto olhar um céu sem estrelas. Não há beleza no mundo sem você. Não há razão para deixar a felicidade entrar. Infelizmente eu não tenho boas notícias. Finalmente consegui arrumar o carro, mas seu pai o pegou de volta. Disse que me denunciaria por roubo se eu não devolvesse. Como eu nem mesmo consegui arrumar um emprego ainda, não tive escolha. Sempre seria a palavra dele contra a minha. Mas, amor, não desista! Eu sei que eu vou lutar até o fim de meus dias por nós dois. Com amor, seu .
26 de julho de 1950.”.
Até que recebi uma carta que mudou tudo completamente.
“Oi, coração!
Hoje é um bom dia e eu tenho uma novidade. Eu consegui um bom emprego! A única parte ruim é que esse emprego é em São Paulo, mas o salário é maravilhoso, bela . Eu fui requisitado por lá, sabia? Não parece chique? Com dois meses eu já consigo levá-la comigo para que possamos viver juntos. O que você acha? Prometo escrever-te todos os dias! Contar-te tudo sobre São Paulo, para que você decida em que lugarzinho de lá prefere viver. Parto em alguns dias, . Mas eu volto. Eu volto para lhe buscar. E como garantia de minha promessa eu ofereço-lhe essa aliança para desposar-te quando eu voltar. Coutinho, você aceita casar-se comigo e viver uma vida inteira de amor? Com todo o amor que sinto, .
02 de Agosto de 1950.”.
Ouvi passos no corredor e despertei de meus pensamentos guardando as cartas o mais rápido que pude debaixo da cama novamente e levantei-me rápido, sentindo uma zonzeira momentânea e me escorando nas grades da janela. Pisquei algumas vezes para que o quarto parasse de rodar.
- Bom dia, querida. – a voz de minha mãe soou musical, como se ela estivesse feliz. Eu não disse uma só palavra enquanto ela deixava a bandeja do almoço em cima da cama e pegava a que havia deixado na noite anterior – Ora, anime-se, ! Seu pai tem novidades para você hoje.
- Eu espero que seja outra surra. Quem sabe dessa vez eu morra. Será minha maior alegria.
- Nunca mais repita isso! Eu não aguentaria perdê-la.
- A senhora já me perdeu, mamãe. Me perde dia após dia em que me deixa trancada nesse quarto como se eu tivesse cometido um crime! Eu só me apaixonei, mamãe.
- Esse rapaz outra vez, ! Esqueça-se dele! Esqueça-se já!
- Nunca! Eu nunca vou esquecê-lo!
- Você nunca mais vai vê-lo, . está morto!
Um grito de agonia escapou por minha garganta. Senti minhas pernas tremerem. Senti o meu estimado revirar. Meus olhos umedeceram no momento em que minha mãe proferiu as palavras que terminaram de matar-me ali onde eu estava. Meu coração disparou a bater em velocidade recorde e eu levei minhas mãos a minha boca para tentar segurar o jantar da noite anterior em meu estômago. Infelizmente o truque não deu certo e eu vomitei no meio de meu quarto.
- ! ! – a última coisa que pode ouvir logo após a minha visão escurecer foram os gritos de minha mãe enquanto ela amparava-me desesperada.
10 de junho de 2018 - Recife, PE.
Sentada de frente para o mar eu me lembrei da última vez que abri aquela caixinha de cartas.
- Me lembro como se fosse ontem: eu sorri fraco, porque a lembrança de ainda era dolorosa demais. Estava chovendo em São Paulo. O clima estava cinza escurecido, sem nenhuma beleza e estava tão frio quanto o meu coração estivera nos últimos tempos. Eu li, pela última vez, as últimas cartas que escrevi. As quais eu não pude enviar, e ele não pode ler.
“Oi, coração.
Não consegui escrever nada durante algum tempo, afinal, o simples lembrar de ti doía demais. Estamos bem por aqui e eu espero que você também esteja bem por aí. Seja onde for. Com amor, sua . - 22 de setembro de 1950.”.
Uma lágrima gorda desceu por minha bochecha e eu a sequei rapidamente quando senti nós em minha garganta. Não poderia dar-me ao luxo de ter uma crise de choro naquele instante.
“Oi, meu amor.
Eu não poderia acordar, e saber que você não está aqui. Eu não poderia suportar o silêncio que habita em mim quando você não está aqui. Eu não poderia viver sem os seus lábios, sem os seus carinhos e abraços, aceitar a solidão de quando você não está aqui. Já não consigo mais continuar e suportar que a sua recordação e seu olhar, não irão mais retornar. Eu não poderia viver sem você. Eu não posso. Eles tiraram tudo de mim. Tiraram-me você. Tiraram-me nosso bebê. Tiraram-me de mim mesma, de minhas escolhas, de minha vida. Não quero mais viver. Quero ir embora, para onde você está. - 29 de setembro de 1950.”.
Sorri comigo mesma, segurando mais uma carta entre minhas mãos.
“Oi, amor.
Finalmente consegui parar de chorar por você. Durante algum tempo eu só quis morrer. Quando eu te perdi, perdi uma parte de mim. Quando perdi a Estela, eu perdi mais um pedaço meu. Eu realmente achei que não pudesse mais viver e eu tentei, que Deus me perdoe, mas eu tentei tirar a minha própria vida. Agora eu estou me sentindo melhor, apesar de ainda sentir sua falta todos os dias. Eu aceitei que quando a minha hora chegar, você estará lá, aguardando-me. E nós seremos felizes juntos. Não perca as esperanças, pois eu não as perderei. Você foi embora, e hoje, sou eu quem vou. Eu o amo. Para sempre. Um beijo, sua . - 10 de novembro de 1950.”.
- Depois disso eu tranquei a caixinha dentro da gaveta da cômoda e coloquei a chave sob a penteadeira. Eu nunca mais abri essa caixa... Até hoje. Até agora, com você.
Minha neta limpou os olhos vermelhos e molhados e fungou ao abraçar-me com toda a força que tinha. Ela segurou as minhas mãos e depois as beijou.
- Essa é a história mais triste que eu já ouvi em toda a minha vida. Os seus pais foram cruéis. Eu sinto muito, eu sinto muito mesmo.
- Está tudo bem, meu amor. Isso foi há tanto tempo... Já está tudo bem.
- Obrigada por me contar, vovó. Posso perguntar uma coisa?
- Claro, querida.
- Então o bebê que você perdeu não era do vovô, mas sim de ? Eu nunca soube disso!
- Ninguém nunca soube! Nem mesmo seu avô! - eu ri um pouco lembrando-me de meu Aloísio. Sentia falta dele também. - Aliás, Alberto sabia a história. Ele repudiou-me quando disse que estava casada com seu avô, pois achou que eu estava fazendo isso por meus pais. Mas eu estava fazendo por mim mesma. Conheci Aloísio em São Paulo, e ele apaixonou-se por mim assim que nos conhecemos. Com o tempo, eu também o amei. Não da forma que eu amava , mas eu o amei.
- E como foi que você descobriu que não estava mesmo morto? Que a carta que seu pai a mostrou era falsa?
- Eu fiquei arrasada. Não consegui comer por dias! Quando meu pai me revelou todas as cartas dele que escondeu de mim eu fiquei furiosa. Mas eu precisei seguir em frente, afinal eu não era mais uma mocinha, eu tinha um lar e uma família.
- Essa aliança que você usa no cordão é a aliança que ele te deu? Dentro da carta de despedida?
- Sim. – sorri passando a mão pelo colar em meu pescoço. – Infelizmente, eu nunca pude dizer sim.
- Sua história dá um filme, vovó. Você o procurou?
- Eu procurei. Mas veja bem: meu pai contou-me tudo quando adoeceu muitos anos depois. Estava morrendo quando me explicou tudo o que fez para nos manter longe um do outro. Enviou-me uma falsa carta com a declaração de óbito de e fez o mesmo com ele, fingindo que eu sucumbi a morte. Não sei se falou do bebê que eu esperava e que perdi. Talvez não. Mas já fazia muito tempo quando descobri, não consegui encontrá-lo. Nunca soube por onde andava, mas sei que ele ainda deve pensar que eu estou morta. Quando meu pai faleceu, me deixou tudo em testamento. A casa, os carros, e as ações. Foi o único pedido de desculpas que eu recebi dele. Dinheiro.
- E a sua mãe?
- A minha mãe me pediu perdão pelo telefone uma vez. Ela pediu perdão todos os dias até o dia em que faleceu.
- E essa é a primeira vez que a senhora volta para casa desde então. Deve estar sendo difícil...
- Já disse que está tudo bem, meu amor! Uma onda de lembranças boas e ruins me acometeu. Mas é isto que elas são, apenas lembranças, memórias e pensamentos meus, que são a minha história, o meu passado. Está tudo bem.
O ápice do pôr do sol pairou sobre a praia no momento em que me decidi que aquelas cartas de amor, tanto minhas quanto as de , já não eram minhas, mas sim da água. A água salgada que presenciou toda a nossa sofrida história de amor. Sorri enquanto subia no píer e joguei todas as cartas uma a uma dentro do mar. As ondas que começavam a ficar mais fortes naquele horário da tarde engoliram os pedaços de nós dois descritos naquelas folhas de papel até que a minha visão turva não podia mais enxergar nenhum deles. Olhei para a beira da praia e vi minha filha e seu marido brincando com Miguel. Foi impossível não me lembrar da primeira vez que fui à praia em São Paulo, logo que cheguei na cidade. Aloísio levou-me depois de eu lhe contar que amava o mar e foi lá que reencontrei Alberto, Daniel e o pequeno Eric brincando sob a areia quente. Sorri mais abertamente ao sentir a carícia de minha neta sobre a minha mão e inspirei profundamente a brisa salgada que nos saudava.
- Com licença, senhora. – a voz de um garoto tirou-me de meus pensamentos. Quando olhei para o seu rosto uma sensação familiar preencheu todo o meu coração. Ele tinha olhos tingidos de cor azul tão profundos quanto às águas do mar. Sua pele bronzeada de sol mostrava-me que ele havia vivido sua vida toda por aqui. Entre o sol e o mar. Os cabelos eram castanhos, mas com a luz refletida possuíam um leve de dourado. Não parecia ter mais de 20 anos de idade, mas ainda assim, lembrava-me muito meu .
- Sim?
- Por acaso, o seu nome é ?
- Sou eu mesma. Por quê?
- O meu avô pediu para que, se o seu nome fosse , eu lhe entregasse essa rosa. Ele falou que a senhora ainda se parece com a mesma garota que ele conheceu quando era novo.
- ? Ele está aqui?
- O quê?! Qual a chance? – ouvi Catarina balbuciar perplexa, fazendo contas com seus dedos.
- Olhe para atrás, dona .
No momento em que olhei para trás eu pude vê-lo. Meu . Ele estava caminhando devagar pela praia, com sua bengala entrando e saindo da areia com dificuldade. Ainda usava camisa com suspensórios. E apesar das rugas, seu rosto ainda era tão lindo quanto eu me lembrava.
Desci do píer para ir a seu encontro. Notei a roseira da qual ele havia apanhando a rosa que havia feito o neto me entregar e gargalhei com a lembrança que invadiu meu cérebro.
- É você mesmo, ? - foi a única coisa que consegui perguntar quando fiquei frente a frente com o grande amor de minha vida. Lágrimas quentes molharam meu rosto cheio de rugas e no momento em que passou seus dedos por minhas bochechas para secá-lo eu era uma garota outra vez. O abracei. O abracei com toda a força que eu ainda possuía e prometi para mim mesma que não o soltaria jamais. Eu o senti chorando sob meu cabelo e uma mistura de sentimentos embalou o meu coração como já não fazia há muitos anos.
- Não precisa mais chorar, . Deus é bom com almas boas.
- Eu nunca mais irei soltá-lo.
- Você ainda me ama, ?
- Eu sempre amei você, . E sei que vou amar até o final dos meus dias, até a última batida do meu coração.
- No dia em que a vi atropelando o latão de lixo, eu já sabia, . Eu tinha certeza que você era o grande amor da minha vida. Eu nunca perdi as esperanças de encontrá-la. Feliz aniversário, bela .
Enquanto a noite caia sob nossas cabeças eu pedi ao universo para que, por favor, não o levasse para longe de mim outra vez. No momento em que o grande amor de minha vida se inclinou para tocar seus lábios suavemente no topo de minha cabeça, após 68 anos desde a última vez em que nos vimos, meu coração festejou dentro de meu peito.
Na medida em que as ondas quebravam na beira da praia, a água chegava até onde eu estava sentada, molhando meus pés descalços, e fazendo cócegas em minhas rugas. A água do mar estava quentinha, não da maneira que eu me lembrava, mas, ainda assim, agradável o suficiente para que eu sentisse vontade de ficar o dia inteiro por ali.
- Vamos, vovó! Catarina está esperando no carro, é o seu dia!
- Se é meu dia, pequeno, porque não posso ficar mais um pouco por aqui? Sente-se comigo! - eu sorri, estendendo-lhe a mão, e a criança sorriu de volta para mim, não demorando a aceitar meu convite, e deixando que a água tocasse seus pés também.
- Por que a senhora gosta tanto de vir a praia?
- O mar é mágico, pequeno, ele é capaz de curar dores, se você quiser muito.
- Já curou sua dor nas costas?
- Não. - eu gargalhei. - Não é desse tipo de dor que me refiro, Miguel. São as dores da alma, sabe?
- Tipo a saudade?
- Exatamente essa!
- Vó! Vai perder o seu próprio parabéns daqui a pouco!
- Já estou indo, querida! Vamos, Miguel, me ajude aqui, antes que sua irmã dedure a gente para sua mãe!
- Ela não faria isso! Catarina é gente fina, vovó!
- Eu sei, querido, eu sei! Mas ela é adulta, e os adultos escutam muito a razão.
O garotinho riu, enquanto tentava genuinamente ajudar-me a ficar de pé. Minhas costas doíam, mas eu ainda conseguia me levantar sozinha. É verdade que levava um pouco mais de tempo do que alguém jovem, mas valia a pena sentar na areia, de frente para o mar, e poder me lembrar vividamente, e com cada pedacinho de minha memória, de como seus olhos pareciam negros se vistos de longe, e o quão surpresa eu fiquei ao olhá-los de perto, e notar que na verdade, eram da mesma cor que o mar que eu gostava de encarar. A dor nas costas parecia insignificante perto do sentimento que as lembranças proporcionavam ao meu coração velho. Minha neta sorriu, abrindo rapidamente a porta do carro para mim, e depois de certificar-se que seu irmão estava no banco de trás, virou-se para mim e perguntou se eu precisava de ajuda para colocar o cinto de segurança. Eu sorri, e neguei sua ajuda.
- Eu sou velha, querida, não inválida. - gargalhei.
- Vovó, nem eu mesma consigo colocar esse treco direito! - ela riu enquanto reclamava, e fez uma careta quando eu apertei os cintos do fusca que era tão velho quanto eu. - Como é que a senhora fez isso?
- Anos de prática, meu amor. Muitos anos.
- Certo, vamos logo, eu ‘tô morrendo de fome!
Depois da terceira tentativa, o motor ruiu um barulho alto, e tanto Catarina, quanto Miguel, soltaram um grito de comemoração quando o carro resolveu ligar, e andar. Era sempre uma batalha entre o veículo e o motorista. E que saudades eu tinha do primeiro motorista daquele fusquinha azul, que vendeu como pão com manteiga aqui no Brasil, quando eu ainda era moça. Encostei minha cabeça no vidro, e deixei um sorriso escapar por meus lábios enquanto as paisagens do bairro da Ilha do Retiro, famoso por seu estádio de futebol, passavam por meus olhos, enquanto minha neta dirigia. Voltar finalmente para o lugar no qual eu cresci, mesmo que só agora no fim de minha vida, era uma forma de voltar para ele, mesmo que eu não o pudesse ver.
Quando pisei no jardim de minha casa pude notar a decoração. Os balões estavam amarrados em pedras medianas que os impediam de voar, em volta da pequena mesa redonda decorada com bolo e docinhos. As velinhas denunciavam minha idade: 85 anos.
- Feliz Aniversário! - Alan foi o primeiro a berrar, me abraçando. Um pequeno zumbido ecoou no meu ouvido direito com seu grito, mas eu não disse nada, pois seu abraço era terno e familiar. Eu o amava como um filho, apesar de ele ser meu genro.
- Parabéns, mãe! - Olívia, minha filha, rodeou-me por seus braços logo após seu marido me soltar. Eu fiz um carinho em sua cabeça, e depois em seu rosto, absorvendo o máximo de detalhes sobre ela que minha visão me permitisse enxergar. No dia em que eu partisse, seria de quem mais eu sentiria falta. Quando a gente fica velho, pensamos bastante na morte. Como vai ser, e o que vamos sentir. Se irei sentir, e se vou ter o poder de fazer com que minha filha sinta a minha presença. Rapidamente senti mais corpos quentes rodeando o meu, e incontáveis abraços de feliz aniversário. Uma pequena lágrima molhou o meu rosto naquele momento, mas eu a enxuguei rapidamente para que ninguém notasse. Minha linda família se preocupava demais comigo todos os dias para que tivessem também que se importar com o meu choro.
Algum tempo depois, eu me recolhi até o meu antigo quarto, cuidadosamente preparado para uma senhora, mas ainda com a mesma essência que tive na juventude. Peguei a chave em cima da penteadeira e destranquei a gaveta da cômoda, segurando a caixinha velha e empoeirada em minhas mãos. Sentei-me na cama quando Catarina entrou, sentando-se ao meu lado.
- Oi, vovó. Mamãe vai nos levar à praia para vermos o pôr do sol. A senhora gostaria de ir?
- Acho que prefiro ficar aqui, coração.
- O que aconteceu, vovó?
- Por que, querida?
- A senhora veio para o quarto do nada, percebi que está tristonha o dia todo. Você não gostou de vir para Recife? Podemos ir embora no momento em que a senhora quiser voltar para casa.
- Não é isso, querida, eu adoro esse lugar. Ele me traz lindas recordações, apesar de doloridas.
- Quer me contar?
- Você tem um tempinho para escutar sua velha falando mais do que o velho da cobra?
- Sempre vou ter tempo para senhora, vovó! Mas quero ouvir sua história sentada na areia, olhando o pôr do sol. Por favor! - ela fez um biquinho e implorou juntando as mãos, fazendo-me rir de sua atuação.
- Certo, então vamos ver o pôr do sol. Vou levar minha caixinha para lhe mostrar.
- Agora só falta a senhora me prometer que essa história que você vai me contar não é sobre romance, pelo amor de Deus! A mamãe não cala a boca o dia todo sobre como o destino a uniu com meu pai.
- Poxa, meu bem, sinto ter que desapontá-la.
Sábado, 10 de junho de 1950 - Recife, PE.
Meus pés molhados grudavam na areia quente enquanto eu caminhava. O tempo não estava tão quente como de costume, mas o sol estava vivo o bastante para fazer minha cabeça doer por ter ficado tanto tempo na praia.
Eu gostava de nadar enquanto pensava, a água fazia com que meus pensamentos se organizassem para que eu pudesse tomar decisões. Era quase como uma terapia.
E foi naquele dia, nem tão quente, mas quente o suficiente, que senti meu coração aquecer pela primeira vez. Eu não sabia que eu andava por aí procurando encontrá-lo, e não sabia também o quanto eu precisava que aquele sentimento brotasse dentro de mim até o momento em que aconteceu. Senti como se eu finalmente estivesse livre. Era profundamente estranho como todos os livros românticos que eu já havia lido em minha vida fizeram sentido quando meus olhos encontraram os seus. À primeira vista, me pareciam negros como o céu em uma noite de inverno, mas brilhantes, como o luar estrelado visto do campo. Eu senti como se borboletas voassem em sincronia dentro de mim, e por uma fração de segundo, era como se o mundo inteiro tivesse parado exatamente naquele momento, para que nossos olhos enfim se conectassem. Infelizmente, a realidade me atingiu como um chute na canela quando eu bati a minha perna em uma lixeira.
- Aí! - exclamei, escorando-me no lixo.
- Você está bem? - ele perguntou alto, quase gritando por cima do barulho que o bonde que cortava a rua fazia. Eu levantei a cabeça, encarando o homem com cabelos castanhos lisos e desgrenhados, grandes o suficiente para que ele os prendesse para trás. Preocupado, ele atravessou a rua com pressa, perguntando-me novamente se eu estava bem. Sua voz era maravilhosamente rouca, porém aveludada, e eu me perguntava se era possível alguém ter uma voz tão linda assim no mundo real.
Pisquei algumas vezes antes de conseguir responder. Meus olhos percorriam seu rosto, seu corpo e seus movimentos, para guardar o máximo de detalhes que meu cérebro pudesse captar. Ao encarar seus olhos, percebi que era o sol que estava escurecendo a minha visão e na verdade, a cor que os tingia era azul, como a imensidão que abrangia todo o oceano.
- Estou bem, obrigada. – murmurei, enquanto ele estendia a mão para que eu pudesse me equilibrar. Parei de esfregar a minha perna dolorida e descansei a palma de minha mão na dele, fazendo-o ajudar-me a subir a parte alta da calçada. Envergonhada, e com os pés sujos de areia, calcei as sandálias que estavam guardadas na minha bolsa.
- Eu... Eu só estava um pouco distraída.
- Quase não notei. – ele riu fraco mostrando suas covinhas para mim, o que me fez sorrir quase que imediatamente para ele.
- Sou ! na verdade, mas as pessoas me chamam de por aqui. Como você se chama?
- Me chamo , é um prazer conhecê-lo, - eu estendi minha mão para cumprimentá-lo, mas a puxei de volta ao notar que estava suja de areia, e molhada. Lembrei-me que eu estava completamente encharcada pois havia acabado de sair do mar, e toquei em meus cabelos, que deveriam estar horrorosos - Perdão pela falta de jeito.
- Sem problemas, . É um prazer finalmente conhecê-la - puxou minha mão suja de areia e beijou as costas dela, sorrindo novamente para mim. Foi então que notei suas vestimentas. Ele estava com uma calça surrada, com suspensórios caídos e uma regata branca manchada de graxa. Sua pele bronzeada, bem queimada de sol também estava um pouco suada como se ele tivesse trabalhado o dia todo em um local pouco arejado ou com ar quente.
- Finalmente?
- Peço perdão pelo atrevimento, mas eu já pude observá-la algumas vezes enquanto você lia um livro ou dois abaixo daquela árvore em frente à praia, ou sentada na primeira mesa daquele quiosque. – ele apontou enquanto meu resto denunciava o quão amedrontada eu tinha ficado, então, chacoalhando as mãos ele apressou-se a continuar. – Veja bem, eu não sou um pervertido, deixe-me explicar, eu trabalho ali naquela oficina. Do outro lado da rua, no pé do morro e sempre vejo as mesmas pessoas, todos os dias.
- Você pregou-me um susto.
- Não foi mesmo a minha intenção, .
- Ei, ! Volte ao trabalho, garoto! Temos que entregar esse carro até as três da tarde!
- Já estou indo, senhor! - revirou os olhos e sorriu para mim como quem pede desculpas. – Eu tenho que ir agora, mas podemos conversar outro dia, se quiser. Estou sempre por aqui.
- Eu também estou.
Observei atravessar a rua correndo e entrar na oficina enquanto seu chefe lhe batia um pano sujo nas costas. Percebi que era uma brincadeira interna dos dois quando riu, batendo outro pano velho no homem, começando uma pequena guerra entre os dois. Caminhei então até o quiosque costumeiro e pedi um suco, me sentando para ler o livro que estava em minha bolsa, pensando em aumentar a frequência a qual eu vinha até aqui.
- Oi de novo, !
- Oi, - eu ri, fechando meu livro.
- Você queria muito falar comigo outra vez, não é?
- O quê? - senti minhas bochechas ruborizarem, como ele poderia saber disso, afinal?
- Já são seis horas, . Você ficou aqui a tarde inteira.
- Ai, meu Deus! Eu não o vi o tempo passar enquanto lia, eu preciso ir para casa! Meus pais vão me matar!
- Eu posso acompanhá-la até em casa se quiser.
- Não precisa, obrigada. Eu moro só a uma quadra daqui, é bem perto.
- Eu insisto, . Já está escurecendo, afinal e eu tenho plena consciência de que você pode cuidar de si mesma, não me interprete mal, só estou querendo ser um cavalheiro.
- Nada mal!
Nós dois olhamos um para o outro e caímos na gargalhada. tirou a minha bolsa de meu ombro e colocou em cima do seu, ignorando meus protestos completamente e me deixando mais uma vez sem graça. Andamos lado a lado o caminho mais longo até a minha casa enquanto conversávamos coisas banais como qual era o meu livro favorito ou seu carro dos sonhos.
- Quantos anos você tem? - eu continuei nossa sequência de perguntas e ele me respondeu que tinha 19 anos. Ele pareceu-me mais velho à um primeiro momento, mas depois percebi que a realidade dele o envelhecia, pois, seus sonhos eram de um jovem adulto recém feito.
- E quantos anos você tem, ?
- Estou completando dezessete anos hoje.
- Hoje é seu aniversário? Ora, porque não me disse antes!
- Nem ao menos me lembrei.
- Espere um momento. – ele riu, levantando o seu dedo indicador em sinal para que eu ficasse ali e atravessou a rua, até a casa dos Oliveira, em frente à minha. Ele tirou um alicate pequeno do bolso de sua calça e cortou uma pequena margarida que crescia ali junto das outras. Eu gargalhei notando que ele traria a flor até mim. – Agora sim, feliz aniversário, senhorita !
Peguei a pequena flor e coloquei presa atrás de minha orelha, entre meus cabelos e fiz uma pose como se estivesse prestes a tirar um retrato. – Como estou?
- Você está muito elegante. – ele riu enquanto segurava a minha mão e me rodopiava abaixo da luz amarelada do post na calçada, fazendo nossa sombra ficar visível na parede. - Eu não pretendia dizer-lhe isso, pelo menos não hoje, mas está a garota mais elegante que eu já conheci.
- Muito obrigada! Pelo elogio, e pelo presente. Gostei muito de conversar com você, .
- Digo-lhe o mesmo. Poderei ter o prazer de desfrutar de sua companhia outra vez?
- Em breve!
- Contarei os dias, as horas e os minutos.
- Eu também vou. Boa noite, .
- Boa noite, .
Eu sorri abertamente ao entrar em casa, e coloquei as mãos no peito, sentindo meu coração disparado. Desejei esperançosamente que eu pudesse mesmo voltar a encontrá-lo.
- Viu o passarinho verde? Você parece feliz. Finalmente vai aceitar o pedido de Alberto?
Minha expressão mudou na mesma hora. Meu sorriu murchou, dando lugar para uma carranca, e um bico em meus lábios.
- Já disse que não, mamãe. Que susto a senhora me pregou!
- Por que está tão eufórica, ? E onde você estava até este horário, senhorita? Sabe que seu pai não gosta que chegue tarde em casa.
- São só seis e trinta, mamãe.
- Mesmo assim, você precisa estar descansada para seu dia amanhã, ele será longo.
- Já disse que não vou conhecer o Alberto. Não vou me casar com ele, não preciso conhecê-lo. Fim de papo.
- Seu pai quer conhecê-lo, .
- Ele que se case com Alberto então.
- , não seja teimosa. Você sabe o quanto é importante para a família.
- Não vou me casar com ele. Não vou me casar. Eu tenho 17 anos! Vocês não deveriam querer que eu estudasse?
- Meu amor, queremos isso. Com Alberto, seu futuro pode ser brilhante. Ele é um ótimo partido, e a família dele é ótima também.
- Eu disse NÃO! Vocês não têm esse direito, ninguém mais arranja casamentos neste país!
Entrei em meu quarto e fechei a porta, ainda sem acreditar na ideia absurda de meus pais. Se eles estavam pensando que eu ia ceder sem antes expressar meu ponto de vista, estavam muito, mas muito enganados.
- Feliz aniversário para mim – suspirei.
Domingo, 11 de junho de 1950 – Recife, PE.
Quando os primeiros raios de sol entraram pela janela de meu quarto, iluminando o meu rosto eu quis chorar como uma criança quando leva um tombo. Subi o edredom para cima de minha cabeça e pedi com todas as minhas forças que minha mãe não entrasse em meu quarto. Não deu certo.
- Bom dia, minha preciosa!
- Bom dia. – murmurei espiando-a abrir meu guarda-roupa e retirar algumas peças de dentro dele, estendendo-as sobre a cadeira estofada de minha penteadeira.
- Levante-se, tome um banho e se vista com as roupas que preparei. Você terá aula de piano primeiro e depois iremos almoçar com os De Castro conforme combinado.
Bufei.
Quando tirei o cobertor de cima de mim, a primeira coisa que meus olhos focalizaram foi a margarida pequena que tirei de meus cabelos e deixei em cima do criado-mudo ao lado de minha cama. Sorri ao me lembrar dele e tive a força necessária para me levantar e decidir dar um basta hoje nessa história de casamento.
Lá para o meio-dia um carro preto e bonito do qual eu não via todos os dias parou em frente à casa de minha professora de piano. Eu alisei a minha saia florida e ajeitei o meu suéter vermelho aguardando enquanto ela verificava quem estava ali. A surpresa tingiu-me os olhos quando ela voltou para dizer-me que o carro estava ali para me apanhar e levar-me até a residência de Alberto de Castro.
- Nós ainda não acabamos a aula. – protestei.
- Não tem problema, querida. Podemos repor o que falta em outra ocasião. – enquanto ela proferia as palavras, me empurrava devagar para fora de sua casa.
O motorista me escoltou até o carro e alguns minutos depois estávamos na casa de Alberto. Ele abriu a porta do carro para mim no momento exato em que meu pai e um homem de sua idade, se não ainda mais velho, abriram a porta de entrada da casa. Os dois estavam rindo e bebendo um líquido marrom de cheiro forte. Meu estômago embrulhou-se.
- Essa deve ser sua bela filha, !
- Oi, princesa! Como foi sua aula?
- Oi, pai. Interrompida. Você terá que pagar uma reposição.
- Não será problema, meu amor. Querida, quero que conheça o Dr. Alberto De Castro.
Ergui uma sobrancelha pensando que só podia ser uma pegadinha. O velho deu uma risada grossa e alta, e percebi que ele fedia a tabaco.
- Na verdade, queremos que você conheça o meu filho Alberto! Ele ainda não chegou, está ocupado no hospital, mas logo irá aparecer para o almoço. Vamos entrando, vamos!
Respirei um pouco mais aliviada, mas nem tanto, no fim das contas. Minha mãe e a esposa do Dr. Alberto De Castro estavam discutindo os detalhes do meu casamento. Ambas tinham uma revista de vestidos de noivas nas mãos e conversavam empolgadas sobre toda essa história que nem se quer notaram a minha presença nos minutos que fiquei sentada próximo a elas. Cruzei toda a sala minuciosamente decorada em tons de dourado e abri as portas de vidros que davam acesso para o jardim impecavelmente cuidado. Eu tinha que admitir, adoraria ter um jardim assim em minha casa. Sentia o cheiro das rosas mesmo estando longe delas, e escutava o canto dos pássaros por todo lugar. De longe, era o ponto auto do meu dia até aquele momento. Pensei que só poderia ter um outro ponto auto no dia se conseguisse fugir daquele almoço e encontrar . E foi exatamente o que eu tentei fazer ao atravessar todo o jardim até chegar ao portão dos fundos. Sorri comigo mesma e corri até ele puxando as correntes. Infelizmente havia um cadeado me trancando para o lado de dentro.
- Será que eu consigo pular? – me perguntei dando um passo para trás para verificar a altura.
- Eu não faria isso se fosse você.
Pulei com o susto e levei as mãos até meu peito. Encarei o garoto a minha frente, que me sorria com um olhar um tanto curioso, um tanto satisfeito, e o analisei de volta, tão rude quanto eu pude ser naquele momento. Seus cabelos eram encaracolados num tom castanho escuro quase pretos. Seus olhos também eram bem escuros, porém um pouco mais claros que os fios de sua cabeça. Sua pele era tão branca quanto a minha, mas enquanto minhas bochechas possuíam um tom rosado, seu rosto era bem mais pálido, quase como se ele estivesse cansado, mesmo aparentando não ser tão mais velho que eu.
- Já terminou de me comer com os olhos?
- Isso foi grosseiro. Mas eu lhe faço a mesma pergunta, o que está olhando, afinal?
- Nada! Nada! Você é muito bonita, . Imagino que deve ser a , certo? A filha do Sr. Coutinho?
- Sou.
- Eu sou Alberto, encantado em conhecê-la. Peço perdão pela demora, eu sou interno no Hospital do cento, e peguei um paciente de última hora.
- Sem problemas.
- Tem certeza? Não pareceu isso quanto você tentou escapar daqui pulando um portão com lanças.
- Eu não ia pular! – ri, um tanto quanto nervosa, pois eu sabia muito bem que sim, eu seria capaz de pular.
- Não. Porque eu te interrompi. Sou o seu herói.
- Ora, céus! Devo então meus sinceros agradecimentos a você. - falei com a voz totalmente arrastada, pintada com uma falsa simpatia, e ele me acompanhou.
- Seu sorriso tão lindo me basta como qualquer agradecimento, bela senhorita.
Nós dois caímos na gargalhada. Alberto deu tanta risada que ficou vermelho e eu pude sentir as lágrimas saindo de meus olhos por conta da crise de riso da pior interpretação de um flerte na face da Terra. Ele foi rápido ao me estender um pequeno lenço branco para que eu pudesse enxugar os olhos, e enquanto eu fazia, Alberto aproximou-se de mim para ajeitar uma mecha de meus cabelos que havia se soltado do meu coque. Ele sorriu amigavelmente para mim.
- Espero que possamos ser bons amigos, . – falou, ainda sorrindo, mas sua voz denunciava um tom de tristeza que seu rosto não transparecia.
- Ai estão os pombinhos! O almoço já vai ser servido! Vocês dois, entrem, por favor! - A senhora De Castro apareceu acenando abaixo da soleira da porta para nos chamar. Ela sorriu maternalmente para nós dois, e Alberto estendeu a mão para que eu fosse na frente.
O almoço se estendeu a tarde inteira. Alberto voltou para o hospital enquanto nossos pais trancaram-se no escritório e nossas mães faziam a lista dos convidados para o casamento. Eu encontrei uma biblioteca enorme na casa e me escondi lá dentro, onde chorei a maior parte da tarde. Odiava esse papel da donzela em perigo que precisava ser salva, mas eu definitivamente não tinha as rédeas da minha vida. Havia sido educada em casa à minha vida inteira, e as únicas garotas da minha idade que eu conhecia eram as filhas das amigas dos meus pais, que viviam sob as mesmas condições impostas a mim. Eu estava completamente sozinha e perdida dentro de mim mesma e dos meus anseios e desejos, sem a menor ideia de como lutar por eles em vez de lutar contra eles.
Já era noite quando finalmente voltamos para casa. Desejei boa noite aos meus pais e me retirei para meu quarto. Estava tão exausta de pensar e de chorar que adormeci em minha cama com a mesma roupa que havia passado o dia.
Segunda, 12 de junho de 1950 – Recife, PE.
Pensei que estivesse sonhando quando ouvi alguns estalos dentro de meu quarto, mas, na verdade, eu estava despertando com o barulho leve, porém agudo que eu estava ouvindo. Abri meus olhos devagar notando pelo relógio que eram cinco e meia da manhã e levei mais dez segundos para entender que os estalos não eram dentro de meu quarto, mas sim do lado de fora de minha janela. Pulei da cama e corri para olhar para o lado de fora, vendo lançar pedrinhas insistentemente em direção ao meu quarto. Quando ele me viu, abriu um enorme sorriso e fez sinal para que eu abrisse a janela. Eu sorri imediatamente comigo mesma, sentindo meu coração sapatear dentro de mim enquanto eu abria com cuidado a janela, tentando não fazer muito barulho.
- O que você está fazendo aqui? Você está maluco, ?!
- A culpa é inteiramente sua, ! Não apareceu na praia hoje, eu esperei o dia inteiro por você. Partiu meu coração.
- Eu também senti saudades, se é isso que você quer me dizer.
- Consegue escapar?
- Essa hora da madrugada? Não! É muito perigoso! - eu sussurrei, rindo.
- Vamos! Tenho certeza que você vai gostar da programação.
Comprimi meus lábios e pensei por um segundo. Dane-se!
Coloquei minhas pernas para fora da janela, que não era tão alta, e eu já havia escapado por ali antes, e então me lancei ao gramado. me segurou levemente pela cintura, depois, demos nossas mãos e percorremos juntos toda a rua escura até a calçada da praia, ora dançando, ora gargalhando. diminuiu o passo perto de onde eu costumava ficar para ler.
- O que estamos fazendo aqui?
- É a hora dourada.
- Como assim?
- O sol nasce exatamente às cinco e cinquenta e sete da manhã. Vamos ver isso acontecer juntos. – ele sorriu mais abertamente enquanto passava seu casaco por meus ombros. Nós tiramos nossos sapatos e seguramos com uma de nossas mãos, enquanto a outra estava entrelaçada na do outro. Caminhamos pela areia fria até perto de onde as ondas estavam se quebrando e aguardamos. As cinco e cinquenta e cinco o céu ficou mais claro e já era possível ver a cor da água do mar à nossa frente. Às cinco e cinquenta e seis, a linha do horizonte aderiu uma coloração amarelada, ficando mais intensa e laranja a cada segundo que se passava até que às cinco e cinquenta e sete em ponto o sol despontou sob o mar e nasceu. A hora dourada era incrivelmente bonita. Incrivelmente deslumbrante. Uma imagem linda, que apesar de eu ter crescido em frente às praias, era a primeira vez que eu presenciava.
- Uau. – foi a única coisa que saiu de minha boca enquanto eu recostava preguiçosamente minha cabeça no ombro de .
- Preciso te contar uma coisa, bela .
- O que foi?
- Você crê em amor à primeira vista? Paixão predestinada? Essas coisas todas?
- Acredito que todas as coisas acontecem porque elas precisam acontecer.
- Já é um começo.
- Por quê?
- Fiz uma promessa a mim mesmo e tenho para mim que a quebrei quando nos conhecemos.
- Não estou entendendo.
- Quando a vi lendo na praia pela primeira vez, Boris me pegou fitando-a. E fez uma piada como se eu estivesse no mundo da lua, perdido em pensamentos, por sua causa.
- Quem é Boris?
- O dono da oficina em que trabalho.
- Certo, continue.
- Então eu disse a ele e prometi a mim mesmo que se eu a conhecesse um dia eu não me apaixonaria por você. Mas desde que nos conhecemos eu não consigo parar de pensar em você. Acho que a promessa já era.
- Fico feliz em saber que não sou a única a pensar demais no outro por aqui.
- Espero que no próximo dia doze de junho eu possa chamá-la de namorada, senhorita .
- E nós iremos comemorar vendo o nascer do sol em uma ilha paradisíaca.
me levou para casa vinte minutos após o sol nascer, pois todos os despertadores de minha casa apitavam às sete da manhã. Eu voltei por minha janela novamente orando para que ninguém me pegasse, e menos ainda, que pudessem vê-lo saindo dos arredores da propriedade.
Era mágico como parecia que quando estávamos juntos todos os problemas de meu mundo desapareciam e eu não conseguia pensar em mais nada a não ser em seu seguro e em como suas mãos pareciam ficar mais quentes quando estavam em contato com as minhas. Mas era uma pena também quando essa sensação acabava no momento em que eu pisava dentro de minha casa, dando lugar ao sentimento de quão perturbador era perceber que nos apaixonamos por alguém que nunca poderíamos ter.
Estava melancólica lá pelas oito da manhã quando minha mãe adentrou meu quarto. Eu não havia conseguido pregar os olhos desde o momento em que tinha voltado para a cama, e tinha a sensação de que a minha cabeça explodiria a qualquer momento.
- Já está acordada! Maravilha! Bom dia, querida, apronte-se, por favor, você tem visita.
- Quem é?
- Alberto.
Quando desci, Alberto estava aguardando-me na sala. Abriu um lindo sorriso ao me ver e beijou a minha mão em cumprimento. Eu mordi o lábio inferior respirando fundo.
- Você está estonteante, !
- Obrigada. Você também está muito apresentável. O que faz aqui tão cedo?
- Vim falar sobre nosso casamento.
As palavras que eu não gostaria de ouvir. Respirei fundo, tomei toda a coragem que estava mentalizando possuir na última uma hora de meia e então eu disse. Baixo, mas disse.
- Talvez eu não queira me casar com você, Alberto.
- Aí. – ele colocou as mãos no coração e fingiu sentir uma pontada no peito. – Essa doeu! Doeu demais! Mas quer ouvir uma coisa engraçada? Eu também não quero me casar com você, . – sussurrou baixinho perto de meu ouvido.
A surpresa tingiu meus olhos inevitavelmente. Eu dei um passo em sua direção e ele deu um passo para mais perto de mim, sorrindo.
- Você é uma bela moça, . Mas eu vou te contar um segredo: eu já tenho uma pessoa para amar.
- Nossa família nunca vai aceitar.
- Eles não precisam saber, .
- Como não? Eles estão planejando um casamento!
- Marcamos a data para o fim do ano e ganhamos tempo. Podemos fingir que estamos nos dando bem, e aceitando essa imposição. É questão de tempo até estarmos livres para viver nossas vidas como quisermos viver.
- Espero que você esteja correto. E quando chegar a data, o que faremos?
- Não apareceremos no casamento.
- Você é mais maluco que eu.
- Não podem nos forçar a dizer sim se nós não formos até a igreja.
- Tomara que você esteja certo. E espero que seja feliz, Alberto.
- Eu vou ser! E espero que você também seja, querida . Temos um trato?
- Temos um trato.
Meu semblante não mascarou a esperança que dominou o meu coração naquele momento. E pela felicidade que Alberto beijou a minha bochecha, não haviam mais máscaras dominando-o também.
Terça, 20 de junho de 1950 – Recife, PE.
- Então... - eu comecei dizendo. ergueu os olhos para mim por cima dos óculos de grau que usava para ler. Eu mordi o lábio inferior e dei uma risadinha ao chacoalhar a minha cabeça negativamente para ele. - Não é nada, esquece.
- Não. - ele disse firme, fechando o livro. - Você está inquieta há dias! O que você quer me dizer?
- Nada, pode continuar lendo.
pegou a minha bolsa e guardou o livro dentro dela. Quando eu não comecei a falar, ele olhou para seu pulso e bateu o dedo indicador nele teatralmente informando-me que seu horário de almoço chegaria ao fim a qualquer momento. Todos os dias eu ia até a praia após as minhas aulas pela manhã e início de tarde. O motorista me levava até meus professores particulares e depois eu o dispensava com a desculpa de querer ler um pouco na praia. Isso acontecia pontualmente às três da tarde quando saia para almoçar no quiosque em frente ao que eu me sentava às vezes. Na maioria das vezes era quem lia o capítulo do livro ao qual eu já havia lido para que pudéssemos comentar sobre ele juntos ao fim da tarde. Ele limpava as mãos geralmente sujas de graxa e lavava seu rosto que reluzia o suor do tempo quente de Pernambuco. Atravessava a rua com um largo sorriso estampado em sua boca, e com olhos que me lembravam o mar. Era lindo de olhar. Depois abria o livro na página que eu já havia deixada marcada e perdia-se por lá. Até que vez ou outra pegava-me olhando-o com carinho.
- E então?
- Certo... Eu não sei como posso te dizer isso.
- O que houve, ?
- Vai haver um baile na minha casa... Neste fim de semana.
- Está me convidando para ir?
- Bom. – eu parei e encarei o tamborilar de meus próprios dedos sobre a mesa, respirei fundo e soube que a hora seria aquela. Eu não poderia continuar escondendo aquilo dele por muito mais tempo, afinal. – Estou convidando-o. Mas antes você precisa saber uma coisa... Esse baile... Bom, é um baile de noivado. O meu noivado.
me encarou nos olhos totalmente sem reação por cerca de trintas segundos e depois começou a rir o suficiente para que sua pele bronzeada ganhasse uma tonalidade vermelho vivo.
- Você está brincando, não é?
- , me ouve. – eu segurei suas mãos por cima da mesa, mas desvencilhou-se. – Eu posso explicar. Eu juro. Deixe-me explicar, por favor.
- Para, por favor. Você vai se casar com outro homem, ! Como pôde esconder isso de mim durante todo esse tempo?
- Não! Me escuta! Eu não quero me casar, ! O meu pai arranjou esse casamento!
- Agora tudo faz sentido! Eu sou um passatempo para você? Que não te deixa entediada enquanto você não precisa cumprir suas obrigações com o homem que o seu pai escolheu para você?
- Não! , para, por favor. Deixe-me falar!
- Não tenho absolutamente nada para ouvir de você, . Eu achei que... Eu não sei mais o que eu achei.
- Não faz isso comigo. – eu falei no momento em que ele se levantou. - Não vá. Por favor.
- O meu almoço já está acabando, bela . Eu tenho que ir.
- Eu amo você. - murmurei. estava de costas e eu não tenho certeza se ele me escutou, pois, apesar de parar por um segundo, ele voltou a andar sem nem ao menos olhar para trás. Para onde eu havia ficado. Para onde ele havia me deixado.
Eu fiquei aguardando-o.
Até as seis da tarde eu fiquei sentada na cadeira daquela mesa bebendo o mesmo suco de laranja que eu havia pedido às três da tarde. Meu estômago embrulhou quando às seis e doze da tarde eu notei que era Boris quem estava fechando a oficina, e não , como em todos os dias. Levantei-me e caminhei até ele.
- Boa tarde, senhor. Poderia me dizer se ainda está por aqui? - elevei a minha cabeça ao perguntar, tentando verificar se conseguia enxergá-lo lá dentro por entre os buraquinhos na porta de aço da oficina.
- Então você é a bela que murchou o garoto hoje, né? Ele saiu tem um bocado de tempo já, moça. Disse-me que amanhã cumpre horário. Não queria te ver nem pintada de ouro.
- Eu entendo... Obrigada.
- Igualmente, querida. – Boris sorriu para mim e baixou a cabeça em sinal de despedida antes de virar-se e caminhar na direção oposta a que eu ia. Suspirei enquanto andava totalmente desnorteada até a minha casa e torci para que meu pai ainda não tivesse voltado do trabalho. Sentia meus olhos úmidos a ponto de a qualquer momento se encharcarem de água, eu só queria encolher-me em minha cama, sem precisar encarar meus pais no jantar.
- Droga. – sussurrei ao notar o carro parado em frente à entrada de minha casa. Tratei de recompor-me da maneira que pude enquanto entrava e suspirei de alívio ao notar que era apenas Alberto ali. Sem pensar, corri em sua direção buscando um abraço fraterno que eu sabia que ele não iria recusar-me.
- , o que houve? Está trêmula!
- Só me deixe ficar aqui, Alberto. Por favor.
- Não, não, não. A senhorita vai me contar o que aconteceu ou terei que comunicar seus pais. E tenho certeza que você não quer isto, certo?
Puxei todo o ar que pude para dentro e inflei meus pulmões antes de começar a contar tudo para Alberto. Falei sobre , como o conheci, como me sentia sobre ele e o que havia acontecido a apenas algumas horas para que eu ficasse da maneira que estava. Alberto foi compreensivo e afagou os meus cabelos enquanto algumas lágrimas acabavam por escapar de meus olhos.
- Fique tranquila, . Se for preciso eu mesmo irei falar com esse homem para desfazer este mal entendido, tudo bem?
- Não precisa, Alberto. Ele pode ficar ainda mais chateado. Talvez seja hora mesmo de eu tirar de minha cabeça, afinal, nunca poderíamos viver em paz juntos sem travar uma guerra com meus pais.
- E você vai desistir do possível grande amor de sua vida tão fácil assim? Não parece a que eu conheci algum tempo atrás que seria capaz de pular um portão repleto de lanças só para escapar de um almoço ao qual ela não queria fazer parte.
Eu sorri.
- É bom tê-lo como amigo, Alberto.
Algum tempo depois, despedi-me de Alberto na porta da frente e acenei para ele sorrindo agradecida por suas palavras de carinho, mas no momento em que fechei a porta, os pensamentos sobre estar andando por cima de uma corda bamba preencheram a minha mente. A quem eu estava querendo enganar? Eu jamais venceria uma batalha contra meus pais. Muito menos uma guerra.
Novamente notei barulhos dentro de meu quarto. Dessa vez eu demorei apenas alguns segundos para me levantar e notar que eram pedrinhas em minha janela outra vez. Eu mal tive tempo para terminar de abri-la e lançou-se para dentro, envolvendo-me em seu abraço quente.
- O que está fazendo aqui? - eu sussurrei contra seu peito.
- Vim implorar o seu perdão. Agi como uma criança mais cedo, , e nunca foi a minha intenção desrespeitá-la ou duvidar do seu amor por mim. A simples ideia de não poder mais vê-la, de não poder mais segurar suas mãos e não poder mais sonhar que um dia seríamos um do outro fez-me muito infeliz. Eu não a deixei explicar nenhuma parte da história, e também peço desculpas por isso. Se voltarmos a ficar juntos, isso nunca mais irá se repetir.
- Eu senti a sua falta. Essas horas que ficamos distantes... Pareceram muito tempo para mim.
- Eu também senti a sua falta, bela . E eu queria dizer-lhe que também a amo. E irei amá-la para sempre, mesmo que você case-se com outro homem.
- O que eu ia dizer mais cedo é que Alberto não quer se casar comigo, . Ele disse-me que já ama outra pessoa, me propondo fingir a farsa de um noivado, para agradarmos nossos pais, e no fim, não iremos aparecer para a cerimônia.
- Essa notícia deixou-me tão feliz que eu poderia beijá-la.
A simples possibilidade de ser beijada por deixou-me completamente perplexa. Senti novamente como se meu coração estivesse dando piruetas dentro de meu peito em sintonia com o familiar frio no pé da barriga que se fez presente automaticamente. olhou-me nos olhos e eu pude sentir toda a ardente luxúria e a paixão que ele fazia permanecer contida em respeito à minha honra. Ele deixou seu olhar baixar até a minha boca e passou suavemente às costas de sua mão sob a pele de minha bochecha quando tomou a decisão de me beijar.
Eu sempre imaginei que quando esse momento chegasse, um milhão de coisas poderiam se passar na minha cabeça, mas de todas essas coisas, eu nunca cheguei a cogitar pensar em minha mãe e no quanto ela me disse a vida inteira que beijo não era uma coisa de moça direita. Talvez eu estivesse com um pouco de medo. Ou talvez isso tivesse acontecido pelo simples fato de minha mãe ter batido na porta de meu quarto para me desejar boa noite e eu tivesse dado um pulo de susto.
olhou-me surpreso, inegavelmente contendo sua vontade de rir.
- Boa noite, bela . É melhor eu ir.
- Nos vemos amanhã?
- Sempre que quiser.
Sábado, 24 de junho de 1950 – Recife, PE.
Passei minhas mãos nervosamente em meu vestido de seda azul lavanda. As joias da família pareciam pesar três vezes mais do que de fato pesavam e o meu cabelo, geralmente liso, outrora molhado de água do mar, parecia produzido demais no penteado repleto de cachos ao qual se encontrava no momento. Eu sentia como se minha cabeça fosse pender para um lado ou outro a qualquer momento, e eu sentia que meu coração não ficaria por muito mais tempo quieto dentro de meu peito, pois a data de meu casamento havia sido anunciada há alguns minutos: Primeiro de Setembro.
- ! Oh, meu amor! Você está tão linda! Seus pais devem estar tão orgulhosos! - minha tia sorriu ao me abraçar. - Mariê, minha linda filha, casou-se em Paris! Você pensa em casar-se no estrangeiro também?
- Não, tia. Meu noivo e eu temos outros planos para o casamento.
- Ah, jura? Me conta!
- É surpresa! - dei o meu melhor sorriso ao afagar-lhe o ombro e sair rapidamente de perto dela. Todos aqueles abraços, cumprimentos e felicidades estavam me deixando desnorteada. Girei os olhos ao notar meu pai conversando animadamente com uma das melhores amigas de minha mãe e sua filha, Susanna. Aproveitei aquele minuto de sua distração para escapar daquela festa e respirar um ar puro no jardim. Para a minha surpresa, meu convidado de honra já estava lá.
- Boa noite, senhorita. – disse ele quando notou minha presença. abriu seu melhor sorriso quando eu me aninhei em seu abraço. Ele beijou suavemente meus cabelos e então deu um passo para trás para olhar-me melhor.
- Você está belíssima esta noite, .
- Você também não está nada mal.
- Vesti a minha melhor camisa. – ele rodopiou ao pronunciar a frase, o que só me fez rir ainda mais.
- Estou feliz que tenha vindo.
- Estou feliz que tenha me convidado.
abraçou-me outra vez e eu aproveitei aqueles segundos de paz para sentir seu perfume. Agarrei-me a ele com mais força, enquanto ele brincava de forma carinhosa com uma mecha de meus cabelos cuidadosamente arrumados. O silêncio que existia entre nós dois não era constrangedor, pelo contrário. Eu me sentia perfeitamente bem, totalmente vívida e completamente livre. Liberdade essa que só era proporcionada a mim em momentos em que estivéssemos juntos. E foi absurdamente apoiada no misto de liberdade e confiança que pairava sobre nós dois que eu sussurrei o quanto estava com medo, fazendo com que me apertasse um pouco mais contra si.
- Não sinta. – ele sussurrou de volta e continuou. – Você é forte, é incrível. Você é uma menina inteligente, que sabe o que quer e quando quer. E eu sei que não irá deixar que ninguém acorrente seus sonhos.
- ... – eu sorri, entre lágrimas. - Eu sinto como se não tivesse saída. É como se houvesse uma parede dentro de mim, que cada vez mais aperta o meu peito.
- Quietinha, bela . Vai ficar tudo bem, eu te prometo.
Quando ouvimos um limpar de garganta vindo de trás de nós dois, eu pulei com o susto, limpando meu rosto antes de virar-me e suspirei de alívio ao notar que era Alberto.
- Acho que você deve ser , não é? Sou Alberto, é um prazer. – ambos apertaram as mãos e eu dei um sorriso fraco para Alberto. - Você está lindíssima, .
- Obrigada, Alberto.
- Peço perdão por interromper, mas precisamos ir para dentro, . Eu preciso te dar aquela coisinha, sabe?
- Ah não! Agora?
Comecei a suar frio no mesmo instante. apertou a minha mão em sinal de força e fez um movimento com a cabeça para eu ir em frente. Respirei fundo segurando a mão de Alberto e sussurrei para que ele fosse rápido com o show. Ao entrar no interior da casa, a música suave que tocava parou no mesmo instante e todos os olhos das pessoas presentes ali voltaram-se para nós dois. Meus pais e os pais de Alberto estavam juntos e conversaram orgulhosamente entre si, quando Alberto bateu em uma taça de vidro pedindo um momento de silêncio.
- Querida . – Alberto virou-se para poder segurar uma de minhas mãos, a apertando delicadamente para mostrar que eu só encontraria verdades em suas palavras. – Desde o primeiro momento em que a vi, eu soube que seria impossível não amá-la, e juro-te que no que for depender apenas de mim, você será sempre feliz. Não importa o que signifique sua felicidade. Aceite esse anel como uma promessa de que não quebrarei minhas palavras.
Eu entendi cada uma de suas palavras. Entendi perfeitamente que elas eram de coração e que todos ali interpretariam da forma errada a qual ele queria que eu interpretasse. Eu lhe sorri com todo o carinho e amor que nutri por sua amizade nos últimos dias e naquele momento eu soube que ele também sabia. Alberto colocou o anel em meu dedo e beijou delicadamente a minha mão enquanto todas as pessoas comemoravam nosso falso noivado. Pelo canto do olho pude notar parado perto da porta de acesso ao jardim, com o olhar irrevogavelmente ferido.
Alberto e eu dançamos calmamente uma música juntos. Em seus acordes finais, ele riu enquanto sussurrava em meu ouvido para que eu voltasse para os braços de meu verdadeiro amor. Eu carinhosamente lhe beijei a bochecha e esgueirei-me por entre as pessoas até a porta principal que me levaria de volta ao jardim, onde bebericava um vinho tinto.
- Você demorou dessa vez.
- Precisávamos fazer uma cena juntos.
- Eu vi. Belo anel.
- .
- Eu sei, eu sei. É que é um pouco difícil ver a garota que você ama aceitando um pedido de casamento de outro homem. Você não imagina quão doloroso foi para mim ouvir aquelas palavras.
- Eu amo você. E só você, . Um dia iremos poder revelar nosso amor ao mundo e esse dia será o mais feliz de nossas vidas.
- Um dia usarei de belas palavras para pedir a senhorita em casamento. E lhe darei um beijo no momento em que você aceitar ser minha.
- Quem é você, rapaz? - a voz grave do pai de Alberto soou alta entrando no jardim e apontando o indicador para .
- Meu nome é , muito prazer, Doutor - disse, mantendo uma admirável calma que não existia em mim.
- Foi você quem o convidou, ? De onde o conhece?
- Na verdade, papai – Alberto chegou sorrindo para todos nós e eu respirei um pouco mais aliviada naquele momento. – Eu convidei o . Ele é um ótimo amigo, estudamos juntos.
- Oh! Entendo. É um prazer conhecê-lo, .
- Igualmente, Doutor.
- Aqui está, . O drink que me pediu para buscar. Perdi alguma coisa?
- Obrigada, Alberto. Não perdeu nada, estava me contando como eram as aulas de vocês dois já que eu sempre fui educada em casa.
- Se vocês me dão licença, crianças, eu preciso voltar para dentro.
O pai de Alberto virou as costas no momento exato em que eu soltei o ar que prendia em meus pulmões. deu risada e Alberto fez questão de fechar as portas do acesso.
- Se vocês me dão licença, pombinhos, irei escapar desse baile agora. Se eu fosse vocês, faria o mesmo.
E nós fizemos. Saímos pelos fundos de minha casa e caminhamos juntos até a praia, onde deitamos na areia para olhar as estrelas. As várias constelações que enfeitavam o céu daquela linda noite de junho brilhavam sob nossos olhares quando apontou o dedo indicador para o céu.
- ! - eu reprovei. - Não se aponta os dedos para as estrelas.
- E por que não?
- Pode nascer verrugas nos dedos.
- Isso é superstição!
- E daí? Você acredita em destino e não acredita em verrugas?
Nós dois rimos com a comparação. Deitada em seu peito, eu comecei a desenhar círculos com meu dedo na mão que ele repousava perto de meu rosto.
- Sem apontar agora, você está vendo aquela estrela?
- Qual?
- Aquela mais brilhante, próxima a constelação das três marias.
- Sim. O que tem ela?
- Aquela é a nossa estrela. Sempre que estivermos longe um do outro, só precisamos olhar para ela para que possamos sentir que estamos próximos de novo.
- . – murmurei, mais para mim mesma, porém eu sabia que ele havia escutado.
- Podia passar uma estrela cadente agora para que pudéssemos pedir algo. O que você ia querer?
- Eu já sei o que eu quero.
Não aguardei uma pergunta, não aguardei uma reação, nem mesmo um instante de hesitação. Eu não pensei, eu apenas levei meus lábios até os seus, ficando na ponta dos pés e sentindo o mundo inteiro rodopiar ao meu redor. sabia muito bem conduzir-me, e produziu tal feito com maestria, me deixando sem ar. Nossas bocas apenas separaram-se quando uma chuva rala do fim da noite caiu sobre nós. Eu sorri, envergonhada, e não soube o que dizer. Ele, no entanto, encarou-me com o olhar repleto de um misto de sentimentos que eu não consegui identificar e subiu sua mão para repousar em minha nuca, sorrindo antes de beijar-me novamente, sem deixar antes de me dizer que ele também já sabia o que pediria a uma estrela. Naquela noite, senti novamente as borboletas em meu estômago, que mesmo que por um tempo elas tivessem permanecido adormecidas dentro de mim, eu tinha certeza que a partir daquele momento elas jamais repousariam calmamente outra vez.
Meados de julho de 1950 – Ilha do Retiro, Recife, PE.
Eu estava lendo mais um capítulo de meu livro, sentada no mesmo lugar costumeiro de sempre quando um garoto, um pouco mais novo que eu, que trabalhava limpando os quiosques da calçada me ofereceu uma folha de papel, dobrada algumas vezes. Notei que tratava-se de um pequeno bilhete.
- O moço da oficina mandou para você. - ele não demorou a explicar ao notar a confusão em meus olhos.
“Oi, coração.
Peço que me perdoe, mas hoje eu não poderei ir almoçar com você, pois estamos com muito trabalho aqui na oficina. Fico triste, pois faz um mês desde que nos falamos pela primeira vez e eu sinto como se fizessem anos que eu a conheço. Não se chateie, e me encontre na parte mais distante da praia antes que a noite acabe. Tenho um presente para você. Com amor, Bezerra. – 10 de julho de 1950.”.
- Você aguarda um minuto, para que eu possa responder? - eu sorri, começando a imitar sua saudação em pedaço de guardanapo, já que não tinha nenhuma folha de papel comigo.
- Claro.
“Oi, coração.
Já que você não vem, eu vou para casa, pois meus pais estão em cima de mim há alguns dias. Vou sentir a sua falta, mas já estou ansiosa pelo cair da noite. Espero poder passá-la toda com você. É o maior presente que eu poderia querer. Com amor, Coutinho. – 10 de julho de 1950.”.
- Aqui, você leva de volta para ele, por favor? Obrigada.
Levantei-me e fui lentamente caminhando para minha casa. Para a minha sorte não havia ninguém lá quando eu cheguei. Subi para meu quarto e deixei o bilhete junto à margarida que me dera em meu aniversário, carinhosamente guardados dentro do primeiro livro que lemos juntos. Deitei em minha cama pensando no quanto eu tinha sorte de viver um amor de verdade. Sorri comigo mesma.
Durante todo o dia eu fiz questão de ser a filha perfeita que meus pais se orgulhavam de citar aos quatro ventos. Tomei chá com minha mãe e quando a noite chegou eu toquei piano para meu pai após o jantar. Já era tarde quando me recolhi, e mais tarde ainda quando pulei a janela e corri a plenos pulmões até a praia. Passei pelo caminho pequeno de pedras até chegar à parte deserta da praia, onde a areia parecia mais limpa e as ondas mais fortes.
- . - eu chamei.
- Aqui! - apesar de ouvir sua voz meus olhos ainda não haviam o encontrado. A noite escura demais impossibilitava que minha visão enxergasse um pouco mais à frente de poucos metros. Quando finalmente o notei, eu sorri. não queria que de fato pudessem nos ver ou nos encontrar aquela noite, por isso, estendeu uma toalha entre duas grandes árvores e por este motivo eu não o havia visto de longe. Haviam algumas velas decorando o local, cuidadosamente colocadas dentro de alguns tubinhos transparentes que pareciam copos, para que o vento não as apagasse, mesmo que o tempo estivesse bem calmo naquela noite. Haviam pratos e talheres e algumas flores para decorar tudo.
- Está lindo! - falei sorrindo e dando-lhe um beijo leve nos lábios. - Você fez tudo isso?
- Espero que esteja com fome. Preparei um jantar para nós.
- Como foi seu dia? - perguntei beliscando um pãozinho e tomando um gole pequeno do vinho que seu Boris havia nos dado, de acordo com .
- Bom, chegou um carro novo para gente hoje, por isso eu não consegui sair. É um fusca e pertence a um lote de 30 unidades que chegou no Brasil com adiantamento nesse mês. Deveria ser até um pecado essa belezura de carro estar todo amassado de batida, o dono deve ser completamente desmiolado.
Eu ri enquanto ele continuava falando com paixão do fusquinha lindo azul bebê, como o descreveu para mim.
- A única parte ruim é que não vamos receber o pagamento do dono se não conseguirmos consertar o carro. Boris está totalmente pilhado. Me deu o vinho e disse para eu estar inspirado às seis da manhã na oficina.
- Eu tenho certeza absoluta que vocês dois irão conseguir. São os melhores! Se você quiser eu posso tentar ajudá-lo também.
- Você é incrível, sabia?
- Eu faço o que eu posso!
Gargalhei quando me puxou com força para seus braços me enchendo de beijos.
- Quero passar a minha vida inteira ao seu lado, bela .
- E eu quero ser completamente sua.
deitou-se sob a toalha em cima da areia fina e aproximou nossos rostos para então beijar suavemente meus lábios. Eu dei uma leve puxadinha em seus cabelos, e ele retribuiu apertando-me um pouco mais. Naquela noite, no lugar mais escondido e mais nosso que qualquer outro, com uma lua prateada e brilhantes estrelas sob nossas cabeças, o mundo pertencia a nós quando nos deitamos um dentro do outro para nos amarmos da última forma que ainda faltava amar.
- Preciso ir para casa.
- E eu para a oficina, mas te levo em casa antes.
Nós dois arrumamos todas as coisas e recolhemos todas as velas para então partir. Fomos rindo, completamente felizes com o que havíamos vivido no anoitecer e eu tenho certeza absoluta que pressenti o que estava por vir no momento em que me demorei mais que o necessário no abraço quente do homem que eu amava. Ao pular a janela de volta para o meu quarto acenei para que mandou-me um beijo de despedida e virou as costas em direção à praia de volta.
- Oi, coração. - senti cada pedacinho de meu corpo petrificar ao ouvir a voz que veio de dentro de meu quarto. Quando me virei, notei meu pai sentado na cadeira de minha penteadeira, de frente para a janela, com meu livro aberto em suas mãos. Ele apertou a margarida com força fazendo com que ela se despedaçasse e caísse sob seus pés. Depois, fez questão de picar o bilhete em pedacinhos mínimos e levantando-se jogou-os com força no meu rosto. Eu não consegui dizer uma palavra se quer – Eu esperava mais de você, ! Saindo às escuras com um pobretão sujo de graxa! Com um casamento milionário marcado, francamente. FRANCAMENTE! - ele gritou com toda a braveza que poderia ter gritado, chacoalhando-me e apertando meus braços com tanta força que ficaram vermelhos na mesma hora.
- O senhor está me machucando, papai. – sussurrei.
- Cale a boca! Sua imunda! Eu vou antecipar o seu casamento! No que depender de mim, você se casa hoje. Está me entendendo? HOJE.
- Eu não vou me casar!
Os raios de sol começaram a clarear meu quarto e quando a luz bateu no rosto de meu eu pude notar que suas bochechas estavam exalando um vermelho vibrante repleto de raiva.
- Esqueça esse rapaz que você conheceu. Para o seu próprio bem, . E para o bem dele também. Isso é uma ordem.
- Eu tenho o direito de opinar sobre minha própria vida! Eu tenho uma escolha!
- Não, você não tem! Porque você é minha filha, e filha minha faz o que eu digo e ponto final.
- A sua filha bastarda Suzanna também o obedece? Ou este é um privilégio meu, papai?
- O que você disse?
- Não tente negar, papai. Escutei a sua conversa com a mãe dela durante o chá da tarde. E se o senhor não me deixar em paz eu vou contar tudo o que eu sei para a minha mãe.
Não tive tempo de prever ou me defender. A mão de meu pai estalou com força em meu rosto no segundo em que eu terminei de proferir as palavras. As lágrimas começaram a sair descontroladas quando eu coloquei a mão sob o local que ardia queimando. Cai no chão amedrontada quando meu pai virou de costas pronto para sair de meu quarto.
- Espero não precisar fazer isso outra vez, .
O tempo, a vida e a nossa existência são um mistério. Ou ainda, são a combinação de várias pecinhas que ora se encaixam perfeitamente, e em outros momentos, se forem colocadas lado a lado podem provocar o maior caos já lançado sob o mundo. É o efeito-borboleta em sua forma mais impetuosa. Pode parecer até mesmo amargo pensar que todas as decisões que você toma desbloqueiam caminhos únicos aos quais você precisa seguir. Ali, naquele exato instante eu não sabia. Eu ainda não tinha a menor ideia, mas no momento exato em que o relógio bateu meia-noite em ponto fazendo a passagem do dia 10 para o dia 11 de julho de 1950 eu não teria mais motivos para continuar em frente.
Quando a tarde despontou lá perto das três horas eu desafiei todas as terminações nervosas de meu corpo e pulei a janela de meu quarto. Sabia que meu pai estava trabalhando naquele horário, porém, durante todo o dia, a cada hora a minha mãe vinha até meu quarto para ver se eu estava bem, e para novamente informar-me que meu pai não quer que eu saia de casa, por isso, ela continua trancando-me dentro do quarto. Haviam colocado o motorista da casa de prontidão próximo a minha janela, mas por alguma razão desconhecida ele não estava mais ali. Corri o mais rápido que pude, e fiz um caminho diferente até a oficina em que trabalhava para que ninguém conseguisse vir atrás de mim. Ao chegar lá me deparei com ele e Boris empurrando o fusca para fora da oficina. Boris deu um abraço em , e um sorriso triste para mim.
- O que aconteceu?
- Fui despedido.
- O quê? Como assim?
- Não conseguimos consertar o carro e o dono decidiu que não ia pagar. Mandou que ficássemos com o carro. Boris gastou muito dinheiro para trocar as peças, para dar um jeito na pintura, bom, essas coisas. Então não vai ter dinheiro para me pagar, aí me deu o fusca e me demitiu. Disse que se as coisas melhorarem ele vai se lembrar de mim.
- Eu sinto muito, .
- Está tudo bem, eu vou dar um jeito. O que é isso no seu rosto? Parece um arranhão.
- Não é nada.
- Você consegue me ajudar a empurrar até a minha casa? É logo naquela esquina.
Apesar de eu fazer muita força, era quem fazia com que o carro se movimentasse. Quando conseguimos enfim entrar no quintal de sua pequena casa, nos escoramos no carro azul para descansar. Eu respirei fundo, de cabeça baixa, encarando meus pés.
- Eu acho melhor ficarmos algum tempo sem nos ver. – disse baixo em uma inútil tentativa de que minha voz não transparecesse a minha vontade de chorar. – Meu pai nos descobriu.
- Eu sei, . Seu pai era o dono do fusca. Ele veio ordenar para que eu me afaste de você hoje cedo.
- Eu sinto tanto! - comecei a chorar e puxou-me para seus braços suplicando para que eu não chorasse.
- Corta meu coração ouvi-la em prantos, . Por favor, não chore, eu darei um jeito nisso, está bem? Eu lhe prometo, eu lhe prometo.
Um segundo depois o carro de Alberto parou em frente à casa de e eu limpei as minhas lágrimas para olhar com mais facilidade para dentro.
- Olá, ! Vim despedir-me de você. - Alberto falou alto, de dentro do carro, fazendo sinal para que fossemos até lá. Ele abriu a porta passando rapidamente por ela e me dando um abraço apertado. Pude notar um pequeno garotinho no banco de trás, com cabelos finos e claros como o mel, e um homem com cabelos iguais ao do garoto sentado à frente, que sorriu para mim.
- O que aconteceu?
- Nossos pais querem antecipar nosso casamento para hoje à noite. Nós poderíamos nos casar e viver com nossos amantes, mas , as pessoas que amamos são incríveis e merecem muito mais. Sem contar que aqui, nessa cidade, não importa com quem nos casaremos, seremos sempre controlados por nossas famílias e controlaremos a nossa no futuro. Temos que nos libertar desse lugar.
- Para onde você vai?
- Para longe, . O mais longe que eu puder. Este é Daniel, ele é quem eu amo. Ele é o meu verdadeiro amor, . E aqui, onde vivemos, eu nunca poderei ser feliz com ele. Se tens esperança de viver seu amor, sugiro que faça o mesmo, .
- Espero que possamos nos ver de novo, Alberto.
- Nos veremos, querida . Sei que nos veremos!
Nos abraçamos mais uma vez e eu sorri em meio às lágrimas quando desejei todas as felicidades do mundo para Alberto, que partiu em seguida. segurou a minha mão e me assegurou que não iriam nos separar. E eu acreditei nele. Com cada pedacinho de esperança que eu nutria dentro de mim eu acreditei em suas palavras e aguardei que chegasse o dia em que viveríamos em uma casinha simples em frente ao mar e nossos filhos brincariam e cresceriam juntos com o bebê loirinho de Alberto e Daniel enquanto nós envelhecíamos lado a lado durante o resto de nossas vidas. E se eu soubesse que aquela seria a última vez que eu veria o grande amor da minha vida, eu teria feito tudo diferente.
Meados de setembro de 1950 - Recife, PE.
Fazia algum tempo desde que eu vira pela última vez. Fazia algum tempo desde que eu vira Alberto pela última vez. Fazia algum tempo desde que eu vira qualquer pessoa pela última vez, se não a minha mãe, que me trazia às refeições todos os dias pontualmente às oito da manhã, meio dia, quatro da tarde e oito da noite. Escorei-me na grade fina perfeitamente pregada a minha janela, deixando que o sol fraco do fim da tarde batesse em meu rosto e fechei meus olhos, soltando um suspiro cansado e melancólico. Agachei-me embaixo da janela e segurei o rosto com as mãos olhando meu quarto quieto, silencioso e triste. Eu sentia tanta falta da água! Sentia falta do mar e de como meus pensamentos fluíam enquanto eu nadava. Sentia falta da areia fina e quente queimando meus pés descalços enquanto corríamos pela praia de mãos dadas. Sentia tanta falta dele! De como seus lábios beijavam-me suavemente da mesma forma que as ondas beijam a praia. De como ele me olhava com tanta ternura quanto olharia para algum bem tão precioso quanto a vida. Da forma como eu me sentia segura e ao mesmo tempo livre quando estava ao seu lado. E agora, aqui estava eu, trancada dentro de meu próprio quarto feito passarinho preso em uma gaiola.
Esgueirei-me para debaixo da cama e puxei uma pequena caixinha com um monte de cartas de . Abracei-as contra meu peito sentindo o cheiro dele nos papéis enquanto meu coração tremia de saudades. Peguei a primeira carta que havia recebido de logo após nos despedirmos no dia em que Alberto foi embora. Era doloroso lembrar-me daquele dia.
Quando cheguei em casa no início da noite todas as luzes estavam apagadas e eu notei que não havia ninguém em casa. Descobri em seguida que meu pai havia dado à noite de folga para todos os empregados. Minha mãe estava chorando na sala quando eu entrei.
- Mamãe?
- ! – ela abraçou-me – O que eu fiz para você, minha filha? Por que você teima em desobedecer o seu pai?
- Mamãe por que a senhora está chorando? O que aconteceu?
- Alberto foi embora de casa! Os De Castro descobriram o caso que você está tendo com o rapaz da oficina, . Você manchou as famílias! Seu pai está uma fera, !
- Alberto foi embora porque não queria casar-se comigo também, mamãe.
- Não interessa a verdade, . Só interessa o que o Doutor De Castro está espalhando pela cidade.
- Mamãe... A senhora precisa ficar do meu lado.
- Não posso ficar contra seu pai, . Suba, seu pai precisa falar com você.
Minha mãe limpou as lágrimas de seu rosto e depositou um beijo em minha testa carinhosamente. Fez um sinal para que eu subisse.
Enfrentei vagarosamente escada por escada até encontrar a porta de meu quarto entreaberta. Quando pisei dentro do quarto só tive tempo de notar as grades inseridas em minha janela. Quando meu pai acertou-me o primeiro soco, eu caí no chão estrondosamente.
Era manhã do dia seguinte quando eu finalmente acordei. A bandeja de café da manhã estava delicadamente posta em cima de minha penteadeira. Senti uma lágrima escorregar por meu olho direito quando tentei levantar. Meu corpo inteiro estava coberto por hematomas. A maioria ainda estava amarelado, alguns outros estavam começando a ganhar uma tonalidade cor de beterraba. Meu rosto estava inchado, e uma pequena manchinha vermelho-sangue havia aparecido na parte branca de meu olho esquerdo, onde o soco de meu pai havia me atingido. A dor em meu corpo era grande, mas a dor emocional que meus pais estavam causando-me era imensa, e eu tinha certeza absoluta que eu nunca iria recuperar-me verdadeiramente daquela tortura. Eu chorei durante aquele dia inteiro. Chorei por mim, por , por Alberto e por Daniel. Chorei por minha mãe. Chorei por todas as mulheres submissas aos homens de suas famílias e por cada bofetada que a maioria delas já havia levado na vida. Orei. Orei para que um dia, de alguma forma, alguém pudesse olhar por todas nós.
O sol estava se pondo quando eu notei o garoto que limpava os quiosques na praia do outro lado da rua. Olhei-o vindo até minha casa, dando a volta nos arbustos e vindo até a minha janela.
- Oi, moça. O te mandou essa carta. O que aconteceu com seu rosto?
- Não foi nada, não se preocupe. Não conte a , está bem? Você aguarda um minutinho, caso eu precise responder?
- Você que manda, moça.
“Oi, bela .
De acordo com os últimos acontecimentos tenho pedido com todas as minhas forças que você esteja bem. Deus deve estar de saco cheio de mim, pois estou incomodando-o com minhas preces a cada hora. Se você está lendo essa carta significa que Deus gosta um pouco de mim e guiou os passos de Toninho para que ele a levasse para você em segurança até a sua casa. Ele ficará aguardando que você escreva uma mensagem para mim também, se você quiser escrever. Foi essa a forma que encontrei para que possamos nos comunicar, pelo menos uma vez na semana, enquanto não podemos nos ver. Espero que este período passe logo, estou morrendo de saudades suas. Com amor, seu .
13 de Julho de 1950.”.
Em meio às lágrimas, respondi a carta de assegurando-lhe que estava bem, mas trancada em meu quarto e enfatizei o quanto eu o amava. Dei uma gorjeta retirada de meu pote cor-de-rosa de economias para o garoto, que descobri chamar-se Toninho, pelo favor prestado. E assim seguiram-se os dias.
“Oi, meu amor.
Sinto sua falta todos os dias. Olhar para a praia e não vê-la lá é tão frustrante quanto olhar um céu sem estrelas. Não há beleza no mundo sem você. Não há razão para deixar a felicidade entrar. Infelizmente eu não tenho boas notícias. Finalmente consegui arrumar o carro, mas seu pai o pegou de volta. Disse que me denunciaria por roubo se eu não devolvesse. Como eu nem mesmo consegui arrumar um emprego ainda, não tive escolha. Sempre seria a palavra dele contra a minha. Mas, amor, não desista! Eu sei que eu vou lutar até o fim de meus dias por nós dois. Com amor, seu .
26 de julho de 1950.”.
Até que recebi uma carta que mudou tudo completamente.
“Oi, coração!
Hoje é um bom dia e eu tenho uma novidade. Eu consegui um bom emprego! A única parte ruim é que esse emprego é em São Paulo, mas o salário é maravilhoso, bela . Eu fui requisitado por lá, sabia? Não parece chique? Com dois meses eu já consigo levá-la comigo para que possamos viver juntos. O que você acha? Prometo escrever-te todos os dias! Contar-te tudo sobre São Paulo, para que você decida em que lugarzinho de lá prefere viver. Parto em alguns dias, . Mas eu volto. Eu volto para lhe buscar. E como garantia de minha promessa eu ofereço-lhe essa aliança para desposar-te quando eu voltar. Coutinho, você aceita casar-se comigo e viver uma vida inteira de amor? Com todo o amor que sinto, .
02 de Agosto de 1950.”.
Ouvi passos no corredor e despertei de meus pensamentos guardando as cartas o mais rápido que pude debaixo da cama novamente e levantei-me rápido, sentindo uma zonzeira momentânea e me escorando nas grades da janela. Pisquei algumas vezes para que o quarto parasse de rodar.
- Bom dia, querida. – a voz de minha mãe soou musical, como se ela estivesse feliz. Eu não disse uma só palavra enquanto ela deixava a bandeja do almoço em cima da cama e pegava a que havia deixado na noite anterior – Ora, anime-se, ! Seu pai tem novidades para você hoje.
- Eu espero que seja outra surra. Quem sabe dessa vez eu morra. Será minha maior alegria.
- Nunca mais repita isso! Eu não aguentaria perdê-la.
- A senhora já me perdeu, mamãe. Me perde dia após dia em que me deixa trancada nesse quarto como se eu tivesse cometido um crime! Eu só me apaixonei, mamãe.
- Esse rapaz outra vez, ! Esqueça-se dele! Esqueça-se já!
- Nunca! Eu nunca vou esquecê-lo!
- Você nunca mais vai vê-lo, . está morto!
Um grito de agonia escapou por minha garganta. Senti minhas pernas tremerem. Senti o meu estimado revirar. Meus olhos umedeceram no momento em que minha mãe proferiu as palavras que terminaram de matar-me ali onde eu estava. Meu coração disparou a bater em velocidade recorde e eu levei minhas mãos a minha boca para tentar segurar o jantar da noite anterior em meu estômago. Infelizmente o truque não deu certo e eu vomitei no meio de meu quarto.
- ! ! – a última coisa que pode ouvir logo após a minha visão escurecer foram os gritos de minha mãe enquanto ela amparava-me desesperada.
10 de junho de 2018 - Recife, PE.
Sentada de frente para o mar eu me lembrei da última vez que abri aquela caixinha de cartas.
- Me lembro como se fosse ontem: eu sorri fraco, porque a lembrança de ainda era dolorosa demais. Estava chovendo em São Paulo. O clima estava cinza escurecido, sem nenhuma beleza e estava tão frio quanto o meu coração estivera nos últimos tempos. Eu li, pela última vez, as últimas cartas que escrevi. As quais eu não pude enviar, e ele não pode ler.
“Oi, coração.
Não consegui escrever nada durante algum tempo, afinal, o simples lembrar de ti doía demais. Estamos bem por aqui e eu espero que você também esteja bem por aí. Seja onde for. Com amor, sua . - 22 de setembro de 1950.”.
Uma lágrima gorda desceu por minha bochecha e eu a sequei rapidamente quando senti nós em minha garganta. Não poderia dar-me ao luxo de ter uma crise de choro naquele instante.
“Oi, meu amor.
Eu não poderia acordar, e saber que você não está aqui. Eu não poderia suportar o silêncio que habita em mim quando você não está aqui. Eu não poderia viver sem os seus lábios, sem os seus carinhos e abraços, aceitar a solidão de quando você não está aqui. Já não consigo mais continuar e suportar que a sua recordação e seu olhar, não irão mais retornar. Eu não poderia viver sem você. Eu não posso. Eles tiraram tudo de mim. Tiraram-me você. Tiraram-me nosso bebê. Tiraram-me de mim mesma, de minhas escolhas, de minha vida. Não quero mais viver. Quero ir embora, para onde você está. - 29 de setembro de 1950.”.
Sorri comigo mesma, segurando mais uma carta entre minhas mãos.
“Oi, amor.
Finalmente consegui parar de chorar por você. Durante algum tempo eu só quis morrer. Quando eu te perdi, perdi uma parte de mim. Quando perdi a Estela, eu perdi mais um pedaço meu. Eu realmente achei que não pudesse mais viver e eu tentei, que Deus me perdoe, mas eu tentei tirar a minha própria vida. Agora eu estou me sentindo melhor, apesar de ainda sentir sua falta todos os dias. Eu aceitei que quando a minha hora chegar, você estará lá, aguardando-me. E nós seremos felizes juntos. Não perca as esperanças, pois eu não as perderei. Você foi embora, e hoje, sou eu quem vou. Eu o amo. Para sempre. Um beijo, sua . - 10 de novembro de 1950.”.
- Depois disso eu tranquei a caixinha dentro da gaveta da cômoda e coloquei a chave sob a penteadeira. Eu nunca mais abri essa caixa... Até hoje. Até agora, com você.
Minha neta limpou os olhos vermelhos e molhados e fungou ao abraçar-me com toda a força que tinha. Ela segurou as minhas mãos e depois as beijou.
- Essa é a história mais triste que eu já ouvi em toda a minha vida. Os seus pais foram cruéis. Eu sinto muito, eu sinto muito mesmo.
- Está tudo bem, meu amor. Isso foi há tanto tempo... Já está tudo bem.
- Obrigada por me contar, vovó. Posso perguntar uma coisa?
- Claro, querida.
- Então o bebê que você perdeu não era do vovô, mas sim de ? Eu nunca soube disso!
- Ninguém nunca soube! Nem mesmo seu avô! - eu ri um pouco lembrando-me de meu Aloísio. Sentia falta dele também. - Aliás, Alberto sabia a história. Ele repudiou-me quando disse que estava casada com seu avô, pois achou que eu estava fazendo isso por meus pais. Mas eu estava fazendo por mim mesma. Conheci Aloísio em São Paulo, e ele apaixonou-se por mim assim que nos conhecemos. Com o tempo, eu também o amei. Não da forma que eu amava , mas eu o amei.
- E como foi que você descobriu que não estava mesmo morto? Que a carta que seu pai a mostrou era falsa?
- Eu fiquei arrasada. Não consegui comer por dias! Quando meu pai me revelou todas as cartas dele que escondeu de mim eu fiquei furiosa. Mas eu precisei seguir em frente, afinal eu não era mais uma mocinha, eu tinha um lar e uma família.
- Essa aliança que você usa no cordão é a aliança que ele te deu? Dentro da carta de despedida?
- Sim. – sorri passando a mão pelo colar em meu pescoço. – Infelizmente, eu nunca pude dizer sim.
- Sua história dá um filme, vovó. Você o procurou?
- Eu procurei. Mas veja bem: meu pai contou-me tudo quando adoeceu muitos anos depois. Estava morrendo quando me explicou tudo o que fez para nos manter longe um do outro. Enviou-me uma falsa carta com a declaração de óbito de e fez o mesmo com ele, fingindo que eu sucumbi a morte. Não sei se falou do bebê que eu esperava e que perdi. Talvez não. Mas já fazia muito tempo quando descobri, não consegui encontrá-lo. Nunca soube por onde andava, mas sei que ele ainda deve pensar que eu estou morta. Quando meu pai faleceu, me deixou tudo em testamento. A casa, os carros, e as ações. Foi o único pedido de desculpas que eu recebi dele. Dinheiro.
- E a sua mãe?
- A minha mãe me pediu perdão pelo telefone uma vez. Ela pediu perdão todos os dias até o dia em que faleceu.
- E essa é a primeira vez que a senhora volta para casa desde então. Deve estar sendo difícil...
- Já disse que está tudo bem, meu amor! Uma onda de lembranças boas e ruins me acometeu. Mas é isto que elas são, apenas lembranças, memórias e pensamentos meus, que são a minha história, o meu passado. Está tudo bem.
O ápice do pôr do sol pairou sobre a praia no momento em que me decidi que aquelas cartas de amor, tanto minhas quanto as de , já não eram minhas, mas sim da água. A água salgada que presenciou toda a nossa sofrida história de amor. Sorri enquanto subia no píer e joguei todas as cartas uma a uma dentro do mar. As ondas que começavam a ficar mais fortes naquele horário da tarde engoliram os pedaços de nós dois descritos naquelas folhas de papel até que a minha visão turva não podia mais enxergar nenhum deles. Olhei para a beira da praia e vi minha filha e seu marido brincando com Miguel. Foi impossível não me lembrar da primeira vez que fui à praia em São Paulo, logo que cheguei na cidade. Aloísio levou-me depois de eu lhe contar que amava o mar e foi lá que reencontrei Alberto, Daniel e o pequeno Eric brincando sob a areia quente. Sorri mais abertamente ao sentir a carícia de minha neta sobre a minha mão e inspirei profundamente a brisa salgada que nos saudava.
- Com licença, senhora. – a voz de um garoto tirou-me de meus pensamentos. Quando olhei para o seu rosto uma sensação familiar preencheu todo o meu coração. Ele tinha olhos tingidos de cor azul tão profundos quanto às águas do mar. Sua pele bronzeada de sol mostrava-me que ele havia vivido sua vida toda por aqui. Entre o sol e o mar. Os cabelos eram castanhos, mas com a luz refletida possuíam um leve de dourado. Não parecia ter mais de 20 anos de idade, mas ainda assim, lembrava-me muito meu .
- Sim?
- Por acaso, o seu nome é ?
- Sou eu mesma. Por quê?
- O meu avô pediu para que, se o seu nome fosse , eu lhe entregasse essa rosa. Ele falou que a senhora ainda se parece com a mesma garota que ele conheceu quando era novo.
- ? Ele está aqui?
- O quê?! Qual a chance? – ouvi Catarina balbuciar perplexa, fazendo contas com seus dedos.
- Olhe para atrás, dona .
No momento em que olhei para trás eu pude vê-lo. Meu . Ele estava caminhando devagar pela praia, com sua bengala entrando e saindo da areia com dificuldade. Ainda usava camisa com suspensórios. E apesar das rugas, seu rosto ainda era tão lindo quanto eu me lembrava.
Desci do píer para ir a seu encontro. Notei a roseira da qual ele havia apanhando a rosa que havia feito o neto me entregar e gargalhei com a lembrança que invadiu meu cérebro.
- É você mesmo, ? - foi a única coisa que consegui perguntar quando fiquei frente a frente com o grande amor de minha vida. Lágrimas quentes molharam meu rosto cheio de rugas e no momento em que passou seus dedos por minhas bochechas para secá-lo eu era uma garota outra vez. O abracei. O abracei com toda a força que eu ainda possuía e prometi para mim mesma que não o soltaria jamais. Eu o senti chorando sob meu cabelo e uma mistura de sentimentos embalou o meu coração como já não fazia há muitos anos.
- Não precisa mais chorar, . Deus é bom com almas boas.
- Eu nunca mais irei soltá-lo.
- Você ainda me ama, ?
- Eu sempre amei você, . E sei que vou amar até o final dos meus dias, até a última batida do meu coração.
- No dia em que a vi atropelando o latão de lixo, eu já sabia, . Eu tinha certeza que você era o grande amor da minha vida. Eu nunca perdi as esperanças de encontrá-la. Feliz aniversário, bela .
Enquanto a noite caia sob nossas cabeças eu pedi ao universo para que, por favor, não o levasse para longe de mim outra vez. No momento em que o grande amor de minha vida se inclinou para tocar seus lábios suavemente no topo de minha cabeça, após 68 anos desde a última vez em que nos vimos, meu coração festejou dentro de meu peito.
FIM.
Nota da autora: Oi, corações.
Espero que alguém tenha chegado até aqui, e que tenha gostado dessa história de amor, inspirada no que a Anna e o Boris viveram juntos. Os dois tiveram seu amor interrompido e 60 anos depois, reencontraram-se por acaso em sua cidade natal. Eu não sei porque, mas escutando Hoy Que Te Vas e depois analisando a letra da canção eu lembrei dessa história e a reescrevi com um imenso carinho. Meu abraço especial será destinado a Julia Mattar, a rainha maravilhosa que fez as capas incríveis desse ficstape, e as aesthetics. Obrigada, Ju! Você arrasa! Aos leitores, desejo muito que a minha escrita possa aquecer seus coraçõezinhos em tempos de isolamento social, em que as vezes só queríamos um abraço apertado daqueles que amamos, e não podemos ter. Tudo vai dar certo no final, gente, acreditem. Se você gostou, deixe um recadinho para mim aqui ou então, entre no grupo de histórias para me contar! Um beijo, e até a próxima.
Nota da beta: Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.
Espero que alguém tenha chegado até aqui, e que tenha gostado dessa história de amor, inspirada no que a Anna e o Boris viveram juntos. Os dois tiveram seu amor interrompido e 60 anos depois, reencontraram-se por acaso em sua cidade natal. Eu não sei porque, mas escutando Hoy Que Te Vas e depois analisando a letra da canção eu lembrei dessa história e a reescrevi com um imenso carinho. Meu abraço especial será destinado a Julia Mattar, a rainha maravilhosa que fez as capas incríveis desse ficstape, e as aesthetics. Obrigada, Ju! Você arrasa! Aos leitores, desejo muito que a minha escrita possa aquecer seus coraçõezinhos em tempos de isolamento social, em que as vezes só queríamos um abraço apertado daqueles que amamos, e não podemos ter. Tudo vai dar certo no final, gente, acreditem. Se você gostou, deixe um recadinho para mim aqui ou então, entre no grupo de histórias para me contar! Um beijo, e até a próxima.